
A Alma em Platão
Há intérpretes que não consideram a existência de um princípio de dualidade na relação entre as Ideias e as coisas, uma vez que, para estes, as Ideias seriam a “verdadeira causa” das coisas, o que não permitiria, portanto, a subsistência de uma dualidade entre estas realidades. No entanto, parece bastante certo que seja dualista a concepção platônica das relações entre a alma e o corpo, porquanto Platão introduz, além da participação da perspectiva metafísico-ontológica, a participação do elemento religioso derivado do Orfismo, que transforma a simples distinção entre alma e corpo numa verdadeira oposição (REALE, 2004, p.152). Por esta razão, em algumas passagens como a que temos a seguir, o corpo é visto não tanto como receptáculo da alma, à qual deve a vida, mas, sim, ao contrário, como cárcere da alma, o lugar de sua expiação:
Há uma fórmula que se pronuncia nos Mistérios: “uma espécie de cárcere, eis onde vivemos nós, os homens, e nosso dever não é nos libertarmos a nós mesmos e nem nos evadirmos.” (PLATÃO, Fédon, 1954, pg.20)
Giovanni Reale, explicando esta relação alma-corpo platônica enquanto oposição, diz que
enquanto temos um corpo, estamos “mortos”, porque somos fundamentalmente nossa alma; e a alma, enquanto se encontra em um corpo, acha-se como em uma tumba; e, com isso, encontra-se em situação de morte. Nosso morrer com o corpo é viver, porque, morrendo o corpo, a alma se liberta do cárcere. O corpo é raiz de todo mal, fonte de amores insensatos, de paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura. E tudo isso, precisamente, mortifica a alma (REALE, 2004).
No entanto, é importante grifar que a ética platônica se apresenta apenas parcialmente condicionada por esse dualismo exacerbado. Seus corolários fundamentais apoiam-se mais na distinção metafísica entre corpo e alma do que na contraposição misteriosófica entre a alma-dáimon e o corpo-cárcere (REALE, 2004, p.152).
Os diálogos platônicos que nos trazem elaborações acerca das características da alma e sua relação com o corpo são, principalmente, o Mênon, escrito na juventude, bem como o Fédon e o Timeu, do período de maturidade. Além destes, temos preciosas informações na República, especificamente no Mito de Er, e no Fedro através do Mito do Cocheiro. Seu forte interesse por estas questões levou Platão a retornar várias vezes ao assunto.
Em todos estes diálogos, a questão da imortalidade da alma é uma realidade que, não só permeia os temas tratados, como também adquire um caráter essencial para Platão, até porque encerra sérias implicações éticas: se com a morte o homem se dissolvesse totalmente, a doutrina ética de Sócrates não seria suficiente para convencer os que negam a existência de todo e qualquer princípio moral, como ocorria com os sofistas-políticos. Sócrates identificara a “cura da alma” como a suprema missão moral do homem. Platão insiste sobre esse mandamento socrático, ampliando e esclarecendo seu significado: curar a alma significa “purificá-la”, como veremos mais adiante.
Para Platão, a alma racional é, pois, imortal. De acordo com Chauí (p.301), as provas desta imortalidade variam de diálogo para diálogo à medida que a influência dos pitagóricos vai aumentando sobre a sua filosofia. Nos diálogos da maturidade e da velhice, Platão discute a questão da imortalidade em profundidade, aceitando a teoria órfico-pitagórica da transmigração das almas bem como a teoria da filosofia como possibilidade de purificação e ascese espiritual.
Sobre a imortalidade, lemos no Mênon:
[…] Dizem, de fato, que a alma do homem é imortal, e que ora chega ao fim – o que chamam morte – e ora nasce novamente, mas que nunca é destruída: justamente por isso o homem deve conservar-se tão puro quanto puder enquanto viver […]. (PLATÃO, Ménon, 81 b-c)
Ainda no Mênon, temos a primeira ideia de reminiscência da alma, onde Platão expõe que a alma já viu e conheceu toda a realidade, tanto a realidade do outro mundo quanto a realidade deste mundo. Por esta razão, traz conhecimentos daquilo com o qual se deparou. É a chamada “anamnese”, ou seja, uma forma de recordação, um emergir daquilo que já existe desde sempre no interior de nossa alma. Por esta razão, é fácil compreender como a alma pode conhecer e apreender: ela deve simplesmente extrair de si mesma a verdade que já possui desde sempre; e esse extrair de si mesma significa “recordar”, ou, simplesmente, “não esquecer” (CHAUÍ, p.147).
