Multidão e Ação Política

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As grandes manifestações políticas que ocorrem continuamente no mundo contemporâneo pelas mais diversas motivações (contra a globalização e a destruição das culturas locais, contra o neoliberalismo e a precarização do estado de bem estar social, contra a espoliação da cidadania em prol dos interesses financeiros, contra a violência policial praticada contra os pobres, entre inúmeras outras) trazem novamente ao cenário filosófico a categoria política da Multidão, apresentada no advento da modernidade por Baruch Espinosa (1632-1677) na sua reflexão sobre a o florescimento da soberania popular em sua luta por liberdade frente ao poder despótico absolutista. Três grandes pensadores contemporâneos, influenciados pela filosofia de Espinosa, se apropriaram do conceito de Multidão para a compreensão desses fenômenos políticos que dissolvem a ideia apregoada pela opinião pública de que não há mais possibilidade de resistência ou alternativas concretas de oposição aos desmandos arbitrários dos espoliadores sociais. São eles: Antonio Negri, Michael Hardt e Manuel Castells, cujas contribuições para o tema serão cotejadas nas linhas a seguir.

Espinosa aborda o conceito de Multidão em uma realidade histórica na qual o absolutismo do Estado soberano lutava violentamente contra todas as contestações republicano-democráticas em busca de liberdade humana de ação e de pensamento. O poder teológico associado ao despotismo político impunha a servidão sobre as consciências, silenciadas e submissas. Ao invés de favorecer a realização da beatitude humana, a religião, apropriada pelo sectarismo da elite sacerdotal, incutia o grande medo na mente dos seus devotos, decorrente da ameaça da punição divina contra todo aquele que não seguisse fielmente os mandamentos eclesiásticos; mais ainda, no processo de obscurecimento da razão humana, o discurso teológico inoculava no rebanho o ódio contra a diferença, promovendo assim violências sanguinolentas contra os membros das mais diversas expressões religiosas desprovidas de proteção legal. O soberano, imputado como o representante secular do poder divino na Terra, regia de forma inquestionável sobre seus súditos, e nada aparentava ser mais absurdo do que a morte do rei. Quando Carlos I da Inglaterra é solenemente executado em 1649 pelos partidários de Oliver Cromwell na efervescência da Revolução Puritana, foi como se o próprio Deus fosse morto.

A luta da consciência libertária contra toda forma de opressão política mobiliza os sujeitos a juntarem suas forças em favor do estabelecimento do bem comum que une os sentimentos de amor e de amizade como uma potência efetivamente transformadora da vida humana: “Se dois homens se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho: e quantos mais assim estreitarem relações, mais direitos terão todos juntos” (Espinosa, 2009, p. 18). Com efeito, enquanto a arbitrariedade tirânica prospera mediante a desmobilização dos corpos políticos, amedrontados pelo autoritarismo soberano, o espírito democrático que vibra nos ânimos dos sujeitos imbuídos pelo amor pela liberdade e senso de comunhão os emancipa desse temor fatal que engrandece os opressores ao coagir toda luta por reconhecimento.

O poder teológico associado ao despotismo político impunha a servidão sobre as consciências, silenciadas e submissas. Ao invés de favorecer a realização da beatitude humana, a religião, apropriada pelo sectarismo da elite sacerdotal, incutia o grande medo na mente dos seus devotos, decorrente da ameaça da punição divina contra todo aquele que não seguisse fielmente os mandamentos eclesiásticos; mais ainda, no processo de obscurecimento da razão humana, o discurso teológico inoculava no rebanho o ódio contra a diferença, promovendo assim violências sanguinolentas contra os membros das mais diversas expressões religiosas desprovidas de proteção legal.

Multidão e Mobilização Política

A capacidade de mobilização política da Multidão ocorre a partir de critérios qualitativos, pois sua força transformadora se desenvolve pela sintonia de ideias convergentes entre a multiplicidade de sujeitos envolvidos no projeto de atuação social em busca da realização dos seus desejos progressistas. Desse modo, o agir político da Multidão associa em seu raio de intervenção social as inúmeras diferenças existentes no seio da sociedade, sem que tais diferenças sejam anuladas em nome de uma abstração política chamada povo ou nação; pelo contrário, essas particularidades existenciais continuam vigorando na construção autônoma do grande corpo da Multidão, só que agora ainda mais fortalecidas: “Os homens – digo – não podem desejar nada mais vantajoso para conservar o seu ser do que do que estarem todos de tal maneira de acordo em tudo que as almas e os corpos de todos formem como que uma só alma e um só corpo, e que todos, na medida das suas possibilidades, se esforcem para conservar o seu ser; e que todos, em conjunto, procurem a utilidade comum de todos” (Espinosa, 1992, p. 376-377).

