Heidegger e a metafísica do “nada”

O presente artigo trata fundamentalmente da importância de se entender o nada negligenciado pela ciência e até por nós mesmos, segundo o pensamento de Martin Heidegger. Para tanto, tomaremos por base uma preleção realizada por esse pensador em 14 de julho de 1929 como aula inaugural que atendia o convite de ocupar a cátedra de Filosofia em Freiburg, preenchendo a vaga de seu mestre a Edmund Husserl[1]. Na oportunidade, Heidegger “realiza uma analítica da existência científica e a partir dela procura responder o que é metafísica. Não define a metafísica”. (STEIN in HEIDEGGER, 1999, p. 45). Ele diz ser mais fácil apresentar a todos a própria metafísica desenvolvendo uma questão que os situassem no seu interior.

Para tal intento, Heidegger resolve expor, inicialmente, o que caracteriza uma questão metafísica. Em primeiro lugar, “toda questão metafísica abarca sempre a totalidade da problemática metafísica”(HEIDEGGER, 1999, p. 51). Em segundo lugar, toda questão metafísica problematiza o indivíduo que a questiona (HEIDEGGER, 1999).

Fica claro que uma questão genuinamente metafísica remete a toda metafísica, inclusive, apesar de transcender o indivíduo que a questiona, ela só pode ser formulada se esse que a questiona também for indagado. Ou seja, – ele pode realizar tal questionamento? Em que condições? Quais as possibilidades? – para Heidegger a filosofia ocidental pegou um desvio do verdadeiro questionamento acerca do sentido do ser, buscou esse sentido num transcendentis, enquanto verdadeiramente ele encontra-se no ente[2] que o próprio homem é. “[…] a interrogação metafísica deve desenvolver-se na totalidade e na situação fundamental da existência que interroga.” (HEIDEGGER, 1999, p. 51).

Já sabemos que esse ente que interroga é o próprio homem. Ele tem sua existência determinada pela ciência (HEIDEGGER, 1999). A ciência é uma de suas formas de ser enquanto ocupação. Sabemos também que a ciência se caracteriza por ser autoritária e dar a primeira e a última palavra em relação a certas coisas. Mas devemos reconhecer que, acima de tudo, é nesse fazer ciência que o homem se revela como “um ente na totalidade dos entes” (HEIDEGGER, 1999, p. 52), onde tudo é nele, por ele e para ele. Tudo o que há no mundo é um utensílio para o agir desse ente que irrompe ao fazer ciência.

No entanto, conforme Heidegger (1999, p. 52-53), “[…] o estranho é que precisamente, no modo como o cientista se assegura o que lhe é mais próprio, se fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas o ente e mais – nada; somente o ente e além dele – nada; unicamente o ente e além disso – nada”. A ciência não questiona o nada por ele não ser um ente, nem muito menos um objeto.

Há muito, o saber tem por finalidade coisas externas; ele deixou de ser um fim em si mesmo. Com essa mudança no horizonte do pensamento moderno, questões como a que aqui buscamos – o nada – são tratadas como mera especulação. A prova disso é simplesmente a ausência de tratados a respeito desse assunto – onde a ciência se preocupou com a questão do nada? Em lugar algum.

A ciência finge ter esquecido o nada. Cabe aqui uma simples consideração, é justamente aí, onde a ciência finge não ligar para a questão do nada, que ela o admite como existente (HEIDEGGER, 1999). Ignorar o nada, portanto, é aceitar sua existência. Afinal de contas, a questão do nada nesse aspecto se assemelha ao paradigma lógico da questão da inexistência de Deus que, para ser concebida, deve antes aceitar Deus como algo possível de existir. Portanto, indiretamente, a ciência diz não ter relevância a questão do nada, e nesse dizer o afirma como existente.

Está formulada a questão. Se a pergunta sobre a metafísica deve ser desenvolvida na situação do indivíduo que a formula e, se esse indivíduo que nós sabemos que é o “homem” tem sua existência na comunidade determinada pela ciência, logo, ao sabermos que essa ciência, que se caracteriza por acribia, negligenciou uma questão que aqui julgamos ser de fundamental importância no desvelamento do ser do homem, temos a grande responsabilidade de saber o que aconteceria se agora o nada voltasse a ser indagado.