Diz Platão, a este respeito:
[…] Sendo, então, a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto tanto as coisas {que estão} aqui quanto as {que estão} no Hades, enfim, todas as coisas, não há o que não tenha aprendido; de modo que não é de admirar, tanto com respeito à virtude quanto ao demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas que já antes conhecia. (PLATÃO, Mênon, 81 c-d)
No Fédon, ou Da Alma, é formulada uma elaboração mais precisa sobre a imortalidade da alma. Neste diálogo, Platão sustenta sua prova central da seguinte forma: a alma humana é capaz de conhecer as realidades imutáveis e eternas. Ora, para poder conhecer tais realidades, ela deve possuir, inevitavelmente, uma natureza afim com elas. Caso contrário, essas realidades ultrapassariam as capacidades da alma. Consequentemente, como estas realidades são imutáveis e eternas, a alma também deve ter uma natureza eterna e imutável, sendo, portanto, imortal.
Esclarecendo melhor este ponto, David Cooper (p.124) nos mostra que o fato de termos acesso ao conhecimento das realidades imutáveis – e este acesso existe – necessariamente confirma que somos criaturas que possuem almas imateriais. Como as Ideias são imateriais e familiarizamo-nos com elas antes de sermos equipados com os sentidos corporais, então nós também devemos ser, ou ter, algo de imaterial. Para Cooper, esta afirmação nos remete às doutrinas herdadas de Pitágoras e provavelmente importadas do Oriente. A ideia de imaterialidade implica em imortalidade e induz à conclusão de que a alma não só é anterior à sua associação com o corpo como sobrevive à morte deste.
Finalmente, vejamos o argumento da imortalidade da alma no Fedro:
Toda alma é imortal, pois aquilo que se mantém sempre em movimento é imortal; aquilo, entretanto, que move algo mais, quando cessa seu movimento, {aquilo que era movido} deixa de viver. Assim, é somente aquilo que move a si mesmo que nunca cessa de mover-se, constituindo também a fonte e princípio de movimento para todas as demais coisas que se movem. Mas o princípio não é gerado, porque tudo o que é gerado o é necessariamente a partir de um princípio, e o princípio não é gerado a partir de coisa alguma, pois, se fosse, não seria princípio. E, uma vez que é não gerado, tem necessariamente que ser também indestrutível, já que se o princípio fosse destruído, jamais poderia ser gerada a partir dele qualquer coisa. […] Assim, aquilo que move a si mesmo (o automotor) nada mais é senão a alma, donde se infere que a alma é não gerada e imortal (PLATÃO, Fedro, 245 d-e, grifo nosso)
Entretanto, apesar da não-geração, existe uma origem da alma humana, e a forma como ela é originada nos é transmitida no Timeu, onde é narrado o Mito da Origem do Mundo ou da Criação do Mundo Sensível. Como visto anteriormente na cosmologia platônica, no princípio havia o Bem e as Ideias, o chamado mundo inteligível. Separada deste, havia a matéria caótica, sem forma e sem ordem. O Bem cria, então, um Demiurgo, um artesão sumamente inteligente, matemático e arquiteto, que irá criar todo o mundo sensível a partir do caos existente. O Demiurgo contempla as Ideias, as toma como modelos e as copia, imprimindo-as na matéria mutável, a khóra, que é o receptáculo informe do caos. Essa impressão dá origem ao kósmos (Timeu, 30 a 37).
Além disso, depreende-se do Timeu que o kósmos, imitando o mundo inteligível, possui uma alma inteligente que o governa, a Alma do Mundo. A Alma do Mundo, sendo o princípio vital que anima um ser, é o princípio de auto atividade e autoconservação do kósmos. Além disto, a Alma do Mundo é, também, a fonte de todo o conhecimento, sendo que, com os mesmos elementos com que o Demiurgo a fabricou, também fabricou a alma humana e a colocou num corpo. Participando, portanto, da Alma do Mundo, a alma humana individual, além de ser princípio vital do corpo que governa, está destinada por natureza ao conhecimento (CHAUÍ, p.291).
