Abundando no dito, Guénon assinala[6] a similitude que existe entre as palavras “secreto” (secretum) e “sagrado” (sacratum), adicionando que “se trata, tanto num como em outro caso, daquilo que está posto aparte (secernere), reservado, separado do domínio profano”. E prossegue: “igualmente o lugar consagrado é chamado templum, cuja raiz tem (que se reencontra no grego temnô, cortar, separar, de onde temenos, recinto sagrado) expressa também a mesma ideia; e a ‘contemplação’ se vincula ainda a esta ideia por seu caráter estritamente ‘interior’ “. Estas palavras nos levam a considerar o papel fundamental que na tradição Maçônica desempenha a Loja, o Templo ou “recinto sagrado” que segundo a fórmula ritual tem de estar “a talher”, isto é “separado” e “posto aparte” da realidade relativa, e portanto ilusória, do mundo profano, significando esta palavra, profano, o que literalmente está “fora do templo” (profanum). Mas ademais, a Loja, o Templo maçônico, representa uma verdadeira síntese da ordem universal (da Cosmogonia) e, por conseguinte, um modelo simbólico sumamente importante cuja estrutura o maçom tem de conhecer perfeitamente, formando assim parte integrante do próprio ensino iniciático.
A Loja é consubstancial à Ordem Maçônica, pois não se deve esquecer que as origens da mesma se remontam à construção do Templo de Jerusalém, ou de Salomão, ao que a própria Loja reproduz em seu esquema essencial. Ademais, é na Loja, dentro do “recinto sagrado”, onde se cumprem todos os trabalhos rituais, e este é o motivo de que a Loja também seja considerada como um “Ateliê”, recordação sem dúvida alguma dos tempos operativos, mas que continua sendo um termo ainda válido para quem a iniciação e seu processo é o exato equivalente da “Arte Real” ou “Grande Obra”. Em efeito, Guénon afirmou em várias ocasiões que o mais importante na Maçonaria é a execução do ritual, que é o verdadeiro trabalho maçônico, em primeiro lugar porque o rito não é senão o próprio símbolo em ação e, portanto, não está separado da ideia que conforma ao símbolo: é essa mesma ideia manifestando-se, e é por isso que é o veículo de transmissão da influência espiritual ou supra-individual. E em segundo lugar, e como conseqüência disso, porque essa ação está realizada sempre conforme a ordem, ou seja, conforme as próprias leis do cosmos, pois esta palavra, cosmos, em grego significa precisamente “ordem”, que é por verdadeiro a tradução exata do sânscrito rita, idêntica evidentemente à palavra rito[7]. Cosmos, ordem e rito (é dizer o símbolo em ação) são então três termos equivalentes, daí a necessidade de que o gesto ritual seja executado o mais perfeitamente possível, porque desta maneira se entra em correspondência direta com a Harmonia universal[8].
A Maçonaria mesma se identifica e é una com essa Harmonia, e para seus membros ela é “a Ordem”, entendida claro está, como sinônimo da própria Ordem cósmica, como se, efetivamente, não fora senão uma emanação direta dela. Naturalmente isto não é privativo só da Maçonaria, pois o mesmo poderia dizer-se de todas as organizações iniciáticas e tradicionais. Mas na Maçonaria, pelo fato de derivar de uma tradição de construtores, que entendiam o cosmos como uma arquitetura, e a arquitetura como uma imitação do modelo cósmico, essa relação com a ordem universal se faz mais evidente e está em sua própria razão de ser. Ademais, a denominação de Grande Arquiteto dado ao princípio espiritual sob a inspiração do qual se realizam todos os trabalhos e ritos maçônicos, é motivo mais do que suficiente para que não caiba a menor dúvida a respeito. E é esse Princípio, que Guénon identifica com o Viswakarma indiano, ou o “Espírito da Construção Universal[9], o que é transmitido, ou ao menos seu germe ou semente virtual, no rito da iniciação Maçônica, e o que está “presente” sempre na execução do rito quando este, como se disse antes, é uma “ação feita conforme a ordem”. Esse espírito se concebe como uma “luz”, e o desenvolvimento do germe espiritual implantado pela influência iniciática, se verá como uma “iluminação” progressiva da consciência humana[10], iluminação que é análoga “à vibração original do Fiat Lux que determina o começo do processo cosmogônico por meio do qual o ‘caos’ das possibilidades será ordenado para devir o ‘cosmos’ “. A “iluminação” iniciática, que é um “segundo nascimento”, opera então o mesmo efeito no ser que a ação da Palavra ou Verbo divino ao projetar o Fiat Lux no caos ou matriz primigênia, de onde nasce igualmente o mundo. Dito caos, Guénon em certo modo o assimila às “trevas exteriores” do estado profano, de onde procede ao recipiendário antes de sua entrada no Templo, entrada que será para ele, em efeito, uma passagem “das trevas à luz”. Existe, por tanto, todo um conjunto de correspondências e analogias entre o processo cosmogônico e o processo iniciático, “e assim a iniciação é verdadeiramente, segundo um caráter por outro lado muito geral dos ritos tradicionais, uma imagem de ‘o que foi feito no começo'”[11].