“Que acontece com este nada?” (HEIDEGGER, 1999, p. 53). Que mudança ocorreria no horizonte do pensamento ocidental se esse nada agora fosse concebido como existente e dotado de essência?

Fica claro que nossa investigação resume-se simplesmente à tentativa de mostrar o quanto, para Heidegger, o nada é uma questão metafísica e de fundamental importância para a determinação de nossa existência enquanto seres que questionam e fazem ciência. Dentre o que demonstraremos, será feita também uma simples relação entre o ofuscamento da autorreflexão e o esquecimento do nada pelo homem.

A existência do nada e seu desvelamento

O nada existe. A ciência, ao tentar explicar sua própria essência, concebe a existência do nada dizendo ser diferente dele. Vale salientar também que nós mesmos usamos de forma obtusa o termo “nada”, até o atribuímos à ideia de “ausência”. Como depois dessas considerações o nada poderia não existir? Sua inexistência já se tornou impossível, pois ele dá sentido a tudo que não é ele. Doutro modo, ele existiria pelo simples fato de estarmos à sua busca e de o termos inicialmente suposto “como algo que ‘é’ assim e assim” (HEIDEGGER, 1999, p. 53).

Para Heidegger (1999, p. 54), “o nada é mais originário que o ‘não’ e a negação”, ou seja, existe o não e a negação em virtude de antes deles existir o nada. Em outras palavras, recorremos ao nada sempre que em nosso pensamento atribuímos “não” a algo. Logo, essas comprovações justificam nossa busca, pois não se busca algo a menos que possa ser encontrado, nas palavras de Heidegger (1999, p. 54) “se o nada deve ser questionado – o nada mesmo -, então deverá estar primeiramente dado. Devemos poder encontrá-lo”. Portanto, “seja como for, nós conhecemos o nada”.

“(…) por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de ‘totalidade'”

Dissemos: o nada não é nem um ente, nem um objeto, por isso, seu a desvelamento[3] se dá apenas pelo pensamento, e isso o diferencia daquilo que ocupa as ciências positivas visto que um físico, apesar de usar seu intelecto, utiliza-se também de experiências observatórias, o que facilita o fazer tal ciência. A questão agora é: como podemos encontrar o nada? “Onde o procuramos?” Ele pode ser concebido? Que indagações devemos realizar para chegarmos a ele?

Eis uma hipótese dada por Heidegger (1999, p. 55): “O nada é plena negação da totalidade do ente. Não nos dará, por acaso, esta característica do nada uma indicação da direção na qual unicamente teremos possibilidade de encontrá-lo? A totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente a negação, na qual, então, o próprio nada se deverá manifestar”.

A hipótese apresentada propõe, em outras palavras, que para encontrarmos o nada devemos precedentemente encontrar o ente enquanto tal, em sua totalidade, e depois negá-lo, pois, sendo o nada o extremo oposto do ente, então seria essa a forma mais fácil de desvelá-lo.

Essa hipótese não está imune de algumas considerações. O próprio Heidegger (1999) indaga a possibilidade de podermos, em nossa condição de finitude, pensar o ente em sua totalidade, para podermos depois negá-lo. E é justamente nesse momento de Que é Metafísica? que o autor vai conceber que já estamos em meio à totalidade do ente, ele já está totalmente desvelado. No entanto, nós é que não compreendemos o todo de seu desvelamento. Essa justificativa abre espaço para o filósofo apresentar uma distinção entre estar em meio ao desvelamento total do ente, e compreender esse desvelamento em sua totalidade. Em suma, o fato de estarmos mergulhados na total verdade não quer dizer que temos capacidade de compreendê-la por completo.

