Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Um Substrato Filosófico (Parte 5)

4. Fraternidade

A Fraternidade é o terceiro elemento da tríade “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Similarmente aos outros dois termos, a Fraternidade deve ser estudada sob um pano de fundo coeso que os coloque como elementos de uma concepção unificada. Na ordem de pensamentos que advogo, a Fraternidade é um termo inter homines, ou seja, entre os Homens, porquanto se refere ao modo pelo qual os indivíduos lidam, no âmbito de suas consciências e de suas existências no mundo, uns com os outros conforme suas predisposições intrínsecas. O campo de definição da tríade é a existência do espírito enquanto princípio separado da matéria. Dito isto, a Liberdade se refere a algo interno ao Homem, a Igualdade ao modo pelo qual o mundo se relaciona com o Homem e a Fraternidade ao modo como o Homem se relaciona com o Homem no mundo.

Fraternidade provém do Latim frater, que significa irmão. Subjaz-lhe, portanto, a ideia de que não há entre os indivíduos que dela comungam qualquer relação de hierarquia. A fraternidade é uma relação recíproca entre iguais, sendo que essa igualdade não é propriamente a Igualdade de que tratamos acima, pois esta se refere à forma de tratamento igual dos indivíduos perante as estruturas externas – ou seja, o mundo natural do qual o Homem faz parte e o mundo institucional criado pelo próprio Homem como cimento de sua vida em sociedade -, enquanto aquela refere-se, por outro lado, ao fato de que os indivíduos que se relacionam pela fraternidade são iguais enquanto mônadas, enquanto criaturas que, no concernente à Liberdade de consciência, não se distinguem.

Se a igualdade que sustenta a fraternidade fosse idêntica à Igualdade, segundo elemento da tríade maçônica, a Fraternidade seria somente um sinônimo da Igualdade e seria, portanto, um elemento redundante. Não é esse, porém, o caso. No conceito filosófico de compaixão já se substancia a ideia de que a Fraternidade e os sentimentos de simpatia entre os seres humanos se dão entre pessoas diferentes que se consideram iguais no sentido de reconhecimento mútuo da alteridade recíproca. A simpatia em geral e a compaixão em particular não pressupõem, tal como o contágio emotivo, a identidade emocional, ou seja, o padecimento da mesma dor. Com efeito, quando o indivíduo A se compadece do sofrimento de B, este sofrimento permanece, sob a perspectiva emotiva de A, somente o sofrimento de B, embora o indivíduo A, pela relação de compaixão, reconheça em B um outro que lhe é equivalente. Esse distanciamento do compadecente em relação ao sofrimento não é um distanciamento em relação à pessoa do compadecido, mas o reconhecimento da alteridade recíproca.

Para entender o que isso quer dizer, é suficiente compreender essa ideia pela sua negação. O algoz não mantém distância em relação à dor de sua vítima, pois essa dor lhe provoca uma reação emotiva de contentamento. O algoz mantém, na verdade, um distanciamento em relação à pessoa da vítima, não ao seu sofrimento. Assim, a crueldade do Homem contra o Homem é a violação da Fraternidade que deve reinar entre os seres. Logo, a simpatia e a compaixão são categorias morais que unem as pessoas pelo reconhecimento de que o outro é um igual nesse sentido específico.

Nas palavras de Scheler, “as vivências de compaixão e simpatia aderem sempre à vivência alheia já apreendida, compreendida” (SCHELER, 1943, p. 24). É um compreender sentindo o mesmo que o outro, mas não vivenciando-o. Scheler estabelece quatro categorias gradativas:

  • o imediato sentir algo com o outro, o sentir a mesma pena com o outro;
  • o simpatizar em algo, ou seja, o congratular-se pela alegria e o compadecer-se da dor;
  • o mero contágio afetivo e, finalmente,
  • a genuína identificação afetiva. Duas vítimas da mesma tragédia podem sentir a mesma dor uma da outra, mas não necessariamente terão uma pela outra qualquer simpatia ou compaixão.

