É impreciso dizer desde quando o ser humano começou a tentar explicar a estrutura, constituição e evolução do Universo. Algumas das primeiras tentativas não míticas de que temos registro encontram-se há mais de 2,5 mil anos, na sociedade grega. Filósofos pré e pós-socráticos esboçaram suas visões de mundo de forma justificada, lançando mão muitas vezes de explicações racionais para os fenômenos observados na natureza. Ao longo do tempo, com o esforço de muitos pensadores, pesquisadores e observadores, nossa cosmovisão foi mudando, e chegamos hoje a uma concepção de um universo evolutivo e em expansão, iniciado em um evento cataclísmico, o chamado Big Bang[1] .
Iremos relatar aqui a cosmologia de um desses filósofos gregos, Platão, descrita no diálogo Timeu, onde ele nos conta sua própria história de como o nosso Universo foi formado a partir do nada, os elementos que foram constituindo os seres, e de como estes evoluíram tornando- -se o que é observado na natureza. Ele une na construção da realidade suas mais preciosas paixões: o mundo, a matemática (com forte influência pitagoreana) e a música. No entanto não abre mão de uma parte mítica, legada ao inexplicável, ao incognoscível. Cada ser, segundo ele, é composto de forma a harmonizar e complementar o todo, e relata, como em uma fábula, a gradual transformação daquilo que não é, ao vir a ser, e finalmente, ao ser.
A base estrutural do mundo são duas entidades: uma alma imortal, invisível e divina, e um mundo concreto e visível, com seres mortais, aos quais a alma comanda e com quem compartilha sua inteligência e racionalidade. A alma imortal é formada a partir de uma ordem harmônica, à semelhança das harmonias das escalas musicais; o mundo concreto é formado pelos quatro elementos básicos, o fogo, a água, a terra e o ar, em conformações de poliedros regulares. Por obra de um ente divino, incognoscível e inconcebível para nós, mortais, este nosso mundo com todos os seus entes e seres, foram constituídos e colocados em movimento, em um eterno devir.
Em uma época em que as mais remotas perguntas às nossas questões primordiais sobre o Universo e sua origem estão sendo gradualmente desveladas com a teoria do Big Bang, da formação das galáxias, estrelas e planetas, o Timeu nos apresenta uma das primeiras tentativas da humanidade de responder a essas questões, de uma forma que una o mito, a observação do mundo, e uma teoria coerente e autoconsistente. A história de Platão é contada sempre tentando buscar as explicações mais plausíveis e verossímeis para o mundo sensível que ele observa.
O Conhecimento do mundo
Platão parte dos questionamentos mais primordiais para construir sua explicação do mundo. Qual a causa de tudo o que existe? Por que o mundo foi formado desta maneira e não de outra? Esse mundo é único ou existem outros? Como os seres vivos e todas as outras coisas visíveis foram formados?
Ele começa a sua explicação definindo o ser do Universo, aquilo que é manifesto, como sendo de dois tipos: um que sempre existiu e sempre irá existir (portanto sem início ou fim), imutável e sempre igual a si mesmo; e outro, que tem um início, e portanto uma causa (pois nada pode originar-se sem causa), é sujeito ao nascimento e ao devir, e está em constante mudança. Ele se pergunta sobre qual foi o modelo adotado para a criação do Universo. Partindo da observação de que entre as coisas nascidas não há nada mais belo do que o mundo, sendo esse “a obra mais bela e perfeita que se poderia imaginar”, necessariamente o modelo adotado foi o eterno e imutável, pois só ele pode criar coisas belas, enquanto que o efêmero, nada pode criar de belo. Sobre o criador do mundo, o autor desse universo, é “impossível indicar o que seja”. Somente sabemos que essa divindade emprestou ao mundo “a mais completa semelhança com o ser inteligível”. O mundo, por sua beleza e tendência à perfeição, foi feito à imagem do divino.
Segundo ele, podemos conhecer as entidades eternas e imutáveis através da inteligência e da razão, enquanto que as entidades sensíveis (tudo aquilo que é visível ou de alguma forma sensível) são somente apreendidas pelas sensações e pela opinião. Na busca pela compreensão do mundo, nossas palavras “devem exprimir o que é estável e fixo com ajuda da inteligência”, assim, elas serão fixas e inalteráveis, e, tanto quanto possível, de natureza “irrefutável e inabalável”. Mas nossas palavras serão sempre limitadas, pois exprimem apenas a cópia do modelo, uma imagem. Então deve-se admitir a restrição do conhecimento humano, adotando-se sempre “o mito mais verossímil, sem pretender ultrapassar os seus limites”. Assim, toda a exposição feita ao longo do diálogo leva em conta essa fronteira entre a realidade e o conhecimento mais provável.