Segundo esse “caráter geral”, além do rito propriamente iniciático, a “imagem do que foi feito no começo” a Maçonaria a repete no ritual de abertura da Loja, abertura que é sem dúvida alguma um ato cosmogônico e, por conseguinte, uma fonte de ensino simbólico inestimável para entender o sentido da própria iniciação[12]. Em efeito, até o momento de sua abertura a Loja permanece em “trevas”, ou num “caos” potencial que será progressivamente “alumiado” e “ordenado” pela ação do rito, ação que determinará a criação de um espaço e um tempo sagrados, pois a energia do símbolo terá sido plenamente atualizada, passando a ser a Loja então “um lugar muito alumiado e muito regular”, expressão Maçônica que se seguiu conservando, e da que Guénon diz que representa “uma recordação da antiga ciência sacerdotal que regia a construção dos templos”[13]. Dita ciência é a Geometria, à que os operativos identificavam com a própria Maçonaria, pois a arte da construção, isto é a arquitetura, constitui o desenvolvimento das ideias contidas nas formas geométricas, entendidas estas em seu aspecto puramente qualitativo, que é o que sempre teve na Maçonaria e em todas as tradições. Não é então por casualidade que nesta o Grande Arquiteto receba também o nome de “Grande Geômetra do Universo”.
Em efeito, a geometria é a ciência Maçônica por excelência[14], estreitamente relacionada com a ciência dos números, pois a geometria é realmente o corpo do número, mas o número considerado não como cifra, que só serve para o cômputo quantitativo, senão como ideias de ordem metafísica que, ao se manifestarem, organizam a Inteligência ou estrutura invisível do cosmos, gerando sua dinâmica interna ou Alma universal, e com ela o Rito cósmico e a possibilidade da vida sob todas as formas em que esta se expressa. Falar de número é falar, como pensavam os pitagóricos, de uma energia ou força em ação, de um poder divino que, ao plasmar-se na substância receptiva do mundo e do homem, atualiza-a e a faz inteligível, isto é, ordena-a ao conjugar e harmonizar suas partes dispersas. E já que falamos dos pitagóricos (cuja herança afirma Guénon passou à Maçonaria medieval através dos Collegia Fabrorum romanos), devemos dizer que para eles o Deus geômetra era o próprio Apolo hiperbóreo, Deus da Luz primigênia do qual Platão diz que “geometriza sempre”, pois com seus raios luminosos “mede” a totalidade da manifestação universal, extraindo o cosmos do caos.
Neste sentido, Guénon nos diz no terceiro capítulo do “reino da quantidade e os signos dos tempos”, titulado “Medida e manifestação”, que esses raios equivalem às middoth da Cabala (que significam precisamente “medidas” em hebraico), assimiladas aos atributos e nomes divinos, “afirmando-se que Deus criou os mundos graças a elas, o que por outra parte se relaciona precisamente com o simbolismo do ponto central e das direções do espaço. Também poderíamos recordar a este respeito a frase bíblica na que se afirma que Deus tem ‘disposto de todas as coisas em número, peso e medida'”[15]. Segundo isto a manifestação corpórea, ou o mundo físico, deve tomar-se como um símbolo de toda a manifestação universal, pois de outra maneira esta (a manifestação universal) deixaria de ser representável, ou seja, não poderia ser simbolizada de nenhuma maneira, o que evidentemente é impossível, pois a lei de analogia e de correspondência (lei que constitui a chave do símbolo) atua em todos os níveis e planos da manifestação, relacionando-os uns com outros, gerando assim o discurso da existência. O próprio pensamento humano é analógico, e é precisamente essa qualidade a que lhe permite aceder e compreender, a seu nível correspondente, as realidades superiores.
