“É infelicidade que haja de confessar que vejo e aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução.” (Cláudio)
O poeta e advogado Cláudio Manuel da Costa viveu entre 1729 e 1789, a maior parte do tempo na antiga comarca de Vila Rica, hoje Ouro Preto, à época a capital da capitania de Minas Gerais. Nascido em Minas, próximo a Mariana, filho de pai português e mãe paulista, estudou no colégio jesuíta do Rio de Janeiro e graduou-se na Universidade de Coimbra, em 1753. Regressou a Mariana, fixando-se, posteriormente, em Vila Rica.
Na sua educação europeia, Cláudio foi influenciado pelos filósofos iluministas e pelas teorias econômicas inglesas. Era simpatizante da política reformista do Marquês de Pombal, déspota Português, porém tinha discurso liberal. Dominava o latim, o francês, o espanhol e cogita-se que lia em inglês. Deixou, ainda, dezenas de poemas escritos em italiano.
Especula-se que ele tenha traduzido a “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, obra esta publicada pela primeira vez em Londres em março de 1776, e que teria ligações com os Illuminati, sociedade secreta de cunho iluminista criada na Baviera e que influenciou inúmeras revoluções, fraternidades, arcádias literárias e associações com os mais diversos propósitos. Outra influência de época foi a Independência dos Estados Unidos da América (1776).
A historiadora Laura de Mello e Souza no seu livro “Cláudio Manuel da Costa – O Letrado Dividido” (2011) comenta que o conjurado morreu solteiro, mas viveu por trinta anos com Francisca Arcângela de Sousa (Francisca Cardoso ou Cardosa), nascida escrava e alforriada quando deu à luz o primeiro filho de Cláudio. Ressalta que ela foi companheira de sua vida toda e mãe de seus cinco filhos,
“um indelével indicativo de que o costume suplantou a legislação, mas não na íntegra, porque segundo a letra da lei, os bacharéis a serviço do Império não podiam casar-se com mulheres ‘da terra’. Cláudio Manuel da Costa não era português, mas sim luso-brasileiro, e não conseguiu superar sua formação jesuítica e escolástica, que de certo modo o aprisionava às leis, para de fato desenvolver coragem suficiente e assumir publicamente sua relação com uma negra”.
Em outra passagem do livro, a historiadora cita um comentário de João Caetano Soares Barreto, então Provedor da Fazenda, onde afirmava que
“a capacidade e literatura do dr. Cláudio Manuel da Costa era bem conhecida de todos, e não só nos ‘estudos de direito’, mas igualmente no de outras ciências, seguindo sempre o ensinamento dos melhores autores, ‘e mais modernos’. ‘Creio que nesta capitania não há quem o exceda’, prosseguia o provedor: só aceitava causas justas, consoante às leis do Reino, rejeitando todas as que só se poderiam defender com sutilezas e artimanhas”.
Esse é, pois, um bom testemunho do caráter do nosso Patrono.
Os registros históricos demonstram que Cláudio Manuel da Costa teve relativo sucesso profissional e projetou-se no campo político e literário de seu tempo, além de acumular significativo patrimônio material, sendo reputado como fazendeiro abastado, fatos que o colocavam na condição de membro da elite da então comarca de Vila Rica.
Em um tempo em que não existiam bancos, os negócios funcionavam à base do “fiado”, e a prática de solicitar empréstimo era usual entre as pessoas, o enriquecimento de Claudio Manuel também é atribuído à sua condição de banqueiro privado, um financista, como revelado no número de operações financeiras registrada no sequestro de seus bens. Levantamentos realizados demonstram que ele foi um dos profissionais do Direito mais requisitados nas Câmaras de Mariana e Vila Rica, havendo, ainda hoje, a confirmação de sua atuação em 68 ações judiciais.
