O caráter secreto das Ordens de Mistério

Henryk Siemiradzki : Phryne em Poseidonia, em Eleusis, 1889

Nas Ordens de Mistério da Antiguidade, sempre houve uma nítida separação entre o iniciado e o profano. Do iniciado exigiam-se severos votos de segredo. A publicação dos segredos, além de fazer os ensinamentos recaírem sobre ouvidos moucos, representava perigo para a sociedade iniciática, uma vez que, sendo um grupo pequeno e seleto e, muitas vezes, possível vítima de detração por parte da sociedade, expunha-a a perseguições políticas potencialmente fatais, como, por exemplo, aquela de que foi vítima a Escola de Crótona, fundada por Pitágoras.

A exigência do silêncio sobreviveu aos tempos. Começando nos Mistérios da Antiguidade, perpassou pelas corporações de pedreiros da Idade Média até as Ordens que, já existindo no fim da Renascença, ainda hoje subsistem. A tradição de manutenção do segredo quanto aos ensinamentos internos é, assim, bastante antiga.

Neste texto, ilustro com fragmentos de textos antigos quatro evidências documentais (todas as traduções dos originais são minhas). Os documentos são dois textos do Corpus Hermeticum, mais precisamente o Asclepius, de que só nos resta a versão latina, e o Poimandres, em sua versão grega original, ambos relacionados ao Hermetismo; o livro De Iside et Osiride, de Plutarco, sobre os Mistérios Isíacos; o Manuscriptus Regius, do século XIV, das corporações de pedreiros; finalmente, The Anderson’s Constitution, do século XVIII, primeiro documento oficial da Grande Loja Maçônica da Inglaterra. Evidentemente os documentos históricos, todos de domínio público, mencionam o caráter secreto das ordens iniciáticas, não os seus segredos. Como diz Mircea Eliade (vide ELIADE, Mircea: A History of Religious Ideas, 1:294), “os ritos dos Grandes Mistérios, os verdadeiros segredos das iniciações (teletai) e a iluminação (epopteia) nunca foram divulgados” [the rites of the Greater Mysteries (…) the true secrets of the teletai (initiation proper) and the epopteia (the culminating vision) have never been divulged]. Lembre-se de que os Mistérios dividiam-se em Mysteria Minora e Mysteria Maiora.

No tratado hermético Asclepius, um dos tratados do Corpus Hermeticum, de Hermes Trimegisto [vide SCOT, Walter (ed.): Hermetica: The Ancient Greek and Latin Writings Which Contain Religious or Philosophical Teachings Ascribed to Hermes Trimegistus. Shambhala. Boston, 1993], a personagem Asclepius pede a Trimegistus que permita chamar Amon, para que este possa ouvir, junto com Asclepius, os ensinamentos que Trimegistus iria passar. Trimegistus termina seu prólogo pedindo que Asclepius chame Amon e ninguém mais e que, após receber os ensinamentos, mantenha silêncio sobre eles:

“Além de Amon, chama ninguém mais, para que um discurso tão religioso sobre tantas coisas não seja violado pela intervenção e presença de muitos. Com efeito, é de uma mente irreligiosa publicar, pela consciência de muitos, um tratado pleníssimo de divindade em toda majestade.”

Acredita-se que o Asclepius, pelo menos sua parte inicial à qual faço referência, foi escrito por volta do ano 100 a.C., o que indica que seu conteúdo é ainda mais antigo. Escrito originalmente em grego, provavelmente por algum professor de Alexandria, resta-nos apenas a sua versão latina, recolhida por Marsilio Ficino no século XV.

É comum encontrar a ideia de que o termo religiosum, isto é, “religioso”, deriva do verbo religare, que significa “religar”, dando-se a entender uma suposta “religação” do Homem com a Divindade. Essa ideia é falsa. Na verdade, a associação de religiosum a religare foi feita por Lactâncio e especialmente por Santo Agostinho em sua obra Retractationes, I, 13, no século IV de nossa Era. Santo Agostinho, já adepto do dogma da queda de Adão do Paraíso, encontrou nessa associação uma excelente justificativa para a imposição do dogma da queda e do consequente retorno do Homem a Deus pela óbvia intermediação da Igreja. Etimologicamente, porém, religiosum significa “aquele que cumpre sua obrigação”. Que esse é o significado verdadeiro é comprovado por Cícero, no século I a.C. e, portanto, mais de 400 anos antes de Santo Agostinho, em sua obra De Natura Deorum, II, 72, na qual se afirma que religiosum deriva do verbo relegere, que significa “reler”. Com efeito:

“Todos aqueles, porém, que pertencessem ao culto divino diligentemente repetissem como se relessem, são ditos religiosos por reler, assim como elegantes por eleger, cuidadosos de cuidar, inteligentes de inteligir; por tudo isso, efetivamente, em todas essas palavras jaz o mesmo valor de ler que em religioso.”

“Religioso” é, então, “aquele que cumpre os atos do culto divino” e que, por assim dizer, “relê atentamente o ritual” [vide ABBAGNANO, Nicola (1982): Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou, São Paulo, p. 814].

Portanto, quando Trimegistus diz que somente uma mente irreligiosa seria capaz de revelar ao público os segredos contidos em seu discurso, ele quer dizer que o verdadeiro iniciado, aquele que cumpre cuidadosamente seu dever ritualístico, jamais quebrará o voto de segredo. Sua explicação é que a mente profana é irreligiosa, ou seja, o profano é aquele que, não sendo um iniciado, não cumpre ritual algum e, por conseguinte, não está apto a compreender os ensinamentos herméticos.

Corpus Hermeticum possui outro tratado importante, o Poimandres [vide Scot (1993) supra], uma palavra grega que significa Pastor de Homens. No tratado, Asclepius, após mergulhar na reflexão profunda sobre as coisas divinas, tem uma visão na qual um ser gigante e luminoso, que se apresenta como Poimandres, lhe aparece e lhe transmite os ensinamentos herméticos. Já quase no final do tratado, no livro XIII (22b), Poimandres roga que Asclepius preserve silêncio sobre tudo que lhe foi transmitido acerca do renascimento, a quebra dessa promessa sendo vista como traição e geradora da desordem no mundo:

“Tendo aprendido isto de mim, promete o silêncio quanto à verdade, ó filho, e não revelar a qualquer outra criatura a instrução do renascimento, para que, desse modo, não sejamos considerados destruidores do universo.”

Traduzi παράδοσις (que no trecho está no acusativo singular) por “instrução” e não por “transmissão”. Isso porque o sentido é de transmissão oral ou escrita de uma doutrina ou de uma tradição religiosa [vide BAILLY, Anatole (2000): Dictionaire Grec-Français. Hachette, Paris, p. 1461]. Cri, assim, ser mais fiel ao sentido do texto e à doutrina da reencarnação professada pelos antigos hermetistas.

Plutarco, em seu tratado sobre os Mistérios de Ísis e Osíris (N.B.: clique AQUI para ler artigo sobre esse tema), mostra as similitudes entre os ritos de vários povos, argumentando que todos se referem a uma mesma Verdade universal. No final da seção 25, em particular, Plutarco compara o mito grego de Deméter ao mito egípcio de Osíris e Tífon (ou Seth) e mostra que têm o mesmo significado. Logo em seguida, ele menciona que o mesmo ocorre com todas as coisas que são vedadas aos olhos e ouvidos da multidão e que são veladas em ritos e cerimônias:

“Tanto as coisas que são encobertas pelos ritos místicos quanto as coisas que se preservam, pelos iniciados, não ditas e ocultas para a multidão têm uma explicação similar.”

Escrito por volta de 1390, o Manuscriptus Regius é a primeira versão do que se costumou designar as Old Charges, ou “Antigas Obrigações”. O Manuscriptus Regius é composto de quinze artigos. Nele existem ainda as chamadas constituições adicionais, compostas de quinze pontos ou dispositivos. Com relação à condição de se guardar segredo, é interessante reproduzir o terceiro ponto adicional (versos 275–286) do Manuscriptus Regius:

“Terceiro ponto: e com os aprendizes bem o saibas, ser o terceiro ponto o mais severo: A resolução de seu mestre ele mantenha e guarde e a de seus companheiros, por seu bom propósito; os segredos da câmara diga ele a homem nenhum nem qualquer coisa que na Logia façam; o que quer que ouças ou os vejas fazer, dize-os a homem nenhum aonde quer que vás; a resolução da assembleia e a da câmara, guarda bem, por magna honra, caso não queiras expor-te à reprovação e trazer à confraria grande vergonha.”

Constituição de Anderson (1723), no capítulo VI, que trata da conduta, aborda o tema do segredo particularmente no item 4º, que versa sobre a conduta que se deve observar diante daqueles que não pertencem à Ordem:

“4. Conduta em presença de estranhos não Maçons: Sereis cuidadosos em vossas palavras e obras, de modo que o mais perspicaz profano não seja capaz de descobrir ou de se aperceber do que não é próprio ser conhecido, e por vezes devereis mudar o rumo de uma conversação e administrá-la prudentemente, para a honra da venerável Fraternidade.”

Não foi, obviamente, minha intenção aqui escrever um ensaio completo e acadêmico sobre o caráter de secrecy das ordens de Mistério ao longo do tempo, mas apresentar algumas poucas, porém significativas, evidências literárias.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Fonte: Medium

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Plutarco e os “Mistérios de Ísis e Osíris”

Escrevi há muito tempo um resumo sobre os mistérios de Ísis e Osíris conforme a narração de Plutarco. Julgo conveniente começar com uma citação que extraí da parte 1 da obra De Iside et Osiride, de Plutarco:

Porquanto nada, para o homem, é mais grandioso receber nem, para Deus, é mais augusto agraciar que a verdade”.

Sabe-se que o culto de Ísis foi introduzido na Grécia antes de 330 a.C, o que é comprovado por inscrições em Peiraeus. Assim, é natural que, na própria cidade em que Plutarco (50–120 d.C.) nasceu houvesse cultos egípcios e inscrições referentes a Serápis, Ísis e Anúbis. O conjunto das obras morais de Plutarco, conhecido por Moralia, é imenso e, com certeza, a mais popular é a que ficou conhecida com a versão latina do título: De Iside et Osiride. Apesar da presença marcante da religiosidade egípcia na Grécia, Plutarco não era agudamente versado em cultura egípcia, mas certamente possuía um cabedal de conhecimentos razoavelmente elevado quanto a esse tema, provavelmente em decorrência das fontes a que teve acesso, principalmente Heródoto. Abstraindo-nos, contudo, de pequenos erros constantes na obra, ela é, mesmo assim, reconhecidamente majestosa. Fato interessante é que a obra De Iside et Osiride é dedicada a uma sacerdotisa de Delfos chamada Cléa, a quem Plutarco também dedica uma outra obra de sua Moralia, aquela que fala da bravura das mulheres. Só nos resta imaginar quão esplêndido há-de ter sido o caráter dessa sacerdotisa.

Exporei aqui o mais sucintamente possível o conteúdo da obra de Plutarco sobre os Mistérios de Ísis e Osíris. Os sinais “§” indicam a seção da obra a que se faz referência.

Mistérios de Ísis e Osíris

Ísis e a busca da Verdade (§§ 1–7)

A felicidade, que consiste no conhecimento da Verdade, é a mais augusta concessão divina. Plutarco o diz — e assim o reproduzimos na citação que introduz este ensaio -, logo no começo da obra, dirigindo-se a Cléa: “porquanto nada, para o homem, é mais grandioso receber nem, para Deus, é mais augusto agraciar que a verdade”. Se o homem é imortal, a imortalidade só se justifica pela possibilidade de se conhecer a Verdade. Assim, aspirar à Verdade é aspirar, ao mesmo tempo, à Divindade. Conhecer a Verdade é ser sábio: e Ísis é a deusa da Sabedoria. A sabedoria transcende a razão: ela requer o pensamento filosófico mais profundo. Com efeito, conforme afirma Plutarco, o verdadeiro isíaco recebe a tradição e submete-a à razão, aprofundando a Verdade pela filosofia.

Deus fez o Homem imortal com o objetivo de que conhecesse a Verdade e usufruísse da felicidade. Ísis é um símbolo dessa busca. Quando Plutarco diz que o iniciado nos Mistérios de Ísis deve submeter a tradição à razão e aprofundar a Verdade pela filosofia, quer dizer que os ensinamentos transmitidos aos iniciados isíacos devem ser objeto de reflexão racional, ou seja, de interpretação. O aprofundamento da Verdade sugere uma ampliação gradativa do conhecimento ou das possibilidades interpretativas. É uma afirmação, portanto, de que o conhecimento da Verdade, nos Mistérios de Ísis, também se dá através de graus nos quais o iniciado se aproxima cada vez mais da Verdade.

Os fundamentos dos mitos (§§ 8–11)

Os princípios que os egípcios introduziram em suas cerimônias não são fundamentados em superstições. Têm, ao contrário, fundamento em princípios morais, razões de utilidade, lembranças históricas ou explicações deduzidas dos fenômenos naturais. Tanto é assim que Plutarco adverte que, ao ouvirmos o que a mitologia egípcia relata, não devemos tomar tudo literalmente, mas interpretar.

Plutarco esclarece que, nos Mistérios de Ísis, os relatos mitológicos têm dois lados: o exotérico e o esotérico. O exotérico decorre do relato tal como é; o esotérico decorre do esforço interpretativo do iniciado.

Relato do mito de Ísis-Osíris-Tífon (§§ 12–19)

Aqui começa o relato do mito de Ísis, Osíris e Tífon, segundo a narrativa de Plutarco. Dado que devo ser sucinto, omitirei muitos detalhes, mas, espero, sem afetar a coesão lógica da história.

Réa, deusa do céu, teve uniões secretas com Cronos, deus da terra. O Sol — ou, ainda, Rá, o olho diurno do rosto celeste -, tendo descoberto, amaldiçoou Réa desejando que ela não pudesse dar à luz. Hermes, que dela era enamorado, jogou dados com a Lua, arrebatando-lhe a septuagésima segunda parte de seus dias de luz, formando, assim, cinco dias (com efeito, 360 ¸ 72 = 5, de modo que, adicionando-se esses 5 aos 360, temos os 365 dias do ano religioso). Nesses cinco dias adicionais, os egípcios celebravam o aniversário dos deuses. No primeiro dia nasceu Osíris; no segundo, Aruéris; no terceiro, Tífon; no quarto, Ísis e, no quinto, Néftis, que uns chamavam Teleuté e Afrodite ou ainda Vitória. Tífon, porém, nasceu de uma forma abrupta, fora de seu tempo e rasgando o flanco materno de um só golpe. Por essa razão, o terceiro dia dos dias adicionais era considerado nefasto. Ísis e Osíris, enamorados desde o ventre, uniram-se.

Osíris passou a reinar os egípcios, tirando-os das privações e da ignorância, percorrendo toda a terra para civilizá-la. Na sua ausência, Ísis mantinha estreita vigilância contra as investidas de Tífon, por natureza, malévolo. Regressando Osíris, Tífon planejou matá-lo. Inteirou-se das medidas do corpo de Osíris e construiu um ataúde com as mesmas medidas, decorando-o maravilhosamente e apresentando-o em um festim. Todos, no festim, ficaram arrebatados e Tífon prometeu presenteá-lo àquele que nele coubesse perfeitamente. Obviamente, apenas Osíris coube no esquife. No momento em Osíris lá estava, todos os convidados correram para fechar o ataúde, aprisionando-o lá dentro. Em seguida, o caixão foi jogado ao rio e deixado chegar até o mar pela boca Tanítica. Os Pãs e os Sátiros, que habitavam os arredores de Chemnis, uma cidade do Alto Egito, mais tarde chamada Panópolis, foram os primeiros a saber da tragédia, espalhando a notícia com espanto, a população ficando subitamente atemorizada pelos fatos. Desde então esse temor que tomou conta do povo passou a ser denominado pânico, em lembrança do dia de terrores alardeados pelos Pãs.

Quando Ísis soube, cortou uma mecha de seus cabelos, vestiu-se de luto e saiu vagando amargurada, perguntando a todos que encontrava sobre o paradeiro do esquife. Umas crianças que encontrou finalmente lhe indicaram o paradeiro. Ela também descobriu que Osíris uniu-se com sua irmã Néftis, pensando ser Ísis, e que dessa união nasceu uma criança chamada Anúbis. Encontrou a criança e alimentou-a, convertendo Anúbis em seu guardião e acompanhante.

Em seguida, avisaram-lhe que o esquife estacionara ao pé de uma tamareira, no território de Biblos. O rei de lá mandara cortar o tronco em que estava o esquife invisível e fazer com ele uma coluna para sustentar o teto de seu palácio. Ísis foi para lá, permanecendo silente, pranteando somente. As damas da rainha acolheram-na, pois Ísis se oferecera para entrançar-lhes os cabelos e impregná-las com o perfume que seu próprio corpo exalava. A rainha, encantada com a estrangeira, mandou chamá-la, fez dela sua amiga íntima e nomeou-a ama de leite de seu filho. Ísis, em vez de dar-lhe o seio, punha o dedo na boca da criança, queimando o que havia de mortal em seu corpo. Esse procedimento perdurou até que a rainha, tendo descoberto que Ísis queimava-lhe o filho, privando-o do privilégio da imortalidade, lançou agudos gritos. Foi só então que Ísis descobriu sua qualidade de deusa. Pediu, assim, a coluna, desprendeu-a, cobriu-a e ungiu-a, confiando-a aos cuidados do rei e da rainha. Ao encontrar o caixão, prostrou-se sobre ele, soluçando tão agudamente que o filho mais jovem do rei ficou como morto. Com a ajuda do filho maior do rei, ela o pôs em um navio e zarpou.

