A Origem da Alma – Capítulo 3 (1ª Parte)

OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS E A PSYKHÈ

A Busca dos Princípios

Como visto anteriormente, os primeiros filósofos buscavam, entre outras respostas, os princípios das modificações, das transformações fenomênicas, do nascimento e morte das coisas. Admiravam-se com a perpétua instabilidade das coisas, sua aparição e desaparição, sua geração e corrupção. Ou seja, com a mudança.

Kínesis é a palavra grega que indica a mudança incessante, o movimento. Movimento, neste sentido, significando todas as mudanças que um ser pode sofrer, assim como o nascer e o perecer. E os primeiros filósofos, e todos os demais filósofos depois deles, se preocuparam e se interessaram pela kínesis, ou o devir incessante da natureza.

Além das questões relacionadas com a kínesis, existiam também outras preocupações: Qual a origem  das coisas? Como um único princípio poderia dar origem à multiplicidade das coisas? Como o múltiplo retornaria ao uno? Entre várias perguntas, encontravam-se unânimes preocupações com a arché e com a phýsis.

Arché significa aquilo que está no começo, no princípio, na origem de alguma ação. Os primeiros filósofos buscavam a arché, o princípio absoluto – primeiro e último – de tudo o que existe. A arché é o que vem e está antes de tudo, no começo e no fim de tudo, o fundamento, o fundo imortal, imutável e incorruptível de todas as coisas, que as faz surgir e as governa. É a origem, não como algo que está no passado, mas, sim, como aquilo que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente.

O significado da phýsis às vezes é confundido com o da arché, pois a phýsis é a fonte originária de todas as coisas, a força que as faz nascer, brotar, desenvolver-se, renovar-se incessantemente; é a realidade primeira e última, subjacente a todas as coisas de nossa experiência. É tudo o que é primário, fundamental e permanente, em oposição ao que é segundo, derivado e transitório. A phýsis, na verdade, é a manifestação visível da arché, o modo como esta se faz percebida. A phýsis é o manifesto e não oculto, é a forma, portanto, que torna visível a arché invisível (CHAUÍ, p.47).

Estes conceitos são de fundamental importância para se compreender como se construíram os primeiros sistemas metafísicos dos principais pré-socráticos, assim como suas primeiras concepções sobre a psykhè dentro destes sistemas. Mais adiante, em Platão, veremos como estas concepções se encontram e tomam a forma de uma cosmologia coerente.

De acordo com Werner Jaeger, e como poderá ser verificado mais adiante, as novas e revolucionárias ideias desenvolvidas pelos primeiros pensadores gregos referentes à natureza do universo tiveram um efeito direto sobre a sua maneira de conceber aquilo que chamariam – em um novo sentido – de “divino”. A história da teologia filosófica dos gregos é a história de sua maneira racional de aproximar-se da natureza da própria realidade nas suas sucessivas fases (JAEGER,1992, prefácio de 1947) .

Apesar do inegável legado que cada um dos pré-socráticos deixou à filosofia, serão citados aqui apenas aqueles que contribuem diretamente para este estudo por terem sido, de alguma forma, precursores das especulações metafísicas referentes à alma humana. Neste sentido, será dada uma especial ênfase aos fragmentos deixados por Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Empédocles e Anaxágoras. A Pitágoras, será dedicado um subcapítulo posterior.

Os Jônicos e os Eleatas

Na Jônia, colônia grega da costa asiática, se efetuaram os primeiros esforços de caráter completamente racional para descrever a natureza do mundo. A prosperidade material do local e as excepcionais oportunidades para estabelecer contatos com outras culturas aliaram-se a uma forte tradição cultural e literária que vinha do tempo de Homero (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, p.71).

O primeiro dos filósofos pré-socráticos foi o jônico Tales de Mileto[17], aparentemente também o primeiro filósofo a tentar uma elaboração sobre a alma, demonstrando um sério interesse pelo princípio de auto sustentação existente na psykhè. Para Tales, o princípio vital ou psykhè seria uma força motriz ou cinética, isto é, uma força capaz de kínesis, capaz de mover-se e de mover outras coisas (CHAUÍ, p.57).

A alma, quer fosse associada à respiração e ao sangue, quer ao fluido espinal, já era considerada por muitos como fonte de consciência e de vida (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, p.94). O diferencial de Tales foi enfatizar o caráter da alma como algo cinético. Isto pode ser percebido em duas famosas elaborações atribuídas a Tales: 1) sua comparação do ímã com a alma; 2) sua comparação da água, enquanto phýsis, com a alma. Vejamos.