Surge o “tédio” como uma disposição de humor que nos revela o ente em sua totalidade: “(…) Por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de ‘totalidade’. (…) O profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da existência, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferença. Esse tédio manifesta o ente em sua totalidade”. (HEIDEGGER, 1999, p. 55)

É precisamente no tédio das coisas cotidianas que nos encontramos mergulhados, estamos imersos sempre nesta ou naquela ocupação, neste computador ou naquela TV. O homem se enche de coisas que lhe apraz, ocupa seu tempo com esses entes e esquece o sentido do seu ser, esquece de refletir sobre sua existência. “Contudo, precisamente quando as disposições de humor nos levam, desse modo, diante do ente em sua totalidade, oculta-nos o nada que buscamos.” (HEIDEGGER, 1999, p. 56)

Se observássemos bem, perceberíamos que nós realmente vivemos nessa corrida cotidianamente. Estamos quase sempre atarefados com coisas essenciais do tipo trabalho ou estudo, e quando nos livramos dessas tarefas, nos ocupamos de coisas não essenciais. O tédio que Heidegger (1999) diz revelar a totalidade do ente é essa constante ocupação. Vale lembrar que esse tédio que nos revela o ente enquanto tal, simultaneamente nos oculta o nada. Ele, aqui, não deve ser entendido como um sentimento que desgostamos, e sim como algo que muitas vezes nem percebemos, pois o fato de estarmos entretidos com os entes circunstanciais desse mundo nos afasta de tal percepção. Esse discurso que defende tal ideia – de que os prazeres proporcionados pelos entes intramundanos nos afastam de uma “essência” – se assemelha ao discurso cristão. No entanto, enquanto o cristianismo afirma que quando nos detemos nas coisas levianas nos afastamos de Deus, Heidegger afirma que o homem se afasta do sentido do seu próprio ser. Portanto, quando nos entregamos aos entes intramundanos[4], há um ofuscamento do nada e simultaneamente do sentido do ser que nós mesmos somos.

“O nadificar do nada não é um episódio casual, mas, como remissão (que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua plena, até então oculta, estranheza como o absolutamente outro – em face do nada”

Ciências do espírito

Nós esquecemos o nada assim como estamos quase a esquecer as ciências do espírito: a Filosofia, a Teologia, a História, a ontologia. Como dissemos no início deste nosso trabalho, o saber não é mais um fim em si mesmo, a ciência agora tem como alvo a produção de coisas externas, de objetos. O que alguns chamam de tecnologia, podemos chamar de distanciamento da filosofia. Essas ciências (que citamos) são ciências do espírito, do eu, do si-mesmo, enquanto as demais ciências, as que produzem grande parte dos entes intramundanos, são ciências da alteridade, nos afastam da reflexão acerca do nada e de nós mesmos.

A contemporaneidade é cada vez mais marcada pelas ciências tecnológicas que, mediante seus aparatos, nos oferecem conforto e segurança, e pela medicina que a cada dia procura prolongar a vida com a descoberta de novas curas e formas de tratamento para as enfermidades que nos assolam. As ciências humanas, que procuram dar sentido à vida, são cada vez menos valorizadas e consequentemente mais despercebidas. O “nada” é uma questão que não preocupa senão as ciências humanas, e como já dissemos que o homem tem se afastado cada vez mais dessas ciências, assim o é com o “nada”.

Acontece que, assim como existe uma disposição de humor que nos afasta do nada, há também uma que dele nos aproxima: a angústia (HEIDEGGER, 1999). Essa não deve ser entendida como temor, nem como um sentimento malévolo que retira do homem sua vontade de existir, mas sim como tranquilidade, pois ela liberta o homem do tédio. É nessa disposição de humor que o homem percebe que jaz assediado pelos entes intramundanos. Nessa angústia “não resta nenhum apoio. Só resta e sobrevém – na fuga do ente – este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada.” (HEIDEGGER, 1999, p. 57), e prepara o homem para entender o sentido do ser que ele é o afastando do ente. Conforme Heidegger (1999, p. 57-58): “O nada se revela na angústia – mas não enquanto ente. Tampouco nos é dado como objeto. A angústia não é uma apreensão do nada (…) na angústia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totalidade (…) o ente não é destruído pela angústia para assim deixar como sobra nada (…) revela-se propriamente o nada com e no ente como algo que foge em sua totalidade”.