Logo, neste diálogo, Platão precisa que as almas são criadas pelo Demiurgo com a mesma substância com a qual é feita a Alma do Mundo, sendo composta de essência, identidade e diversidade. As almas teriam, portanto, um momento de criação, mas, por determinação divina, não estariam sujeitas à morte, como não está sujeito à morte tudo aquilo que é produzido diretamente pelo Demiurgo (REALE, 2004, p.154). Torna-se valioso constatar que, neste ponto, apresenta-se em Platão uma clara ordenação sobre a origem da alma humana: Ela é criada pelo Demiurgo, ela tem um início, diferentemente do Uno que sempre existiu.
Com relação ao destino das almas, ou melhor dizendo, suas trajetórias após a morte do corpo físico, se faz importante, em primeiro lugar, esclarecer a concepção platônica de metempsicose. Platão retoma essa doutrina do Orfismo e a amplia de várias maneiras (REALE, 2004, p.154). Destaca-se, fundamentalmente, o significado moral contido na teoria da metempsicose, o qual é muito bem enfatizado por Platão, não só nas páginas do Fédon, como na seguinte passagem das Leis:
[…] no Hades há um castigo para tais crimes {os crimes cometidos em vida}, e para aqueles que retornam aqui {na Terra} é necessário descontar a pena conforme sua natureza, aquela pela qual alguém paga por aquilo que ele próprio cometeu {em vidas anteriores} (PLATÃO, Leis, IX, 870 d-e).
No Fédon, esta doutrina é apresentada de forma bastante detalhada através do Mito do Destino das Almas. Lemos que as almas que viveram uma vida excessivamente ligada ao corpo, às paixões, ao amor e aos prazeres dele derivados, não conseguem, com a morte, separar-se inteiramente do que é corpóreo, pois o corpóreo se lhes tornou natural. Durante certo tempo, com medo do Hades[36], essas almas vagam junto aos seus sepulcros, como fantasmas, até que, atraídas pelo desejo do corpóreo, ligam-se novamente a corpos, não apenas de homens, mas, também, de animais, de acordo com o nível de perfeição moral por elas alcançado na vida anterior. Já as almas que tiverem vivido na prática da virtude, não da virtude filosófica, mas da comum, encarnar-se-ão em animais mansos e sociáveis ou até mesmo em homens honestos (Fédon, 80-e, 81 a-e, 107 c-e, apud Reale).
A trajetória das almas após a morte é narrada por Platão com requintes de detalhes, inclusive geográficos, como se pode verificar:
[…] Quando os mortos alcançam o lugar a que cada um é conduzido por seu dáimon, são primeiramente julgados com base na existência segundo a qual viveram. Aqueles que viveram medianamente vão para o Aqueronte e, embarcados em navios que lhes são destinados, alcançam o lago. Aí passam a habitar e são purificados, recebendo punição por quaisquer injustiças que hajam cometido e recompensas pelas boas ações que sejam do merecimento de cada um. […] No que toca aos que, durante a existência, se dedicaram a uma profunda vida devota, estes são libertados dessas regiões no interior da Terra como que de prisões; ascendem às suas puras moradas e habitam a superfície da Terra. Desses, todos aqueles que se purificaram suficientemente através da filosofia passam a viver daí por diante inteiramente sem corpos, e se transferem a moradas ainda mais belas cuja descrição não nos é fácil fazer (PLATÃO, Fédon, 113-d a 114-c).
É ainda possível, no Fédon, distinguir as várias fases evolutivas de purificação pelas quais a alma passa, como nos mostra Cornford (p.100): a purificação evolui de estágios inferiores de consciência “até à noção de uma inteligência que se isola do contágio do corpo ao qual está associada e que é levada, pelo seu amor à sabedoria e ao conhecimento, à contemplação da verdade.”