O conjurado era um dos anfitriões constantes de poetas, militares, bacharéis e homens de negócio que, movidos pelas mais diversas razões, acorriam à capital. Oferecia chás, jantares, reuniões para conversas, declamações de poesias, recitais de músicas. De acordo com a narrativa de Augusto de Lima Júnior (2010), em casa de Cláudio Manuel reuniam-se os homens mais eminentes que se divertiam em zombar de Luís da Cunha Meneses (o Fanfarrão Minésio das Cartas Chilenas), ridicularizado nas sátiras que nesses encontros literários se compunham contra ele.
Em “Nota Biográfica” contida na 2ª edição dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira (1978), volume II (p. 124/125), novos detalhes da vida de Cláudio Manuel foram agregados. Destacamos a informação sobre a sua saúde e o fato de ter sobrevivido à tuberculose,
“que lhe roubou todos, ou quase todos, os irmãos homens, na juventude. Ao tempo da Inconfidência, andava achacado de reumatismo – razão de sua menor participação, não fosse ele também de formação conservadora”.
No volume VIII (p. 148), consta a nota dizendo que “o estado de saúde de Cláudio não lhe permitia sair à noite”. Como a terceira idade naqueles tempos chegava mais cedo, Cláudio Manuel foi considerado um dos membros mais idosos do grupo dos conjurados.
Era fato que o Visconde de Barbacena, Luís Antônio Furtado de Mendonça, como governador e Capitão-General da capitania de Minas Gerais, que assumira o cargo em 11 de julho 1788, sucedendo ao desastrado Luiz da Cunha Meneses, recebera instrução da Corte Portuguesa para superar a herança maldita do momento, representada pela queda da arrecadação dos impostos resultante da decadência da mineração, e a viabilizar a urgente necessidade de cobrança dos atrasados.
Conhecendo os planos dos conjurados, o Visconde decidira anunciar a suspenção em 14 de março de 1789 do pacote de medidas tributárias, conhecida como “derrama” [1], que esteve na origem da revolta, cuja cobrança estava anteriormente prevista para fevereiro daquele ano.
O clima na comarca era de desconsolo, provocado pelo regime opressivo e por fatores relacionados à espoliação pela Coroa, à proibição de instalação de indústrias e outras restrições econômicas, além da carestia, do atraso dos soldos, do desvio de recursos não contabilizados para a Fazenda Real, do contrabando que corria solto e da roubalheira generalizada, como nunca antes na história da Província[2].
O projeto político dos revoltosos era separatista e previa a instalação de uma república em Minas. A ideia da liberdade deixava muita gente entusiasmada, especialmente outra elite golpista de antanho. A data escolhida para deflagração da revolta seria estratégica, o dia da “derrama”, pelo apoio popular com o povo na rua como se esperava em função do descontentamento geral que a cobrança forçada dos impostos atrasados geraria.
Por outro lado, o resultado previsto da arrecadação dos “quintos” daria fôlego em decorrência de estar a Fazenda Real revigorada, o que permitiria o pagamento das tropas de apoio.
A conjura havia sido denunciada ao Visconde pelo Coronel Joaquim Silvério dos Reis, que almejava um tipo de delação premiada com perdão de suas dívidas para com a Coroa. No rastro da traição deixaram suas pegadas os aloprados Tenente-Coronel Basílio de Brito Malheiro e o Capitão-do-campo Inácio Correia Pamplona.
Em 12 de junho de 1789, visando a neutralizar depoimentos comprometedores diante dos magistrados do vice-rei, o Visconde mandou instaurar açodadamente em Vila Rica uma “Devassa”, que era o nome dado às investigações oficiais sumárias de caráter inquisitorial. Tal decisão ocorreu assim que tomou conhecimento de processo semelhante que já havia sido aberto no Rio de Janeiro em 7 de maio, com a prisão de Tiradentes logo três dias depois.
O Visconde, resguardando-se para que também os seus negócios não viessem à tona, nutria até então a esperança de que todo o assunto fosse tratado, sigilosamente, mediante acordo com o vice-rei, com o banimento dos cabeças da conspiração, sem que houvesse a necessidade de instaurar um inquérito judicial (Castellani, 1992).