Na tentativa de explicar esse constante movimento cito aqui “o lazer”. Quando nos entristecemos com o sentido da vida alguém diz: “Levante- se, vamos sair para espantar esse desânimo e nos distrair”. É como se estivéssemos sempre procurando uma ocupação por falta de coragem de encarar o nada, essente[NB] de nossa existência. E quando em alguns momentos estamos quase a degustar as primeiras porções” de reflexão da angústia reveladora, alguém intervém e nos impede, levando-nos novamente a mergulhar nos entes e esquecer a reflexão que estávamos quase a realizar.

Retomemos algumas considerações no intento de não nos perdermos com tantos questionamentos. Deixamos claro, desde o início, que o âmago da nossa empreitada é entender o sentido do ser do nada, que há muito tempo é duplamente negligenciado – pela ciência, em virtude de ele não ser um ente, e pelo homem, por este se encontrar entediado e imerso num mar de entes – dissemos também que o nada somente se revelaria se nos rendêssemos à angústia, pois esta revela nossa situação perante os entes, e deles nos afasta mostrando-nos o nada. Resta esclarecermos agora uma questão: “Se o nada somente se revela originalmente na angústia, não devemos nós então pairar constantemente nessa angústia para, afinal, podermos existir?” (HEIDEGGER, 1999, p. 59). Eis a problemática: se o acontecer do ser do homem se dá no encontro com o nada, e o nada se revela apenas na angústia, devemos nos angustiar eternamente para fugirmos do tédio e existirmos autenticamente?

Imersão na angústia

A resposta de Heidegger (1999) é que nós já estamos imersos na angústia, ela apenas está sufocada no nosso modo de ser. “A angústia está aí. Ela apenas dorme.” (p. 60). Um fato sabido por todos nós é que nascemos e morremos, pois ainda quando crianças descobrimos que esse é o ciclo natural da vida. A descoberta da morte na infância para alguns chega até mesmo a ser confusa, mas na verdade é quando adultos que nos confundimos mais ainda ao percebermos não ter vivido, pelo menos, autenticamente. Nesse despertar, nessa descoberta da inautenticidade da vida que levávamos, acordamos então a angústia que dormia em nós e nos suspendemos dentro do nada revelado.

A angústia nadificante sempre nos visitou (HEIDEGGER, 1999), ela sempre esteve aí, assim como o ente. Um é o extremo oposto do outro. Assim que ao nos entregarmos aos entes adormecemos a angústia nadificante, ao despertarmos essa angústia começamos a nos afastar dos entes. Conforme Heidegger (1999, p. 58), “Na angústia se manifesta um retroceder diante de… que, sem dúvida, não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada”. Em outras palavras, a angústia que dormia em nós, ao ser despertada, não destrói o ente, nem o apreende, ela nos causa uma remissão, um não agir. Como esse sentimento – há muito – foi vencido na constante luta das nossas volições, ele agora ao ser acordado tenta nos assediar lentamente com sua nadificação e nos distanciar dos entes, e consequentemente do tédio. “O nadificar do nada não é um episódio casual, mas, como remissão (que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua plena, até então oculta, estranheza como o absolutamente outro – em face do nada.” (HEIDEGGER, 1999, p. 58).

A essência do nada, portanto, consiste em “conduzir primeiramente o ser-aí diante do ente enquanto tal” (HEIDEGGER, 1999, p. 58). O nada é a possibilidade de revelação da totalidade do ente para o homem. Ele não é um conceito oposto ao ente, como supomos inicialmente, ele pertence à essência do ser. Quando o homem percebe o ser que ele é – e só percebe por meio da angústia – o nada já lhe foi revelado, ele já o transcende.

Deve-se sempre considerar as palavras de Heidegger (1999, p. 58) ao dizer: “Se o ser-aí não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto, também não consigo mesmo. Sem a originária revelação do nada não há ser-si-mesmo, nem liberdade”. A angústia é a possibilidade ímpar de o homem revelar o nada e simultaneamente entrar em relação com o seu verdadeiro ser. Somente nessa disposição de humor nos libertamos e nos relacionamos com nós mesmos e, para tanto, devemos nos livrar dos ídolos e cair profundamente no nada revelado. “Tão finitos somos nós que precisamente não somos capazes de nos colocarmos originariamente diante do nada por decisão e vontade próprias.” (HEIDEGGER, 1999, p. 60) Nós necessitamos da angústia, isso já se tornou indubitável.