O contágio afetivo se dá num nível sociobiológico, como quando, por exemplo, alguém que, entristecido, decide ir a lugares com gente alegre para contagiar-se da alegria. Mesmo neste caso não há necessidade de existir simpatia. O contágio afetivo se dá por reações cerebrais motivadas por situações específicas. A genuína identificação afetiva é o vivenciar o mesmo que o outro, por uma revivescência de experiências análogas que vêm à tona do fundo d’alma em reação à dor alheia e pode constituir-se mesmo numa doença psíquica. Já a simpatia implica a intenção de sentir a dor (no caso da compaixão) ou a alegria (no caso da congratulação) da vivência do outro. A compaixão dirige-se ao compadecido enquanto um sentir, não apenas em função de um juízo ou da constatação da dor alheia. Mas aqui, para o compadecente, por um ato de compreensão (pelo reconhecimento da alteridade recíproca), a dor do sofredor se apresenta, primeiramente, como a dor do, e somente do, sofredor, não do compadecente, para, em seguida, originar-se no compadecente o ato de compaixão dirigido ao comiserado. O padecimento do sofredor e o compadecimento do compadecedor são fenomenologicamente distintos, não um fato único.

Albert Pike (1872, cap. 11) captou muito bem o significado da compaixão no âmbito da atuação política e social do Maçom: “Acima de tudo não nos esqueçamos jamais de que a humanidade constitui uma só grande fraternidade, todos nascidos para enfrentar sofrimento e pesar e, por conseguinte, levados a simpatizar uns com os outros”.[17]

A Fraternidade maçônica é compreendida, portanto, sob esse mesmo enfoque de Scheler. Assim como a compaixão pressupõe o reconhecimento da alteridade recíproca, a Fraternidade maçônica faz o mesmo, com a diferença de que a prática do auxílio mútuo é um compromisso.

Voltando ao exemplo do algoz, este se coloca hierarquicamente acima da vítima enquanto criatura, não exerce para com ela a Fraternidade e, do ponto de vista da Igualdade de bem-estar garantida pelas instituições humanas, provoca uma desigualdade de tratamento e, por conseguinte, uma violação à Liberdade da vítima. A violação da Fraternidade também significa a violação da Liberdade de consciência. O que se depreende disto é que a negação de qualquer elemento da tríade implica a negação dos outros dois elementos. Em outras palavras, a tríade se sustém por si só e requer a validade dos três elementos para ser o que é.

A Fraternidade é, portanto, a manifestação maior do amor para com o próximo na mesma medida do amor para consigo mesmo. É a simpatia decorrente da consciência livre, do reconhecimento do outro como irmão.

5. Conclusão

O que procurei fazer neste ensaio foi justamente dar à Liberdade religiosa, política, econômica e civil o pilar sobre o qual se sustentar: o Espírito. O materialismo ainda domina a mente de muitos dos cientistas modernos, fato que apenas comprova que a Ciência não é imune às influências das limitações filosóficas daqueles que a constroem. Para o materialista, tudo na Natureza se explica por proposições empíricas e suas teorias são voltadas especificamente para a Natureza em suas manifestações materiais. Rejeitam que as manifestações do espírito humano também sejam naturais e tão merecedoras da dúvida científica e filosófica quanto a matéria e tratam a religião como um castelo pairando no vazio das nuvens, sem qualquer sustentáculo no mundo real. Esse monismo filosófico furta ao homem a oportunidade de ter, no que concerne à sua busca religiosa, a mesma segurança que tem na sua busca científica. Ao cientista o Maçom pode dizer que busque na Ciência as explicações sobre a Natureza em sua forma material, pois o objeto de sua pesquisa, a Matéria, é real, existe e é dada. Ao religioso ele pode igualmente dizer que busque na Religião as explicações sobre a Natureza em sua forma espiritual, pois esse objeto também existe, também é real e é igualmente dado. Se ao cientista não se lhe nega a liberdade de exercer a Ciência, então igualmente não se lhe deve negar ao religioso a liberdade de exercer a Religião. Para isso, ambos precisam da Liberdade de consciência, pois o Homem só é livre se se reconhecer como Espírito em sua essência e não como uma porção de matéria largada no mundo.

À luz dos mesmos fundamentos, procurei estudar o tema da Igualdade como uma continuação do tema da Liberdade, que são dois dentre os três pontos do lema maçônico Liberdade-Igualdade-Fraternidade. A concepção de Igualdade compatível com a de Liberdade não é a do senso comum, que é basicamente a igualdade quantitativa. As definições de igualdade nos diversos âmbitos (econômico, político, religioso etc.) baseei-as na ideia de igualdade nos âmbitos lógico e jurídico avançados por Leibniz e são essas as únicas compatíveis com a Liberdade do ponto de vista maçônico, pois desigualdades, nesse sentido, correspondem a violações da liberdade de consciência.