No Volume VIII dos Autos da Devassa (p. 282), consta informação de que o Sargento-Mor da Cavalaria José de Vasconcelos Parada e Souza (o ‘Padela’ das Cartas Chilenas), em junho de 1789, no Quartel de seu Regimento, criticara o Visconde de Barbacena por ainda não ter mandado prender Cláudio, “notório amigo do Ouvidor Gonzaga”. Sabendo disso por intermédio de seus “olheiros”, o Visconde incumbiu-o de efetuar a prisão, que ocorreu em 25 de junho de 1789.
Cláudio Manuel se encontrava acamado, doente de reumatismo, quando arrancado do leito e conduzido para a Casa dos Contratos[3], sendo metido em um dos segredos preparados pelo Visconde de Barbacena. O local era considerado uma “cela especial”, diriam os mais otimistas, já lançando as sementes para o futuro tratamento diferenciado para os indigitados portadores de diploma de curso superior. A expressão “preso em segredo” tinha o entendimento de preso incomunicável na linguagem moderna, a popular “solitária”.
Para alguns críticos, pesa sobre Claudio Manuel a condição de ter se envolvido de forma colateral naquele movimento, já aos 60 anos, sendo ele interrogado uma só vez pelos juízes da Alçada, em 2 de julho de 1789, o que o teria deixado apavorado com as consequências da acusação, ocorrendo em seguida a sua morte em circunstâncias obscuras, oficialmente por suicídio na prisão, dois dias depois, no dia 4 de julho, em Vila Rica.
Não se tem notícias quanto ao local do enterro de seu corpo, prevalecendo a hipótese de que sua companheira Francisca teria se empenhado em conseguir-lhe sepultura, enterrando-o em fazenda de sua propriedade. Também na supracitada 2ª edição dos Autos da Devassa, em Nota contida na página 139 do Volume II, segue o seguinte comentário:
”E corre a lenda que foi ocultamente sepultado na Matriz do Pilar, terceira sepultura ao pé do altar esquerdo, junto ao arco do cruzeiro”.
Outros historiadores afirmam que o vigário Vidal, íntimo amigo do finado, não querendo ou tendo razões para não acreditar no apregoado suicídio, ajudado pelo sacristão, foi ao lugar onde o corpo teria sido enterrado anteriormente, exumaram-no e o trasladaram para a Matriz de Vila Rica, dando-lhe uma das sepulturas abaixo do presbitério do lado esquerdo.
Não obstante a proibição de cultos para os suicidas, constam anotações de que a alma do poeta teria recebido dezenas de missas, tendo em vista sua reconhecida religiosidade e do título da “Ordem de Cristo” recebida do Rei de Portugal. O mesmo registro citado anteriormente acrescenta que “As modestas Irmandades a que pertencia pagaram-lhe o seguro do além: as trinta missas de praxe”. Na realidade, a Fazenda Real arcou com as despesas dos ditos sufrágios, o que leva à dedução de que as coisas não ocorreram nos termos dos escritos oficiais.
A 2ª edição dos Autos da Devassa, Volume II, Apenso IV (p. 123/139), registra o teor da Inquirição e o auto do Corpo de Delito. Na Nota comentada que se segue na página 135, a respeito do depoimento do conjurado, consta que
“A assinatura de Cláudio no documento original é trêmula, cansada pela idade e pela emoção. Mas é legítima, não tendo qualquer valor a alegação grafológica de que teria falsificado a própria assinatura…”. Prossegue a Nota acrescentando: “Ocorre que, no formalismo processual da época, a inquirição se tornou nula, pois faltava-lhe a formalidade do juramento aos Santos Evangelhos, assim como faltou, a seguir, a ratificação e segundo juramento em presença de um tabelião”.
Em certo aspecto, é de todo coerente assegurar que a morte de Claudio foi consequência de seu interrogatório, pois era conveniente aos seus algozes afastá-lo para dar consequência ao depoimento consignado, que, provavelmente, não seria ratificado por ele. Laura de Mello e Souza (2011) destaca que havia
“interesses importantes em jogo, sendo melhor que o poeta linguarudo se calasse de vez”, restando indagações que se respondem por si próprias, quais sejam: “Por que o aprisionaram em Vila Rica e não o conduziram para o Rio de Janeiro como os demais? Barbacena o queria por perto para controlar-lhe a fala perigosa quanto a seu governo e à sua simpatia pelo movimento?”