Considerações finais

No momento em que o homem descobre o ser que ele é, a angústia já lhe foi despertada e ela já lhe manifestou o nada. Ele já está no nada revelado, já ultrapassou o ente em sua totalidade – o transcendeu.

Propusemos desde o início mostrar como o nada no pensamento de Martin Heidegger é considerado uma questão metafísica, e pretendemos corresponder àquilo que nos aventuramos a fazer. Pois bem, conforme Heidegger (1999, p. 60- 61): “Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresentar-nos a própria metafísica. O nome ‘metafísica’ vem do grego: tà metà physiká. Esta surpreendente expressão foi mais tarde interpretada como caracterização da interrogação que vai metà – trans ‘além’ do ente enquanto tal”.

Metafísica é, portanto, questionar além daquilo que as apreensões nos possibilitam entender. É “perguntar além do ente para recuperá-lo”. Como dissemos no início, tal espécie de questionamento carrega dois pressupostos basilares:

      • (a) abarcar em si toda metafísica;
      • (b) abarcar o indivíduo que a questiona.

Temos agora que entender em que sentido a questão do nada corresponde a esses requisitos mínimos de uma genuína questão metafísica.

De início, sabemos que sobre o nada a metafísica vem apresentando múltiplas explicações desde a antiguidade. Primeiro, disseram os eleatas que “do nada, nada pode nascer”, depois os lógicos utilizaram esse aforismo e afirmaram que “A = A”. Posteriormente, segundo o próprio Heidegger (1999), os antigos afirmaram ser o nada o não-ente, a matéria informe. A dogmática cristã, que como sempre herda conceitos metafísicos dos filósofos antigos, afirma que o nada é a pura ausência de Deus. “A superficial recordação histórica mostra o nada com o conceito oposto ao ente verdadeiro, quer dizer, como sua negação.” (HEIDEGGER, 1999, p. 61)

Supomos no início de nossa investigação que o nada seria a pura negação do ente. Mas, também no decorrer de nossa busca, expusemos que essa hipótese era inválida, pois o nada pertence à pura essência do ser do ente. Vale salientar que a discussão metafísica do ente manteve-se no decorrer dos séculos no mesmo patamar da discussão sobre o nada. Elas não tiveram lugar, não foram tratadas com relevância. No entanto, Heidegger cita uma frase de Hegel na sua preleção dizendo que ele acertou ao afirmar que o ser e o nada seriam os mesmos (1999, p. 61). Contudo, eles não deveriam ser entendidos como pertencentes à mesma “determinação e imediatidade” (HEIDEGGER, 1999, p. 62), como queria o pensamento hegeliano, e sim, que tinham a mesma maneira de existir pelo simples fato de “o ser” ter como única forma de manifestação o ente e que por isso ela é finita, e, acima de tudo, ele manifestava-se somente com e por causa do nada, pois é por meio dele que o ser-aí do ente homem transcende o ente como tal e revela o ser.

Fica claro com isso que, para Heidegger, as questões do “nada” e do “ser” têm em si a mesma natureza. Ambas são metafísicas e, como demonstramos, estão correlacionadas. Portanto, se de alguma maneira a questão do ser envolve toda metafísica, e isso não podemos negar, assim será com a questão do nada.

Primeiramente, a questão do nada – conforme o princípio basilar (a) envolve toda metafísica “na medida em que nos força a enfrentar o problema da origem da negação” (HEIDEGGER, 1999, p. 62). Ela nos remete a uma análise de toda a metafísica. Doutro modo, o nada é uma questão genuinamente metafísica na medida em que (b) seu desenrolar se dá no âmago da problemática existencial acerca da essência do homem, pois “na pergunta pelo nada acontece um tal ir para fora além do ente enquanto ente em sua totalidade. Com isso prova-se que ela é uma questão ‘metafísica’.” (HEIDEGGER, 1999, p. 61) Em outras palavras, quando o homem mergulha no nada revelado, ele sai da esfera do ente por completo e transcende seu próprio ser. Nesse momento é como se ele observasse a “si mesmo” como “outro” semelhante às muitas vezes que nós nos deparamos observando uma outra coisa. Somente assim o homem entende o ser que ele mesmo é.