No exemplo do ímã, Tales conclui que, pelo fato do ímã deslocar o ferro, ele possuiria uma “alma” própria, pois só a alma teria esse caráter cinético intrínseco. A esse respeito, disse Aristóteles:

Parece que também Tales considerou a alma como princípio motor, se disse, segundo o que se afirma dele, que o ímã tem uma alma, porque move o ferro. (ARISTÓTELES, Da alma, 5, 411 a 7s, apud Kirk; Raven; Schofield, 2008, p.93)

Com relação à sua segunda comparação, a da alma com a água, se faz necessário relembrar que, para Tales, a phýsis, ou princípio originário de todas as coisas, era a água, ou melhor dizendo, a qualidade da água, o úmido. Assim, a água é princípio do devir, da kínesis. É dotada de movimento próprio, ou seja, é automotora ou se movente: transforma-se a si mesma em todas as coisas e transforma todas as coisas nela mesma. Segundo Aristóteles, Tales teria afirmado que a água é a “alma motora do kósmos”, novamente numa clara alusão ao princípio de movimento próprio que existe na alma[18].

Apesar de Tales ser considerado um filósofo naturalista como vimos anteriormente na citação de Reale, o professor Werner Jaeger enxerga em sua teoria um pioneiro caráter metafísico. Isto pode ser deduzido da única sentença de Tales que nos chegou em seu caráter literal e na qual diz que “tudo está cheio de deuses”. Nas palavras de Jaeger,

[…] duzentos anos mais tarde, Platão cita esta sentença de forma especialmente enfática como se fosse a quintessência de toda a filosofia (Leis, 899b). A afirmação de que tudo está cheio de deuses poderia significar que tudo está cheio de misteriosas forças vivas; e aqui ele não encontra distinção entre as coisas animadas e as inanimadas; todas têm uma alma (JAEGER, 1992, p.27, grifo nosso).

Nota-se, além deste possível vislumbre metafísico, uma visível mudança de Tales em relação aos antigos mitos. Os deuses de Tales não vivem em alguma região remota e inacessível, mas, ao contrário, tudo que nos circunda está cheio de deuses, cheio de forças viventes e dos efeitos de seu poder (JAEGER, 1992, p.28).

Com Anaximandro de Mileto[19] notam-se mudanças importantes em relação ao pensamento de Tales e uma cosmologia visivelmente elaborada. Para ele, o princípio originário é o ápeiron, ou o indeterminado, o infinito, o eterno. Não é a água ou qualquer um dos elementos, mas é uma outra natureza, ilimitada, da qual são engendrados todos os céus e todos os mundos que neles se encontram. O princípio é eterno, portanto muito superior ao que eram os antigos deuses que, apesar de imortais, não eram eternos, visto que haviam sido gerados.

Apresenta-se, também, como novidade, uma clara distinção entre a eternidade do princípio e a “ordenação do tempo”, isto é, a distinção entre a perenidade imortal do princípio e o devir como ordem temporal da geração e corrupção das coisas. Além disto, Anaximandro concebe a ordem do tempo como uma lei necessária – por isso fala em injustiça e reparação justa – segundo a qual os elementos se separam do princípio, formam a multiplicidade das coisas opostas e, depois, retornam ao princípio, dissolvendo-se nele para pagar o preço da injusta individuação (CHAUÍ, p.60).

Em outras palavras, Anaximandro procura explicar como do indeterminado e ilimitado surgem as coisas determinadas e limitadas, ou, melhor dizendo, como se dá a origem das coisas individualizadas, de suas diferenças e oposições. Há em Anaximandro o vislumbre de um princípio de dualidade, que permitiria a coexistência de um princípio imutável juntamente com a multiplicidade sujeita à corrupção.

Em sua cosmologia, Anaximandro descreve que o mundo surge de um movimento circular turbilhonante que irrompe em diversos pontos do ápeiron. A partir deste movimento, separam-se do indeterminado as duas primeiras determinações ou qualidades: o quente e o frio, dando origem ao fogo e ao ar. E, em seguida, separam-se o seco e o úmido, dando origem à terra e à água. Essas determinações combinam-se ao lutar entre si e os seres vão sendo formados como resultados desta luta. O devir é esse movimento ininterrupto da luta entre os contrários e terminará quando forem todos reabsorvidos no ápeiron.

A origem do mundo é, pois, explicada como uma guerra incessante que travam entre si os elementos no interior do ápeiron. A luta dos contrários, no mundo em que vivemos, fere a justiça universal e esta exige uma reparação:

[…] o mundo, portanto, se origina de um processo injusto e cabe ao Tempo reparar a injustiça, obrigando todas as coisas determinadas e limitadas a retornar ao seio do indeterminado e ilimitado: a corrupção e a morte das coisas é justamente a expiação da culpa por sua separação e individuação (CHAUÍ, p.60).