As ideias aqui avançadas podem ser resumidas na concepção segundo a qual a Liberdade é um termo in homine, a Igualdade é um termo in hominem e a Fraternidade é um termo inter homines. Portanto, a Liberdade é um termo que se refere a algo interno ao Homem, mais precisamente à sua liberdade de consciência enquanto espírito e unidade monádica. Já a Igualdade se refere à forma como as estruturas externas ao Homem lidam com os indivíduos.

Nas lutas evolutivas da Humanidade, a desigualdade, em suas manifestações sociais, econômicas, civis e religiosas, tem sido causa de imenso sofrimento. Infelizmente, a ideia de Igualdade também tem sido erroneamente concebida por alguns filósofos, principalmente no campo econômico. O trabalho que nos cabe, como Maçons, é promover a Igualdade nesses mais diversos campos, mas é preciso que tenhamos uma visão coerente desse princípio fundamental, não somente em si mesmo, mas em relação com outros dois princípios também fundamentais: a Liberdade e a Fraternidade.

O que parece ter sido não mais que um lema revolucionário contra os abusos dos sistemas monárquicos e da Igreja foi, na verdade, a expressão de uma filosofia muito mais profunda, infelizmente não muito clara nos ensinamentos da Ordem. Essa tríade decorre daquelas duas únicas condições essenciais da Maçonaria, a saber, a crença no Princípio criador e a crença na imortalidade da alma. Com efeito, somente a separação entre espírito e matéria pode ser consistente com esses princípios e é da base filosófica que a sustenta, que decorrem os vários ensinamentos ao longo dos graus. A Igualdade pela qual o Maçom deve lutar não pode jamais ser incompatível com a Liberdade pela qual também luta. Equilibrar esses dois anseios e enquadrá-los numa tela filosófica coesa é fundamental.

Tratei também da Fraternidade como o terceiro elemento da tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade. O princípio subjacente ao termo é também a da individualidade e da liberdade de consciência, porém com o reconhecimento da alteridade recíproca, o mesmo princípio do pensamento de Max Scheler sobre a compaixão. A Fraternidade, assim como a compaixão, não pressupõe que os indivíduos sejam iguais. Pelo contrário, admite que todos são desiguais, mas que essa desigualdade não é da mesma natureza da desigualdade enquanto negação da Igualdade definida como o segundo termo da tríade.

Essa tríade possui um fundamento coeso, o de que o espírito é um princípio distinto da matéria e que, por isso mesmo, implica que cada homem é uma mônada, senhor de sua própria consciência livre, em razão da Liberdade que o caracteriza, e que, na vida em sociedade, como construtor social, prega a Igualdade na forma como as instituições tratam os cidadãos e em relação aos quais possui o dever da Fraternidade.

No universo da sociedade e da vida civil, a Liberdade é o princípio que justifica a Democracia e a economia de livre mercado, a liberdade de imprensa e todas as liberdades civis pelas quais lutamos ainda hoje. A Igualdade é o elemento que justifica o trabalho que nos impomos para a construção de uma sociedade mais justa, que trate os cidadãos sem quaisquer preconceitos e reconhecendo suas diferenças. A Fraternidade, por fim, é aquele sentimento que, se bem consolidado na alma dos cidadãos, há de fazer com que todos possam usufruir da Liberdade e da Igualdade sem receio das vicissitudes naturais da Vida.

FINIS

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Notas

[17] – Above all things let us never forget that mankind constitutes one great brotherhood; all born to encounter suffering and sorrow, and therefore bound to sympathize with each other.