É então por isso que o espaço físico se toma como um símbolo da própria ordem cósmica, e esse espaço é realizado e medido em toda sua extensão pelas seis direções, equivalentes simbolicamente às middoth ou atributos divinos e aos “raios luminosos” do Apolo hiperbóreo, todos eles partindo de um centro, que no caso da representação geométrica é um ponto, e no mundo espiritual é o “Coração ou Centro do Mundo”, ou seja Deus mesmo ou a Unidade primordial. A Loja, que é, voltamos a repetir, uma imagem do cosmos, não se “atualiza” até o momento em que se “acendem as luzes”, as quais, efetivamente, a fazem passar das “trevas à luz”. Todo isto é importantíssimo no simbolismo maçônico, ao que, como estamos tentando explicar aqui, Guénon restituiu sua autêntica dimensão iniciática e esotérica. O mesmo nos diz num capítulo dos símbolos fundamentais da ciência sagrada, concretamente em “O simbolismo solsticial de Jano”, que a estrutura da Loja está formada a partir da cruz de três dimensões, dimensões cuja “longitude é ‘de Oriente a Ocidente’; sua largura, ‘de Meio-dia ao Setentrião; sua altura, ‘da Terra ao Céu’ (o zênite); e sua profundidade, ‘da superfície ao centro da Terra’ (o Nadir). Por outra parte, continua Guénon, diz-se que ‘na Loja de São João (assim é como se denomina a Loja Maçônica) elevam-se templos à virtude e se cavam masmorras ao vício’[16]; estas duas ideias de ‘elevar’ e ‘escavar’ se referem às duas dimensões verticais, altura e profundidade, que se contam segundo as metades de um mesmo eixo que vai do ‘zênite ao nadir’, tomadas em sentido mutuamente inverso; essas duas direções opostas correspondem, respectivamente, a sattwa e a tamas (enquanto a expansão das duas dimensões horizontais corresponde a rachaduras), ou seja às duas tendências do ser, para os Céus (o templo) e para os Infernos (a masmorra)”. Como se diz nos manuais de instrução Maçônica (cuja leitura e meditação Guénon recomendava praticar assiduamente como apoio ao trabalho interior), essas dimensões provam que a Maçonaria é universal, e por tanto também a Loja, que ao ser “alumiada” pela luz que está em seu interior (luz acordada e veiculada pelo rito), foi “aberta” às influências espirituais, ficando constituída segundo o modelo do cosmos. Essas direções, em efeito, determinam três espaços simbólicos análogos aos três planos cósmicos: o Inframundo, a Terra e o Céu, os que a sua vez se relacionam com os três graus iniciáticos de aprendiz, companheiro e mestre, respectivamente. Por tanto, se como se afirma nos rituais, a Loja é “justa e perfeita”, é, entre outras razões, porque ela reflete o equilíbrio e a harmonia universal, e porque a seis direções da cruz tridimensional mais seu centro somam sete, ao que todas as tradições consideram como o número cosmogônico por antonomásia; com ele se acaba a criação e se resume em si mesma como nos indica o Gênesis, e é ao mesmo tempo o número dos planetas tradicionais, e o das sete sefiroth de “construção cósmica” da Árvore da Vida cabalística.
A questão do sentido qualitativo das direções do espaço Guénon a aborda muitas vezes ao longo de sua obra, mas muito especialmente no simbolismo da cruz, que é um livro de uma importância capital para quem lhe interesse conhecer a ciência da geometria desde o ponto de vista tradicional e sagrado, e desde depois para os maçons realmente interessados no conhecimento de sua Ordem deve representar uns dos textos fundamentais de investigação simbólica, suprindo assim, em grande medida, a carência doutrinal em que vive sumida a Maçonaria desde faz já vários séculos[17]. Aquela frase que estava no frontispício de entrada à escola platônica: “Que ninguém entre aqui se não é geômetra”, poderia estar perfeitamente na entrada do templo maçônico, pois, como diz Guénon, os ensinos que nessa escola se davam não podiam “ser compreendidos verdadeira e efetivamente mais do que por uma ‘imitação’ da atividade divina”, o que em linguagem maçônica equivale ao cumprimento dos planos “traçados” pelo Grande Arquiteto ou Grande Geômetra do Universo.