Conta Heródoto que, antes de sair em busca do féretro, Ísis confiou seu filho Hórus, que tivera com Osíris, a Outit, para protegê-lo das emboscadas de Tífon e guardá-lo até terminar sua busca. Esse detalhe não aparece na obra de Plutarco, mas esclarece o trecho seguinte da obra, §18, em que Plutarco diz que Ísis, antes de ir em busca de seu filho Hórus, depositou o féretro de Osíris em um lugar afastado. Tífon, porém, descobriu o esconderijo e cortou o corpo de Osíris em quatorze pedaços, lançando-os ao vento. Ísis partiu novamente, agora em um barco de papiro e em busca dos pedaços do corpo de Osíris. Encontrou-os todos, menos o falo, pois, quando Tífon o atirou ao rio, comeram-no o lepidoto, o capatão e o oxirrinco. São peixes e crustáceos da região. Para repor o membro, Ísis construiu uma imitação, daí a celebração do falo pelos egípcios.

Quando Osíris voltou dos infernos, treinou seu filho Hórus para o combate contra Tífon. O combate terminou com a vitória de Hórus. Tífon, amarrado, foi entregue a Ísis, mas esta o libertou. Hórus, indignado, arrancou-lhe da fronte o diadema real. Mas Hermes substituiu o diadema por uma peça com a forma de cabeça de vaca e pôs sobre a cabeça de Ísis.

Osíris, depois de morto, uniu-se novamente a Ísis e dessa união nasceu Harpocratas, prematuro e de pernas débeis. Para uns, Harpocratas é Hórus criança, o Sol nascente. Para outros, é o Sol no inverno.

As formas e o conteúdo dos mitos (§§ 20–31)

Plutarco rejeita a ideia de que os mitos relatem fatos tais como realmente ocorreram. O mito é a imagem de certa verdade que reflete um mesmo pensamento em diferentes ambientes, “como nos dão a entender esses ritos impregnados de luto e tristeza aparente, essas disposições arquitetônicas dos templos”. Plutarco ilustra essa generalidade com mitos do Egito e da Assíria.

Plutarco também rejeita a ideia de que os mitos apenas relembrem ações históricas de grandes homens ou deuses. Considera mais razoável (junto com Platão, Pitágoras, Xenócrates e Crisipo) a ideia de que os mitos relatem os reveses de “Gênios”. Gênios são homens dotados de uma natureza espiritual superior. Ele diz que “Ísis e Osíris, que foram bons Gênios, foram convertidos em deuses devido às suas virtudes, da mesma maneira como o foram Hércules e Dioniso”. Plutarco aborda aqui, por conseguinte, os fundamentos sócio-históricos dos mitos. Os mitos podem relatar os reveses de homens espiritualmente superiores que viveram entre nós e cujas vidas (ou o significado delas para os seus contemporâneos) foram retratadas, simbolicamente, nos mitos. Esses homens espiritualmente superiores (os gênios) foram elevados à categoria de deuses pelos próprios homens. Os ensinamentos desses gênios foram transmitidos a todos, como se verifica pela diversidade dos mitos em diferentes ambientes, em diferentes nações, mas refletem todos eles um mesmo pensamento. Essa unidade de pensamento se manifesta na natureza lúgubre dos mitos, ou seja, nos aspectos da morte, do sofrimento e do renascimento, e, também, na arquitetura dos templos.

Para ele, portanto, os diferentes mitos possuem um eixo comum.

A tríade Osíris-Ísis-Tífon (§§ 32–55)

Plutarco esboça interpretações mais filosóficas da tríade Osíris-Ísis-Tífon. Começa mencionando os que fazem a associação: Osíris = Nilo; Ísis = Terra; Tífon = mar. Segue apresentando outras interpretações baseadas nos fatos naturais (estações da seca, da chuva, fenômenos astronômicos, como eclipses etc.) até concluir que Tífon simboliza tudo que é nocivo na natureza (§45).

Com o intuito de interpretar a dualidade Osíris-Tífon, faz menção a uma doutrina muito antiga, a de que dois princípios opostos (regularidade e irregularidade) estão mesclados na Natureza. Faz, então, a associação (§52). Osíris é a Alma do mundo, inteligência e razão. De Osíris emana toda regularidade, tudo que é constante e saudável com relação às estações, temperatura, periodicidades etc. Tífon é tudo aquilo que, na alma do mundo, há de apaixonado, subversivo, irracional e impulsivo, tudo de perecível e nocivo no corpo do universo. Simboliza todas as desordens causadas pelas irregularidades e intempéries das estações, eclipses do Sol, ocultações da Lua. É a força opressora e constringente, é o transtorno, o salto para trás.

Após associar Osíris e Tífon ao princípio (hermético) da dualidade, interpreta Ísis como (§§53–55) sendo a Natureza considerada como mulher apta para receber toda geração.

Em suma, Osíris simboliza o princípio universal que torna o universo ordenado e regular. Ísis simboliza a Natureza, enquanto matéria-prima que potencialmente pode receber qualquer forma impressa pelo princípio ordenador. Tífon simboliza os desvios da regularidade, seja por deficiência, seja por excesso.

A tríade Osíris-Ísis-Hórus (§§ 56–66)

A natureza mais perfeita e divina compõe-se de três princípios: inteligência, matéria e mundo organizado (cosmo, o produto da união dos dois primeiros princípios), tríade essa simbolizada pelo triângulo retângulo de lados 3, 4 e 5, que Platão também ilustra na República:

Osíris concede os princípios. Ísis os recebe e distribui. Hórus é o mundo ordenado, resultado, ou melhor, síntese do princípio ativo de Osíris e do passivio de Ísis. Tífon é a perturbação pelo excesso ou pela deficiência.

Plutarco apenas reforça o que foi comentado quanto aos §§32–55, mas acrescenta a interpretação de Hórus, o filho de Osíris e Ísis. Hórus é o cosmo, o mundo ordenado e belo, fruto da inteligência organizadora que atua sobre a matéria-prima do universo.

Unicidade do conteúdo simbólico dos ritos (§§ 67–73)

Assim como o sol, a lua, o firmamento, a terra e o mar são conhecidos por todos os povos, ainda que por nomes diferentes, assim também essa razão única que regula o universo e as potências que a ajudam são objeto de homenagens e denominações que variam com a diversidade dos costumes. Esses diversos nomes e ritos servem de símbolos de uma verdade só: o princípio ternário do universo.

Plutarco afirma que a forma dos ritos varia, mas que seus significados simbólicos são universais e apontam todos para a mesma verdade. Dentro do contexto cultural em que se insere, o dos Mistérios de Ísis, Plutarco faz um belíssimo chamamento à tolerância religiosa e cultural e à visão de que todos os homens compartilham do mesmo desejo pela verdade.

Razões de utilidade (§§ 74–80)

Na parte final sua obra, Plutarco afirma que certos símbolos referem-se a fenômenos úteis ao Homem, isto é, que certos símbolos foram criados devido ao seu caráter educativo.

Conclusão

O que subjaz a obra de Plutarco não é propriamente o mito de Ísis e Osíris e suas diversas interpretações, mas um profundo sentimento de tolerância religiosa e cultural. Ao apresentar os diversos níveis interpretativos do mito, Plutarco deixa claro que, sob diversas formas, o mito é comum a todos os povos, pelo menos os principais povos conhecidos da época, embora a substância seja a mesma. E, principalmente, que em todos os casos, o que move a celebração do mito em cada povo é a busca da Verdade. Ele retoma, assim, a abertura da obra, quando diz que a busca da Verdade é o maior presente dos deuses aos homens e o melhor presente que os homens podem receber. Dessa forma, Plutarco defende a ideia de que todos os homens, não importando a cultura nem a religião, ainda que por caminhos aparentemente diferentes, são irmãos em busca de uma mesma Verdade Universal.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Fonte: Medium

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Orfeu, Orfismo e Mistérios Órficos

Orfeu e o Orfismo | CEFE

Orfeu (descendo do morro para a cidade [o inferno]) :

“Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido – sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo mundo canta, todo mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez”.

Orfeu da Conceição – Vinícius de Moraes

Introdução

O mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura ocidental, tanto no passado como no presente. A primeira ópera conservada até hoje em sua totalidade é o L’Orfeo de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em 1607. O primeiro balé alemão – Orpheus und Eurydice – foi criado por Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou Orfeo ed Eurídice. No século XIX, Offenbach, não nos legou somente Os Contos de Hoffmann, mas também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi tema para os seguintes musicistas: Liszt, Benda, Paer, Milhaud, Malipiero, Casella, Krenek, Birtwistle e Stravinsky. O cinema, no século XX, apresentou-nos os dois Orfeus (Orpheus [1949] e Le Testament d’Orphée [1959]) de Jean Cocteau e o carnavalesco Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes – Orfeu da Conceição, testemunhando a modernidade do tema. Folheando-se os jornais hoje (maio/1999), depara-se com o último filme de Cacá Diegues – Orfeu – e o último livro de Salman ”Versos Satânicos” Rushdie – O Chão Que Ela Pisa – que, segundo a crítica, é um mergulho no universo pop e traz à tona o mito de Orfeu. Já que se passou para a literatura, não se pode deixar de citar o maior poeta lírico grego – Píndaro; Platão na República, no Górgias e no Banquete; as Geórgicas de Virgílio (principalmente o Livro IV); o Paradise Lost (Canto VII) e o L’Allegro (145) de Milton; as Pastorals de Pope; o romântico Novalis e o nosso brasileiríssimo e monumental poema barroco (no dizer de Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção de Orfeu (1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou um termo – cubismo órfico – que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger, Francis Picabia e Marcel Duchamp.

O porquê desta orfeumania é o que se tentará enfocar neste artigo.

Lendas sobre Orfeu

Numerosas fontes históricas relatam a existência dos mitos órficos. Tudo leva a crer que não era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.) mas, já no século VI, aparece em algumas tradições. O primeiro escritor grego a fazer menção ao “célebre Orfeu” foi Ibykos em meados do século VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca-o como um dos principais poetas e músicos da época heroica, ao lado de Homero e Hesíodo. Determinou a existência de uma religião especial – o orfismo – e de uma seita – os órficos – que se expandiu por todo o mundo grego e a Itália meridional.

Encontram-se alusões ao mito em Píndaro, Ésquilo, Eurípedes, Empédocles etc. É, contudo, o já citado Platão que o entroniza na República em plena época clássica (século IV a. C.). Ele e os neoplatônicos influenciaram vigorosamente o pensamento cristão. A humanidade herdou três obras completas, numerosos fragmentos e uma longa lista de obras, efetuadas pelo lexicógrafo grego Suidas, atribuídas ao próprio Orfeu.

Orfeu, do grego Oρφεύς, é um herói lendário grego dos tempos antigos com extrema habilidade na música, no canto e na poesia e que se tornou o patrono de um movimento religioso ritualizado por um corpus de escritos sagrados que teria sido composto pelo próprio.

Remanescem dúvidas se Orfeu teria sido um personagem histórico. A lenda, contudo, reza que teria nascido na Trácia e era filho de uma Musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica e a mais importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra versão, apresenta-o como filho do próprio Apolo.

Orfeu é considerado como o maior músico da antiguidade, não só pela música como pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara, pois, até mesmo esta, teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele, pois aumentou-lhe o número de cordas, de sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Seus acordes eram tão melodiosos que os homens e os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos ‘mistérios’, completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito, divulgou na Hélade a ideia da expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.

Juntou-se à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do navio Argos no qual embarcaram para a Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio transportou a fina flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se: Jasão, promotor e chefe da empresa, Héracles (que participou só no começo da missão), Argos, Castor e Pólux, Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses, Oileu, pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso poeta Orfeu e muitos outros. Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas oportunidades: seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua música, aos remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do Tosão de Ouro, ao som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das Sereias com o som de seu instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto Euxino, pelas Ciâneas (recifes móveis) também chamadas de Simplégades, por Cila e Caribdes etc. No tocante as Simplégades, seria interessante relacionar seu simbolismo aos ritos de iniciação. Spencer diz que:

“As Simplégades, eram duas rochas em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão e os Argonautas tinham de passar em seu barco. As Simplégades simbolizam a passagem para um outro mundo e têm uma tripla significação: elas representam o guardião do umbral; representam o terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição mundana; quando a passagem é realizada, elas representam a união dos opostos. Quando o homem deseja transferir-se deste mundo para outro, ele deve passar através de um intervalo sem dimensão e sem tempo, que divide duas forças relacionadas porém contrárias. No momento real da passagem, o herói abraça ambas as forças e deste modo anula os opostos. Nesse preciso momento ele se encontra no outro mundo.” (Spenser, pg.31).

Mircea Eliade também dedica grandes parágrafos ao simbolismo iniciático das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).

Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice a quem amava perdidamente. Acontece que no dia de suas núpcias, o apicultor Aristeu tentou violar a esposa de Orfeu. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou em uma serpente que a picou, causando-lhe a morte. Possuído por um desgosto inconsolável, o poeta deixa de cantar e tocar e permanece em silêncio soturno pela morte da esposa. Resolveu, então, descer às profundezas do Hades, para trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Orfeu desce aos infernos, nos versos imortais de Virgílio e, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal modo o mundo plutônico que a roda de Exíon parou de girar; o rochedo de Sísifo deixou de oscilar; Tântalo esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher os tonéis sem fundo. Às margens do Styx, tange de tal modo sua cítara que Caronte e Cérbero deixam-no atravessar o rio. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, contudo, uma condição penosa: ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos. Enquanto caminhassem pelas trevas infernais, acontecesse o que fosse, Orfeu não poderia olhar para trás, até que o casal transpusesse os limites do império das sombras. Orfeu aceita a imposição e inicia a sua peregrinação. Estava quase alcançando a Luz quando uma dúvida lhe assalta o cérebro: e se tudo não fosse uma enganação dos deuses? E se sua amada não estivesse atrás dele? Acutilado pela incerteza, olhou para trás, transgredindo a ordem dos deuses. Ao voltar-se, viu Eurídice, esvaindo-se para sempre, “morrendo pela segunda vez…”. Tentou ainda retornar, mas o barqueiro Caronte foi implacável na sua recusa.

Inconsolável, tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas as mulheres da Trácia. Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu foi estraçalhado pelas enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente, afirmava que tinha sido esquartejado pelas Mênades por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de Apolo. Sintomático é que em ambas as versões, nota-se uma certa similaridade com o esquartejamento de Osíris e a junção dos pedaços por Ísis no Antigo Egito. É o tema da degradação do ovo original.

Sua cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos, o nome de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o país com uma grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e lhe fossem prestadas honras divinas. Após longas buscas, um pescador encontrou a cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em homenagem a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se a lira do poeta foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na também no firmamento onde se tornou a Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das estrelas de primeira grandeza.

Comentários sobre o Mito

Orfeu dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém salientar que pela cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o inferno. No orfismo, a topografia do Hades está divida em três regiões:

  • o Tártaro, a parte mais abissal, profunda, ou seja, infernal, pois os castigos eram cruéis e violentos;
  • o Érebo, com castigos não tão horrendos como o Tártaro; e
  • os Campos Elísios, destinados àqueles que, tendo passado pelos horrores dos dois primeiros, aguardavam o retorno.

Ao descer à mansão do Hades, Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo dos vivos se não tivesse olhado para trás, ou seja, mostrou estar ainda preso ao passado, à matéria, enfim, a Eurídice.

“Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante, jamais ‘retorna’. Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma catábase [ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções. Estas, bem como os lados e os pontos cardeais, possuíam, nas culturas antigas, um simbolismo muito rico.” (Brandão, vol.II, pg. 144).

Convém comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 17-26) quando os dois anjos recomendam a Lot que não olhasse para trás quando fugisse com sua família da destruição de Sodoma e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou para trás e foi transformada numa estátua de sal. Este olhar para trás dela representa a volta ao passado, o apego a uma cidade do pecado. A desobediência, tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça do infiel.

Na macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar para trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o interdito do olhar para trás: seja o agricultor ao plantar; a mulher ao fiar o tecido; o coveiro ao abrir a sepultura; os desfilantes ao acompanhar o cortejo fúnebre.

Com a harmonia (em grego, harmonia significa junção das partes) perdida ou rompida, Orfeu não mais podia tanger a lira e o seu canto perdeu a magia. Perdeu tudo: Eurídice, a música, o canto, ele mesmo.

O despedaçamento de Orfeu está ligado a ritos antiquíssimos, pois como se sabe, o neófito ou iniciado, despedaçava um animal e o comia, para significar seu renascimento em Dioniso ou algum deus tribal. O rito frenético de Dioniso, executado pelas bacantes, reflete a originalidade do deus no panteón bem comportado da religião estatal grega. A participação das bacantes demonstrava que Dioniso era um deus das mulheres. Tanto assim que uma delegação de mulheres atenienses, a cada três anos, se dirigia ao campo para serem possuídas pelo charme e a ‘folia’ do deus, longe das cidades, corriam e dançavam ao som de uma flauta, sobre as montanhas e as florestas.

A cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro também tem um significado lapidar. A cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas culturas, como uma das partes mais nobres e sagradas do ser humano, pois hospedava a alma. Possuir a cabeça de um inimigo, quanto maior a hierarquia maior a honra; era um troféu digno de um rei ou de um chefe tribal. Os deuses somente deram descanso aos mortais depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e lhe foram prestadas honras fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver, pois é o símbolo da voz, do verbo, da imortalidade.

Orfismo

Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos, principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no seio de suas obras. O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e obviamente orientais.

O orfismo oscila entre Dioniso, que sempre desejou romper a camisa de força da religião tradicional da pólis grega, e Apolo, que corrigia os excessos e os desvarios dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses antagônicos tem um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por ela sua esperança de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína dos valores das religiões homéricas.

Rejeita daquele os ritos, nos quais os iniciados despedaçavam a vítima viva e ainda palpitante, e a consumação imediata da carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente vegetarianos. A antropologia órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o primeiro Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu era filho de Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa Hera, pediu a Zeus que o queria ver com os olhos mortais, o que era um verdadeiro suicídio. Ao se apresentar a Zeus, a mortal não pôde suportá-lo em toda a sua radiante epifania. Morreu carbonizada e o feto foi recolhido por Zeus e agasalhado em sua coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a mando de Hera, após raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em seguida, o devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas. Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua natureza titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu que os Titãs tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém pois de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca, inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico. Além do mais, o êxtase dionisíaco manifestava-se de modo coletivo tanto quanto o orfismo é, por princípio, individual.

De Apolo, herdou uma componente da catarsis, ou seja da purificação, tão praticada no oráculo apolíneo de Delfos, mas era radicalmente contra a weltanschauung de Apolo. Este comandou a religião estatal com mão-de-ferro, freando qualquer inovação que significasse um rompimento com o métron, tão conhecidos na lição apolínea por excelência: ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’. A inteligência, a ciência e a sabedoria são consideradas pelos epígonos de Apolo como modelos divinos. A serenidade apolínea tornou-se, para o homem grego, o emblema da perfeição. A divergência residia até mesmo na catarsis, enquanto em Apolo, esta visava prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos purificavam-se nesta e na outra vida, visando libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.

Os órficos substituíram a ‘folia’ dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da prece e da oferenda, a purificação – catarsis – é um dos ritos principais das religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação, entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antiguidade grega, quando se cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime, tinha que ser não só individual como coletiva. Ao contrário dos cultos dionisíacos, os apolíneos eram públicos, pois rejeitavam os mistérios das iniciações e dos ritos secretos. Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas iniciações órficas. Eliade nota uma semelhança entre os ritos apolíneos e os xamânicos, pois ambos procuram o conhecimento, a sabedoria e a exaltação do espírito, ao contrário das histerias (no sentido grego) e das possessões dionisíacas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras reencarnações até a catarsis final.

A semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos aspectos religiosos, é por demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença na imortalidade da alma, a metempsicose, a punição no Hades, a glorificação final da psiqué nos Campos Elísios, o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações. Por outro lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos esotérico e não se imiscuía em política.

Orfeu é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes criou a lua e o sol, o outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”. A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso salientar Dioniso-Zagreus que terá realce fundamental no culto do orfismo.

É importante aqui salientar o caráter monoteísta dessa teogonia que representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos. O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades, simboliza a vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa em grego corpo-túmulo). Como consequência, a existência encarnada se assemelha mais a uma morte e o falecimento constitui o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’ não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos. Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo de animais, a alma vai se purificando. Nesses intervalos reincarnacionistas, a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal comum, profano, deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.

São outro artefato importantíssimo no orfismo as lamelas órficas ou orfo-pitagóricas. Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São, também, todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.

Numa das lamelas encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um caminho da direita e um da esquerda.

“À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o Lago da Memória, e os guardiões estarão lá. Diga-lhes… eu sou o menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água fresca que flui do Lago da Memória.”

Para a alma que deve retornar à Terra para reencarnar-se essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência terrestre mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O esquecimento não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será novamente projetada no ciclo do devir.

Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar é aconselhado evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta escrito numa das lamelas: “Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos”. Ao que Perséfone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”.

A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas, sobretudo, simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se para os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.

Conclusão

Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas romanas, encontram-se imagens de Orfeu tangendo sua lira no meio de animais simbolicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”.

A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o pecado original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego, Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista.

Para os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento, passando pelos hermetistas até os dias atuais, o Mundo Ocidental teima em não esquecer Orfeu. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.

Autor: William Almeida de Carvalho

Fonte: Pietre-Stones – Review of Freemasonry

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Bibliografia

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Orfismo, uma nova dimensão do homem grego

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Na Grécia, por volta do século VI a.C., surgiu uma religião de mistérios que teve como fundador Orfeu. As doutrinas e o gênero de vida adotado pelos seus seguidores, mostram o orfismo como uma religião de questionamento que rejeita expressamente à religião oficial cuja principal forma de oferenda aos deuses era o sacrifício sangrento. O orfismo era popular, e nele se fazia necessária a iniciação pelos orfeotelestaí de seus seguidores os quais não poderiam revelar os segredos da iniciação e as suas doutrinas a quem estivesse fora do círculo. O orfismo era fechado, de caráter popular, extraoficial e se contrapunha à religião oficial da cidade grega.

Introdução

Ao lado da religião cívica grega existiam os mistérios, considerados em Platão o ponto nobre da religiosidade grega. Eles eram caracterizados pela iniciação e pela proibição da comunicação de seus preceitos às pessoas fora do circulo iniciático.

Os Mistérios de Elêusis são os mais estudados e encontramos uma vasta bibliografia sobre eles. Existiam, entretanto, outros mistérios e, entre eles, destaca-se o orfismo pelas referências encontradas em Platão e da alusão de suas doutrinas em vários escritores gregos.

O orfismo é visto com ceticismo por muitos estudiosos, as pesquisas atuais, porém, tendem a derruir a tese daqueles que acreditavam na inexistência desse movimento. E um estudo pormenorizado sobre os órficos e suas doutrinas torna-se basilar para compreendermos a espiritualidade grega em todas as suas características.

1 – Teogonia e Cosmogonia: do Uno ao Múltiplo

A teogonia e cosmogonia órfica representam um rompimento com a tradição de Hesíodo.

Em Hesíodo, o universo surge do Caos, do inorganizado. A partir daí, organizar-se-á sob a autoridade de Zeus, em etapas sucessivas. Esse processo marca a soberania de Zeus no universo. Detienne define essa teogonia e cosmogonia como “o processo que vai do não ser ao ser” (1988, p.176).

Contrário a esse pensamento e ás crenças e formas de adoração que ele fez surgir no Mundo Grego aparece o orfismo. Religião que exalta Zagreu, ou o primeiro Dioniso.

No orfismo, ocorre o processo inverso de Hesíodo. O universo não tem origem no Caos, mas no Ovo Primordial[1], símbolo da vida, a plenitude do Ser. O ovo primeiro e perfeito vai corrompendo-se pouco a pouco para dar origem a formas distintas e individuais que representam o “não ser da existência” (DETIENNE, 1988, p.176). No orfismo o processo é do ser ao não ser individual.

No princípio existia a Noite primoponenda e não gerada. Em seu seio formou-se o Tempo e, ulteriormente, Caos/Éter. O Tempo, entrementes, produziu o Ovo primordial do qual nasceu Fanes, criador do mundo e das divindades subsequentes, Céu/Terra, Crono/Rea, Zeus.

Zeus derrota seu pai Crono, devora Fanes e a criação. Cria, então, um novo mundo tornando-se o princípio do Todo. Doravante, nasce Dioniso e Zeus cede seu poder a ele, mas, antes que assumisse o trono de seu pai, foi morto pelos Titãs a mando de Hera.

Hera, esposa de Zeus, usa dos Titãs para perseguir Dioniso que foge e esconde-se com a ajuda de seu meio irmão Apolo no monte Parnaso. Os Titãs continuando a perseguição, encontram-no e sacrificam-no, estraçalhando-o e devorando-o em parte cru, em parte cozido.

O coração de Zagreu foi a única sobra do banquete. Palas-Atena recolheu-o e entregou-o a Zeus, que fez Sémele, sua amante mortal, comê-lo; ela, logo após, engravida. Hera interfere novamente e consegue a morte da filha de Cadmo por meio de artimanhas. Mesmo não tendo ainda terminada a gestação, Zeus consegue salvar a criança e costura-a em sua perna. Dioniso renasce depois de nove meses. E os Titãs perseguem-no e devoram-no, repetindo o círculo infinitamente.

Os Titãs que assassinaram e alimentaram-se do filho de Zeus foram fulminados pelo supremo senhor do Olimpo. Das suas cinzas surgem os homens, marcados por um lado divino e espiritual ou dionisíaco; outro de origem titânica, material e corporal.

Esse mito representa a dualidade bem e mal no homem. Segundo Reale (1993, p. 385), “é evidente em que sentido e medida este mito pode constituir a base de uma ética. Ele explica a constante tendência ao bem e ao mal presente nos homens: a parte dionisíaca é a alma (e liga-se a tendência ao bem), a parte titânica é o corpo (e liga-se a ela a tendência ao mal)”.

Para o homem poder libertar-se de sua parte monstruosa ou titânica e do círculo de reencarnações, ele deve submeter-se a uma rigorosa ascese e cumprir os preceitos de Orfeu.

Mas quem era Orfeu?

1.1 – Orfeu e seu mito

Orfeu, para dar fim ao círculo de reencarnações funda uma religião: o orfismo.

O fundador e criador das doutrinas que levarão o homem à salvação, é, segundo o mito, filho da musa Calíope e de Oeagro. De acordo com outra versão era filho de Apolo.

Apolo deu-lhe uma lira que, ao ser tocada, encantava todos à sua volta, das plantas às pessoas.

Um acontecimento importante em sua vida foi seu casamento com Eurídice, uma ninfa. Colhendo flores, ela é picada por uma serpente, causando seu envenenamento e, posteriormente, sua morte.

O poeta músico, inconformado com a perda de sua amada, decide buscá-la no inferno. Conseguindo vencer todos os desafios e obstáculos graças à ajuda de sua música, chega à presença de Hades e Perséfone, senhor e senhora do inferno, e obtém a restituição de sua esposa, com uma condição: ele iria à sua frente, ela o seguiria sem que ele olhasse para trás, enquanto não saíssem do inferno. Não resistindo à tentação, ele olha-a e, como punição, perde Eurídice para sempre.

A sua viagem ao inferno instrui-o nos conhecimentos do mundo inferior e da morte, dando-lhe condição e conhecimento para interromper o círculo de reencarnações. “A viagem ao inferno lhe trouxe a sabedoria sobre a outra vida, que lhe cumpria revelar a alguns homens privilegiados” (TRINGALE, 1990, p.16).

Orfeu, ao voltar do Hades para a Trácia, é assassinado por mulheres que o estraçalham e devoram-no, assim como os Titãs fizeram com Dioniso. As mulheres, porém, que se alimentaram de sua carne são libertadas do círculo das reencarnações. Tornaram-se purificadas.

A morte de Orfeu é um dos episódios mais controvertidos em seu mito. Uma versão fala que ao perder Eurídice, ele desinteressa-se pelas mulheres e volta-se ao homossexualismo; para se vingarem, as mulheres enciumadas assassinam-no. Outra versão fala que o que aconteceu foi pelo fato de que Orfeu, após voltar do inferno, revoltou-se com Dioniso e recaiu no culto de Apolo. O deus do vinho, enciumado com a transgressão de seu sacerdote, incita as “bacantes” a assassiná-lo. Fundamentalmente, seu assassinato foi devido ao ciúme, assim como o de Dioniso.

A semelhança entre ambos remete à influencia do mito de Dioniso sobre o de Orfeu.

1.2 – Orfeu, uma personagem histórica

Na seção anterior tentamos mostrar o mito de Orfeu; agora relataremos fatos que tenham algum embasamento histórico sobre ele e a doutrina atribuída ao mesmo.

O mais antigo texto que fala de Orfeu é do poeta Íbico datado do século VI a.C. O texto já traz Orfeu como uma personagem famosa[2]. Mas ir além do nome e chegar à personagem é um trabalho árduo, porque dele não temos nada escrito apenas algumas ideias copiladas por Onomácrito.

Onomácrito, no século V a.C., segundo Aristóteles, compilou e interpolou versos atribuídos ao nome de Orfeu, reconhecendo a existência de um movimento espiritual inspirado na figura do músico da Trácia.

Nos séculos V e IV a.C., encontramos doutrinas órficas nas obras de Platão e nos restos de um rolo de papiro encontrados em 1962, em Derveni, região perto de Tessalônica, contendo um comentário sobre uma cosmogonia órfica.

Os restos do papiro confirmam a tese de que essa religião estava presente e influenciou a época clássica, mas sua influência maior foi no período helenístico, como comenta Vernant (1992, p.87):

Essa corrente religiosa, na diversidade das suas formas, pertence, quanto ao essencial, ao helenismo tardio ao longo do qual assumirá maior amplitude. Mas muitas descobertas recentes vieram confirmar a opinião dos historiadores convencidos de que seria preciso dar-lhe um lugar na religião da época clássica.

2 – A chegada de Dionísio à Grécia e o surgimento do Orfismo

Dioniso é estrangeiro e foi inserido no Mundo Grego[3]. Antes de seu aparecimento, na Grécia existiam duas religiões principais – cabe notar que não eram as únicas, mas as mais influentes – a de Apolo e, em Elêusis, a de Deméter.

A religião da grande Mãe era de mistérios, seu culto era popular e fazia-se necessária a iniciação para nele participar. A de Apolo, por outro lado, mantinha um caráter cívico e era considerada mais ou menos oficial em grande parte do território grego.

Em meio a essas religiões, apareceu Dioniso e sua nova forma de ritual que invadiu e influenciou as outras duas concepções religiosas.

A chegada de Dioniso à Grécia, porém, não foi tranquila em relação à religião oficial. “Ela se opunha radicalmente à religião de Apolo. À serenidade olímpica de Apolo contrapunha um espírito selvagem, bárbaro, orgiástico” (TRINGALE, 1990, p.18). Para conciliar o espírito “bárbaro” de Dioniso e a “serenidade” de Apolo, surge o orfismo.

Orfeu, supõe-se, era devoto ou sacerdote de Apolo, convertido à religião de Baco, acaba reformando-a dentro do espírito de Apolo, conciliando o apolíneo e o dionisíaco. A religião de Dioniso civiliza-se[4] e permanece presente na Grécia em duas correntes de pensamento divergentes entre si: o dionisísmo e o orfismo.

As diferenças entre as duas correntes tonam-se claras no sentido das práticas e rituais. No dionisísmo, o ritual consiste em matar um animal, estraçalhar-lhe e comer-lhe a carne crua. O fiel que se alimentou com a carne comunica-se com a divindade. O orfismo prega uma prática radicalmente oposta. Nele a comunicação com o deus é desnecessária, porque o homem carrega em si uma parte divina, ele é o próprio Baco. A crença do homem ser deus fica clara ao lermos em uma lamela “eimi Bakkos”, ou seja, “eu sou Baco” (apud BRANDÃO, 1990, p.31). Essa diferença no significado da relação do homem com a divindade permanece presente e justifica toda a prática de ambos os movimentos.

Outra diferença importante é que o orfismo é secreto e suas doutrinas acessíveis apenas aos iniciados pelos Orfeotelestaí e o dionisísmo e suas festas tornaram-se, em Atenas, abertas e de caráter cívico, embora algumas de suas doutrinas ainda permanecessem restritas apenas aos iniciados.

3 – O orfismo e sua nova mensagem

3.1 – A oposição ao sacrifício sangrento da Pólis e sua acepção

A tradição grega prega o sacrifício sangrento que é pleno de significações.

O primeiro sacrifício foi a partilha de um boi feita por Prometeu em Mecone, propondo a reconciliação entre deuses e mortais. O sacrifício terminou designando a separação entre a alimentação dos mortais e dos deuses, indicando, portanto, a condição de cada um.

Ao homem foi destinada toda a carne e aos deuses os odores das carnes. Com esse sacrifício, Prometeu condenou os homens à necessidade de alimentarem-se para sobreviverem e, consequentemente, a terem fome e estarem sujeitos à morte.

A partilha feita por Prometeu marcava a superioridade dos deuses em relação aos homens (Cf. DETIENNE, 1988, p.175).

Para os órficos, o sacrifício sangrento representa o festim feito pelos Titãs com o corpo de Zagreu. Mas seu significado é muito mais amplo. Ao rejeitarem comer carne, eles rejeitam essencialmente a superioridade dos deuses em relação aos homens:

A rejeição do sacrifício sangrento não consiste somente um afastamento, um desvio em relação à prática corrente. O vegetarianismo contradiz aquilo mesmo que o sacrifício implicava: a existência de um fosso intransponível entre homens e deuses, até no ritual que os põe em comunicação (VERNANT, 1992, p. 89).

Os adeptos do orfismo rejeitam todo o sistema religioso e político, o mundo, a visão de mundo vigorante até aquele momento.

3.2 – O orfismo, uma nova concepção de homem

A religião de Orfeu trás para a Grécia uma nova concepção de homem e seu relacionar com o mundo.

No pensamento de Hesíodo, o homem não é digno de um lugar importante no mundo, o que importa são os deuses imortais. Para comunicar-se com a divindade era necessária a prática do sacrifício sangrento.

Ao contrário, a religião de Orfeu considera o homem como possuidor da alma, de caráter oposto ao corpo, imortal, que descende da estirpe dos deuses.