Para Castellani (1992),
“Cláudio, por seu próprio temperamento, poderia, encarcerado, ter perdido o controle de suas emoções. Mas por que não nos oito dias que precederam o interrogatório, mas, sim, apenas dois dias depois dele?”.
Em outra passagem da mesma obra afirma:
“Foi um suicídio conveniente demais e no momento mais oportuno, para que deixe de suscitar dúvidas sobre sua veracidade”.
No que se refere ao falar sem atentar para possíveis consequências, vale destacar a observação do historiador Márcio Jardim, citado por vários autores, quanto a
“acreditar que a morte de Cláudio tenha sido (junto com toda repressão que se abateu sobre a Capitania) um dos fatores que ajudaram na formação de uma das características dos mineiros: a prudência em falar de política”.
Algumas avaliações asseguram que Cláudio teria sofrido um duro golpe para o seu temperamento brando e para a sua idade, sobretudo pelo desgaste da inquirição a que fora submetido. Ademais, a sua especial sensibilidade de poeta e os conhecimentos jurídicos que detinha permitiam-lhe vislumbrar o cenário que se descortinava em função dos desdobramentos dos fatos. Torna-se importante realçar que contra os réus da conjuração todas as pressões eram permitidas, todas as ações justificáveis e era imperativo que os algozes mostrassem dedicação ao Reino de Portugal, daí o empenho em levar os conjurados à forca.
Uma passagem curiosa relatada no livro de Carlos Guilherme Mota (Tiradentes e a Inconfidência Mineira, 1986) demonstra a perspicácia e a preocupação de Cláudio Manuel naquela conjuntura. Diz o texto:
“Certa vez, falando com amigos, Cláudio Manuel havia dito: Nas Minas Gerais não há gente. Os americanos ingleses foram bem sucedidos porque acharam três homens capazes para a campanha de sua independência [Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e George Washington], mas nas Minas Gerais não há nenhum. Só o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes, anda feito corta-vento. Mas ainda lhe hão de cortar a cabeça”.
Segundo o autor, foi o que aconteceu, mas Cláudio morreu primeiro.
Outra preocupação de Cláudio Manuel, citada pelo brasilianista e controvertido historiador britânico Kenneth Maxwell (1977), diz respeito à loquacidade de Tiradentes que levou o poeta a criticá-lo “por estar pondo em perigo o sigilo dos planos com sua falta de cautela…”. Mas a admiração do poeta ao alferes também é refletida na frase “tomara que existissem mais homens desta têmpera!”.
A corrente que defende a linha do suicídio de Claudio Manuel se apoia nas alegações de que ele estaria em profundo estado de depressão às vésperas da sua morte, o que teria sido confirmado pelo frade confessor, conforme depoimento apensado aos Autos da Devassa. Muitos argumentam que foi uma reação de dignidade pela recuperação da lucidez e reconhecimento de que teria fraquejado diante dos juízes que sempre amoleciam o caráter dos conjurados antes de submetê-los a interrogatório. E, por estar velho, doente, alquebrado, decidira pelo suicídio. Outros, que advogam a tese do assassinato, contestam a autenticidade do documento e a declaração do frade.
Surpreendentemente, Laura de Mello e Souza (2011) assim se manifesta com relação à morte do conjurado: “se entendi o homem que foi Cláudio Manuel da Costa, sou levada a afirmar que decidiu pôr um termo a sua vida”. A injusta conclusão da renomada historiadora se baseia em análise de “vestígios deixados pela ficção e pela história”. Em outra parte de seu trabalho ela afirma ter vislumbrado traços de melancolia no poeta. Se assim o fora, os autores que escrevem romances trágicos deveriam ser cautelarmente vigiados pelos familiares ou autoridades por representarem uma ameaça a si e à sociedade.