Como podemos pensar o conceito de Multidão no período atual em que fervilham movimentos sociais de resistência ao poder opressivo dos governos, não importando o seu espectro ideológico? A Multidão é naturalmente ubíqua, descentralizada em seus agenciamentos sociais, se desenvolve mediante a empatia interpessoal dos seus membros pela causa democrática e supera as limitações provincianas do espírito nacional: “A Multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A Multidão é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum” (Hardt & Negri, 2005, p. 143). Desse modo, suas intervenções contra a repressão governamental defensora dos interesses empresariais se tornam globais. O desenvolvimento da internet e das suas redes sociais é um fator fundamental para a comunicação e organização desse grande organismo em contínuo processo de devir. Com efeito, rompendo as barreiras impostas pelas estruturas midiáticas tradicionais atreladas ao sistema dominante econômico-político, a Multidão de hoje, potencializada pelo advento das redes sociais e sua disponibilidade para uma grande quantidade de usuários, reconfigura os papéis reacionários dos meios de comunicação corporativos, dissolvendo sua verticalização tradicional e tornando-os horizontais, de modo que se estabelece assim o processo de interação “todos- todos”, tal como definida por Pierre Lévy em sua análise do ciberespaço, um estado comunicativo caracterizado por promover a interação plena de informações entre todos os usuários, sujeitos criadores, conectados na rede virtual (Lévy, 1999, p. 29). Mesmo quando esses governos, assustados com as mobilizações sociais irradiadas pela internet, passam a controlar de maneira mais incisiva a comunicação virtual, os membros da Multidão burlam esses mecanismos inibidores através de mensagens criptografadas e outras técnicas sutis de resistência desafiadora: “A estrutura disseminada em rede constitui o modelo de uma organização absolutamente democrática que corresponde às formas dominantes da produção econômica-social e também vem a ser a mais poderosa arma contra a estrutura vigente de poder” (Hardt & Negri, 2005, p. 127).

O caminho se faz caminhando, não é preestabelecido. Isso não significa que a Multidão não siga projetos precisos, pautas de reivindicações definidas; ela apenas não se deixa cristalizar por perspectivas autocentradas, pois está sempre aberta ao novo, ao diferente, ao insólito e ao acaso dos encontros.

Não há uma liderança formal comandando as ações múltiplas da Multidão, mas sim inúmeros focos de intervenção nas ruas, o cenário primordial para as intervenções desse corpo difuso. Mesmo as supostas lideranças da Multidão recusam esse papel de proeminência, colocando-se humildemente em posições subalternas para que se reforce o poder democrático que emana desse corpo político. Essa é a grande diferença ontológica da Multidão em relação ao conceito de Massa, pois esta segue de maneira heterônima os estímulos produzidos pelos líderes, que adquirem caracteres soteriológicos na condução desse agregado humano, como se este dependesse da perpétua tutela do chefe para que possa, assim, alcançar o bem-estar em sua existência, regida pelos princípios da menoridade existencial.

Enquanto a Massa necessita da indicação de um caminho luminoso a seguir, a Multidão faz o seu próprio caminho mediante as experimentações cotidianas no seu processo de conquista da liberdade. O caminho se faz caminhando, não é preestabelecido. Isso não significa que a Multidão não siga projetos precisos, pautas de reivindicações definidas; ela apenas não se deixa cristalizar por perspectivas autocentradas, pois está sempre aberta ao novo, ao diferente, ao insólito e ao acaso dos encontros. Eis, assim, outro motivo pelo qual a Multidão se revela não insolente e incontrolável pelos poderes soberanos, que somente toleram grupos políticos estáveis, pois dessa maneira são mais facilmente monitorados e controlados. A Multidão, nessas condições, prescindindo da figura carismática do líder, atua de maneira emancipada de todo controle ideológico, e isso é a causa maior do mal-estar que sua ação política causa nos aparatos governamentais, pois justamente rechaça toda tentativa de cooptação e submissão ao crivo soberano: “A Multidão, embora se mantenha múltipla e internamente diferente, é capaz de agir em comum e, portanto, de se autogovernar. Em vez de ser um corpo político com uma parte que comanda e outras que obedecem a Multidão é carne viva que governa a si mesma” (Hardt & Negri, 2005, p. 140). A Multidão exerce assim seu poder de autonomia nos seus agenciamentos sócio-políticos, evidenciando sua filiação ao espírito esclarecido que tem coragem de agir e expandir seu processo libertário pelo mundo.