Cornford ainda reconhece que, em volta deste núcleo central trazido pelo Fédon, há uma orla de crenças “míticas” que advém da religiosidade pitagórica. A afinidade entre as formas de vida – divina, humana e animal – estabelece uma escala do ser, ao longo da qual a alma migratória pode subir ou descer conforme os seus méritos. “Esta crença é mantida e prezada pelo seu significado moral: oferece a esperança de uma justiça divina para compensar as manifestas desigualdades de mérito e recompensa nesta vida” (CORNFORD, p.100).
O Mito de Er, contido na República, e o Mito do Cocheiro ou do Carro Alado, presente no Fedro, também encerram importantes elucidações referentes ao caminho percorrido pelas almas humanas, trazendo narrativas pormenorizadas que conduzem à reflexão sobre a liberdade das almas.
Nos conta o Mito de Er que, após certo período desencarnadas, as almas se reúnem em uma planície onde será determinado o destino futuro de cada uma delas. Os paradigmas da vida, ou seja, os vários tipos de vida possíveis, são, em seguida, apresentados às almas. Tais paradigmas, entretanto, não são impostos mas apenas propostos às almas. O homem não é livre de escolher entre viver ou não viver, mas é livre de optar por viver ou não de acordo com certas normas ditadas pela consciência, ou seja, viver segundo a virtude ou arrastado pelo vício. O “como” viver é, portanto, de livre escolha de cada ser. E, assim, lemos na República, pelas palavras do profeta:
Almas efêmeras, este é o início de outro período de vida, que não passa de um correr para a morte. Não será o gênio que vos escolherá, mas vós escolhereis o vosso gênio. E o primeiro sorteado escolha, em primeiro lugar, a vida à qual deverá estar ligado por necessidade. A virtude não tem senhor: conforme cada um a honre ou despreze, dela terá mais ou menos. A responsabilidade cabe a quem escolhe. O deus é isento de culpa. (PLATÃO, República, 617 a-e)
Vemos que a escolha depende da liberdade das almas, mas seria mais exato dizer de seu “conhecimento” ou “ciência” do que seja uma vida boa e má. Aqui, o intelectualismo ético é levado a consequências extremas. Para Goldschmidt (p.84), este instante da escolha é um “instante crítico”, porque toda a nova existência do homem depende dele. Esta importância da escolha pode ser percebida pelas próprias palavras de Platão:
[…] reside {na escolha} o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros estudos para investigar e se aplicar a este, para ver se é capaz de saber e descobrir quem lhe dará a possibilidade e a ciência de distinguir uma vida honesta da que é má e de escolher sempre, em toda a parte, tanto quanto possível, a melhor. [..] De modo que, em conclusão, será capaz de refletir em todos os aspectos e distinguir, tendo em conta a natureza da alma, a vida pior e a melhor, chamando pior à que levaria a alma a tornar-se injusta, e melhor à que a leva a ser mais justa. […] Deve-se saber sempre escolher o modelo intermédio dessas vidas, evitando o excesso de ambos os lados, quer nesta vida, até onde for possível, quer em todas as que vierem depois. É assim que o homem alcança a maior felicidade (PLATÃO, República, 618 a-e).
Depois de feitas as escolhas, as almas são encaminhadas à planura do Letes, junto ao Rio Ameles “cuja água nenhum vaso pode conservar”. Sob um calor terrível, todas as almas são levadas, então, a beber uma certa quantidade dessa água, e aquelas mais impulsivas acabam por beber mais do que a justa medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Finalmente, as almas partem, cada uma para seu lado, esquecidas em maior ou menor grau de tudo o que viram, e prontas para nascerem “cintilando como estrelas” (República, 621 a).
Assim, nesta busca humana por conhecimento e elevação, condição necessária a cada escolha feita pela alma, a reminiscência adquire um papel fundamental. Conforme Chauí (p.265), o Mito de Er conduz a uma reflexão sobre a razão que leva alguns homens a buscarem a virtude e a verdade. “Como é possível que, vivendo entre simulacros, crenças e opiniões, os homens possam supor que existe algo além deles, e que esse algo seja a Verdade, se jamais a viram?” Mais uma vez, e como vimos no Mênon, a resposta de Platão consiste em afirmar que a alma aprendeu, antes da encarnação, tudo aquilo que ela, novamente, virá a adquirir com o conhecimento no mundo físico, de sorte que investigar e aprender é reativar um saber total que se encontra em estado latente na razão.