O corpo, para os órficos, é a prisão da alma que nele deve espiar suas culpas cometidas nas vidas anteriores. Após a morte corporal, a alma é libertada. Se o morto não participou das iniciações e purificações que o gênero de vida órfico exige, o círculo de reencarnações repete-se.

Segundo Brandão (1990, p. 30), “[orfismo] ensina, ao contrário da fé tradicional, não como os deuses diferem radicalmente dos homens, com base na oposição entre imortais e mortais, mas como o homem tem em si algo de divino, podendo alcançar a imortalidade.”

A mensagem do orfismo é totalmente nova quando entra no Mundo Grego, porque formula uma doutrina cujo elemento importante não é o corpo ou os deuses, mas o homem e sua alma, enquanto a tradição grega pregava a adoração do corpo e de deuses imortais superiores ao homem. Essa nova crença perante o mundo, nota Reale (1993, p. 376), “inseriu na civilização europeia uma nova interpretação da existência humana” (grifo do autor).

A nova concepção órfica de mundo influenciará o pensamento grego de modo marcante em sua filosofia, arte e literatura.

4 – As Doutrinas Órficas

4.1 – As Práticas Órficas

As crenças órficas são integradas por uma vida prática rigorosa a qual pode salvar ou condenar a alma do homem. O corpo do orfismo era composto de uma moral, uma mística, uma liturgia e uma ascese.

Aos órficos era proibido o “assassinato” e a alimentação de carne, eles eram vegetarianos, não podiam ser sepultados com vestes de lã, não podiam entrar em contato com cadáveres,
eram obrigados a vestirem-se de branco. Eram proibidos de terem qualquer contato com o pertencente ao “mundo da morte” (DETIENNE, 1988, p.175).

O orfismo implicava não só a participação nos ritos e cerimônias, mas uma moral e ascese que incluíam penitências, jejuns, preces e a iniciação. Ele abarca a vida dos seus adeptos em todos os momentos e aspectos.

4.2 – Orfeotelestaí [5]

As práticas e iniciações órficas eram transmitidas e ensinadas pelos orfeotelestaí. Essas pessoas eram mendicantes que caminhavam por toda Helade, executando sacrifícios, obtendo “absolvição e purificação” para indivíduos ou cidades.

Vernant (1992, p.91) fala desses ambulantes comentando a opinião de Platão na República: “Esses personagens de sacerdotes marginais que, caminhando de cidade em cidade, apoiam sua ciência dos ritos secretos e encantamento na autoridade de Museu e de Orfeu, são de bom grado assimilados a um grupo de mágicos e charlatães explorando a credulidade pública.”

Mas convém observar que o que habilita os orfeotelestaí a promover ritos e a divulgar as doutrinas do orfismo é seu gênero de vida marginal semelhante às ideias órficas de contraposição ao sistema corrente. Segundo M. Detienne (1988, p.174), “uma das características fundamentais daquele que pratica o gênero de vida órfico (bios orphikos) é ser antes de mais um indivíduo marginal, um vagabundo separado do corpo social”.

4.3 – A Metempsicose

O orfismo tem como doutrina fundamental a imortalidade da alma. O homem possui duas características essenciais: o bem divino e o mal titânico. Sua parte má deve ser eliminada para ele voltar às suas origens divinas; para isso deve espiar suas culpas através da reencarnação, até a liberdade total de sua alma.

A doutrina da reencarnação é embasada em uma ética. A punição após a morte não explica por que a existência da dor humana e, principalmente, da dor injusta dos inocentes era permitida pelos deuses. A reencarnação explica: nessa doutrina não existem inocentes, todos são culpados, em vários graus, por culpas de várias gerações, cometidas nas vidas passadas. E a longa educação pela qual a alma passará no círculo de reencarnações a expiará de suas culpas e o seu último passo será a libertação da metempsicose e o retorno da alma à sua ascendência divina (Cf. DODDS, 2002, p.153-154).

4.4 – As Lamelas e o Destino Último das Almas

A maior parte da escatologia órfica foi revelada por tabuinhas encontradas em Petéleia, Túrio, Hipônio e Creta. Elas eram enterradas junto aos iniciados nos mistérios para guiar suas almas no além túmulo.

As lamelas encontradas em Hipônio indicam os caminhos cuja alma deve seguir ao entrar no mundo infernal. A alma é apresentada como “…filha da Terra e do Céu estrelado” (DETIENNE, 1988, p.177) e deve seguir o caminho da direita que leva a fonte que brota a água da Memória; em oposição ao caminho da esquerda que representa o Esquecimento.

A Memória é a água da vida e marca o fim do círculo de reencarnações; o Esquecimento é a água que representa a vida terrestre destruída pelo tempo e o não ser da existência.

Em Túrio, uma das lamelas encontradas indica como a alma do homem, originalmente, pertence à mesma descendência dos deuses.

Outra das lamelas encontradas em Túrio fala de como a alma passa de homem para deus:

Mas apenas a alma abandona a luz do sol à direita […] encenando, ela que conhece tudo junto. Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes não havias sofrido isto. De homem te tornaste Deus: cordeiro caíste no leite. Alegra-te, alegra-te, tomando o caminho à direita para os prados sagrados e os bosques de Perséfone (LAMELA ÓRFICA, apud REALE, 1993, p.382)[6].

Essas lamelas indicam como a alma dos iniciados libertar-se-á do cárcere do corpo e cumprirá seu destino último: tornar-se Deus.

Considerações Finais

A importância atribuída ao orfismo e suas doutrinas é muito variada em cada autor; alguns consideram-nas irrelevantes ou inexistentes; outros lhes atribuem a origem de todo o pensamento metafísico grego. O papel do movimento órfico permanece entre esses extremos. Devemos creditar importância as doutrinas da metempsicose, do corpo como prisão da alma e o fim último do homem no além-túmulo. Essas novas concepções da realidade mudaram a forma como os homens eram vistos: passaram de meros joguetes nas mãos dos deuses para agentes de sua própria ação e assumiram as consequências de seus atos.

Sem dúvida a tradição órfica existiu no período clássico e, estudando-a com a relevância necessária, talvez possamos compreender melhor esse povo que fascina tantas pessoas ao longo dos séculos, os gregos.

Autor: Anselmo Carvalho de Oliveira

Fonte: Ágora Filosófica – PUC-PE

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Notas

[1] – As cinco teogonias órficas conhecidas podem distinguirem-se em dois grupos: as chamadas “cosmogonias da Noite”, presentes na obra de Eudemo e no papiro de Derveni; e as “cosmogonias do Ovo” que se encontram em Jerônimo e Helânico e em Aristófanes. A teogonia nas Rapsódias sintetizam elementos de ambos os tipos: da Noite e do Ovo. Transcrevemos a última por representar, de modo geral, o quadro teogônico órfico.

[2] – “A mais antiga referência à personagem colhe-se do poeta Íbico de Régio, que viveu no século V.I: a. C, o qual fala do onomaklytón Orfhén (fr. 26, Adrados), isto é, do ‘renomado Orfeu’” (BRANDÃO, 1990, p. 26).

[3] – Cf. Brandão (1999, p. 117): “É quase certo que o aparecimento de Dioniso e sua tardia explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a causas políticas. […]Dioniso é um Deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma série ameaça à pólis aristocrática, a pólis dos Eupátridas, ao status quo vigente, cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos”.

[4] – “Os cultos dionisíacos fazem parte integrante da religião cívica, e as festas em honra de Dioniso são celebradas, com o mesmo direito que todas as outras [festas religiosas] em seu lugar no calendário sagrado” (VERNANT, 1992, p. 82).

[5] – τελετη′: congregação, iniciação, cerimonia dos mistérios, festa religiosa, solenidade; όρϕεο: relativo à Orfeu e orfismo; όρϕεο−τελετη′: iniciadores nos mistérios órficos (Cf. ISIDORO PEREIRA, p. 419 e 469).

[6] – Lamela encontrada em Túrio. In: KERN, O. Orphicorum fragmenta. Berlim: Weidmann, 1922. p. 32.

Referências

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. O orfismo no mundo helenístico. In: CARVALHO, Silvia Maria S. (org.). Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1990. p. 25-34. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. V.II DETIENNE, Marcel. Orfismo. In: RICOEUR, Paul et al. Grécia e mito. Trad. de Leonor Rocha Vieira. Lisboa: Gradiva, 1988. p.174-178. DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. Trad. de Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.

A Árvore da Vida e os Antigos Mistérios

Foi Jung que nos chamou a atenção para esse aspecto particular da nossa psique, que é o compartilhamento coletivo e inconsciente de uma simbologia que habita na mente da humanidade desde os seus primórdios. Essa simbologia, que ele chamou de mundo dos arquétipos, é um arsenal de conceitos, intuições e experiências que as pessoas, ao longo do tempo vão acumulando em suas mentes inconscientes e transmitindo aos seus descendentes, na forma de costumes, tradições e outros comportamentos que se tornam cultura popular. Esses traços de cultura, muitas vezes, se convertem em crenças e valores que acabam conformando a vida das pessoas e suas sociedades, tanto para o bem como para o mal.

A religião é uma dessas experiências psíquicas cujas raízes estão plantadas no inconsciente coletivo da humanidade, mas seus ramos e frutos têm, ao longo do tempo e da história, conformado a vida de grande parte da humanidade. Todas as pessoas professam alguma forma de religião, já que, de um ponto de vista lógico, o próprio ateísmo seria uma religião, ou seja, a religião sem Deus, a crença do ateu.

Quem, em sã consciência, consegue formular de maneira lógica os fundamentos da sua religião sem apelar, no fim dos seus argumentos, para o velho recurso da fé? E não dizer que os fundamentos da fé não se discutem, mas aceita-se ou não, e pronto?

Assim é porque a religião é um fenômeno fundamentado em arquétipos hospedados no Inconsciente Coletivo da humanidade desde as suas primeiras experiências psíquicas. Fenômenos observados na natureza e não inteiramente compreendidos; intuições sobre fatos e acontecimentos que a mente não consegue explicar; sentimentos intraduzíveis na linguagem pobre e rude das primeiras civilizações são o fundamento de todas as religiões.

O que não se consegue exprimir em linguagem organizada, conceitual, lógica, a nossa mente transforma em símbolo, mito, diagrama, metáfora ou outra forma qualquer de mensagem. Pois toda informação que o nosso organismo recebe através dos seus cinco sentidos é armazenada em nossa mente. Se é processada pela mente consciente torna-se conhecimento, se não é processada dessa forma, torna-se intuições, pressentimentos, superstições.

Assim, é a fauna inconsciente, que muitas vezes, torna-se uma crença arraigada, e acaba dando nascimento ao fenômeno da religião. Esse fenômeno, que foi explorado por James Frazer (O Ramo de Ouro, 1890), nos leva a um tema particularmente relevante aos adeptos da Cabala e da Maçonaria, que são os chamados Antigos Mistérios.

Como sabemos, todos os povos antigos costumavam, de alguma forma, prestar homenagens à Terra-mãe, através de algum tipo de sacrifício ou representação folclórica, que tinha por objetivo obter as graças da divindade, para que ela os premiasse com fartas colheitas.

Fenômeno observado em seus efeitos, mas nunca compreendido em suas causas, as antigas civilizações intuíam nesse comportamento da natureza uma reciprocidade de ação que era benéfica quando elas lhe prestavam culto e maléfica quando esse culto não era prestado, ou, no seu entender, era mal feito ou recusado pela divindade que presidia essa propriedade da terra. Se perguntados por que realizavam tais cultos, eles não saberiam dar fundamentos lógicos para isso, mas sabiam que algum resultado disso adviria, e ninguém duvidava da importância desses cultos. Porque eles estavam entranhados no próprio espírito desses povos, e não realizá-los, na forma devida, traria algum tipo de malefício para o povo.

Na Egito, com os Mistérios de Ísis, ou na Mesopotâmia com os ritos consagrados à deusa Ishtar, ou na Índia com os Mistérios de Indra, esses festivais, como eram chamados essas representações, tinham um caráter social e religioso que davam marca a um simbolismo arquetípico da maior importância para esses povos. Até na Grécia e entre os povos que se desenvolveram sob sua influência cultural, esse simbolismo assumiu um aspecto tão fundamental em suas culturas, que a partir de certo momento da sua história transformou-se em um instituto patrocinado pelo próprio Estado. É o caso da República de Atenas, por exemplo, que recepcionou, na legislação que Sólon lhes outorgou, os chamados Mistérios de Elêusis, como marca fundamental e obrigatória de sua cultura social, punindo inclusive com penas extremamente severas aqueles que violassem o caráter sacro dessas instituições. Mais tarde esse instituto foi recepcionado na legislação romana, por imposição do Imperador Adriano em 125 da era cristã[1].

Os Mistérios de Elêusis, como sabemos, eram originalmente  um festival realizado na cidade santuário do mesmo nome, pequena aldeia próxima a Atenas. Fundamentado no mesmo espírito que hoje patrocina as festas populares dedicadas aos santos e santas padroeiras das nossas cidades, esses festivais tinham o objetivo de homenagear a deusa Deméter (Ceres, para os romanos) que, na mitologia grega, era a deusa que protegia a agricultura, personificada como a Terra-mãe. Porém, diferentemente dos nossos festivais religiosos modernos, o festival de Elêusis tinha marcas notadamente iniciáticas, pois contemplava uma parte não aberta à população, na qual somente pessoas escolhidas podiam participar. Esses eram os chamados “iniciados” nos Mistérios da deusa Deméter, a quem se acreditava eram conferidos importantes segredos iniciáticos, que iam desde conhecimentos científicos, políticos e sociológicos de alta relevância para a própria sociedade grega em geral, a segredos da religião grega, só acessíveis a alguns eleitos. A estes iniciados eram revelados, segundo Platão, os verdadeiros significados dos mitos e alegorias das lendas gregas, que constituíam o essencial das crenças que dominavam o espirito do povo helênico.

Deméter, a Terra-mãe, era vista pelos gregos como a mãe das almas, pois sua filha Perséfone (conhecida pelos romanos como Prosérpina), representava não só a semente que é plantada para dar renovos à vida, mas também o arquétipo da própria alma humana, ou seja, a Psique, que morre e revive no seio da terra. Assim, os Mistérios de Elêusis, como também os Mistérios de Ísis, no Egito, eram uma representação que tinha por objetivo homenagear os poderes da terra, capaz de gerar a vida a partir da morte. Dessa forma, se ela age assim com a produção da natureza, assim será também com a vida espiritual do homem, cuja continuidade depende do mesmo processo morte-vida, vida-morte, para que a espécie continue e evolua[2].

Com as variantes de estilo esses Mistérios eram praticados pela grande maioria dos povos antigos e sua fundamentação psíquica se apoiava no mito do sacrifício que se deve fazer à Mãe-terra para que ela outorgue, com benevolência, os seus frutos. Em muitos desses Mistérios, vidas de animais ou mesmo de pessoas eram sacrificadas à deusa. As lendas gregas estão cheias de histórias desses sacrifícios, onde, ás vezes, o sentimento humanístico do grego se revolta e levanta, no seio do povo, um herói para desafiar essas exigências, como nas lendas de Perseu, Teseu, Hércules e Prometeu. Nas civilizações da América pré-colombiana esses ritos eram praticados até a chegada dos colonizadores, com os vencedores sacrificando, no alto das suas pirâmides, milhares de prisioneiros, e deixando que seu sangue escorresse para as plantações, com o objetivo de fertilizá-las. Mais do que um ritual de crueldade, próprio de civilizações bárbaras e ignorantes, esse costume era uma variante dos cultos em homenagem à Mãe-Terra.

Isso mostra o poder dos arquétipos e o quanto eles conformam o comportamento das pessoas. Até na espiritualizada religião de Israel esse costume foi conservado, pois remanesceu na simbólica oferta do cordeiro pascal, como selo de Aliança entre o povo de Israel e seu deus. E o cristianismo, formado no simbolismo da religião judaica, espiritualizou esse arquétipo na mística oferta do sangue de Cristo, como o herói que se sacrifica pela salvação da humanidade. E a própria Bíblia, com os episódios do sacrifício de Abraão e Jefté, mostra que nos primórdios da sua civilização os israelenses também praticavam rituais de sacrifício humano.

Desta forma, a Árvore da Vida, biológica e espiritualmente, se renova e vai fornecendo, ad æternum, os seus frutos. Não é sem razão que Cícero, o grande orador romano dos tempos de César, ao comentar os Mistérios de Elêusis, nos quais era iniciado, disse:

Muito do que é excelente e divino faz com que Atenas tenha produzido e acrescentado às nossas vidas, mas nada melhor do que aqueles Mistérios, pelos quais somos formados e moldados partindo de um estado de humanidade rude e selvagem. Nos Mistérios, nós percebemos os princípios reais da vida e aprendemos a viver de maneira feliz, mas principalmente a morrer com uma esperança mais justa.”[3]

Mas para que ela se renove e dê, perenemente, seus frutos, é preciso que o homem a cultive. Assim, a Árvore da Vida, que originalmente fora plantada por Deus para sustento da Criação, a partir do momento em que o homem tornou-se consciente e capaz de fazer suas próprias escolhas, passou a ser cultivada por ele e dele depende para a sua produção. Assim é que pode ser entendida a dicção da Bíblia quando diz que

o homem se tornou um de nós; para conhecer o bem e o mal. Agora, talvez ele estenda sua mão e tome também da árvore da vida, coma e viva para sempre.”[4]

Metáfora mais eloquente do que essa para figurar os Mistérios que a própria natureza, ao engendrar e desenvolver um processo para a evolução da vida não podia ser melhor urdida pela mente do homem. Pois aqui, como bem assinala Teilhard de Chardin, está o reconhecimento de que na Criação de Deus, e mais especificamente, na humanidade, se desenvolve um plano de construção cósmica no qual o homem não é, como se já pensou, o centro nem a finalidade, mas sim, um eixo privilegiado de evolução. Quer dizer, o universo não existe para servir o homem, mas sim o homem para construí-lo e dar-lhe uma orientação. Não se trata de negar as teses antropocentristas e antropomorfistas que colocam o homem como “medida” de todas as coisas como ingenuamente pensavam os humanistas do passado, mas sim de reconhecer um novo humanismo, que sem destronar o homem da sua importância no processo de construção da obra de Deus, o coloca no seu devido lugar: o de uma função bem definida nesse processo.