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou: São Paulo, 1982. AQUINO, Tomás de. De Substantiis Separatis: Sobre os Anjos. Rio de Janeiro: Editora Sétimo Selo, 2006. ARISTÓTELES: Metaphysica (τὰ μετὰ τὰ φυσικά). 2ª edición trilingüe revisada. Madrid: Editorial Gredos, 1998. BOEHNER, Philotheus; GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Editora Vozes: Petrópolis, 1985. BURNET, John. Early Greek Philosophy. London and Edinburgh: A. and C. Black, 1892. FESER, E. Scholastic Metaphysics: a Contemporary Introduction. Editiones Scholasticae, volume 39, Alemanha, 2014. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino, dois tomos. São Paulo: Editora Paulus, 2013. HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. 4ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. HOBBES, Thomas. Elementorum Philosophiae Sectio Prima: De Corpore. In: Thomae Hobbes Malmesburiensis Opera Philosophica quae Latine Scripsit. Replica facsimilar da edição de 1839 por Johann Bohn, London: Elibron Classics, 2006. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 76ª edição. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1995. LOWE, E. A Survey of Metaphysics. New York: Oxford University Press, 2002. MACKEY, Albert. Encyclopedia of Freemasonry and its Kindred Sciences. Philadelphia: McClure Publishing Co., 1927. MASLIN, Keith. Introdução à Filosofia da Mente. 2ª edição. São Paulo: Artmed, 2009. PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepeted Scottish Rite of Freemasonry. Prepared for the Supreme Council of the Thirty-Third Degree for the Southern Jurisdiction of the United States, and published by its authority, 1872. ROBINSON, Thomas. As Origens da Alma: os Gregos e o Conceito de Alma de Homero a Aristóteles. São Paulo: Anna Blume Editora, 2010. SCHELER, Max. Esencia y Formas de la Simpatía. Buenos Aires: Editorial Losada, 1943. SCOTUS, Duns. Ordinatio (Opus Oxoniense). Opera Omnia. Hildesheim: G Olms, 1968. WILLIAMS, Thomas (org.). Duns Scotus. São Paulo: Ed. Ideias & Letras, 2013.

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Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Um Substrato Filosófico (Parte 4)

3. Igualdade

Na seção anterior procurei mostrar que a concepção maçônica de Liberdade faz referência à liberdade de consciência e que o substrato filosófico para tanto é a aceitação que faz da realidade do Espírito. Pelo reconhecimento de que a Identidade de cada um determina um universo próprio e dentro do qual cada um exerce sua liberdade de consciência, a Maçonaria advoga a tolerância pelas posições religiosas e políticas. Nesta apresento minhas reflexões sobre o termo Igualdade na tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade, que deve ser estudado sob um pano de fundo coeso e que fundamente igualmente cada um desses conceitos e os coloque, ao fim, como elementos de uma concepção unificada. O enfoque que dou ao tema da Igualdade é uma continuação do enfoque que dei ao tema da Liberdade. Na seção 3.1 apresento uma definição de Igualdade abrangente o suficiente para incorporar sob seu manto as várias manifestações da Igualdade no campo social, civil, econômico, moral e religioso. Para cada um desses campos, mostro como a concepção geral de Igualdade, que tem sua origem em Leibniz, é condizente com a liberdade de consciência. Não haveria sentido em se falar de Igualdade sem se fazer a devida conexão com a Liberdade. Em vista dessa necessidade, apresento na seção 3.2 as razões pelas quais a ideia de Igualdade é intimamente ligada à de Liberdade.

3.1. Uma concepção geral de Igualdade

Se do ponto de vista dualista e tomando o indivíduo como uma mônada, no sentido que defendo, cada indivíduo é diferente e é em si mesmo um universo monádico, como tratar o tema da Igualdade? Se os seres humanos são diferentes entre si no sentido mais lato possível, então em que outro sentido eles se submetem ao princípio de Igualdade se o que os caracteriza tão essencialmente é a diferença? Esse aparente problema só pode ser resolvido após uma exposição precisa do que entendo por Igualdade.

A definição aristotélica de igualdade é metafísica e é dada em termos da categoria da quantidade. Com efeito, para Aristóteles, duas coisas são iguais quando têm a mesma quantidade. Não é preciso dizer o quanto essa definição é imprópria para o que pretendo aqui. Mais uma vez, é em Leibniz que encontro uma definição bem mais adequada. Para Leibniz, “dois termos são considerados iguais quando podem ser substituídos um pelo outro no mesmo contexto, sem que mude o valor do contexto” (apud ABBAGNANO, p. 534). Essa definição é geral o suficiente para englobar não apenas a igualdade no contexto lógico, tais como as relações de equivalência ou equipolência de proposições e termos, mas também para englobar a igualdade nos contextos moral, civil, econômico, religioso e político, que são justamente aqueles que pretendo enfatizar.

3.1.1. Igualdade jurídica

No contexto jurídico, existe igualdade entre os indivíduos relativamente à Lei se um indivíduo i1, sendo réu em um processo P, referente a um crime K cometido sob a circunstância C, puder ser substituído por qualquer outro indivíduo i2 que tenha cometido o mesmo crime K sob a mesma circunstância C sem que seja necessário que se altere o procedimento legal do processo P.