Referente a esta questão, há uma inteira sentença atribuída a Anaximandro que diz :

[…] quaisquer que sejam as coisas de onde proceda a gênese das coisas que existem, nestas mesmas têm estas que corromper-se por necessidade; pois estas últimas têm que cumprir a pena e sofrer a expiação que se devem reciprocamente por sua injustiça, de acordo com os decretos do Tempo (ANAXIMANDRO apud Jaeger, 1992, p.41).

A ideia subjacente é de que o Tempo sempre descobrirá e vingará todo ato de injustiça, mesmo sem a cooperação humana. Jaeger evidencia que o quanto acima nos revela uma norma universal que pede um total acatamento, pois não é nada menos que a própria justiça divina. E parece não ser improvável que Anaximandro tenha, efetivamente, chamado de “divino” ao Indefinido (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, p.117). Conclui Jaeger que a explicação que Anaximandro nos dá sobre a natureza não é uma simples explicação, mas a primeira teodiceia filosófica (JAEGER, 1992, p.41).

Ainda conforme Jaeger, “em Anaximandro encontramos um primeiro quadro unificado e universal do mundo, baseado em uma dedução de todos os fenômenos. Anaximandro se esforça para encontrar a chave da estrutura oculta da realidade, estudando a forma como esta veio a ser aquilo que é. Pode-se rastrear este esforço no afã com que procura encontrar harmonia e proporções matemáticas nas relações do mundo inteiro com as suas partes” (JAEGER, 1992, p.29). Ou seja, Anaximandro postula que o universo deve ter um sentido racional. Além disso, acreditava em inumeráveis mundos, o que indica que sua ideia sobre o Ilimitado era perfeitamente séria.

Para Giovanni Reale, parece inegável que haja no pensamento de Anaximandro uma profunda infiltração de concepções religiosas, provavelmente órficas, e, conforme o autor, isso teria sido notado de diversos modos por vários pensadores. Da mesma forma, parece inegável um certo pessimismo de fundo na cosmologia de Anaximandro, que vê ligadas ao nascimento uma “imposição” e uma “culpa”, bem como na morte uma expiação, embora tudo isto seja temperado pelo pensamento dominante de uma “justiça que tudo equilibra” (REALE, 1993, p.56).

Apesar das especulações inéditas sobre o fim e a corrupção das coisas e de suas elaborações relacionadas à justiça universal, não nos chegaram maiores informações de Anaximandro referentes a uma ontologia da alma, diferentemente de seu discípulo Anaxímenes de Mileto[20], do qual nos chegaram fragmentos que revelam certamente uma preocupação com o entendimento desta questão.

Para Anaxímenes, a phýsis é o ar (pneûma), fato que poderia aparentar um retrocesso em relação às ideias de Anaximandro, que evitara identificar a phýsis com qualquer dos elementos sujeitos à mutação. Mas, na verdade, o ar de Anaxímenes seria algo mais complexo que o simples elemento que conhecemos. O ar sustenta-se a si mesmo, possui autonomia e autossuficiência própria de um fundamento ou princípio. O mundo é um ser vivo que respira e que recebe do sopro originário a unidade que o mantém (CHAUÍ, p.63). O ar, elemento universal, invisível e indeterminado, por sua força interna própria movimenta-se: contraindo-se ou dilatando-se, vai engendrando todos os seres determinados como manifestações visíveis de uma vida perene.

Desta forma, considerando o ar enquanto princípio vital, Anaxímenes teria escrito que “assim como nossa alma, ou princípio vital, que é ar, nos governa e nos sustenta, assim também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos”. Percebe-se claramente a alusão à ideia de uma força interna, energia autogerada e automovente. E esta ideia continuaria a ser utilizada pelos seus posteriores em suas conceituações sobre a alma.

Continua…

Autora: Anna Maria Casoretti

Fonte: Revista Pandora Brasil

Notas

[17] – Tales nasceu em Mileto, na Jônia, próximo a 625 a.C. Seu florescimento, ou período de sua máxima atividade, ocorreu em 585 a.C. Foi considerado um dos Sete Sábios da Grécia arcaica. Conforme David Cooper (2002, p.108), sua principal contribuição para a especulação filosófica foi levantar a questão “qual é a fonte ou substância original de todas as coisas?”

[18] – Conforme citação feita por Aristóteles e referenciada por Chauí (p.57).

[19] – Anaximandro foi provavelmente discípulo de Tales. Teria nascido em 610 a.C, em Mileto, e falecido em 545 a.C. Foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o processo cósmico total, e é também o iniciador da astronomia grega (cf. notas de Souza em Os Pré-Socráticos).

[20] – Anaxímenes deve ter nascido em Mileto, e foi discípulo e sucessor de Anaximandro. Nascimento provável em 585 a.C e morte em 520 a.C.

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