A propósito da melancolia da qual estaria acometido nosso poeta é bom que se diga que esse e inúmeros outros traços culturais, como a discrição, prudência, desconfiança, introspecção e outros modos de ser dos mineiros, como o jeito ”pacífico e malicioso”, descrito por Amoroso Lima, formam um conjunto de valores largamente decantados pelos estudiosos desse emaranhado simbólico da mineiridade. Hipócrates (460-370 a.C) definia a melancolia como uma doença sagrada. Aristóteles (384-322 a.C.) se perguntava: “Por que razão todos aqueles que foram homens de exceção no que concerne à Filosofia, à Ciência de Estado, à Poesia ou às Artes foram manifestamente melancólicos?”. Sem esse excesso, segundo ele, a genialidade não manifestaria sua criatividade.
Contudo, referências à religiosidade e ao bom humor do conjurado não faltam. Augusto de Lima Júnior (2010) relata:
“Cláudio se constituíra uma grande e respeitada figura na vida social da Capitania das Minas Gerais, sendo ainda muito querido por seu gênio folgazão, sempre bem humorado, conforme ele próprio declarou aos seus inquiridores nas Devassas de Vila Rica”.
Afirma ainda que Cláudio era um homem rico, com grandes rendas em vista da grande quantidade de ouro que detinha. Esses valores desapareceram de sua casa depois de sua prisão, tendo sido a causa de seu assassinato, que muito interessava aos ladrões que o foram prender, sendo o principal suspeito o Sargento-Mor da Cavalaria José de Vasconcelos Parada e Souza. Na condenação, o restante de seus bens foi confiscado para o Fisco e Câmara Real.
Aos que defendiam a tese do assassinato, o próprio laudo pericial era motivo de suspeita, em face da conclusão simplória de que o poeta teria se enforcado usando os cadarços do calção, amarrados em uma prateleira, em condição julgada impossível para que alguém pudesse lograr êxito em tais circunstâncias. A convicção era de que Cláudio Manuel fora assassinado premeditadamente e seu corpo posteriormente suspenso a fim de simular um enforcamento voluntário.
Retornando ao locus horribilis onde o nosso Poeta Árcade enfrentou o seu fim, e para uma melhor avaliação do discutível “Auto de Corpo de Delito”, transcrevemos a conclusão constante do Volume II dos Autos da Devassa, item IV. 2.3 (p.137):
“E examinado mais todo o corpo pelos referidos cirurgiões, em todo ele não se acha ferida, nódoa, ou contusão alguma, assentando, uniformemente, que a morte do referido Dr. Cláudio Manuel da Costa só fora procedida daquele mesmo laço e sufocação, enforcando-se voluntariamente por suas mãos – como denotava a figura e posição em que o dito cadáver se achava”, conclui o documento[4].
O Suplemento Cultural integrante da Revista da Associação Paulista de Medicina nº 208, de novembro de 2009, ao apresentar artigo de Arnaldo Amado Ferreira intitulado “A morte do inconfidente Cláudio Manuel da Costa”, apresenta a seguinte análise:
“O auto de exame de corpo de delito do ilustre inconfidente poderia ter melhor esclarecido a causa da morte, não fosse ele falho e incompleto, sem obedecer às regras e a técnica médico-legal para esses documentos. A sua insuficiência, entretanto, pode ser creditada não só à falta de qualificação dos profissionais que o elaboraram, bem como aos modestos conhecimentos médico-legais daquela época”.
Em relação às circunstâncias da morte do conjurado, o Mestre em Sociologia e Doutor em História, João Pinto Furtado, sob outro discutível enfoque, comenta em seu livro “O Manto de Penélope” (2002, p. 67):
“Também a morte de Cláudio Manuel da Costa, em julho de 1789, é muito ilustrativa. Um dos mais seriamente envolvidos nas atividades ilícitas de contrabando, ele poderia ter ameaçado expandir o raio de ação da devassa incluindo informações sobre a rede que, supostamente, articulava os membros do movimento e, por isso, sua morte seria uma espécie de ‘queima de arquivo’ avant la lettre”. Continua o autor: “De fato, os temas do contrabando e da proeminência de algumas das principais lideranças do levante, em especial Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, embora pujantemente citados na formação de culpa, desapareceram por completo ao longo das demais inquirições. É verossímil que possam ter ocorrido acertos nesse sentido…”, conclui.