O que fundamenta essa definição é o fato de que o réu é julgado pela Lei não por ser o indivíduo que é, mas por ter cometido o crime que cometeu. Nesse sentido, todos os indivíduos são iguais perante a Lei. De fato, é óbvio que qualquer violação desse princípio só pode ocorrer se, e somente se, a Lei oferecer procedimentos legais distintos para dois indivíduos diferentes que, tendo cometido o mesmo crime sob a mesma circunstância, sejam réus em um processo idêntico. Se isso ocorrer, será porque os diferentes resultados dos julgamentos vieram à luz em razão da pessoa propriamente dita do réu, não em razão do crime cometido. A desigualdade jurídica, neste caso, está em tratar um indivíduo diferentemente apenas em razão de sua liberdade de ser quem ele, de fato, é.

A máxima “todos são iguais perante a Lei” expressa muito a maneira pela qual devemos definir a Igualdade, pois a igualdade jurídica é uma igualdade de tratamento, não a presunção de igualdade intrínseca das pessoas. Esse aspecto, o da igualdade de tratamento, é um aspecto importante e deverá aparecer em todos os contextos. Outro aspecto importante é a ideia de circunstância. Ela não diz respeito à noção comum de “circunstância de um crime”, ou seja, do conjunto de eventos nos quais o crime ocorreu. É, antes, um conceito muito mais geral, que engloba, inclusive, toda a história do indivíduo, além de eventos que nada têm a ver com o crime. Diz-se normalmente que a Justiça trata os desiguais de modo desigual, na justa medida de suas desigualdades. Esse princípio é equivalente à definição de igualdade jurídica exposta acima, pois ela nada mais é do que afirmar o mesmo, porém para o caso de circunstâncias distintas. Um pai desesperado que, no extremo do desespero, rouba um pedaço de carne do supermercado para dar de comer aos filhos, é julgado diferentemente daquele que comete o mesmo crime sem estar sujeito às mesmas premências da fome e do sofrimento paterno. Neste exemplo, a circunstância não é a mesma. Um militar e um civil, dependendo do caso, são julgados por tribunais diferentes. Também aqui a circunstância não é mesma. Logo, nada disso contradiz a definição acima. O importante é que, se as circunstâncias forem iguais, qualquer violação da igualdade implica uma violação da liberdade de consciência.

3.1.2. Igualdade moral

No contexto moral, existe igualdade se dois indivíduos distintos i1 e i2 que se encontrem sob a mesma circunstância C possuírem o mesmo conjunto de prerrogativas P para aplicação de seus critérios de judicação moral M. Em outras palavras, se as prerrogativas de ação que se concedem sob determinada circunstância são determinadas e aceitas socialmente não em razão do indivíduo a quem as prerrogativas são concedidas, mas em razão da circunstância propriamente dita. É nesse sentido que um indivíduo pode ser substituído por outro, nas mesmas circunstâncias, sem que, por isso, as prerrogativas concedidas sejam alteradas e ele ainda ter, por conta da prerrogativa concedida, o direito de judicar moralmente segundo sua liberdade de consciência. Seu julgamento não tem que ser igual ao do outro.

Note que essa definição incorpora tanto filosofias morais teleológicas (aquelas baseadas nos julgamentos dos fins a serem atingidos) como também as filosofias morais deontológicas (aquelas baseadas no valor intrínseco dos meios, independentemente dos fins)[15]. Com efeito, é o indivíduo que, pela sua liberdade de consciência, se pauta moralmente de acordo com princípios teleológicos ou deontológicos, mas, quaisquer que sejam esses princípios, as prerrogativas que lhe são dadas são as mesmas. Por exemplo, a prerrogativa moral que um indivíduo tem de se valer ou não da violência para defender sua família numa situação de evidente agressão externa e de ameaça extrema e iminente à segurança da família não pode ser diferente da prerrogativa moral de se valer ou não da violência concedida a outro indivíduo na mesma circunstância. A igualdade moral não diz respeito à forma ou critérios pelos quais os indivíduos julgam moralmente as prerrogativas disponíveis (usar ou não de violência, seja em razão de princípios morais teleológicos ou deontológicos), pois estas pertencem à esfera privada de sua consciência, mas sim ao fato de que a cada indivíduo são concedidas as mesmas prerrogativas morais, no âmbito das quais ele exerce a sua liberdade individual. Desigualdade neste caso significa que, sob circunstâncias iguais, a um indivíduo é concedida a prerrogativa de aplicar seu critério de judicação moral, mas a outro indivíduo não, impedindo-o, então, de exercer, sob circunstâncias iguais, a sua liberdade de consciência.