A Construção do Universo
A fim de criar um Universo o mais belo e perfeito possível, a divindade tomou as coisas visíveis que estavam em movimento desordenado e discordante, passando-as à ordem, atribuindo-lhes proporção e simetria. Platão pergunta se existiria um só mundo ou vários mundos. Como ele parte do pressuposto de que o mundo é formado à imagem do ser divino, ele tem que ser uno e completo, e não coexistir com um segundo, terceiro ou com infinitos mundos. A divindade então forma um ser uno, como um animal vivo, visível e dotado de alma – pois todo ser inteligente possui alma. E esse ser encerra todas as espécies vivas, “todos os animais individualmente considerados”.
Na constituição desse ser, corporal e tangível, a divindade vai utilizar o fogo, que torna as coisas visíveis, e a terra, que compõe as coisas sólidas. Para ligar essas duas coisas é necessária uma terceira, mediadora entre as duas primeiras. Segundo ele, isso seria suficiente para formar uma estrutura bidimensional. Aqui começa a avaliação matemática do Universo platônico: estruturas bidimensionais estão restritas ao plano, que é definido por três pontos em formação não linear, formando um triângulo. No entanto, o que se observa em nosso Universo são estruturas tridimensionais, com profundidade, que requerem um quarto ponto (não co-planar aos demais) para serem definidas. Portanto, são acrescidos a água e o ar, além do fogo e da terra, à constituição do mundo. Esse processo absorve tudo o que havia desses quatro elementos, harmonizado-os pela proporção, e unindo-os pela amizade, trazendo coesão ao todo. O mundo adquire assim uma unidade, sendo incapaz de ser dissolvido, a não ser pelas mãos de seu próprio criador.
Como a divindade construiu o mundo à imagem e semelhança do ser perfeito, foi-lhe atribuída a mais perfeita das formas e a mais semelhante a si mesma, a esférica, cujas extremidades distam igualmente do ponto central; assim ele fez “por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo que o dissemelhante”. Deu-lhe então o movimento que seria mais natural fazendo-o girar em torno de si mesmo. Esse ser quase perfeito, livre de doença ou velhice, alimenta-se de seu próprio desgaste, bastando-se a si mesmo “sem necessitar de coisa alguma”, e encerrando todos os processos que dele se engendram. Em seu centro, a divindade colocou a alma, que já havia sido criada sendo portanto mais velha e destinada a comandar. A alma a partir do centro então se irradiou para todo o corpo, conferindo-lhe inteligência e razão.
A Estrutura do mundo
Platão expõe um pensamento complexo a respeito da constituição da alma do mundo; como amante da música, faz uso de séries geométricas e harmônicas para explicar sua formação. Segundo ele, em primeiro lugar, a divindade separou nas três substâncias existentes (que ele chamou de o Mesmo, o Outro e a Existência) as partes com a substância indivisível que é sempre a mesma, das partes com a substância divisível, a “que nasce nos corpos”, e compôs com cada uma delas uma substância intermediária. A mistura dessas três componentes intermediárias foi então subdividida em frações de 1, 2, 3, 4, 8, 9 e 27, formando assim duas séries geométricas: 1, 3, 9, 27 e 1, 2, 4, 8. Os intervalos entre essas substâncias foram preenchidos de forma harmônica, com proporção dada pela razão de 26/35 ou 256/243, que corresponde a um dos semitons da escala pitagórica.
Toda essa composição formou a Alma do Mundo. Esta foi então dividida em duas metades que cruzadas entre si formando um X, foram entortadas e suas extremidades unidas de forma constituir dois círculos: um externo, formado do Mesmo, e outro interno, formado do Outro. O círculo externo designa o Equador, referente à rotação da Terra, e o interno designa a Eclítica, referente à órbita terrestre e ao plano do Sistema Solar. O círculo interior foi então subdividido em sete, o mais interno correspondendo à Lua, o seguinte ao Sol, depois à estrela matutina (Vênus) e Hermes (Mercúrio), e depois aos outros três planetas (Marte, Júpiter e Saturno). Os círculos foram então colocados em movimento, três com igual velocidade (Sol, Hermes e a estrela matutina[2]), e os outros quatro com velocidades diferentes. Esses astros errantes nasceram “para definir e conservar os números do tempo”. A divindade criou o céu corpóreo e uniu-o à alma do mundo pelos respectivos centros. Com o céu cria-se também o tempo, e com ele, os dias e noites, meses e anos, “pois a natureza eterna desse ser vivo [a alma] não podia ser atribuída em toda a sua plenitude ao que é engendrado”.