Dentro da linha das “conspirações” João Pinto Furtado (2002) teoriza:
“é lícito afirmar que homens como Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, o cônego Vieira e Alvarenga Peixoto provavelmente pretendiam a reforma no sistema de poder nas Minas, mas antes no que se refere à troca de alguns nomes e funções do que em seus pilares e fundamentos. Assim, o foco da luta seria muito mais interno ao mundo luso-brasileiro do que aos grandes e mais revolucionários temas iluministas”.
Em parágrafo anterior o referido autor já havia concluído que
“o volume total do sequestro dos inconfidentes praticamente correspondeu à arrecadação do quinto real sobre o ouro no ano de 1789. Além disso, o processo, do qual não se pode dizer que Barbacena atuou como observador distante afastou de uma vez por todas da estrutura de poder das Minas aqueles que seriam os únicos, talvez, em condições de rivalizar com o visconde em prestígio, luzes e talento para a gestão dos negócios coloniais, quais sejam Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa” (p. 206 e 223/224).
No sequestro dos bens dos conjurados, a casa de Cláudio, localizada em Vila Rica, teria passado por três processos de sequestro: em 25 de junho e 31 de julho de 1789 e 21 de março de 1791. Os Autos de Inventário foram coordenados pelo ouvidor José Caetano César Manitti (Rodrigues, 2010).
Ainda com relação aos desdobramentos da morte, no ensaio denominado “Inconfidência Mineira – As Várias faces“, Júlio José Chiavenato desmonta a tese do autoextermínio ao relatar que na tarde do mesmo dia em que Cláudio foi preso, foram mortos sua filha, o genro e outros familiares, bem assim alguns escravos, além de terem sido roubados todos os seus bens.
Augusto de Lima Júnior (2010) relata que na mesma tarde da prisão do conjurado, o Sargento-Mor Vasconcelos Parada e Souza despachou emissários para o Sítio da Vargem onde residia o genro e a filha de Cláudio, quando todos foram assassinados, incluindo os escravos, e se apossaram de barras de ouro consideradas o tesouro da revolução. Posteriormente, quando a casa foi demolida, foram encontrados sete esqueletos debaixo do assoalho da sala de jantar.
Consta, ainda, que o governador da capitania, Visconde de Barbacena, somente reportou a Lisboa sobre a morte de Cláudio em 15 de julho, onze dias depois de o fato ter ocorrido. A leitura do episódio é a de que, se a morte do Alferes Tiradentes não causaria embaraços em Lisboa, a de Cláudio e da sua família poderia causar, daí a necessidade de a farsa ser montada.
Outra referência quanto aos acontecimentos daqueles dias, Kenneth Maxwell (1977) aduz que
“Em correspondência para Lisboa, a 11 de julho, o governador não se referiu à morte de Cláudio Manuel da Costa, embora comentasse o depoimento do prisioneiro. O governador falou no ‘suicídio’ em outra correspondência, datada de 15 de julho que incluía o relatório dos médicos. Muito mais tarde um destes médicos veio a declarar que em seu primeiro relatório não atestara a causa da morte como sendo suicídio – e sim assassinato. No dia seguinte ao do exame, afirmou ele, o ajudante de campo do governador, Antônio Xavier de Resende, disse-lhe que seu relatório fora inadvertidamente destruído, aconselhando-o a elaborar outro que dissesse ter o prisioneiro se matado” (p. 182).