3.1.3. Igualdade religiosa

No contexto religioso, existe igualdade entre dois indivíduos i1 e i2 se, sob a mesma circunstância C, ambos possuem a mesma prerrogativa F de exercício da crença religiosa R. Dessa forma, a desigualdade religiosa ocorre quando um indivíduo pode exercer sua fé sob uma circunstância e outro indivíduo, sob a mesma circunstância, não pode, sofrendo um cerceamento à sua liberdade de crença.

Devo, porém, ressaltar um ponto importante relativamente a essa questão e que diz respeito a todos os contextos, não apenas ao religioso. Observe que a desigualdade sempre implica uma restrição à liberdade de consciência. Portanto, o escopo da igualdade é limitado pelo escopo da liberdade de consciência dos indivíduos. Porém, não falo aqui de qualquer tipo de igualdade nem de qualquer tipo de liberdade.

No contexto religioso essa observação torna-se ainda mais relevante, pois alguém poderia contra-argumentar alegando que a concepção de igualdade aqui defendida é inapropriada porque poderia permitir, com base no respeito à liberdade de consciência manifestada na crença religiosa, o exercício da crença religiosa e da fé de algum indivíduo para quem é preceito de fé a perseguição àqueles que têm outra fé ou religião. Em outras palavras, que a concepção geral de igualdade não imporia restrições a “guerras santas” e “cruzadas”.

Tal contra-argumento é falso. De fato, a resposta está justamente no fato supradito de que o escopo da igualdade é limitado pelo escopo da liberdade de consciência dos indivíduos. Se um preceito de fé de um indivíduo i1 recomenda a perseguição religiosa do indivíduo i2, então a liberdade de consciência de i2 é afetada negativamente pela liberdade de consciência de i1. Esse raciocínio deve ser recíproco, isto é, valer tanto para i1 relativamente a i2 como para i2 relativamente a i1. Logo, a perseguição religiosa não pode ser um preceito de fé ao qual a concepção geral de igualdade se aplicará, devendo, portanto, ser excluída.

3.1.4. Igualdade civil

No contexto civil, existe igualdade entre dois indivíduos i1 e i2 se, sob a mesma circunstância C, ambos possuem o mesmo conjunto D de direitos e deveres.

Um exemplo simples de desigualdade civil é quando um cidadão sob uma circunstância C, não pode manifestar publicamente sua opinião, enquanto outro, sob a mesma circunstância, pode. A única coisa que diferencia ditos cidadãos é a opinião relativamente ao escopo civil. Assim, a desigualdade civil se configura em um cerceamento à liberdade de opinião.

3.1.5. Igualdade econômica

No contexto econômico, existe igualdade entre dois indivíduos i1 e i2 se, de posse do mesmo conjunto R de recursos econômicos e humanos e mesmas condições de mercado M, ambos possuem o mesmo conjunto O de oportunidades econômicas para o atingimento de seus fins F.

A desigualdade econômica se dá quando, tendo os mesmos recursos materiais e humanos e procurando atingir o mesmo fim, sob as mesmas condições de mercado, dois agentes econômicos distintos têm oportunidades desiguais. Por exemplo, dois empresários igualmente capazes e detentores dos mesmos recursos materiais (iguais fatores de produção e mesma tecnologia), enfrentando os mesmos preços fatoriais [16] e mesma demanda em um mercado com a mesma estrutura, a um é concedida a oportunidade de ofertar e a outro não, seja por interferência do governo, seja por alguma imperfeição institucional que restrinja a ação de um e não a de outro.

A igualdade econômica é talvez o tipo de igualdade mais incompreendido de todos. A crença de que a igualdade econômica significa a mera repartição igualitária das riquezas é muito comum e, no entanto, é a que mais explicitamente viola a concepção geral de Igualdade que definimos, pois é incompatível com a Liberdade que se lhe associa. Esse ponto ficará mais claro na seção seguinte, quando for abordada a relação entre Igualdade e Liberdade.