O processo de conhecimento dessas esferas difere para cada uma delas. Se o discurso é formado a partir da razão, é acessado o círculo do Mesmo e o resultado é “inteligência e conhecimento”, pois todo o conhecimento provém da alma. Se ele é formado a partir do sensível, é acessado o círculo do Outro e são formadas “opiniões sólidas e verdadeiras”.
As Entidades formadas
Foram formadas então quatro raças: a raça celeste dos deuses (imortal); a raça dotada de “asas que cortam os ares”; a espécie aquática; e a raça que marcha em terra firme. A raça celeste é composta de fogo, tem a forma perfeita (esférica), e foi distribuída pelo céu. Para os astros não errantes, a divindade atribuiu um movimento uniforme, permanecendo no mesmo lugar uns relativamente aos outros, e para os errantes, além desse movimento, um outro progressivo dominado pela revolução do Mesmo e da Existência. A Terra é a mais antiga das divindades, nascida do interior do céu, e criada “para ser nossa nutridora”. Platão se isenta de explicar precisamente o movimento dos outros astros (os errantes e com movimento retrógrado): “Sobre isso basta, arrematemos aqui mesmo nosso relato sobre a natureza dos deuses gerados e visíveis”.
Como um relato da descrição da origem dos deuses, ele recorre então à narrativa da Teogonia de Hesíodo[3]. A formação dos seres mortais é executada “tecendo o mortal com o imortal”, dividindo os ingredientes em “tantas almas quantos astros havia” e designando a cada alma um astro. Nessa parte Platão explicita a crença pitagórica da reencarnação. Segundo ele, na primeira encarnação todos os seres mortais surgiriam em igual situação. Se tivessem má conduta, eles reencarnariam como mulheres, e se continuassem maus, em sucessivos estados animais “cuja natureza mais se aproximasse de seu caráter”. Esses seres foram semeados na Terra, na Lua e nos outros astros. Os deuses são então incumbidos de governar o melhor possível a raça humana.
A Constituição do mundo
Como o mundo teve uma origem, ele se deve a uma causa. Sendo a coisa mais bela que existe, ele é fruto também da inteligência, e se deve a uma “vitória, pela persuasão, da sabedoria sobre a necessidade”. Platão indaga então qual o princípio das coisas que compõem esse Universo, dado que os elementos fogo, terra, água e ar já existiam antes do nascimento do céu, e quais eram as suas propriedades. Sua primeira observação diz respeito à transitoriedade desses elementos observados na realidade: a terra se transforma em ar com o vento, o ar se transforma em fogo quando inflamado, a água vira pedra ao se condensar. Assim não podemos designar as coisas por esses elementos, mas sim pelas suas manifestações momentâneas.
Platão se pergunta se essas coisas, fogo, água, terra e ar, existiriam por si mesmas, ou se são apenas ilusões dos sentidos. Ele sugere que se elas existem por si mesmas então a opinião verdadeira e a inteligência constituem gêneros distintos: “Precisamos reconhecer que se trata de coisas diferentes, por terem origem distinta e serem dissemelhantes por natureza, pois uma se produz em nós por meio da instrução; a outra por meio pela persuasão”; e acrescenta: “Todos os homens participam da opinião mas a inteligência é privilégio dos deuses e de um número muito reduzido de homens”.
Neste ponto ele expõe sua teoria das Ideias, que são formas imutáveis, eternas, invisíveis e imperceptíveis, que podem ser apreendidas apenas por meio do pensamento. As Ideias seriam o modelo a partir do qual as coisas sensíveis tomam sua forma, sem porém nunca chegar à sua perfeição e perenidade. As formas observadas, na realidade, são transitórias, mutáveis e estão sempre em movimento, sendo perceptíveis através das sensações e apreendidas pela opinião.
Além do mundo das ideias e do mundo sensível, ele coloca ainda uma definição obscura de espaço, que seria uma terceira entidade, o qual “enseja tudo o que nasce em si mesmo, não é apreendido pelos sentidos, mas apenas por uma espécie de raciocínio bastardo (…) o ser, o espaço e a geração são três princípios distintos desde antes mesmo da formação do céu”.