Também Cornford (p.89) reconhece a essencialidade da anamnesis para a evolução da alma, e afirma que “a ligação íntima entre a anamnesis, a doutrina da reencarnação e as ciências matemáticas sugere uma origem pitagórica”. E acrescenta que, sempre, onde existe a crença na reencarnação, fala-se de esquecimento da alma em relação às suas vidas anteriores e às suas experiências no outro mundo, tal como as almas no Mito de Er que, para esquecer, bebem a água do Rio do Esquecimento antes de voltarem a nascer. Ocorre que “umas almas bebem mais do que outras, o que quer dizer que os espíritos menos esquecidos conseguem recuperar durante esta vida uma parte do conhecimento adquirido.”
No Mito do Cocheiro, Platão propõe uma visão do outro mundo ainda mais complexa, já que agora explica a causa da descida das almas aos corpos, a vida primigênia das próprias almas, e as razões da sua afinidade com o divino (REALE, 2004, p.156).
O Mito do Cocheiro relata que no início havia uma única Alma universal e dela provieram as almas dos deuses e as dos homens. Inicialmente, fragmentos da Alma do Mundo permaneceram junto à abóbada do universo, de onde contemplavam a Verdade ou as Ideias. Com o movimento circular ou rotatório do universo, esses fragmentos foram se desprendendo da abóbada e, numa longa queda, ao encontrar fragmentos de matéria, nele fizeram pousada. O conjunto de uma alma e um corpo chama-se homem.
Antes da queda, a alma possuía asas e se encontrava junto aos deuses. Por causa do movimento circular – e, também, por causa de uma certa culpa originária – se vê lançada sobre a terra e projetada num corpo. Contudo, seu destino universal é retornar ao lugar originário, para junto dos deuses, o que ocorre de tempos em tempos em ciclos universais.
[…] a alma que perdeu suas asas perambula até pousar sobre algo sólido, onde se instala assumindo um corpo terrestre, o qual, devido ao poder da alma nele encerrada, parece capaz de movimento próprio (PLATÃO, Fedro, 246-c).
Prosseguindo, Platão faz uma analogia da alma, tanto a dos homens quanto a dos deuses, com um carro alado puxado por dois cavalos e guiado por um cocheiro. Enquanto os dois cavalos dos deuses são igualmente bons, os dois cavalos das almas dos homens são de raças e caráteres diferentes: um é nobre na raça e no caráter, enquanto o outro é o contrário, tanto na raça quanto no caráter. Isso torna difícil a operação de guiá-los. O cocheiro representa a razão e os dois cavalos representam as partes alógicas da alma. Segundo alguns intérpretes, os dois cavalos e o cocheiro simbolizam os três elementos com os quais o Demiurgo forjou a alma no Timeu.
As almas, enquanto participantes de sua pátria original, voam pelas estradas celestiais e procuram, em conjunto com os deuses, chegar periodicamente ao ápice do céu para contemplar aquilo que está além do céu, o Hiperurânio, o Mundo das Ideias, ou, ainda, nas palavras de Platão, a “Planície da Verdade”. Mas, ao invés do que acontece com os deuses, para as almas humanas constitui uma árdua empresa contemplar o Ser que reside além do céu e apascentar-se na “Planície da Verdade”, especialmente por causa do cavalo mau, que as quer puxar para baixo.
Algumas almas conseguem contemplar o Ser, ou pelo menos, parte dele e, por essa razão, continuam a viver com os deuses. Outras almas, ao contrário, não conseguem alcançar a “Planície da Verdade”; amontoam-se, então, pressionam-se, e, não conseguindo subir a ladeira que conduz ao ápice do céu, chocam-se e atropelam-se. Ocorre uma briga, as asas se quebram e as almas, tornando-se pesadas, se precipitam sobre a terra (REALE, 2004, p.157). De acordo com o Fedro:
[…] dentre as almas, aquela que se assemelha maximamente a um deus, ergue a cabeça de seu auriga para a região exterior e é arrebatada pelo movimento circular, mas perturbada pelos cavalos contempla precariamente as realidades; uma outra alma às vezes ascende, às vezes desce e, pelo fato de seus cavalos estarem descontrolados e a afetarem neste sentido, ela vê algumas coisas reais, mas se mostra incapaz de ver outras. As demais almas seguem avante, todas ansiosas pela região superior, mas são incapazes de atingi-la, sendo então carregadas para baixo, num mútuo pisoteamento e colisão, cada uma tentando ultrapassar a que lhe é vizinha. O resultado é uma grande confusão na qual as almas são mutiladas e muitas asas partidas por conta da incompetência dos condutores; e após muito esforço árduo e penoso todas se afastam sem ter obtido uma visão da realidade (da coisa que é) e, uma vez tendo ido embora, passam a alimentar-se da opinião (PLATÃO, Fedro, 248-a, grifo nosso).