Porque ao cultivar a terra o homem tornou-se o responsável pela existência da Árvore da Vida. Expulso da sua condição primitiva de inocência inconsciente, onde a própria natureza o alimentava sem que ele precisasse dar nada em troca, ele agora tem que concorrer para produzir esses frutos. Tornou-se Senhor do bem e do mal. Da caça, da pesca, da coleta dos frutos da terra ─ estado paradisíaco que Jesus descreve em seu discurso como aquele em que o Pai do Céu nos sustenta ─ à agricultura, à domesticação e à criação de animais, à industrialização e outras conquistas civilizatórias, a humanidade depende agora, da sua própria ação para sobreviver. E assim, o homem, que antes cultuava a Mãe-terra Deméter com sacrifícios de sangue para que ela lhes prodigalizasse seus frutos, hoje deve oferecer-lhe o sacrifício do seu trabalho e dar-lhe por fim, o seu próprio corpo como semente para que ela continue a sustentar a Árvore da Vida.

Autor: João Anatalino

Notas

[1] – Dudley Wright – Os Ritos e Mistérios de Elêusis – Madras,2004

[2] – Os Ritos de Elêusis eram realizados em duas etapas: anualmente, no santuário de Agras, no mês de fevereiro eram realizados os “Pequenos Mistérios”. E de cinco em cinco anos, em Elêusis, eram realizados os “ Grandes Mistérios”.

[3] – Dudley Wright – Os Ritos e Mistérios de Elêusis, citado p. 24

[4] – Gênesis, 3:22;23

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Escola de Mistérios da Grécia Antiga

Ritos a Dionísio: Os Mistérios de Eleusis

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“…absorto em Deus, já não forma senão Um com Ele, como um centro que coincide com outro centro (…) tal modo de visão é difícil de descrever a outro (…) Isto é sem dúvida o significado da proibição que se faz nos Mistérios, vedando que se revele os segredos dos mesmos aos que não foram iniciados. Como se quer que o divino seja inefável, prescreve-se que não se fale disso ao que não haja tido a ventura de vê-lo”. (Plotino, Sexta Enneada)

Introdução

Os “mistérios” se apresentavam, na Antiguidade, como verdadeiros festivais, oportunidades de encontro e peregrinação, para os quais acorriam pessoas de lugares distantes em busca de auto-conhecimento. Encontravam-se consigo mesmos, com os demais, com o universo, a natureza, as divindades. Remontam às antigas Escolas de Mistérios do Egito, organizadas por Tutmós III, avô de Akenaton, há cerca de 3.300 anos. Tinham lugar em Luxor e Karnak, depois em Alexandria e dali expandiram-se para a Grécia, a Itália, Oriente Médio, o mundo da época.

A palavra “mistério” origina-se do grego Mysthes, plural Mysthai, reunindo um conjunto de significados a partir de objetos a simbolizar, em aproximação ao “insondável, indizível, inaudível, intocável”, portanto, “misterioso”. Essencialmente, o mysthes se refere à impossibilidade de abarcar a Vida e a Morte, a abrangência do que significa nascer e morrer, o que é, por que, para que e assim por diante.

Portanto, pessoas interessadas nas questões decisivas para a compreensão de si mesmas, das relações com os demais, o mundo, a natureza, o universo, acorriam a determinados lugares onde lhes era oferecida a oportunidade de adentrarem os Mysthai. Dependendo do lugar, portanto, da cultura do contexto, constelavam-se mitos, formas de apresentação mais ou menos dramáticas, crenças, situações, enfim, toda uma ambientação destinada a tocar fundo na emoção dos iniciandos. Pode-se, assim, afirmar, que a operacionalização global dos Mysthai delineava-se como verdadeiras Iniciações.

Ada D. Albrecht, pesquisadora dos Mistérios levados a efeito em Eleusis, na Grécia Antiga, afirma que “os Eleusinos sabiam da intransmissibilidade desse estado de consciência, e assim o chamado “voto de silêncio” era condição sine qua non para lograr a participação nos Mistérios” (1994,p.12). E mais adiante, relata o depoimento deixado por viajantes: …”viram uma luz gigantesca, que partia de Eleusis, e uma caravana de trinta mil homens aproximadamente, que cantavam em coro o nome sagrado de Iachos, o deus eleusino – Baco” (…) “Iachos, deus máximo de Eleusis, junto com a deusa Deméter e sua filha Koré – Perséfone” (Idem, 12-13): tal era a constelação mitológica envolvida na essência dos Mistérios de Eleusis.

Dionysos: a criança no peito

Na citada obra de Ada Albrecht, situamos a origem de Dionysos como fenícia: Iachos significaria “a criança no peito”. Se o alinhamos a Baco, o “deus da divina ebriedade”, situado na geografia de Eleusis, torna-se possível aproximar Iachos a Dionysos, pois a ebriedade eleusina tinha caráter de Sabedoria ou estado de EPOPTEIA, estado de consciência possível de contactar o Saber, o Divino.

Simbolicamente, “a criança no peito” poderia ser aproximada a Deméter. “Longínquas tradições orientais costumam falar-nos da sabedoria do olho e da sabedoria do coração, insistindo em chamar a esta última de verdadeira sabedoria, isto é, a que se torna experiência viva para a alma, além de mera especulação teorética, discursiva, não doadora de nenhuma vivência espiritual” (obra cit. P.14).

Desta forma, Iachos simboliza esta criança no peito da Grande Mãe Deméter; Dionysos seria a força de ser oculta no coração do ser humano e que pode despertar para a verdadeira sabedoria, se guiado por outros que já o conseguiram: os guias iniciáticos. Em Eleusis, duas famílias se destacaram: os Eumólpidas e os Kerikes. Os primeiros encarregavam-se dos cultos: Eumolpes teria recebido sua função da própria Deméter, que lhe confiara os segredos do culto. Diodoro de Sicília afirmou que os eumólpidas derivavam dos sacerdotes egípcios. Na verdade, encontram-se semelhanças entre os cultos a Ísis e os eleusinos, a Deméter.

Os Kerikes eram encarregados de apresentar os objetos sagrados, os “hieros“. O hierokeris, ou Heraldo, proclamava os Mistérios, devendo para isso ter uma voz potente. Parece que os kerikes derivam em última análise do Heraldo Divino: Hermes (Ibidem, p.72). Daí também serem chamados de Hierofantes, os que desvelam o sagrado. Portanto, muito mais que uma “bela voz” para dar início aos mysthai, estavam envolvidos no ofício sagrado de recitar “palavras de poder”, em sua correta inflexão, remontando aos “Sama Veda”, conhecimentos do canto, dos mantras, invocando a presença dos deuses. Os hierokeryx custodiavam os objetos sagrados.

Havia ainda sacerdotisas em grau bastante elevado, como as hierofantidas, dedicadas ao serviço das deusas mãe e filha; e as panageys, espécie de monjas, também chamadas de “abelhas”, cuja função nos mistérios é pouco conhecida – uma vez que pouco mencionadas, devido aos votos secretos. Finalmente, citam-se também os “iachogogos“, que acompanhavam a estátua de Dionysos, desde Atenas até Eleusis, nas peregrinações; os “hidranos“, encarregados da purificação dos fiéis e os “daduchos“, dos fiéis comuns.

A partir das escavações feitas em Eleusis, Picard pode demonstrar suas origens cretenses; baseado principalmente no hall de Iniciação do famoso Telesterion eleusino, análogo as construções cretenses. Afora tais especulações, nada se tem de concreto, nem objetos, nem outras provas dos ritos dionisíacos ali levados a efeito. Pergunta-se Ada Albrecht: “Como havemos de apreender o esoterismo do mito eleusino? Como culto agrário, tão somente? As sagradas epopteias de seus misthay, simples euforias subministradas por fungos alucinógenos? (…) Eleusis, de qualquer modo, parece significar “el lugar del arribo feliz”, vocábulo ao qual se lhe relaciona com outro de significado ainda mais preclaro: ELYSON, o “reino do sagrado, do bendito”. Neste lugar, o ser humano chegou a um cume de desvelação espiritual apenas pressentido por nós” (pp.18-19).

As origens de Eleusis são baseadas em conjeturas, porém não o seu final: reconstruída e ampliada nos tempos de Solon, depois de Pisístrato e Pericles; dizimada pelo Cristianismo, teve seu fim definitivo com Juliano o apóstata, no terceiro século de nossa era; Teodósio, em fins do séc. IV, proibiu os cultos aos mistérios. No séc. V, a área foi usada como cemitério. Tudo o que resta desses cultos e mitos está espalhado pela literatura greco-romana como depoimentos de viajantes que por ali passavam e o pouco que os iniciandos comunicaram boca a ouvido, daquilo que podiam afirmar, sem ferir seus votos.

Hino a Deméter (fragmentos da Ilíada, de Homero)

A Deméter, de formosa cabeleira, veneranda deusa, começo a cantar; a ela e a sua filha raptada por Aidoneo(…) enquanto brincava com as filhas do Oceano, e colhia flores, rosas, açafrão, formosas violetas, jacintos e aquele narciso que a Terra produziu tão admiravelmente (…) pela vontade de Zeus para enganar a donzela e comprazer a Hades(…) Cem capuchos brotaram de sua raiz, e ao espargir-se o suavíssimo odor, sorriam o alto céu e a terra inteira, e a salobra água do mar. Ela estendeu admirada os braços para colher o formoso brinquedo; mas então a terra abriu-se…e surgiu o soberano Polidegmon, filho famoso de Cronos …arrebatando-a no seu carro de ouro levou-a chorando e gritando(…) mas nenhum dos mortais ouviu sua voz, somente a filha de Perseu, a de ternos pensamentos, desde sua caverna, Hécate, a de luzente diadema- e o Sol soberano, filho de Hiperion, quando a donzela invocava seu pai(…) Foi sua mãe que ouviu-lhe a voz, sentindo nesta aguda dor que transpassava o coração, jogou seu manto sobre os ombros e saiu pressurosa a indagar por terra e por mar; mas ninguém quis revelar-lhe a verdade. Durante nove dias vagou pela terra. Quando a décima Aurora resplandeceu, Hécate a encontrou, com a tocha na mão, para dar a notícia. Ambas dirigem-se com tochas acesas até o Sol, que saúda a filha de Rea e conta que Hades a raptou para torná-la sua esposa. Oferecendo sua carruagem, Deméter segue até a morada de Celeo, rei da perfumada Eleusis. Aflita, ela senta-se no poço Partenius, a sombra de uma oliveira, onde vem buscar água Calidici, Clisidice, Demo a amável e Calitoe, a maior delas, todas filhas de Celeo Eleusinida e se estabelece um diálogo entre elas (…) Encheram de água seus vasos e regressaram a casa, contaram a sua mãe o que ouviram e viram e ela mandou buscar Deméter, oferecendo-lhe imenso salário. Voltaram e encontrando Deméter, a conduziram a mansão de Celeo, aluno de Zeus e a deidade nada falou, não quis sentar nem descobriu sua cabeça com o manto que a cobria. Até que Yambe, a de castos pensamentos, apresentou-lhe uma grande cadeira, coberta de manto branco. Então a deusa senta e retira o véu consumida pela solidão da filha. Yambe falava e contava anedotas até fazer a deusa rir. Metanira lhe traz um copo de vinho, e Deméter diz não ter licença para beber. Preparam então uma mistura em beberagem, que a deusa aceita em conformidade aos ritos (aqui se perde um fragmento do texto de Homero)* e Metanira começou a dizer: Salve mulher, pois teus pais não são vis e sim nobres; o pudor e a graça brilham em teus olhos(…)cria minha criança que os imortais me deram tardiamente(…)Ao que Deméter responde: “Salve tu também, e que os deuses te cumulem de bens. Com gosto criarei teu filho e que o hipotamno (erva para beberagens mágicas) nunca lhe cause dano, pois sei um remédio contra o funesto sortilégio (hilótomo, antídoto formado por ervas do bosque)“.

O texto da Ilíada termina dizendo que Deméter criou o filho de Metanira com ambrosia, pois não o sustentavam os seios maternos. A criança cresceu sob os cuidados da deusa, porém um dia Metanira espia o leito da deusa e esta a amaldiçoa, exigindo para ela um templo, onde deverá ensinar os mistérios aos eleusinos. Assim, Deméter reina no templo onde se originam os Mistérios de Eleusis.

Segundo Mircea Eliade, em sua obra acerca das Iniciações Místicas (1986, 187 ss.), o mito de Deméter *** já era conhecido dos inúmeros peregrinos que acorriam a Eleusis para a Iniciação. Com tochas na mão, iniciava-se a primeira fase, quando reviviam o rapto de Perséfone e a buscavam pelos arredores. Então, ouviam a voz do Heraldo, anunciando os Mistérios e se aproximavam do Telesterion para serem preparados para a iniciação. Aristóteles já afirmava que o mysthes conhecia o mito, porém tinha que fazer alguns gestos e olhar os objetos a ele apresentados. O que se seguia ninguém sabe, afirma Eliade, pois no Hino a Deméter lemos que “um grande pavor aos deuses lhes contém a voz” e o coro de Edipo Rei afirma que os Eumolpidas chaveavam com ouro a língua dos mortais.

Clemente de Alexandria (Proteptico, II, 21, 2) legou-nos a fórmula falada pelo mysthes: “Jejuei, bebi o kykeon, recebi a cesta e manipulei os objetos devolvendo-os à cesta”. O kykeon era uma mescla de cevada, água e pólen, a mesma oferecida por Metanira a Deméter. Logo vinha a representação da descida aos infernos, em busca de Perséfone.**** Eliade mostra as raízes gregas para Iniciação (telesisthai=ser iniciado) e inferno (teleuthan=morrer), pois a descida ao Hades significava a morte e todo o grego sabia disto. “Morrer é ser iniciado”, já dizia Platão. Receber a cesta significava tornar-se um mysthes e destapar os objetos era descer aos infernos. Manipular os objetos era ser adotado pela deusa e poder seguir os epopteia, tornar-se um epoptes, “o que vê” (iluminar-se).

Segundo Walter Otto (The meaning of the eleusian mysteries) não cabe dúvida respeito à natureza milagrosa do acontecimento: tanto a espiga de trigo que amadurece sob as bênçãos de Deméter, quanto os vinhedos em honra a Dionysos representam em Eleusis a transformação iniciática. Diz Mircea Eliade que “pecaríamos em ingenuidade se quiséssemos oferecer em poucas linhas o que aconteceu durante mais de um século nos Mistérios Eleusinos. Pois eles são a herança, como o dionisianismo e o orfismo, de crenças e ritos enormemente arcaicos. Nenhum dos cultos iniciáticos pode ser considerado redutivamente como criação grega. Suas raízes fundam-se nas profundidades da proto-história.

Tradições cretenses, asiáticas, trácias foram recuperadas e integradas – Eleusis tornou-se o centro dessa tradição. Descende de rituais agrários de morte e ressurreição de deuses ligados a natureza e a sociedades matriarcais arcaicas. As experiências do iniciando têm natureza de transmutação, de transcender a condição humana e alcançar um modo transcendente de viver. Apuleio relata que ao iniciar-se nos Mistérios de Ísis acercou-se do reino da morte com o fim de renascer espiritualmente. Os rituais de Osíris e Ísis se fazem presentes em Eleusis, tanto quanto o da Grande Mãe frígia. Salustio refere que os iniciandos frígios eram alimentados com leite, como recém-nascidos. Os textos de Mitra estão impregnados da gnoses hermética; seus rituais incluíam a morte simbólica do iniciando, que deitava numa tumba “nascendo pela segunda vez, para a verdadeira vida”. Trata-se sempre de uma regeneração espiritual, essa palingenesia que envolve mudança radical do regime existencial do iniciando. Afirma Eliade: “A divinização do homem não era em absoluto uma fantasia extravagante para o mundo antigo tardio” (Op. Cit. P. 192). Cícero escreveu: “Sabe-te pois que és um deus” (De Republ. VI, 17).

Os Mistérios Menores

Adentrando um pouco mais na profundidade dos Mistérios Eleusinos, Ada Albrecht apresenta-os em dois blocos ritualísticos: os menores e os maiores. Os mistérios menores eram requisito para os maiores. Aconteciam uma vez por ano, no início da primavera, o anthesterion, em homenagem a Ártemis, a deusa virgem irmã de Apolo. Eram cerimônias de purificação, as margens do Ilisio. Katerine Kanta, na obra “Eleusis” afirma que havia no grande prédio dedicado a Ártemis, templos a Deméter e a Perséfone. A finalidade destes lugares era oferecer aos neófitos oportunidade para jejuar, como sinal de purificação – requisito para a vivência de sua união com a divindade. O Mahabarata hindu predica que arroz, leite, coalhada e mel são os alimentos que preparam o candidato ao moksha, equivalente a epopteia dos gregos.