Sobre estes planos, e seu cumprimento efetivo no ser, vejamos o que nos diz Guénon no cap. XXXI de Aperçus…, titulado “Do ensino iniciático”: “No fundo se todo processo iniciático apresenta em suas diferentes fases uma correspondência, seja com a vida humana individual, seja com o conjunto da própria manifestação vital, particular ou geral, ‘microcósmica’ ou ‘macrocósmica’, esta se efetua segundo um plano análogo ao que o iniciado deve cumprir em si mesmo, para realizar-se na completa expansão de todas as potências de seu ser. Trata-se sempre e em todo lugar dos planos correspondentes a uma mesma concepção sintética, de tal maneira que eles são em princípio idênticos, e, ainda que são diferentes e indefinidamente variados em sua realização, procedem de um ‘arquétipo’ único, plano universal traçado pela Vontade suprema que é designada simbolicamente como o ‘Grande Arquiteto do Universo’.
“Por conseguinte, todo ser tende, conscientemente ou não, a realizar em si mesmo, pelos meios apropriados à sua natureza particular, aquilo que as formas iniciáticas ocidentais, apoiando-se sobre o simbolismo ‘construtivo’, denominam o ‘plano do Grande Arquiteto do Universo’, e a coincidir por isso, segundo a função que lhe pertence no conjunto cósmico, à realização total desse mesmo plano, o qual não é em soma senão a universalização de sua própria realização pessoal. É neste ponto de seu desenvolvimento, quando um ser toma realmente consciência desta finalidade, que começa para ele a iniciação efetiva, que deve lhe conduzir por graus, e segundo sua via pessoal, a esta realização integral, que se cumpre, não no desenvolvimento isolado de certas faculdades especiais, senão no desenvolvimento completo, harmônico e hierárquico, de todas as possibilidades implicadas na essência deste ser”.
Continua…
Autor: Francisco Ariza
Tradução: Igor Silva
Notas
[6] – Aperçus…, cap. XVII.
[7] – “Os ritos iniciáticos” e “O rito e o símbolo”, Ibid.
[8] – Esta é uma das razões pelas que a assistência periódica à Loja é um dos principais deveres de um maçom.
[9] – Ver “Maçons et charpentiers”, em Etudes sul a Franc-Maçonnerie et lhe Compagnonnage II. No mesmo volume, no artigo “A propos du Grand Architecte de L’Univers”, Guénon também assimila ao Grande Arquiteto com o Adam Kadmon da Cabala e o Homem Universal do sufismo islâmico. Também é muito significativo o que diz a respeito do hierograma do Grande Arquiteto (formado pelo Tetragrama Iod, He, Vau, He, o nome inefável de Deus) e o de Allah, constituído por outro Tetragrama “cuja composição hieroglífica designa netamente o Princípio da Construção Universal”, adicionando em nota “que as quatro letras que formam em árabe o nome de Allah equivalem respectivamente à régua, ao esquadro, ao compasso e ao círculo, este último sendo substituído pelo triângulo na Maçonaria de simbolismo exclusivamente retilíneo”.
[10] – “Em tua luz vemos a luz”, Salmos, 36, 10.
[11] – Aperçus…, cap. XLVI, “Sobre duas divisas iniciáticas”.
[12] – O ritual de abertura da Loja se complementa com o ritual de clausura ou fechamento da mesma. Isto se simboliza com o “apagar das luzes”, que se concentram assim no ponto primordial de onde emanaram. Este duplo movimento de expansão (abertura) e concentração (fechamento), é análogo ao espir e aspir, criação e dissolução geradas pelo ritmo (rito) universal.
[13] – O Rei do Mundo, cap. III.
[14] – Na Maçonaria operativa, a geometria era a “quinta” ciência, pois ela ocupa o quinto lugar na enumeração das sete artes liberais. Ver a este respeito “A letra G e o Svástica”, em Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada.
[15] – Número, peso e medida se correspondem com os pilares maçônicos da Sabedoria, a Força e a Beleza.
[16] – Sobre a teoria indiana dos três gunas (tamas, rajas e sattwa) remetemos ao cap. V de O Simbolismo da Cruz. Também o cap. VIII de A Roda, uma imagem simbólica do cosmos, de Federico González.
[17] – Nesta obra Guénon recolhe alguns ensinos do esoterismo islâmico e da tradição indiana relativas à metafísica da geometria que pudessem ser de grande utilidade para a investigação em profundidade do simbolismo maçônico.
Obrigada. Muito interessante.
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