Por conseguinte, enquanto uma alma conseguir contemplar o Ser e deleitar-se na “Planície da Verdade” não cairá em um corpo na terra e, de ciclo em ciclo, continuará a viver em companhia dos deuses. A vida humana à qual a alma caindo dá origem é moralmente mais perfeita na medida em que mais houver “contemplado” a Verdade no Hiperurânio e moralmente menos perfeita quanto menos a tiver “contemplado” (REALE, 2004, p.157).
Estamos, portanto, diante de ciclos individuais de reencarnação, como nos mostra o Mito de Er, e de ciclos cósmicos que ocorrem no tempo, conforme se pode verificar no Mito do Cocheiro.
Para Giovanni Reale, os mitos platônicos nos trazem um forte componente religioso-ético que muito provavelmente decorre da influência órfico-pitagórica. O mito, para Platão, mais do que expressão de fantasia, é expressão de fé e crença. Assim, em muitos diálogos, a filosofia de Platão referente a certos temas se configura como fé racionalizada: o mito procura sustentação no logos, e o logos busca complementação no mito. Em síntese, quando a razão chega aos limites extremos de suas possibilidades, Platão confia à força do mito a tarefa de superar intuitivamente esses limites, elevando o espírito a uma visão ou, pelo menos, a uma tensão transcendente.
Através destes dois mitos, Platão procura nos transmitir que as partes da alma constituem uma hierarquia, e que é com a parte mais elevada, a racional, que a pessoa se identifica propriamente (COOPER, p.124). E por que o ser se identifica com a parte racional da alma, se o ser vivo é uma combinação de alma e corpo, como lemos no Fedro? Porque o que o ser realmente quer não é “ser dominado pelo prazer”, mas, pelo contrário, “ser senhor de si próprio” (Protágoras, 357). E é com a parte do eu que realiza o domínio que o indivíduo realmente se identifica – e não com os desejos que controla, ou pelos quais é controlado. O ser é, pois, o eu racional abaixo do qual age quando o impulso e o apetite prevalecem (COOPER, p.125). Esta é a primeira razão para a primazia da alma racional.
A segunda e a mais profunda razão para que o verdadeiro ser de uma pessoa seja a parte racional da alma é a de que a alma que questiona sua relação com as Ideias só pode ser a alma racional. É essa parte da alma – e não os dois “cavalos” que querem arrastá-la – que pode entender as Ideias. Pode fazer isso exatamente porque tem “afinidade com a realidade e se une a ela” (República, 490). Como já vimos que as Ideias têm um “grau de realidade” maior que o do mundo empírico, segue-se que a parte da alma que tem mais afinidade com elas, e é menos enredada no mundo físico pelo apetite, é a sua parte mais real – o verdadeiro eu (COOPER, p.125).
Finalmente, quando sua trajetória é levada a bom termo, a alma, graças às forças ganhas nas regiões de contemplação, vislumbra uma revelação que lhe ocorre “subitamente”. Platão recorre aqui à linguagem do Casamento Sagrado e da revelação final dos Mistérios de Elêusis, quando os antiquíssimos símbolos da divindade eram revelados ao iniciado já purificado, num “súbito clarão de luz”. A partir desta revelação, a alma une-se à Beleza divina e torna-se ela própria imortal e divina. O fruto da união do Amor e da Beleza é a verdadeira virtude que habita a alma, agora tornada imortal (CORNFORD, p.139).
Continua…
Autora: Anna Maria Casoretti
Fonte: Revista Pandora Brasil
Notas
[36] – Hades: o mundo subterrâneo dos mortos
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