Os encarregados desses jejuns eram os mistagogos, sob a supervisão do hierofante. Também eram prescritos banhos ritualísticos, provavelmente no próprio Ilisio, assim como o Ganges e o Jordão servem até hoje como purificação para hindus e cristãos. Havia a entoação de hinos sagrados, sacrifícios as deusas e cerimônias em recordação ao deus Dionysos. Ainda que determinados estudiosos neguem a presença de Dionysos nos Mistérios eleusinos, Ada Albrecht considera de capital importância a inclusão desse deus em tais mistérios. “Sua presença metafísica dá sentido ao conjunto das peças ritualísticas dos mistérios eleusinos”. Veremos mais adiante como a invocação a Iachos era de fundamental importância para dar início aos Mistérios Maiores.

Os Graus Iniciáticos e os Mistérios Maiores

Segundo Teon de Smirna, os Mistérios Eleusinos compreendiam cinco graus: purificação, comunhão mística, Epopteia, coroação, comunhão divina. Plutarco narra a iniciação de Demetrio Polioirketes desde a purificação até os epopteia, mas isso não fundamenta a possibilidade de que houvessem somente três graus. De fato, os assim chamados Triptolemos, baseados nas teoria s gregas dos números, mostram sempre agrupamentos de três blocos ritualísticos. Ada Albrecht, após acurado estudo, agrupou em nove (três vezes o três) as cerimônias dos Mistérios Maiores, inclusive com as datas: iniciavam no dia 15 do mês boedromion até o dia 23, assim distribuídas:

  • dia 15 do boedromion: Agyrmos, reunião. Proclamação;
  • dia 16: Elasis ou Helade Mysthai: “Ao mar, ó iniciados!”;
  • dia 17: Hiereia Deuro: Sacrifício das vítimas;
  • dia 18: Epidauria ou Asclepia;
  • dia 19: Iachos ou Pampa, procissão;
  • dia 20: Telete (mysteriodites Nychtes);
  • dia 21: Epopteia;
  • dia 22: Plemochoai;
  • dia 23: Epistrofe.

Primeiro dia: Agyrmos, proclamação

Aqueles purificados de toda contaminação (moral) cujas almas se acham conscientes de não haver cometido atos diabólicos, que tem vivido moral e justamente, cujas mãos se encontram limpas (de pecado)…podem participar dos mistérios eleusinos e participar da epopteia.

Tal era a proclamação. Os espandódoros, descendentes dos clãs dos Eumólpidas e dos Kerikes, disseminavam-se pelas cercanias, fazendo a proclamação, não excluindo ninguém, nem mulheres, nem escravos nem sequer crianças: era a trégua divina, em que todos eram cidadãos com a possibilidade de vira abrigar a Criança no Peito, Dionysos em seus corações. O divino Iachos, a alma ressurrecta, habitaria a alma dos mortais, divinizando-a.

Segundo dia: Helade, Mysthai! Ao Mar, ó Iniciados!

Filósofos e homens do povo, mulheres, crianças, músicos, imperadores e imperatrizes, todos se igualavam nas fileiras, guiados pelos mistagogos, carregando um cordeiro nos braços, enquanto o hierofante os instava: Helade, Mysthai! O sacrifício dos animais deveria se dar sob adequados rituais e palavras, arrastando em seu sangue as impurezas que porventura pudessem macular os sagrados mistérios. Ensinamentos eram passados pelos mistagogos aos iniciandos pois, assim como o sangue dos cordeiros possuíam o dom da purificação, também a água do mar purificaria os pecados dos neófitos e era esta a primeira das transformações para a grande transmutação dos mistérios. Durante nove dias fariam estas abluções na água do mar, nove dias como Deméter peregrinou pela terra em busca da verdade sobre o rapto de Koré. Nos hinos órficos, o Theon Agnesma Megiston, o Oceano, é o Grande Purificador dos Deuses, uma gigantesca pia batismal onde o profano se torna sagrado.

Terceiro dia: Hiereia Deuro, sacrifício da vítima

Não é certo se neste grau o iniciando apresentava as deusas seu cordeiro sacrificado no dia anterior, ou se ele mesmo se apresentava como vítima a ser transformada em sagrado ofício. Parece ser, contudo, este o simbolismo de terceiro dia, uma vez que o número três é o da manifestação, o fruto da união do Céu (Koré) com a Terra (Hades). Há depoimentos, também, de que nestes ritos terceiros, agradeciam os iniciandos pelos bens que possuíam e imploravam proteção aos habitantes da terra.

Quarto dia: Epidauria

Fica difícil o entendimento da introdução das festas a Epidauro em meio a rituais destinados as deusas Mãe e Filha. Talvez a explicação resida no fato de que , quando o próprio Epidauro apresentou-se como neófito aos grandes mistérios, ele tenha chegado com um retardo, justamente neste quarto dia, agora, então, a ele dedicado. De algum modo, ele foi inserido entre os deuses transmutadores, que intercedem pela transformação dos neófitos, através de sua ressurreição, ou renascimento. Supõe-se, também, que este tenha sido um dia de descanso, pois encontra-se justamente no meio dos Mistérios maiores, necessitando os iniciandos de uma pausa em seus jejuns e abstinências.

Quinto dia: Pompa, procissão

Este era o dia que marcava o regresso dos Hiera de Atenas de volta a Eleusis. A caravana era formada por incontáveis peregrinos, coroados de mirto e já com as vestes ritualísticas. O centro da procissão era a figura do deus Iachos, ladeado pelos Iachogogos, os Hieras e as sacerdotisas da Deusa Mãe. Depois iam os oficias de estado, os mystai e as carroças com tudo o que seria necessário ser utilizado em Eleusis. Havia gestos e cantos a serem manifestos durante a procissão, onde o nome de Iachos era repetidamente pronunciado. Determinadas paradas, como junto a fonte de Kalikoro, onde Deméter havia também se refrescado em seus nove dias de busca. Tudo era simbolizado, significado e reverenciado. O preparo às epopteias havia já iniciado e era mister levar a bom termo.

Sexto dia: Telete

Para a maioria dos antigos filósofos, a união do ser humano com Deus era o cume da sabedoria. A célebre noite do dia 20 do boedromion era dedicada às virtudes purificativas da alma que contempla a Inteligência. Era, pois, uma concentração em estados superiores de consciência, frutos dos jejuns e cerimoniais que precederam . Nesta noite, algo se mostrava aos neófitos, algo era dito e algo se consagrava. A bebida de cevada, mel e pólen estava preparada e, através dela, se revivia o sofrimento de Deméter, se chorava pela deusa e a catarse era purificadora. Teria havido alguma representação, alguma dramatização, mas tudo isso é hipotético. Os depoimentos de quem teria de longe visto alguma figura se movendo, algum tipo de “aparição milagrosa”, como que apresentando Perséfone de volta ao seio da Grande Mãe. Contudo, não foi dado a nenhum historiador, nenhum arqueólogo, nenhum narrador, desvendar o que, quem, como se dava a dramatização. Sabe-se, porém, que se dava.

Os Hiera

Os hiera eram os objetos sagrados, guardados em cestas especiais atadas com fitas vermelhas, que na noite do dia 20 seriam levadas custodiadas pelos hierofantidas até o Eleusinon de Atenas. Porém, Ada Albrecht discorda que os Hiera fossem apenas objetos, chamando a atenção para o simbolismo aí implicado: os ovos, como gênese da vida; a serpente e o lingam ou falo, pai da fecundidade e os grãos, da mesma forma, frutos da comunhão. Contudo, deve ter havido algo mais além do que o olho do misthes podia ver, como objeto cotidiano. “A metamorfose espiritual dos mysthai se operava em planos supraconscientes, onde os elementos materiais apenas se figuravam“, afirma a autora (op.cit., p. 107). Dependeria das capacidades perceptivas do iniciando ir além dos cinco elementos apresentados no fundo quer dos kalathos (canastas pequenas) quer dos cistes (canastas grandes).

Sétimo dia: Epopteia

Diz-se que a Filosofia é filha do assombro diante de questões como: de onde venho, quem sou, para onde vou…Um em um milhão consegue encontrar o caminho e a saída, como raros são os individuados, que atingiram o Mistério da união com o Si-Mesmo. Este sétimo dia era a oportunidade para que o mysthes encontrasse a si mesmo, fosse um com a Criança Divina. Em outras palavras, Epopteia era a vitória sobre o Ego, a total entrega ao contato com os deuses, Iachos, Deméter, Koré. Alguns fazem a elucubração de que Deméter adentrava o Telesterion onde copularia com Iachos. Outros fazem aproximações entre a trina divindade; Iachos, Deméter e Perséfone fariam seu encontro no Telesterion, frente aos iniciados. A simbologia é clara: os deuses se manifestam aos Mysthai, sendo Epopteia realmente a vinculação com as divindades, o reconhecimento de sagrado em si mesmo. Finalizava-se a cerimônia com as palavras “Pax, Konkx” (Basta, finalizado), ao que todos responderiam “amen“, uma espécie de reafirmação espiritual de que houvera participação.

Oitavo dia: Plemochoai

Grande significado encerravam os vasos (plemochoai) que continham certo líquido que era “derramado abundantemente” em direção a Leste e a Oeste – simbolizando nascimento e morte. Ao mesmo tempo, segundo Hipólito, era pronunciada a palavra hay-kie, (flui, derrama-te). Segundo Proclo, a primeira palavra era pronunciada em direção ao céu e a segunda em direção á terra, não se sabe ao certo se com isso simbolizavam a união pai-mãe, deuses-homens… Isto é tudo o que se sabe a respeito do oitavo dia.

Nono dia: Epistrofe

Não existem referências seguras sobre o retorno do deus Iachos a Atenas. Em grupos pequenos, regressavam os peregrinos a cidade mais central, encerrando assim o mês do boedromion, tão pleno de significação para o mundo grego da época. Eleusis voltava a velar-se em seus mistérios, enquanto despedia os visitantes, agora renascidos, levando consigo as experiências de vinculação com as divindades.

Marcel Detienne, em seu livro “Dionysos a céu aberto”, nos fala de um deus que é viajante, em sua barca amarela ou no dorso dos golfinhos, e por ser viajante, é um deus estranho aos lugares onde chega, estrangeiro que chega e parte, como em Eleusis, para onde é conduzida sua figura em procissão e de onde deverá partir ao décimo dia, após presidir os Mistérios. O autor fala também das homologias entre Dionysos e Deméter, referentes aos mistérios de Eleusis. Dionysos ***** como um deus “orthos” (correto), e que promove correção, transforma as bebidas ácidas anteriores aos seus cultos em vinho de sabor agradável e efeitos transcendentes; Deméter, que auxilia a correção da postura, pois preside aos que andam para baixo (deprimidos) a ficarem eretos e a olharem a vida de frente. Tais eram as devidas transformações e correções que ocorriam nos diferentes rituais, tanto a Iachos-Dionysos, quanto a Demeter-Perséfone, durante os nove dias iniciáticos do mês boedromion.

Ensaio de Conclusão

Obviamente, este é um tema que não se conclui. Servimo-nos de Robert Graves, em sua obra “Os dois nascimentos de Dionysos“, na qual ele ensaia uma aproximação do deus duas vezes nascido, único deus masculino a tomar parte nos mistérios de Eleusis – à deusa das colheitas Deméter, que espalhou ao mundo os segredos de plantar e colher trigo. O autor defende a hipótese de que o “soma” bebido pelos neófitos, nas iniciações eleusinas, era feito do mesmo fungo do original soma védico, afirmando, finalmente que “os deuses alimentam-se de fungos”. Da mesma forma como o grão de trigo desce as profundezas, num processo de transformação de morte-renascimento (simbolizando a mitologia da descida de Koré ao Hades e a sua volta aos braços da Grande Mãe) – assim também Dionysos preside aos ritos de morte e renascimento dos mysthai de Eleusis, sendo o ápice destes ritos a Epopteia devida a ingestão da mesma bebida que Deméter tomara num dos nove dias de busca da verdade sobre o desaparecimento de Perséfone.

Poder-se-ia estabelecer uma analogia com o processo de individuação, em suas etapas de separação (análise) e reunião (síntese), pelo encontro com o Si Mesmo. Jung estabeleceu relações com o processo alquímico “solve et coagula“, completando-se a obra pela Coniunctio, o hieros gamos, a mesma união com a divindade, fruto da Epopteia eleusina.

Finalmente, voltamos a citar Mircea Eliade, que afirma que “a transmutação ontológica do iniciado se verifica sobretudo na existência após a morte” (op. Cit. P. 192. (…) A Iniciação era, pois, a maneira de obter um status ontológico sobre-humano, mais ou menos divino e de assegurar-se a sobrevivência post-mortem, senão já a imortalidade” (idem ibidem).

Reza o Hino a Deméter: “Ditoso o homem que, vivendo na terra, viu tais coisas! Quem não conheceu as sagradas orgias e quem nelas tomou parte, não terão sobre a morte igual destino”. E Píndaro cantou: “Ditoso aquele que viu isto antes de baixar à terra. Conhece o termino da vida, conhece também o começo”. E Sófocles encerra: “Oh três vezes ditosos os mortais que, depois de contemplarem estes mistérios, partam a morada de Hades: somente eles poderão ali viver; para os demais, tudo será sofrimento”.

Questões Finais

* Seria apenas uma infeliz coincidência que, na Ilíada de Homero, um dos fragmentos do Hino a Deméter, justamente o que se refere aos ritos eleusinos, tenha sido perdido?

** Deméter deveria constelar os saberes da Grande Mãe das sociedades agrárias matriarcais no que se refere ao “hilótomo” (antídoto formado por ervas do bosque) – usado contra os funestos sortilégios do “hipotamno” (erva para beberagens mágicas)?

*** Deméter tem o mérito de haver legado ao Ocidente os saberes construídos pelas sociedades arcaicas. Não seria um reducionismo ingênuo considerar a deusa como vulnerável, motivada por uma necessidade de participar do mundo dos homens e por isso mesmo criando os Mistérios? A sua verdadeira motivação não teria sido justamente legar ao Ocidente Mistérios já conhecidos muito anteriormente? Sua necessidade básica não teria sido, então, recuperar o verdadeiro Dionysos?

**** Da mesma forma, Perséfone adquire status como peça chave no simbolismo dos “hiera” (objetos sagrados) contidos nas canastas e manipulados pelos iniciandos. A deusa filha representa os grãos que descem ao Hades (Morte) e renascem no tempo da colheita (Vida).

***** Finalmente, Dionysos, um deus redutivamente ligado a bacanais desenfreadas, a beberagens e desvarios; surge na constelação mitológica de Eleusis como o deus que promove correção no modo de vida do iniciando, transformando a acidez das bebidas em vinho suave, promotor também da Epopteia (iluminação). Analogamente, poderíamos citar o Cristo, quando diz: “O meu jugo é manso e o meu peso é leve”. E, para terminar, o Mistério da “trans-substanciação” da água em vinho (sangue do Cristo) e do trigo em pão (corpo de Cristo), na missa – um ritual legado pelos rituais mitraicos…

Autora: Terezinha M. Vargas Flores

Fonte: Revista Pensamento Biocênntrico

Referências Bibliográficas

ALBRECHT, Ada Dolores, Los Misterios de Eleusis. Buenos Aires: Editorial Hastinapura, 1994.DETIENNE, Marcel, Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.ELIADE, Mircea, Iniciaciones Misticas. Espanha: Taurus Ediciones S/A, 1986. GRAVES, Robert, Los Dos Nacimientos de Dioniso. Barcelona: Biblioteca Breve, 1984. JUNG, C. Gustav, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 2000.RUBY, Paulo, As Faces do Humano: estudos de tipologia junguiana e psicossomática, S.Paulo: Oficina de Textos, 1998.TORO, Rolando, Biodanza, S.Paulo: Ed. Olavobrás/EPB, 2002.

* Apresentado no Congresso da Associação Junguiana do Brasil, Belo Horizonte, 6~9 de setembro de 2000.

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Maçonaria e os Mistérios Antigos: Mitraísmo

A teoria de que a Maçonaria moderna é em certo sentido, descendente direta dos antigos Mistérios tem sido uma atração peculiar para os escritores maçônicos durante todo este tempo, e o final ainda não chegou, pois o mundo está repleto de homens que discutem sobre o assunto para cima e para baixo em infinitas páginas impressas. É um assunto sobre o qual é muito difícil escrever, de modo que quanto mais se aprende sobre ele, menos que se está inclinado a ventilar qualquer opinião própria. O assunto abrange tanto espaço e selvas tão emaranhadas que é muito provável que quase toda generalização esteja errada, ou seja inútil. Mesmo Gould, que geralmente é um dos mais sólidos e mais cuidadosos entre os generalistas, fica bastante confuso sobre o assunto.

Para os efeitos do presente trabalho, pareceu-me sensato dar atenção a um só dos mistérios, deixá-lo colocar-se como um tipo do restante, e eu escolhi para isso o MITRAÍSMO, um dos maiores e um dos mais interessantes, bem como um que possui muitos paralelismos com a Maçonaria quanto qualquer um dos outros.

I. Como Mitra chegou a ser um deus de primeira classe

Há muito tempo, no início das coisas, para que possamos aprender com o Avesta, Mitra era o jovem deus das luzes do céu que aparecia pouco antes do amanhecer, e permanecia após o sol se por. A ele foi atribuída o patronato das virtudes da verdade, que dá vida e força da juventude e alegria. Tais qualidades atraíram muitos devotos, aos cujos olhos Mitra cresceram mais a mais, até que finalmente ele se tornou um grande deus em seu próprio direito e quase igual ao próprio deus sol. “A juventude será servida”, ainda um jovem deus, e o Zoroastrismo, que começou dando a Mitra um lugar muito subalterno, finalmente veio a exaltá-lo à mão direita do terrível Ormuz, que se tinha arrolado todos os atributos de absolutamente todos os deuses.

Quando os persas conquistaram a Babilônia, que adorava as estrelas de uma forma mais profunda, Mitra colocou-se bem no centro dos cultos que adoravam estrelas e ganhou tanta força que, quando o Império Persa desmoronou e tudo se fundiu no mesmo pote, Mitra foi capaz de manter sua própria identidade, e emergiu da luta na cabeça de sua própria religião. Ele era um jovem deus cheio de vigor e transbordando de espírito, capaz de ensinar a seus seguidores as artes da vitória, e essas coisas apelavam poderosamente aos belicosos homens de tribos iranianas, que nunca deixaram de adorá-lo de uma forma ou outra, até que eles se tornaram tão profundamente convertidos séculos depois ao islamismo. Mesmo assim, eles não o abandonaram completamente, mas de acordo com a forma inevitável de os convertidos o reconstruírem em Alá e em Maomé, de modo que ainda hoje vai encontrar peças de Mitra espalhados aqui e ali em que os muçulmanos chamam sua teologia.

Após o colapso do Império Persa, a Frígia, onde tantas religiões foram fabricados em um momento ou outro, assumiu Mitra e construiu um culto sobre ele. Deram-lhe o seu barrete frígio, que sempre se vê em suas estátuas, e incorporaram em seus ritos o uso do terrível “taurobolium”, que era um batismo no sangue de um jovem e saudável touro. No decorrer do tempo, esta cerimônia sangrenta se tornou o centro e ápice do ritual de Mitra, e produzia uma profunda impressão sobre as hordas de escravos e homens pobres e ignorantes que se reuniam no mithreum, como eram chamadas as casas de culto mitraico.

Mitra nunca foi capaz de abrir caminho até a Grécia (o mesmo pode ser dito do Egito, onde a competição entre religiões era muito grande), mas aconteceu que ele pegou alguma coisa emprestada da arte grega. Algum desconhecido escultor grego, um dos gênios brilhantes de sua nação, fez uma estátua de Mitra, que serviu mais tarde como sempre a semelhança ortodoxa do deus, que era descrito como um jovem cheio de vitalidade, seu manto jogado para trás, um barrete frígio na sua cabeça, e matando um touro.

Deus Mitra

Por centenas de anos, esta estátua foi para todos os devotos Mitraístas o que o crucifixo agora é para os católicos romanos. Esta semelhança fez muito para abrir caminho para Mitra em direção ao ocidente, pois até essa imagem dele tinha sido terrível da maneira distorcida e repelente tão característica da escultura religiosa oriental. Os povos orientais, entre os quais nasceu Mitra, foram sempre capazes de grandeza sombria e terror religioso, mas de uma beleza que mal tinha tocado, ficou para os gregos recomendar Mitra aos homens de bom gosto.

Após as conquistas Macedônicas, assim se acredita, o culto de Mitra ficou cristalizado; que obteve sua teologia ortodoxa, seu sistema de igreja, sua filosofia, seus dramas e ritos, sua imagem do universo e do grande final catastrófico de todas as coisas um dia terrível de julgamento. Muitas coisas tinham sido construídas nele. Havia cerimônias emocionantes para as multidões; muito misticismo para os devotos; uma grande máquina de salvação para os tímidos; um programa de atividade militante para os homens de valor e uma ética sublime para as classes superiores. O mitraísmo teve uma história, tradições, livros sagrados, e um grande impulso a partir da adoração de milhões e milhões entre as tribos remotas e dispersas. Assim fornido e equipado, o jovem deus e sua religião estavam preparados para entrar no mundo mais complexo e sofisticado conhecido como Império Romano.

II. Como Mitra encontrou seu caminho até Roma

Quando Mitrídates Eupator – ele que odiava os romanos com uma virulência igual à de Aníbal, e que travou uma guerra contra eles três ou quatro vezes – foi totalmente destruído em 66 a.C, e seu reino de Pontus foi entregue aos cães, os fragmentos dispersos de seus exércitos se refugiaram entre os bandidos e piratas da Cilícia e levaram com eles a todos os lugares os ritos e as doutrinas do mitraísmo. Depois, os soldados da República de Tarso, que esses bandidos organizaram saíram saqueando e lutando por todo o Mediterrâneo, e levando com eles o culto a todos os lugares. Foi desta forma pouco promissora que Mitra fez sua entrada no mundo romano. As mais antigas de todas as inscrições foi feita por um liberto dos Flávios nessa época.

No decorrer do tempo, Mitra ganhou ao seu serviço um exército de missionários muito diferente e muito mais eficiente. Comerciantes sírios iam e voltavam por todo o mundo romano como lançadeiras em um tear, e levaram o novo culto com eles onde quer que fossem. Escravos e libertos tornaram-se viciados e apoiadores leais. Oficiais do governo, especialmente aqueles pertencentes às fileiras mais humildes, criavam altares a cada oportunidade. Mas, os maiores de todos os propagandistas foram os soldados dos diferentes exércitos romanos. Mitra, que se acreditava amar a visão de brilhantes espadas e bandeiras esvoaçantes, apelava aos soldados irresistivelmente, e eles, por sua vez, eram tão leais a ele quanto a qualquer comandante em campo. O tempo chegou quando quase todos os campos romanos possuíam seu mithreum.

Mitra começou bem em baixo, próximo ao chão, mas chegou a hora em que ele reuniu como seguidores os maiores homens sobre a terra. Antonino Pio, sogro de Marcus Aurelius erigiu um templo mitraico em Ostia, porto da cidade de Roma. Com exceção de Marco Aurélio e, eventualmente, um ou dois outros, todos os imperadores pagãos após Antoninus eram devotos do deus, especialmente Juliano, que era mais ou menos confuso e disposto a assumir qualquer coisa para evitar o crescente poder do cristianismo. Os Padres da Igreja primitiva apelidaram Juliano “O Apóstata”; o insulto não era totalmente justo porque o rapaz nunca tinha sido um cristão sob sua pele.

Por que todos esses grandes homens, junto com os filósofos e literatos que obedientemente seguiam o exemplo, assumiram a adoração de um deus estrangeiro, importado de entre os sírios odiados, quando havia tantos outros deuses lares fabricados tão à mão? Por que adotaram uma religião que tinha se tornado moda entre escravos e assassinos? A resposta é fácil de descobrir. Mitra era peculiarmente amante de governantes e dos poderosos da Terra. Seus sacerdotes declaravam que o próprio Deus estava à direita de imperadores, dentro e fora do trono. Foram esses sacerdotes que inventaram a boa e velha doutrina do direito divino dos reis. Quanto mais Mitra era adorado pelas massas, mais completo era o controle imperial dessas massas, pois era boa política de negócios para os imperadores dar a Mitra toda a assistência possível. Chegou um momento em que todo imperador era retratado por artistas com uma auréola acima da cabeça; este halo tinha originalmente pertencido a Mitra. Ela representava o esplendor excepcional do jovem e vigoroso sol. Após os imperadores romanos terem desaparecido, os papas e bispos da Igreja Católica Romana assumiram o costume; eles ainda têm o hábito de mostrar seus santos com auréolas.

O mitraísmo espalhou-se para cima e para baixo no mundo, com uma rapidez incrível. Todos ao longo da costa do norte da África e até mesmo no recesso do Saara; através das Colunas de Hércules até a Inglaterra e até a Escócia; através do canal até a Alemanha e os países do norte; e para baixo nas grandes terras ao longo do Danúbio, ele fez seu caminho em todos os lugares. Londres foi em algum momento um grande centro de seu culto. O maior número de mithreas foi construído na Alemanha. Ernest Renan disse uma vez que, se alguma vez o cristianismo tivesse sido cometido de uma doença fatal, o mitraísmo poderia muito facilmente ter-se tornado a religião oficial de todo o mundo ocidental. Os homens estariam hoje rezando para Mitra, e seus filhos seriam batizados em sangue de touro.

Não há aqui espaço para descrever de que maneira o culto tornou-se modificado por sua propagação bem-sucedida por todo o Império Romano. Ele foi modificado, é claro, e de muitas maneiras profundamente, e ele, por sua vez modificou tudo com que entrou em contato.

Aqui está um breve resumo da evolução deste Mistério. Tudo começou em uma época remota entre tribos primitivas iranianas. Ele pegou um corpo de doutrina dos adoradores de estrelas babilônicos, que criaram essa coisa estranha conhecida como astrologia. Ele se tornou um mistério, equipado com poderosos ritos, nos países da Ásia Menor. Ele recebeu uma aparência exterior decente nas mãos de artistas e filósofos gregos, e finalmente se tornou uma religião mundial entre os romanos. O mitraísmo atingiu o seu apogeu no século II; ele morreu no século IV e desapareceu totalmente no século V, exceto por pedaços de seus destroços recuperados e utilizados por algumas seitas novas, tais como diversas formas de Maniqueísmo.

III. A teoria mitraica das coisas

Depois de derrubar o seu odiado rival, a Igreja Cristã primitiva destruiu completamente tudo o que tinha a ver com o mitraísmo que havia sobrado, exceto alguns fragmentos que testemunham o que foi, uma vez uma religião vitoriosa. O pouco que é conhecido com precisão pode ser encontrado devidamente estabelecido e interpretado corretamente nas obras do erudito Dr. Franz Cumont, cujos livros sobre o assunto despertaram a ira da atual hierarquia católica romana que os colocou no Index e alertou os fiéis a se afastarem de seus capítulos da história. Hoje, como no tempo de Mitra, superstições e doutrinas vazias passam apertados quando confrontados com os fatos conhecidos.

O mitraísta piedoso acreditava que por trás do incrível esquema das coisas estava uma divindade grande e irreconhecível de nome Ormuz, e que Mitra era seu filho. Uma alma destinada a esta prisão da carne deixava a presença de Ormuz, descia pelas portas de Câncer, passava pelas esferas dos sete planetas e em cada um deles pegava alguma função ou faculdade para o uso na terra. Após o seu tempo aqui a alma estava preparada por sacramentos e disciplina para a sua reascensão após a morte. Em sua viagem de regresso ela passava por uma grande provação do julgamento perante Mitra. Deixando algo para trás em cada uma das esferas planetárias, ela finalmente, passava de volta através das portas de Capricórnio, até a união extática com a grande Fonte de tudo. Também havia um inferno eterno, e aqueles que tinham se provado infiéis a Mitra eram enviadas para lá. Incontáveis deuses e demônios e outros monstros invisíveis assolavam todos os lugares da terra tentando as almas e presidiam as torturas na cova. Através dele todos os planetas continuavam a exercer boa ou má influência sobre o ser humano, de acordo como seu destino tivesse a chance de cair do alto, uma coisa embutida no culto desde seus velhos tempos da Babilônia.

A vida de um mitraísta era entendida como uma longa batalha na qual, com a ajuda de Mitra, ele guerreava contra os princípios e poderes do mal. No início de sua vida de fé, ele era purificado pelo batismo, e através de todos os seus dias recebia a força através dos sacramentos e refeições sagradas. O domingo era reservado como dia santo, e em vinte e cinco de dezembro começava uma época de celebração jubilosa. Os sacerdotes mitraicos eram organizados em ordens, e eram consideradas como tendo um poder sobrenatural de alguma forma ou outra.

Acreditava-se que Mitra tinha vindo uma vez à Terra para organizar os fiéis no exército de Ormuz. Ele lutou com o Espírito de todo o mal em uma caverna, o mal assumindo a forma de um touro. Mitra superou seu adversário e então voltou ao seu lugar no alto, como o líder das forças da justiça, e o juiz de todos os mortos. Todas as cerimônias mitraicas centravam-se no episódio da matança do touro.

Os antigos Padres da Igreja viram tantos pontos de semelhança entre esse culto e do Cristianismo que muitos deles aceitaram a teoria de que o mitraísmo era uma religião falsa concebida por Satanás para desviar as almas. O tempo provou que eles estavam errados nisso, porque no fundo o mitraísmo era tão diferente do cristianismo quanto o dia é da noite.

IV. Em que o mitraísmo se parecia com a  maçonaria

Escritores maçônicos muitas vezes professaram ver muitos pontos de semelhança entre o mitraísmo e a Maçonaria. Albert Pike declarou certa vez que a Maçonaria moderna é a herdeira dos Antigos Mistérios. É uma afirmação com a qual eu nunca fui capaz de concordar. Há semelhanças entre a nossa Fraternidade e os antigos cultos de mistérios, mas a maioria deles é de natureza superficial, e têm a ver com a externalidades do rito ou organização, e não com o conteúdo interno. Quando Sir Samuel Dill descreveu o mitraísmo como “uma Maçonaria sagrada”, ele usou esse nome em um sentido muito solto.

No entanto, as semelhanças são muitas vezes surpreendentes. Somente homens eram admitidos como membros do culto. “Entre as centenas de inscrições que chegaram até nós, não se fala de uma sacerdotisa, ou de uma mulher iniciada, ou mesmo uma doadora”. Nisso o mithrea se diferenciava dos colégios, sendo que este último, embora quase nunca admitisse mulheres como membros, nunca hesitou em aceitar a ajuda ou o dinheiro delas. A participação no mitraísmo era tão democrática como é com a gente, talvez até mais; escravos eram livremente admitidos e, muitas vezes ocupavam cargos de confiança, como também faziam os libertos de quem havia uma multidão nos últimos séculos do império.

A associação era geralmente dividida em sete classes, cada qual com suas próprias cerimônias simbólicas adequadas. A iniciação era a experiência culminante de cada crente. Ele era vestido simbolicamente, fazia votos, passava por muitos batismos, e nos graus mais elevados comia refeições sagradas com seus companheiros. O grande acontecimento da experiência do iniciado era o taurobolium, já descrito. Era considerado muito eficaz, e supunha-se que unisse o adorador ao próprio Mitra. A representação dramática de um moribundo e um ressuscitado estava à frente de todas estas cerimônias. Uma laje mostrando em baixo relevo Mitra matando o touro ficava no fundo de cada mithreum.

Este mithreum, como local de reunião, ou loja como era chamado, tinha geralmente a forma de caverna, para representar a caverna na qual o deus tinha lutado. Havia bancadas ou prateleiras ao longo da parede, e sobre estas linhas laterais sentavam-se os membros.

Mithreum

Cada mithreum tinha seus próprios funcionários, seu presidente, conselheiros, comissões permanentes, tesoureiro e assim por diante, e havia graus superiores que garantiam privilégios para uns poucos. Caridade e Ajuda eram universalmente praticados e um Mitraísta chamava o outro de “irmão”. A “loja“ mitraica era mantida pequena, e novas lojas eram desenvolvidas como um resultado de “fracionamento”, quando o número de membros ficava muito grande.

O Maniqueísmo, como eu já disse, surgiu das cinzas do mitraísmo, e Santo Agostinho, que fez muito para dar forma à Igreja Católica Romana e à teologia, durante muitos anos foi uma ardente maniqueísta, alguém através de quem muitos traços do velho credo persa encontraram seu caminho até o cristianismo. Do Maniqueísmo, ou do que finalmente sobrou deles, surgiu o Paulicianismo, e do Paulicianismo vieram muitos cultos medievais fortes – os Patari, os valdenses, a Hugenotes, e inúmeros outros de tais desenvolvimentos. Através deles, diferentes ecos do antigo mitraísmo persistiram na Europa, e pode muito bem ser, como tem sido frequentemente alegado, que existam traços fracos do antigo culto a serem encontrados aqui e ali em nossas próprias cerimônias ou simbolismos. Tais teorias são necessariamente vagas e difíceis de provar, e mesmo assim a coisa não é de importância suficiente para se discutir. Se tivermos três ou quatro símbolos que se originaram no culto de Mitra, tanto melhor para Mitra!

Depois de tudo que foi dito e feito, os Mistérios Antigos estavam entre as melhores coisas desenvolvidas no mundo romano. Eles representavam igualdade em uma sociedade selvagemente aristocrática e cheia de classes; eles ofereceram centros de refúgio para os pobres e os desprezados entre um povo pouco dado à caridade e que não acreditava que um homem deve amar o seu próximo; e de uma grande histórica maneira eles nos deixaram os métodos de organização humana, ideais e princípios e as esperanças que ainda permanecem no mundo para nosso uso e proveito. Se um homem desejar fazê-lo, ele pode dizer que o que a Maçonaria é, entre nós, o que os Mistérios Antigos eram para as pessoas do mundo romano, mas seria uma coisa difícil para qualquer homem estabelecer o fato de que a Maçonaria descende diretamente daqueles grandes cultos.

Autor: H.L. Haywood
Tradução: José Filardo

Fonte: REVISTA BIBLIOT3CA

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Nota

Kipling, que nunca cansou de lidar com temas relacionados com a Maçonaria, muitas vezes escreve sobre o mitraísmo. Ver, em especial o seu Puck of Pook’s Hill, página 173 da edição de 1911, a comovente Canção para Mitra.

LIVROS CONSULTADOS NA PREPARAÇÃO DESTE ARTIGO

The Secret Tradition in Freemasonry, Vol. II, Waite. The Book of Acts, Expositor’s Bible. Mystery Religions and the New Testament, Sheldon. Roman Society from Nero to Marcus Aurelius, Sir Samuel Dill. The Works of Franz Cumont. Le Culte de Mitra, Gasquet. On Isis and Osiris, Plutarch. Life of Pompey, Plutarch. Annals, Tacitus. Corpus Inscriptionum Latinarum. Mythrasliturgie, Dielitch. De Corona, Tertullion. History of France, Vol. V, Vol. VI, Vol. VII, Duruy. Neoplatonism, Bigg. Roman Society in the Last Century of the Western Empire, Sir Samuel Dill. Menippus, Lucian. Thebaid, Statius. Ver a bibliografia em Hasting’s Encyclopedia of Religion and Ethics, Vol. VIII, p. 752. Ars Quatuor Coronatorum, Vol. III, p. 109; Vol. IV, p. 32; Vol. XIII, p. 90. The History of Freemasonry, Vol. I, Gould. THE BUILDER: Vol. 1, 1915. – Symbolism, The Hiramic Legend, and the Master’s Word, p. 285; Symbolism in Mythology, p. 296. Vol. II, 1916. – Masonry and the Mysteries, p. 19; The Mysteries of Mitra, p. 94; The Dionysiacs, p. 220; The Mitra Again, p. 254; The Ritual of Ancient Egypt, p. 285; The Dionysiaes, p. 287. Vol. III, 1917. – The SecreKey, p. 158; Mithraism, p. 252; Vol. IV, 1918. – The Ancient Mysteries, p. 223. Vol. V, 1919. – The Ancient Mysteries Again, p. 25; The Eleusinian Mysteries and Rites, pp. 143, 172; The Mystery of Masonry, p. 189; The Eleusinian Mysteries and Rites, pp. 218, 240. Vol. VI, 1920. – A Bird’s-Eye View of Masonic History, p. 236. Vol. VII, 1921. – Whence Came Freemasonry, p. 90; Books on the Mysteries of Isis, Mithras and Eleusis, p. 205. Vol. VIII, 1922. – A Mediating Theory, p. 318; Christianity and the Mystery Religions, p. 322.

REFERÊNCIAS SUPLEMENTARES

Mackey’s Encyclopedia-(Revised Edition): Allah, 46, Babylon, 89. Egyptian Mysteries, 232-233. Egyptian Priests, Initiations of the, 234. Gnostics, 300-301. Legend, 433. Manichaeans, 462. Mithras, Mysteries of, 485-487. Mohammed, 488. Mysteries, Ancient, 497-500. Mystery, 500. Myth, 501. Myth, Historical, 501. Mythical History, 501. Mythology, 501. Myth, Philosophical, 501. Ormuz, 539. Persia, 558 Pike, Albert, 563. Roman Colleges of Artificers, 630-634.

Os Mistérios de Elêusis

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Tudo que sabemos sobre os Mistérios de Ísis e Osíris nos foi legado pelos gregos, pois os sacerdotes egípcios jamais os desenvolveram na forma escrita, fazendo apenas raras referências em alguns papiros e na complicada simbologia dos rituais e hinos funerários que compõem o chamado Livro dos Mortos. Plutarco, que traduziu para o grego o drama de Osíris, helenizou o mito, comparando Ísis á Plutão e Osíris á Perséfone, os deuses gregos que representavam os poderes interiores da terra. Dessa forma, identificou os Mistérios Egípcios com as realidades da vida e da morte, dando-nos a ideia de que eles significavam realmente uma recapitulação simbólica desse processo. Os gregos, todavia, já praticavam, desde tempos imemoriais, algo semelhante aos Mistérios Egípcios. Esse ritual era praticado no santuário de Elêusis, próximo á cidade de Atenas.

Os Mistérios de Elêusis tinham como ponto central o psicodrama de Deméter, como era chamada entre os gregos a deusa da agricultura. Irmã de Zeus, Deméter tinha uma filha chamada Perséfone . Um dia Perséfone foi raptada por Hades, o deus dos infernos, que habitava no centro da terra. Deméter, então, amaldiçoou a terra, que tornou-se estéril e não produziu mais nada. Depois de muita luta ela finalmente conseguiu, com a intervenção de Zeus, que o soturno deus Hades libertasse Perséfone, mas com a condição de que esta passasse seis meses no céu e seis meses no inferno. Daí o porquê Perséfone simbolizar a semente que passa um tempo no seio da terra até frutificar.

Com base nesse mito, os gregos desenvolveram os Mistérios de Elêusis, que eram cerimônias iniciáticas nas quais se praticavam rituais destinados a despertar Perséfone, ou seja, a semente que foi enterrada e renascia, dando nova vida à terra. Esse mito tinha representações entre todos os povos de cultura grega. Entre os romanos, as festas dedicadas a Deméter, eram realizadas no mês de abril e se prolongavam durante uma semana. Nessas ocasiões os romanos de origem nobre e aqueles que se destacavam nas artes e nas ciências eram iniciados.

O culto a Deméter, embora de origem grega, tem clara inspiração nos Mistérios Egípcios. Deméter, no mito egípcio, é Ísis e Perséfone, no caso, é Osíris. Ambos os cultos tinham idêntica finalidade: despertar o poder regenerador da terra, para que ele executasse sobre a semente nela lançada, a mesma operação que os poderes de Ísis realizara sobre o corpo de Osíris.

E se isso podia ocorrer em relação á semente do cereal, também poderia ser aplicado ao ser humano, enquanto semente da vida espiritual cósmica. Porque o mesmo processo não poderia ser utilizado para promover a regeneração psíquica do homem? Dessa forma, o mito evoluiu da religião para a metafísica e acabou se tornando um dos mais representativos arquétipos da espiritualidade humana. Nem os cristãos, embora seus líderes condenassem violentamente essas práticas, não foram infensos à influência desses. Mistérios. Há quem sustente que a Paixão e Morte de Jesus Cristo nada mais é que uma encenação desses Mistérios.

Eis porque tanto os Antigos Mistérios egípcios quanto os Mistérios de Elêusis são constantemente invocados nos ritos maçônicos, pois ambos evocam a necessidade de uma morte e uma regeneração do iniciado, como condição essencial á sua passagem de um estado de consciência profana para uma consciência superior de iniciado.

Da mesma forma que seu congênere egípcio, os Mistérios de Elêusis eram divididos em duas etapas. Havia os Grandes e os Pequenos Mistérios. O primeiro era representado em março, correspondente ao equinócio de primavera, o segundo em setembro, correspondente ao equinócio de inverno. Representavam, conjuntamente, os ciclos da terra, em seus processos de morte e ressurreição, expressos nas estações do ano.

Nos Pequenos Mistérios o iniciando se preparava para receber os Grandes Mistérios. Nessa primeira parte do cerimonial ele era purificado, interrogado, fazia diversas promessas e juramentos, aprendia os sinais e passos do iniciado. Após jurar guardar estrito segredo sobre o que viu e ouviu, ele recebia o titulo de Mystos, que significava ser ele um “ iniciado”, porém ainda incapaz de contemplar a Grande Luz. Somente após o interstício de um ano estaria pronto para penetrar nos Grandes Mistérios.

Estes últimos perduravam nove dias e comportavam rituais que eram desenvolvidos dentro e fora do templo. Na última fase da cerimônia o iniciado se vestia com uma pele de carneiro, significando que ele seria o sacrificado, a “semente” sobre a qual a terra executaria o seu trabalho de regeneração.

A cerimônia de elevação do iniciado aos Grandes Mistérios é comparável a cerimônia de elevação ao grau de mestre na Maçonaria Simbólica, e muitos autores acreditam que a Lenda de Hiram foi diretamente adaptada dessa fonte. De qualquer forma, a instituição que existia por trás dessas práticas iniciáticas se assemelha bastante à Maçonaria. Não era qualquer pessoa que podia ser iniciada nos Mistérios de Elêusis. Somente homens de reconhecida idoneidade e excelente reputação eram cooptados para fazer parte do fechado círculo de iniciados.

A escolha e o processo de cooptação de recipiendários eram rigorosos, sendo patrocinada pelo próprio estado ateniense, tanto que a legislação que Sólon redigiu para Atenas continha punições para aqueles que transgredissem as regras de silêncio exigidas em relação aos rituais. Plutarco conta que até Alcebíades foi punido por ter violado tais regras. Fulcanelli diz que a revelação dos segredos dos Mistérios de Elêusis aos profanos era punida com a morte, e mesmo aqueles que os ouviam eram considerados criminosos.

A prática dos Mistérios de Elêusis era o que unia as grandes personalidades do povo grego. Alcebíades, o famoso general ateniense, bem como Sólon, o grande legislador, Demóstenes, o magnifico orador e a grande maioria dos filósofos eram iniciados. Sócrates, Pitágoras e Aristóteles confessaram a influência que receberam dessas práticas iniciáticas. Sófocles, o laureado poeta, dizia que “somente aqueles que contemplaram os Mistérios entrarão na posse da verdadeira vida”.

Nos Mistérios de Elêusis os iniciados aprendiam o verdadeiro significado dos mitos helênicos. Descobriam, finalmente, que tais mitos não eram apenas explicações fantásticas das origens e dos acontecimentos históricos relativos ao povo grego, mas sim alegorias que continham ensinamentos morais, históricos e psicológicos da mais profunda relevância. Era nesses mitos e lendas que estava hospedada a verdadeira sabedoria iniciática e somente “os eleitos” podiam adquiri-la. O próprio Platão, nos diálogos de Fédon, reconhece que “os homens que estabeleceram os Mistérios, eram iluminados” e “somente aqueles que fossem iniciados, morariam com os deuses”.

Não é, portanto, sem razão, a analogia que se faz entre a maçonaria, enquanto instituição, e os Mistérios de Elêusis. Não só em relação ao domínio do esotérico, presente em ambas as instituições, mas também pelo seu objetivo disciplinador, por assim dizer, elas podem ser consideradas como “escolas de treinamento espiritual”, onde a mente do homem é preparada para o exercício de uma consciência superior, que o capacite a exercer na sociedade um papel diferenciado. Graças a esses ‘treinamentos espirituais”, os gregos superaram as limitações geográficas de um território tão pobre em recursos naturais como era a Grécia, fundando um império comercial e cultural que inaugurou uma nova era na civilização humana.

Se a maçonaria, enquanto filosofia e prática de vida, fosse devidamente entendida pelos que nela se iniciam, e realmente levada á sério, certamente se poderia obter um resultado semelhante aos que os gregos conseguiram com a prática dos Mistérios de Elêusis, ou seja, uma plêiade de homens realmente virtuosos.

Note-se que o declínio da cultura grega, bem como da cultura egípcia, coincide com a popularização dessas cerimônias. Nesse sentido, é bom observar que nem sempre um aumento de quadros significa uma melhoria de qualidade. Aliás, no caso, o resultado é exatamente o contrário. A quantidade, geralmente faz declinar a qualidade. Se a Maçonaria quiser sobreviver como verdadeiro “centro de treinamento de conscientização superior”, seria interessante não esquecer o conselho de Jâmblico, o filósofo grego que deu características de ciência experimental à alquimia: ele disse que a popularização do conhecimento iniciático, ao invés de democratizá-lo, o abastarda. E que só verdadeiramente aptos para recebê-los devem ser iniciados. Não nos custa reconhecer que ele tinha razão.

Autor: João Anatalino

Texto extraído do livro Conhecendo a Arte Real

A lenda de Ísis e Osíris

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Era crença dos antigos egípcios, que a sua civilização lhes tinha sido transmitida diretamente pelo Deus Thoth, que viera a terra justamente para essa missão civilizadora. Ele lhes deu os rudimentos da civilização, ensinando-lhes a agricultura, a metalurgia e a organização social. Ele a ensinou a Osíris, o primeiro rei a governar em todas as terras do Egito, e este a propagou entre todos os povos do reino mantendo a harmonia e a paz no Egito até o dia em que foi assassinado por seu invejoso irmão Seth.

O Mito de Osíris e o drama da ressurreição desse deus, morto e esquartejado por Seth, seu invejoso irmão, é o conteúdo dos chamados Mistérios Egípcios, ou Mistérios de Ísis e Osíris. Na origem esses Mistérios eram tradições religiosas muito antigas, nas quais se celebrava o poder de regeneração concedida por esses deuses aos seus afiliados na terra. O conteúdo desses rituais nunca foi descrito na literatura egípcia e só se tornou conhecido no Ocidente através da narrativa feita por Plutarco, escritor grego do século V a.C., que escreveu um longo trabalho explicando o verdadeiro significado desse mito.

Em síntese, esse mito diz que Osíris era filho do deus Seb com a deusa Nut. Tornou-se rei do Egito, tendo ensinado para aquele povo todos os rudimentos da civilização. Teria sido também o introdutor do culto à deusa Maat, como forma de conservar o equilíbrio e a ordem no país dos egípcios, repetindo, dessa forma, o reino do céu na terra.

Tendo organizado o povo no vale do Nilo, partiu em peregrinação por toda a terra, para fazer o mesmo com outros povos. Na Babilônica ficou conhecido como Enlil, na Pérsia como Mitra, na Índia como Shiva, o civilizador. Enquanto peregrinava pelo mundo ensinando os povos os segredos da agricultura, da metalurgia, das artes e demais disciplinas que fazem uma civilização,  sua irmã e esposa Ísis ficou governando o Egito em seu lugar. Quando voltou, após implantar a civilização pelo resto do mundo, foi assassinado por seu irmão Seth, que escondeu seu corpo dentro de uma arca e o atirou ás águas do Rio Nilo.

Quando Ísis soube do ocorrido, partiu à procura do corpo encontrando-o, afinal, nas praias da cidade de Biblos, preso aos galhos de um tamarineiro. Todavia, o rei de Biblos, (esta não é a cidade fenícia onde foi inventado o termo Bíblia, mas um povoado egípcio que ficava numa das bocas do Nilo), havia cortado a referida árvore, para com ela sustentar o teto do seu palácio. Ísis, entretanto, conseguiu recuperar a arca com o corpo do marido e retornou ao Egito. Quando Seth soube que ela havia recuperado o corpo de Osíris, ele o roubou e cortou-o em quatorze partes, as quais enterrou em diversos lugares do país.

Ísis, ao tomar conhecimento da nova maldade de seu invejoso cunhado, saiu novamente à procura dos restos mortais do marido, e onde encontrava uma parte, sepultava-a com as devidas cerimônias, erguendo no lugar da tumba um templo em homenagem a Rá, o deus da luz. Tendo reunido todas as partes do corpo do rei assassinado, dando a cada uma delas sepultura de acordo com os rituais, foi possível a ela promover a sua regeneração. Osíris recomposto tornou-se um deus e foi feito governador da terra dos mortos, a Tuat.

Recomposto em espírito, Osíris instruiu Hórus, seu filho, a continuar a sua obra, combatendo Seth, o princípio do mal. Hórus,  à frente de um exército de “filhos da luz”, deu combate a Seth e o venceu. Osíris, morto para a vida, ressuscitou espiritualmente por força das cerimônias que Ísis prodigalizou aos seus restos mortais. Daí passou a simbolizar o dia que vence a noite, a luz que supera as trevas; Ísis é a terra, a mãe em cujo útero se processa a regeneração da semente morta.

Os sacerdotes egípcios usavam esse mito para cultuar o poder regenerador da terra. Pois assim como a semente lançada ao solo contém a vida que renascerá das trevas, também o homem que morresse e fosse sepultado de acordo com os ritos instituídos pelos deuses renasciam na terra, no corpo do seu sucessor, e nos Campos Elísios como ka (espírito) revigorado, capaz de viver eternamente. E o seu espírito, iluminado pela luz de Rá, incorporava-se ao Princípio Criador de todos os seres (Rá, o Sol radiante), tornando-se também um deus, cuja face brilhava para sempre, na forma de um astro no céu. Dai a ideia de que cada estrela no céu é representativa de uma alma que foi admitida no céu.

Os egípcios viam o corpo humano como um conjunto de potencialidades que não se esgotavam na vida terrestre, mas que se completava na existência do além-túmulo. Assim, aquele que obtivesse sucesso em viver de acordo com os princípios da Maat (A Justiça), adquiria os méritos para se tornar, ele também um Osíris, revivendo num mundo ideal. Eis porque o corpo humano não podia desaparecer com a morte, pois da sua conservação dependia a preservação de algumas das potencialidades que o defunto necessitaria para viver feliz na outra vida. Daí o desenvolvimento de técnicas de embalsamamento e conservação das múmias que até hoje desafiam a ciência moderna.

Nesses dias anteriores aos tempos históricos, os deuses eram tidos como Mestres da construção universal e os homens os seus aprendizes. O que os primeiros faziam no céu refletia sobre a terra, e o que os homens faziam na terra repercutia no céu. Por isso a responsabilidade recíproca na construção e no equilíbrio do edifício cósmico se dividia por igual entre homens e deuses.

Um dia esse equilíbrio foi rompido, por isso a desordem, a desarmonia, a injustiça, o mal, enfim, entraram no universo e nele se mantém. E nele se manterá até que nós restabeleçamos esse fluxo, tornando-nos justos e perfeitos novamente.

Autor: João Anatalino

Fonte: Recanto das Letras

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