Vida e Trabalhos
As referências de Xenófanes (570-478 a.C.) e Heráclito (500 a.C.) a Pitágoras mostram que ele era uma figura famosa no final do século VI e começo do século V. Para obter os detalhes da sua vida temos que confiar em fontes do século IV, como Aristoxeno, Dicearco e Timeu de Tauromênio. Há muita controvérsia sobre sua origem e sua infância, mas há consenso de que ele cresceu na ilha de Samos, próxima ao berço natal da filosofia grega, Mileto, na costa da Ásia Menor. Há vários relatos de que ele viajou muito pelo Oriente Próximo – Babilônia, Fenícia e Egito, por exemplo – enquanto vivia em Samos. Até certo ponto, esses relatos são uma tentativa de atribuir a antiga sabedoria do Oriente a Pitágoras, mas fontes relativamente tardias, como Heródoto (II. 81) e Isócrates (Busiris 28), associam Pitágoras com o Egito, de forma que uma viagem sua àquela região parece bastante plausível. Aristoxeno diz que ele deixou Samos aos quarenta anos de idade, quando a tirania de Polícrates, que assumiu o poder em 535 a.C., ficou insuportável (Porfírio, VP 9). Esta cronologia sugere que ele tenha nascido em 570 a.C., e emigrado para a cidade grega de Crotona, no sul da Itália, em 530 a.C.. Foi em Crotona que ele parece ter atraído, pela primeira vez, um grande número de seguidores para o seu modo vida. Há várias histórias sobre sua morte, mas as evidências mais seguras (Aristoxeno e Dicearco) atribuem-na a violências dirigidas contra ele e seus seguidores, em Crotona, no ano 510 a.C., talvez por causa da natureza exclusivista do modo de vida pitagórico, o que o levou a fugir para outra cidade grega da Itália, Metaponto, onde ele, ao redor de 490 a.C., veio a falecer (Porfírio, VP 54-7,; Jâmblico, VP 248 ff.; Na cronologia, veja Minar 1942, 133-5). Há pouco mais sobre sua vida que seja digno de confiança.
As evidências sugerem que Pitágoras não tenha escrito nenhum livro. Nenhuma fonte contemporânea de Pitágoras ou dos duzentos primeiros anos após a sua morte, inclusive Platão, Aristóteles e seus sucessores imediatos da Academia e do Liceu, cita trabalhos de Pitágoras ou dá indicação de que existisse qualquer texto escrito por ele. Várias fontes posteriores afirmam explicitamente que Pitágoras não escreveu nada (por exemplo, Lucian [Deslize da Língua, 5], Josefo, Plutarco e Posidônio em DK 14A18; veja Burkert 1972, 218-9). Diógenes Laércio tentou questionar essa tradição citando a afirmação de Heráclito de que “…Pitágoras, filho de Mnesarco, pesquisou a maioria dos homens e, tendo feito uma seleção de seus escritos, os transformou em uma ciência, um saber, uma arte do mal.” (Fr. 129). Este fragmento só mostra que Pitágoras leu o que os outros escreveram, porém não diz nada sobre ele escrever algo de próprio punho. A sabedoria e a arte do mal que Pitágoras constrói a partir dessas escritas não necessariamente foram redigidas, e a descrição que Heráclito dá a ela como uma “arte do mal” sugere bastante que não fosse isso. Na antiga tradição, vários livros chegaram a ser atribuídos a Pitágoras, mas as evidências existentes indicam que foram forjados em nome de Pitágoras e pertencem a um grande número de tratados pseudo-pitagóricos falsificados em nome de pitagóricos, como Filolau e Arquitas. No século III a.C. um conjunto de três livros circulavam em nome de Pitágoras: Sobre Educação, Sobre Política, e Sobre Natureza (Diógenes Laércio, VIII. 6). Uma carta de Platão para Dion pedindo que este comprasse os três livros de Filolau foi forjada para “autenticá-los” (Burkert 1972a, 223-225). Heráclides Lembo no século II a.C.dá uma lista de seis livros atribuídos a Pitágoras (Diógenes Laércio, VIII. 7; Thesleff 1965, 155-186 fornece uma relação completa dos escritos espúrios atribuídos a ele). O segundo destes é um Discurso Sagrado, que alguns quiseram vincular ao próprio Pitágoras. A ideia de que Pitágoras escreveu tal Discurso Sagrado parece surgir de uma interpretação errônea das evidências anteriores. Heródoto diz que os pitagóricos concordavam com os egípcios ao não permitir o enterro do morto envolto em lã e então afirma que há um discurso sagrado sobre isto (II. 81). O foco de Heródoto aqui são os egípcios e não os pitagóricos – que são colocados como um paralelo grego aos egípcios – de forma que o Discurso Sagrado ao qual ele se refere é egípcio e não pitagórico, como mostram outras passagens em seu Livro II (por exemplo, II. 62; veja Burkert 1972a, 219). Várias linhas em verso hexamétrico já estavam circulando em nome de Pitágoras no século III a.C.e foram mais tarde combinadas em uma compilação conhecida como os Versos Dourados que marca o ápice da tradição do Discurso Sagrado atribuído a Pitágoras (Burkert 1972a, 219, Thesleff 1965, 158-163,; e mais recentemente Thom 1995, embora essa datação como sendo de antes de 300 a.C. seja questionável). A falta de qualquer texto escrito que pudesse ser atribuído a Pitágoras é mostrada claramente pela tendência de autores posteriores em citar Empédocles ou Platão quando precisavam fazer referência a Pitágoras (por exemplo, Sextus Empiricus, M. IX. 126-30; Nicômaco, Introdução para Aritmética eu. 2).