A Formação dos corpos
Segundo Platão, os corpos são formados pelos quatro elementos: fogo, água, terra e ar. Eles têm uma natureza tridimensional portanto compreendem uma superfície e uma profundidade. A superfície plana, como dito anteriormente, é definida por três pontos não lineares formando assim um triângulo. Todo triângulo é derivado de dois triângulos retângulos (aqueles que contêm um ângulo reto). A partir desses triângulos retângulos, em suas diversas formas e combinações, são formados os quatro elementos, “de acordo com o método que concilia a necessidade com a probabilidade”. Ele atribui a formação dos elementos e do mundo a quatro sólidos regulares: o mais simples é o tetraedro, com quatro faces triangulares (ver figura), em seguida o cubo, com seis faces quadradas, depois o octaedro com oito faces triangulares, e por fim o icosaedro, com vinte faces triangulares.
A pirâmide ou tetraedro, por apresentar várias pontas agudas e possuir menor superfície, tem natureza mais móbil e cortante e é atribuída ao fogo. O cubo, por ter a base mais ampla e ser o mais estável e mais plástico dos sólidos, é atribuído à terra. A água e o ar encontram-se, em termos de mobilidade e de peso, entre a terra e o fogo, sendo a água menos móvel e mais pesada do que o ar. Assim, o octaedro é atribuído ao ar, por ser uma figura mais leve e penetrante que o icosaedro, o qual foi atribuído à água.
As unidades desses elementos apresentam-se na natureza de forma muito pequena, diminuta, que nos escapa à visão; “só percebemos as massas formadas por uma multidão deles”. Não apenas isso, mas esses elementos encontram-se sempre misturados entre si, em menor ou maior quantidade, e podem transformar-se uns nos outros, através do corte ou da condensação. Portanto na visão de mundo platônica, tudo está em constante movimento e transformação: “daí provém a infinita variedade, resultante da mistura entre eles mesmos e de uns com os outros”.
A tentativa de explicação de mundo platônica mescla assim elementos divinos e racionais, matemáticos e musicais, que influenciaram os pensadores que o sucederam. A ideia de uma ordenação por poliedros regulares chegou a influenciar Kepler[4], quase 20 séculos depois, na concepção das órbitas dos planetas, e mesmo tendo chegado às suas famosas leis keplerianas, com órbitas elípticas para os planetas, a ideia dos poliedros aparentemente nunca o abandonou.
Entrelaçando o mítico, o racional e o ficcional, fomos aos poucos constituindo nossa noção de mundo, tateando lenta e sutilmente o real. Há dois mil e quinhentos anos, Platão adotava poliedros e os círculos do Mesmo e do Outro para explicar o universo; hoje, na fronteira de nosso conhecimento, nos deparamos com a matéria escura e a energia escura, os grávitons e os neutrinos, e outras tantas entidades para compor esse mundo.
Autor: Luciana Pompéia
Fonte: Revista Filosofia
* Luciana Pompéia é doutora e pós-doutora em Astrofísica pela USP, pós-doutora em Astrofísica pelo Observatório de Paris e graduanda em Filosofia pela PUC-RJ
Notas
[1] – Para uma interessante história da evolução das concepções do Universo ver Big Bang, de Simon Sigh (Editora Record, 2006).
[2] – Segundo Platão, Vênus (estrela matutina) e Mercúrio (Hermes) transladam em sentido contrário ao do Sol. Como os antigos gregos já tinham observado eventos de trânsito desses planetas no Sol, ou seja, a passagem deles na frente do Sol, eles explicam esses eventos supondo que eles se desloquem na direção contrária a ele.
[3] – Poeta e historiador grego, nascido em Ascra, não há uma data exata sobre o período em que Hesíodo viveu. São atribuídas à Hesíodo as obras Teogonia e O Trabalho e os Dias.
[4] – Johannes Kepler (1571- 1630) foi um astrônomo alemão, formado pela Universidade de Türbingen. Aderiu ao sistema heliocêntrico de Copérnico e formulou as três leis que levam seu nome: As três leis de Kepler.
En la “construcción del Universo”, dice: “Platão pergunta se existiria um só mundo ou vários mundos. Como ele parte do pressuposto de que o mundo é formado à imagem do ser divino, ele tem que ser uno e completo, e não coexistir com um segundo, terceiro ou com infinitos mundos.”
Pero luego afirma en “A estrutura do mundo” lo siguiente: ” depois aos outros três planetas (Marte, Júpiter e Saturno). Os círculos foram então colocados em movimento, três com igual velocidade”
Entonces: ¿fue creado Un mundo o varios?
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