A Massa, por sua vez, é indistinta, forçosamente homogeneizadora dos seus caracteres, impondo assim a lógica da identidade em sua organização social. A Multidão é intrinsecamente distinta, heterogênea e partidária dos signos políticos da diferença, qualidade que lhe fortalece progressivamente e estimula grupos sociais reprimidos a afirmarem seus direitos civis e lutarem por sua emancipação perante toda opressão reacionária. A ação social da Multidão evidencia também a crise de representatividade dos partidos políticos e dos sindicatos, cada vez mais afastados das demandas cidadãs em decorrência de sua burocratização e corrupção aos poderes financeiros, de modo que a intervenção da Multidão no cenário político pós-moderno significa a erupção de uma nova forma de atividade política, essencialmente contra-hegemônica: “Os movimentos sociais exercem o contrapoder construindo-se, em primeiro lugar, mediante um processo de comunicação autônoma, livre do controle dos que detêm o poder institucional” (Castells, 2013, p. 14).

Indignação e Amor pela Liberdade

A indignação pelas injustiças cotidianas e o sentimento de amor pela liberdade são os impulsionadores da ação política da Multidão, que faz assim valer a realização dos seus direitos civis perante toda tentativa de opressão governamental ou corporativa. O uso consciente das redes sociais evidencia o poder de mobilização das pessoas que lutam por justiça, exigindo mudanças radicais na condução da coisa pública ou pela prestação de serviços de maneira compatível com o investimento dispendido pelos consumidores. A arrogância dos empresários e mandatários corporativos que fornecem produtos e serviços de qualidade é continuamente denunciada pelos usuários nas redes sociais, exercendo assim um poder controlador dessas arbitrariedades. Essa arrogância empresarial talvez seja explicada pela certeza de impunidade que perpassa as relações sociais mediadas pelo capital e a facilidade de corrupção do poder judiciário, inclinado servilmente aos ditames comerciais. Contudo, expondo no ciberespaço o descaso corporativo para com seus consumidores-cidadãos, a Multidão em sua expressão eletrônica mobiliza campanhas vitoriosas que desgastam a imagem dessas empresas, causando-lhe prejuízos inestimáveis, único método capaz de modificar o relacionamento das corporações com os cidadãos prejudicados pela pretensa onipotência mercadológica.

Isso evidencia o poder que existe na capacidade humana de mobilização coletiva em prol da afirmação de seus direitos inalienáveis. Assim como o uso acrítico das redes sociais pode ocasionar catástrofes como linchamentos de pessoas acusadas de crimes que não cometeram, assim também seu uso consciente é de grande proveito para o esclarecimento social e o compartilhamento de vivências de indignação que servem de estímulo para a ação política efetiva. A Multidão esclarecida não se deixa conduzir pela demagogia sensacionalista da opinião pública; muito pelo contrário, ela é capaz de filtrar os acontecimentos noticiados e reconhecê-los como verídicos ou falsos, sem agir pela flutuação irrefletida dos afetos tão habilmente manipulados pelos ideólogos. Os afetos alegres, todavia, são fundamentais para a tomada de consciência da Multidão em sua organização pela luta contra a opressão: “Quando se desencadeia o processo de ação comunicativa que induz a ação e a mudança coletivas, prevalece a mais poderosa emoção positiva: o entusiasmo, que reforça a mobilização societária intencional. Indivíduos entusiasmados, conectados em rede, tendo superado o medo, transformam-se num ator coletivo consciente” (Castells, 2013, p. 158).

Eis assim a consolidação de uma possível nova forma de exercício da democracia popular, não mais apenas chancelada pelo sistema parlamentar convencional obtuso e alheio aos interesses coletivos que exerce seu poder mediante a alienação popular, mas enraizada na própria capacidade dos indivíduos em constante processo de diálogo que adquirem o poder de emancipação política mediante sua comunhão social e efetivação dessa unidade na realidade imanente. Nesses termos, a ação transformadora da Multidão, atualmente reconfigurada pelos dispositivos eletrônicos utilizados de maneira criativa e crítica, não representa uma utopia comunicacional ou política, mas uma resposta viável e efetiva aos tempos sombrios de uma conjuntura civilizacional que conduz a humanidade rumo ao abismo da barbárie e da destruição, caso mudanças radicais não ocorram em nosso modo de operar a práxis política e a resolução dos problemas candentes do mundo atual.

Autor: Renato Nunes Bittencourt

Fonte: Revista Filosofia

Renato é doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF/UFRJ) e professor de Comunicação Social da Faculdade CCAA e da Faculdade Duque de Caxias (Uniesp).

Referências Bibliográficas

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e de esperança: movimentos sociais na era da Internet. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

ESPINOSA, Baruch de. Ética. Trad. de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e António Simões. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.

______. Tratado Político. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

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