3.2. Da Igualdade como irmã da Liberdade

Observe que em qualquer caso, a desigualdade só se dá mediante um cerceamento à liberdade que o indivíduo tem de ser quem ele efetivamente é. A desigualdade jurídica discrimina o indivíduo por ser quem ele é sob o ponto de vista da Lei; a desigualdade moral discrimina o indivíduo pelos princípios morais que adota; a desigualdade civil discrimina o indivíduo pela natureza de sua participação na sociedade enquanto cidadão; a desigualdade religiosa discrimina o indivíduo em razão de sua crença e de sua fé.

Dito de outra forma, no contexto que venho expondo, segundo o qual espírito e matéria são princípios separados do universo e em razão de cuja separação cada indivíduo, enquanto mônada espiritual, é único e diferente, a Igualdade é um conceito intimamente ligado à Liberdade.

Não são, porém, conceitos equivalentes, ou seja, embora um pressuponha o outro, a natureza da prevalência de cada um é distinta. A Liberdade de que falo é a liberdade de consciência, não a liberdade civil ou religiosa ou qualquer outro tipo de liberdade. De fato, estas últimas simplesmente decorrem do respeito àquela. Uma vez que se defenda a liberdade de consciência, a defesa das outras liberdades será mera consequência, pois elas são as esferas últimas de manifestação da mais fundamental das liberdades: a de consciência. Elas são os corpos com que a liberdade de consciência se materializa na vida social. A liberdade civil, política, econômica e religiosa são estruturas sociais que surgem especificamente para fazer valer a liberdade de consciência. A Liberdade, portanto, é um conceito que diz respeito única e exclusivamente ao indivíduo. Ela pertence ao indivíduo enquanto espírito em sua unidade monádica. Para criar um termo preciso, afirmo ser a Liberdade um conceito in homine, ou seja, que existe “no” Homem.

A Igualdade, por outro lado, é um conceito que denota o modo pelo qual as estruturas externas aos indivíduos lidam com os indivíduos propriamente ditos. Nesse sentido, é um conceito de-fora-para-dentro. Para usar um termo análogo ao criado para a Liberdade, posso dizer que a Igualdade é um termo in hominem, ou seja, que “se move em direção ao” Homem. Observe que esse conceito de Igualdade não pressupõe que os homens sejam iguais intrinsecamente, apenas que são tratados igualitariamente do ponto de vista das estruturas externas ao indivíduo.

Essas estruturas externas não se referem somente às estruturas sociais construídas pelo Homem, mas também à própria Natureza. A Natureza, em suas mais diversas manifestações, não faz distinção entre os indivíduos, todos são igualmente sujeitos a ela. Se uns são mais ou menos capazes de enfrentar as manifestações da Natureza, isso não se deve a uma discriminação natural, mas antes a uma característica ou habilidade específica do indivíduo. A igualdade jurídica diz respeito a uma estrutura externa (o sistema legal) criada pelo Homem cuja função precípua é a de tratar os indivíduos igualmente perante a Lei. A igualdade civil diz respeito a uma estrutura externa criada pelo Homem cuja função precípua é a de tratar os indivíduos igualmente em seus direitos e deveres de cidadãos. Exemplos de estruturas externas neste caso podem ser o sistema eleitoral, as normas implícitas e espontâneas de conduta na sociedade civil etc. A igualdade religiosa diz respeito a uma estrutura social externa criada pelo Homem cuja função precípua é a de tratar os indivíduos igualmente com respeito à crença e à fé. Não é preciso ilustrar mais. Creio que já sejam suficientes essas elucidações.

Retorno agora ao aspecto específico da Igualdade econômica. Recorde que defini igualdade econômica como a igualdade que existe entre dois indivíduos i1 e i2 que, de posse do mesmo conjunto R de recursos econômicos e humanos e sob as mesmas condições de mercado M, possuem o mesmo conjunto O de oportunidades econômicas para o atingimento de seus fins. A ideia de que a igualdade econômica se atinge pela repartição igualitária das riquezas é inconsistente com a concepção geral de Igualdade porque viola a liberdade que o agente econômico possui de escolher os meios e os fins econômicos para a satisfação de suas necessidades e desejos e pressupõe, contra a própria natureza idiossincrática das capacidades humanas, que todos são iguais enquanto indivíduos. A concepção geral de Igualdade, na verdade, não considera que os indivíduos sejam intrinsecamente iguais. Ela admite que os indivíduos são, por natureza, diferentes. A igualdade se dá na forma como as estruturas externas lidam com os indivíduos. A repartição igualitária das riquezas, ao contrário, negligencia as diferenças entre os indivíduos e os trata como intrinsecamente iguais, o que é uma absoluta violação da liberdade de consciência de cada um. O sistema comunista e suas formas amenizadas, que se apresentam sob as diversas facetas socialistas, viola não apenas a liberdade de ação econômica dos indivíduos enquanto consumidores e produtores de riqueza, mas viola também, e principalmente, a liberdade de consciência no sentido mais profundo. Ele nega ao indivíduo a liberdade de satisfazer suas necessidades e desejos econômicos da forma que melhor lhe aprouver. A base filosófica que sustenta o equívoco dessa doutrina é justamente a sua concepção materialista da História e sua negação do espírito enquanto princípio separado da matéria. Toda expressão do espírito humano é mero resultado das forças econômicas que movem a História e toda forma de espiritualidade é vista como instrumento de dominação econômica.