“Somente porque o nada está manifesto” (HEIDEGGER, 1999, p. 62) pode o homem ver a si mesmo como essencialmente outro e entender o ser finito que ele é. Somente na posse desse entendimento é possível o “porquê”. “Somente porque é possível o ‘porquê’ enquanto tal, podemos nós perguntar, de maneira determinada, pelas razões e fundamentar.” Somente porque já houve o desvelamento da essência do nosso ser é possível todos esses “porquês”, e, portanto, fazer ciência.

Para Heidegger (1999), a superioridade da ciência se desvanece se ela não leva em conta o nada, pois somente por causa dele foi concedida ao homem a possibilidade de entender o ser que ele é e assim poder transformar os entes em objetos de pesquisa. Portanto, está demonstrado o quanto o nada é uma questão metafísica e fundamental até mesmo para a determinação de nossa existência científica.

“O ultrapassar o ente acontece na essência do ser-aí. Este ultrapassar, porém, é a própria metafísica.” (HEIDEGGER, 1999, p. 63) A metafísica não é em si uma ciência, ela acontece essencialmente à medida que o homem pergunta sobre si e dá um salto além da própria existência. Ou seja, à medida que existimos buscamos responder à pergunta – a essencial pergunta – que sempre nos sufoca: “Quem somos? O que somos?”. Esse questionar põe avante a metafísica, e a busca de sua resposta impulsiona todo o espírito que denominamos “ciência”.

Autor: Tássio Ricelly Pinto de Farias

Fonte: Revista Filosofia

Screenshot_20200502-144642_2

Só foi possível fazermos essa postagem graças à colaboração de nossos leitores no APOIA.SE. Todo o conteúdo do blog é disponibilizado gratuitamente, e nosso objetivo é continuar oferecendo material de qualidade que possa contribuir com seus estudos. E você também pode nos auxiliar nessa empreitada! Apoie nosso projeto e ajude a manter no ar esse que é um dos blogs maçônicos mais conceituados no Brasil. Para fazer sua colaboração é só clicar no link abaixo:

https://apoia.se/opontodentrodocirculo

Notas

[1] – Expoente da fenomenologia, o filósofo e matemático Edmund Husserl (1859- 1938) nasceu em Prossnitz, Morávia, sob Império Austríaco. Seu pensamento influenciou o existencialismo de Sartre e a filosofia de pensadores da categoria de Merleau-Ponty e Heidegger.

[2] – “(Trad. do al. Seiende, de sein: ser). Empregado para traduzir o termo grego toon e o alemão das Seiende, particípios presentes do verbo ser, o termo ‘ente’ aparece, na filosofia de Heidegger, para designar o ser que existe, o ser concreto. Há uma confusão entre o existente (designado o homem) e o ente, ‘designando tudo o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos preenche, nos exalta e nos decepciona’ (Heidegger), sem nos apresentar o ser em si, o ser absoluto. Esse ente geral se distingue dos entes particulares (objetos, astros, pedras etc.) por seu caráter de totalidade.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 2001, p. 62).

[3] – Em Platão, a verdade (aletheia) significa desvelamento do ser, isto é, descobrimento daquilo que estava oculto, retirada do véu. 2. Na metafísica de Heidegger, o desvelamento significa a ideia segundo a qual o ser da coisa se desvela, manifesta-se nas condições mesmas de seu aparecer, de seu “fenômeno”, a verdade nada mais sendo que a manifestação do ente, enquanto ele deixa de ser ocultado pelas preocupações da vida cotidiana, e do caráter aberto do ser. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 20080

[4] – “Terminologicamente, o adjetivo mundano indica, portanto, um modo de ser da presença e nunca o modo de ser de um ente simplesmente dado no mundo. O ente simplesmente dado ‘no’ mundo, nós o chamaremos de pertencente ao mundo ou intramundano.” (HEIDEGGER, 2009, p. 113).

Nota do Blog

Para ver o significado da palavra essente, clique AQUI.

Publicidade

Autor: ------

Contato: opontodentrodocirculo@gmail.com

2 comentários em “Heidegger e a metafísica do “nada””

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: