
Você é um escravo. Eu também sou. Todos somos servos dos nossos hábitos condicionados, sejam eles quais forem. A neurociência, com a teoria do “Cérebro Trino”, de Paul MacLean, contava na década de noventa que temos 03 cérebros: reptiliano, mamífero e racional. A parte mais primitiva visa nossa sobrevivência e perpetuação: comida, bebida, sono, abrigo, defesa, reprodução, repouso, associações estratégicas correlatas. Para isso, o cérebro primitivo é forte, predominante e extremamente simples, não classifica os hábitos como vícios ou virtudes. Isso é pauta para o cérebro racional ou neocortex.
Assim que se satisfaz do básico, o cérebro primitivo relaxa e se sente recompensado. Atribui essa recompensa ao evento estimulante que o levou à ação relaxante. Essa “deixa para agir” é cravada na mente como gatilho. Gatilho, Ação e Recompensa: Esse o triângulo do hábito, como explica Charles Duhigg em sua obra “O Poder do Hábito”. O gatilho gera um anseio, ou seja, o pensamento se adianta, obrigando o corpo a reagir antes do fato acontecer. Cheiro de comida gera salivação. Atração gera tesão.
Estimulado uma segunda vez pelo mesmo gatilho, o instinto busca apenas em repetir a ação que o levou à última sensação de recompensa. Esse automatismo é inconsciente e, quando em descontrole, sobrepõe-se aos nossos esforços por moderação, lealdade e honestidade. Impondo-se o primitivo, somos reféns desses motores comportamentais em todas as dimensões da vida. O triângulo do hábito parece inexpugnável. Gatilho, ação e recompensa formam os grilhões de nossa servidão.
A boa notícia: o escravo pode mudar de senhores. Um “gatilho” pode ser identificado e, dessa deixa, partir para novas ações. Todavia, não se empolgue demais. Podemos ter melhores hábitos, senhores menos destrutivos, mais saudáveis, mas teremos que lutar por eles.
A par de nossa dimensão primitiva, merece homenagem uma instituição corajosa nessa “troca de senhores”: Os Alcóolicos Anônimos. O AA enfrenta o terrível e destruidor alcoolismo com a mesma simplicidade e eficácia de sempre, desafiando a própria ciência e também a “pseudociência” e sua prateleira de produtos “milagrosos”.
O Triângulo do vício do alcóolatra começa no gatilho mais comum: tentar mascarar dores e tristezas ou prolongar prazeres e alegrias o máximo possível. A ação de beber pode ficar involuntária, parte do cérebro primitivo. As recompensas, em geral, são a desinibição e um suposto companheirismo, geralmente o do primeiro que aparecer.
A “Iniciação” do AA são “noventa encontros em noventa dias”, uma prova do novato de enfrentamento constante do ego e do seu quadro de adoecimento. No Triângulo do “Iniciado no AA”, o gatilho segue como sendo o trato das emoções, principalmente nos momentos mais críticos: aquela noite mais escura da alma ou as infinitas fugas, nas quais a mente humana é tão profícua em criar. A ação a ser implementada e repetida incansavelmente é lembrar da sua impotência e procurar a escuta do padrinho ou quem lhe faça as vezes o mais rápido possível. As recompensas são a desinibição emocional e a companhia, agora do padrinho e/ou dos companheiros de luta.
Você não leu errado: havendo quase nada a se fazer na recompensa, resta focar no gatilho e, a partir da “deixa”, partir para novas ações, reforçadas pela rotina, até mitigar os antigos reflexos condicionados.
É nessa hora que entra a egrégora coletiva. Por ela se materializa nossa habilidade de formarmos associações estratégicas de longo prazo, traço marcante que nos conferiu nosso sobrenome “sapiens”, como escreveu Harari. É pela prática coletiva que se cultiva a solidariedade e força para se desiludir e desistir de tentar mascarar as dores/tristezas ou tentar prolongar os prazeres/alegrias indefinidamente. Um coletivo comprometido com a evolução cria o espaço e a escuta propícios para a entrega e o enfrentamento das emoções. Todavia, falta ainda algo quase inexplicável, que faz de certas instituições campeãs na geração de valor para uma sociedade cada dia mais adoecida.
Havendo confiança e entrega, consegue-se fechar um triângulo entre o Falante – a Palavra – o Ouvinte. Dentro dessa egrégora, algo quase mágico está em vias de acontecer.
A entrega pela “palavra” ao sistema de troca de experiências é seguida de uma confiança no padrinho e nos companheiros. É crucial primeiro reconhecer ser impotente perante as ações automatizadas, um escravo assumido. Os registros e relatos pessoais permitem, ao seu turno, identificar os avanços, por menores que sejam, mas capazes de gerar gratidão à jornada, aos Irmãos de luta, ao Invisível e Supremo. “Entrego, confio, aceito e agradeço”, etapas da real jornada de autoconhecimento e auto atualização.
Cria-se confiança primeiro no padrinho. É quem está mais próximo ao recém-iniciado. Depois surgem a fé no programa e nessa Força misteriosa que a tudo conduz. Ao fim, o que começou com uma rendição e morte simbólica da arrogância e do ego, culmina no renascimento de um “amor próprio” capaz de resistir aos velhos hábitos, mesmo nos momentos mais estressantes da vida. Nesse momento, afilhado vira padrinho; aprendiz vira mestre; iniciado vira iniciador. O ciclo de destruição do ego e construção de templos de Confiança, Fraternidade e Fé então se repete e se multiplica. Não é Pedagogia, pois não educa crianças, mas “Andragogia”, a educação da consciência dos Iniciados.
A eficiência do AA serve-nos como espelhamento para a missão sagrada de qualquer Escola Iniciática perante seus Iniciados: enfrentar com honestidade e coragem nossa mente primitiva. Cabe ao Iniciado reconhecer sua dimensão animal e irracional. Sem isso, não há êxito em transformar velhos hábitos, prevalecendo os impulsos egóicos, mesmo estando “de corpo presente na Oficina”.
A pedra que foge do cinzel resiste em permanecer bruta.
É por causa da humildade em assumir sua impotência que o Iniciado busca se transformar. Sua marca principal é não se cansar de buscar. É um escravo buscador de novos senhores, novos hábitos, novas posturas. Ele não o faz porque se acha evoluído, mas justamente porque se reconhece como primitivo e impotente.
É desse desbaste voluntário e contundente da pedra bruta interior que se lapidam os autênticos mestres, provados ao longo das grandes crises, da ignorância e da estupidez humana, tal como o momento crucial que a humanidade atravessa no início do século XXI. Reconhece-se a espada pela temperatura da forja a que foi submetida.
As Escolas Iniciáticas devem acolher esses servidores. São servos que buscam incansavelmente se transformarem por novos hábitos. Eles se equipam com humildade, confiança e fé para cavar masmorras aos vícios. Sem esses jardineiros da consciência, qualquer terra é seca e estéril. Sem eles, espaços que seriam de evolução e aperfeiçoamento humano se rendem a “igrejismos” ultrapassados, repetições inúteis e “jornadas vazias” de toda sorte, nas quais o ego e vaidade se esbaldam.
Sair dos velhos condicionamentos é difícil. Conhecer a si mesmo também é difícil. Escolher o seu difícil é o que vai determinar quais serão seus senhores, seus hábitos.
Certo é que a evolução planetária segue seu curso. Iludidos pelos nossos vieses de confirmação, acreditamos que até um relógio parado esteja certo, ao menos duas vezes ao dia. Logo, a realidade, por mais dura que seja, é melhor que qualquer fantasia e, com isso, é imperativo vencer a inércia e a mente primitiva, já que seguem em frente “as pedras que rolam”, como cantou Bob Dylan. Os novos tempos demandam Oficinas repletas de servidores de novos pensamentos, palavras e ações, enfim, de escravos de melhores hábitos.
Autor: Luciano Alves
* Luciano é professor, analista judiciário e Mestre Maçom da A.R.L.S. Jacques DeMolay nº 22 da GLMMG.
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Parabéns meu querido irmão pela excelente reflexão, aos poucos vamos espalhando as sementes de despertar nos corações dos buscadores, assim plantando em nossos próprios, para que juntos possamos crescer e se espalhar.
É um privilégio estar ao seu lado nessa caminhada.
T.’.F.’.A.’.
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