Muitos entendidos especulam que o conjurado estaria disposto a revelar nomes de importantes autoridades envolvidas no movimento. Intrigas de ocasião sugeriam que Cláudio teria sido assassinado por ordem do Visconde de Barbacena, que supostamente teria relações com os envolvidos e nutria alguma simpatia pelo movimento e temia ser denunciado. Contribuíam para isso insinuações feitas por Tiradentes a companheiros mais próximos de que teria “pessoa muito grande” a apoiá-lo. Não obstante tal afirmativa não parecer verossímil é certo que o poeta Tomaz Antônio Gonzaga gozava da intimidade com o Visconde, tendo escrito dois sonetos para celebrar o nascimento de seu filho. Acredita-se que Gonzaga contaria com o Visconde de Barbacena nos planos de uma nova ordem.
Sabia-se também que o conjurado José Álvares Maciel era amigo e por vezes hóspede do Visconde. Corriam notícias de que o Visconde de Barbacena devia muito dinheiro a Cláudio Manuel, que era credor de extraordinária clientela. De acordo com Kenneth Maxwell (1977), o Visconde de Barbacena teria sido no mínimo conivente com os planos de conjuração. Essa suspeita tem fundamento, vez que a atuação do governador durante o processo judicial enseja muitas contradições.
Mas, o fato é que o Visconde pôs a viola no saco e saiu gritando “pega ladrão”, iniciando a repressão e agindo com presteza e muita disposição contra o movimento, pois havia uma preocupação das autoridades portuguesas com a possibilidade de o levante atingir as vizinhas capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Em relação às suspeitas que recaíam sobre o Visconde quanto à morte de Cláudio Manuel, relata Kenneth Maxwell (1977):
“Certamente o poeta não poderia ser assassinado sem a conivência ou, ao menos a concordância do governador. Em seu depoimento, além do mais, Cláudio afirmou recordar-se de ter ouvido de Gonzaga, certa vez, que o General… o Visconde (de Barbacena) sempre dizia que estaria na primeira linha, no caso de uma revolta…” (p. 184).
Ainda segundo o autor, o mistério que cercava o falecimento de Cláudio e a farsa crescente do processo em Vila Rica são exemplos muito ilustrativos do pantanal em que afundava todo o caso. Sendo a morte um ato premeditado (não descartando tal possibilidade), serviu de advertência aos demais até que ponto certos interessados estariam dispostos a ir para se protegerem da incriminação.
Continua…
Autor: Márcio dos Santos Gomes
Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, da Academia Mineira Maçônica de Letras, e para nossa alegria, também um colaborador do blog.

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Notas
[1] – A “derrama” foi uma medida fiscal cogitada em 1788, para complementar os débitos que os mineradores acumulavam junto à Coroa Portuguesa, que estipulava a cobrança de um imposto adicional aos vinte por cento de praxe, então alardeada como uma escorchante alíquota chamada de “quintos”, de forma a se atingir a cota anual de 150 arrobas (1.500 quilos) de ouro, que seria completada com o confisco de bens e objetos de ouro.
[2] – O Brasil era Província da Monarquia Portuguesa (Estado do Brasil). A capitania de Minas Gerais, no período de 1720 a 1815, era dividida em quatro comarcas: Vila Rica, Rio das Mortes, Rio das Velhas e Serro Frio.
[3] – A Casa dos Contratos era propriedade de João Rodrigues Macedo, um rico contratador e amigo muito próximo do Visconde, prédio hoje conhecido por Casa dos Contos. Os contratadores naquele tempo eram os “empreiteiros” de negócios que arrematavam os contratos para arrecadação dos direitos reais e exploração de atividades comerciais.
[4] – A propósito, tal criatividade pode ter inspirado as autoridades envolvidas em caso semelhante ocorrido 183 anos mais tarde, em 25 de outubro de 1975, com o jornalista Vladmir Herzog, cujo “Laudo de Encontro de Cadáver”, expedido pela Polícia Técnica de São Paulo, registrava que ele se enforcara com uma tira de pano – a “cinta do macacão que o preso usava” – amarrada a uma grade a 1,63 metros de altura. Na condição de judeu, Herzog foi enterrado no centro do Cemitério Israelita do Butantã, o que significava desmentir publicamente a versão oficial de suicídio
Excelente trabalho!!
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