A Filosofia de Pitágoras
Os créditos pela filosofia de Pitágoras são baseados, em primeiro lugar, em evidências anteriores a Aristóteles e, em segundo lugar, em evidências que nossas fontes identificam explicitamente como sendo derivadas dos livros de Aristóteles sobre os pitagóricos e também dos livros de seus discípulos, como Aristoxeno e Dicearco.
O Destino da Alma – Metempsicose[1]
As evidências tornam claro que, acima de tudo, Pitágoras tornou-se conhecido como um perito no destino da alma após morte. Heródoto conta a história de Zalmoxis, o trácio, que ensinou a seus compatriotas que eles nunca morreriam mas, ao contrário, iriam para um lugar onde possuiriam eternamente todas as coisas boas (IV. 95). Entre os gregos, surgiu a tradição de que este Zalmoxis era o escravo de Pitágoras. O próprio Heródoto crê que Zalmoxis viveu muito tempo antes de Pitágoras, mas a vontade dos gregos em retratar Zalmoxis como escravo de Pitágoras mostra que eles imaginavam Pitágoras como o perito do qual Zalmoxis obteve seu conhecimento. Ion de Quios (séc. V a.C.) diz sobre Ferécides de Siros: “embora morto ele tem uma vida agradável para sua alma, se é que Pitágoras foi verdadeiramente sábio e conheceu e aprendeu a sabedoria acima de todos os homens.” Aqui Pitágoras é tido novamente como o perito na vida da alma após a morte.
Um famoso fragmento de Xenófanes, contemporâneo de Pitágoras, dá informações mais específicas sobre o que acontece à alma depois da morte. Ele relata que “uma vez, quando ele [Pitágoras] estava presente ao espancamento de um filhote de cachorro, ficou com pena e disse ‘pare, não bata mais, porque esta é a alma de um homem que me foi querido, a quem reconheci quando eu ouvi o ganido’ ” (Fr. 7). Embora Xenófanes ache a ideia claramente ridícula, o fragmento mostra que Pitágoras acreditava em metempsicose ou reencarnação, de acordo com a qual as almas humanas renasceriam em outros animais após a morte. Esta evidência é enfaticamente confirmada por Dicearco, no século IV, que primeiro comentou sobre a dificuldade de determinar o que Pitágoras ensinou, afirmando então que sua doutrina mais reconhecida era “que a alma é imortal e que transmigra em outras espécies de animais” (Porfírio, VP 19).
Infelizmente, nós pouco mais podemos dizer sobre os detalhes da concepção de Pitágoras sobre a alma ou sobre metempsicose . De acordo com Heródoto, os egípcios acreditavam que a alma renascia como qualquer tipo de animal antes de voltar à forma humana depois de 3.000 anos. Sem citar nomes, informa que alguns gregos adotaram esta doutrina antes e depois; isto parece muito ser uma referência a Pitágoras (antes) e talvez Empédocles (depois). Muitos duvidam que Heródoto esteja certo em atribuir a metempsicose aos egípcios, já que não há qualquer outra evidência sobre as crenças egípcias que suportem esta afirmação, mas, no entanto, está claro que nós não podemos assumir que Pitágoras conhecia os detalhes da visão que Heródoto atribui a eles. Da mesma forma, tanto Empédocles (veja Inwood 2001, 55-68) quanto Platão (por exemplo, A República e Fedro) fornecem um relato mais detalhado sobre transmigração das almas, mas nenhum deles atribuem estes detalhes a Pitágoras, e nem nós devemos fazê-lo. Ele acreditava que os humanos renasciam como plantas (Empédocles Frs. 117 e 127) e também como animais? Simplesmente não sabemos. Ele pensava que nós poderíamos escapar do ciclo de reencarnações? O fragmento de Íon citado acima pode querer sugerir que a alma pudesse ter uma existência agradável depois de morte entre reencarnações ou mesmo escapar do ciclo de reencarnações, mas as evidências são muito fracas para acreditarmos em tal conclusão. No século IV vários autores relatam que Pitágoras se lembrava das suas encarnações humanas anteriores, mas os relatos não concordam nos detalhes. Dicearco (Aulo Gelio IV. 11.14) e Heráclides (Diógenes Laércio VIII. 4) concordam que ele era o herói troiano Euforbo em uma vida prévia. Dicearco provavelmente está fazendo troça quando sugere que Pitágoras em outra encarnação era Alco, a bela prostituta.
A transmigração não requer que a alma seja imortal; ela poderia passar por várias encarnações antes de perecer. Entretanto, Dicearco diz explicitamente que Pitágoras considerava a alma imortal, e isso concorda com a descrição de Heródoto sobre a visão de Zalmoxis. Não está claro como Pitágoras concebeu a natureza da alma transmigrante. Sua habilidade de reconhecer algo que lembrava o amigo no filhote de cachorro (se isto não é levar muito longe uma brincadeira) e de se lembrar das próprias vidas anteriores mostra que a identidade pessoal foi preservada ao longo das encarnações. É crucial reconhecer que a maioria dos gregos seguiu Homero, acreditando que a alma era uma sombra insubstancial que vivia uma existência sombria no subterrâneo do mundo depois da morte, uma existência tão desolada que Aquiles afirmou que preferiria ser o menor dos mortais na Terra do que o rei dos mortos (Homero, Odisseia IX. 489). Os ensinamentos de Pitágoras de que a alma era imortal, teria outras encarnações físicas e poderia ter uma existência boa depois de morte eram inovações notáveis que devem ter tido atração considerável em comparação com a visão homérica. De acordo com Dicearco, além da imortalidade da alma e reencarnação, Pitágoras acreditava que “depois de certos períodos de tempo as coisas que aconteceram uma vez acontecerão novamente e que nada é absolutamente novo” (Porfírio, VP 19). Esta doutrina do “eterno retorno”[2] também é atestada pelo aluno de Aristóteles, Eudemo (Fr. 88 Wehrli). Assim, a doutrina de transmigração parece ter sido estendida para incluir a ideia de que nós, e o mundo todo, renasceremos em vidas que são exatamente iguais a essa que estamos vivendo e às já vivemos.
Pitágoras como um operador de milagres
Alguns quiseram associar as características mais milagrosas da personagem Pitágoras à tradição mais recente, mas estas características figuram principalmente nas evidências mais antigas e são, assim, centrais para o entendimento de Pitágoras. Aristóteles enfatizou sua natureza sobre-humana da seguinte maneira:
- Havia uma história que dizia que Pitágoras tinha uma coxa dourada (um sinal de divindade);
- As pessoas de Crotona o chamaram de Apolo Hiperbóreo (uma das manifestações do deus Apolo);
- Os pitagóricos ensinavam que “dos seres racionais, um tipo é divino, um é humano, e outro como Pitágoras” (Jâmblico, VP 31);
- Que Pitágoras foi visto ao mesmo tempo, no mesmo dia, no Metaponto e em Crotona;
- Que ele matou uma cobra venenosa com uma mordida;
- Que quando ele estava cruzando um rio, o rio falou com ele (todas as citações são de Aristóteles, Fr. 191, a menos que contenham outra referência).
Há um claro paralelo para estas habilidades notáveis na figura de Empédocles, que prometia ensinar seus alunos a controlar os ventos e devolver os mortos à vida (Fr. 111).
Existem traços reconhecíveis desta tradição sobre Pitágoras mesmo nas evidências pré-aristotélicas, e seus milagres suscitam reações diametralmente opostas. A descrição de que Heráclito faz de Pitágoras como “o chefe dos charlatões” (Fr. 81) e de sua sabedoria como “arte fraudulenta” (Fr. 129) é facilmente compreensível como uma referência insensível aos seus milagres. Por outro lado, Empédocles é claramente simpatizante de Pitágoras, e o descreve como “um homem que conheceu coisas notáveis” e que “possuiu a maior riqueza intelectual” e, novamente, faz uma provável referência aos seus milagres chamando-o “completo em todos os tipos de proezas sábias” (Fr. 129). No relato de Heródoto, Zalmoxis tentou ganhar a autoria dos ensinamentos sobre o destino da alma reivindicando ter viajado para o outro mundo (IV. 95). A tradição cética representada no relato de Heródoto trata isto como um ardil da parte de Zalmoxis; ele não tinha viajado para o outro mundo, mas tinha, na realidade, estado escondido em uma habitação subterrânea durante três anos. Semelhantemente, Pitágoras pode ter reivindicado autoridade sobre seus ensinamentos referentes ao destino das almas com base em suas habilidades e experiências notáveis, e há evidências de que ele também reivindicava ter viajado ao mundo subterrâneo e que esta viagem pode ter sido transferida de Pitágoras a Zalmoxis (Burkert 1972a,154 ff.).
Continua…
Extraído da Stanford Encyclopedia of Philosophy
Tradução: S. K. Jerez
Fonte: BIBLIOT3CA
Notas do Blog
[1] – Sobre este tema clique AQUI para ler os quatro artigos da série Pitágoras e os Caminhos da Alma.
[2] – Clique AQUI para ler o artigo O Devir, o Múltiplo e o Eterno Retorno em “Nietzsche”.