No sistema de mercado, diferentemente, a Igualdade, que se manifesta sob a forma de igualdade de oportunidades, não viola a Liberdade e é, portanto, compatível com a concepção geral de Igualdade. Se, na realidade do mundo, a igualdade de oportunidades não se observa de modo tão amplo quanto gostaríamos, isso se dá não pelas imperfeições naturais do sistema de mercado, mas pelas imperfeições das instituições humanas que deveriam, caso fossem mais bem desenhadas, garantir o bom funcionamento do sistema de mercado.

Não cabe aqui me embrenhar por esses meandros. Porém, deve ficar claro que, se a Igualdade é um anseio maçônico, então deve esse anseio ser filosoficamente fundamentado e ser compatível com outro anseio maçônico, a Liberdade.

A Fraternidade, seguindo a ordem de pensamentos que advogo, será um termo inter homines, ou seja, entre os Homens, referindo-se, assim, ao modo pelo qual os indivíduos lidam, no âmbitos de suas consciências e de suas existências no mundo, com os demais indivíduos segundo suas predisposições intrínsecas. Observe que, para esses três termos (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), o campo de definição é a existência do espírito enquanto princípio separado da matéria. A Liberdade se refere a algo interno ao Homem, a Igualdade ao modo pelo qual o mundo se relaciona com o Homem e a Fraternidade ao modo como o Homem se relaciona com outro Homem no mundo.

Continua…

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Notas

[15] – O exemplo clássico de filosofia moral teleológica – e talvez a única – é o Utilitarismo, cujos maiores expoentes são John Stuart Mill e Jeremy Bentham, embora haja vários outros que também se destacaram posteriormente. Já o exemplo mais exitoso de filosofia moral deontológica é a de Immanuel Kant e seu conceito de imperativo categórico.

[16] – Preços fatoriais são os preços dos fatores de produção, ou seja, dos insumos necessários para a produção de um bem ou de um conjunto de bens. Pesquisas Rio de Janeiro, entre outras.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Um Substrato Filosófico (Parte 3)

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2.2. A liberdade de consciência

É essa conclusão pelo dualismo que nos permite dar validade epistêmica à tarefa a que a Maçonaria se põe de encarar cientificamente a ideia religiosa. O Maçom deve agir, no campo das ideias, para que a Religião suplante seus dogmas mediante a Razão, a fim de libertar a Humanidade das amarras do dogma e do fanatismo que a enclausuram nas ficções de sua própria criação. Não digo que os dogmas, em si mesmos, sejam a prisão do Homem, mas que a aceitação irrefletida de dogmas, sem a ponderação racional de suas consequências e das bases morais e civis que os sustentam, somente abrem ao Homem as portas do fanatismo e da intolerância.

O Segundo Templo, na mítica maçônica, é consagrado à independência política dos povos e à independência religiosa do indivíduo. Para fundamentar sua no campo da luta pela liberdade civil e religiosa, é mister que essa fundamentação seja coesa. Sem adentrar nos meandros da taxonomia filosófica e sem levar o Maçom pelos labirintos da especulação ontológica, a Maçonaria transmite ao adepto exatamente esses ensinamentos necessários para a compreensão de que as naturezas material e espiritual são separadas e de que somente os seres racionais e os seres anímicos, em quem a inteligência jaz latente, possuem identidade, ao passo que a matéria é uma substância separada, mas que as coisas materiais em si mesmas não possuem identidade e que só as têm como construto mental nosso.

Daí a importância da liberdade civil e religiosa, pois elas, quando guiadas pela Mente instruída, significam a libertação do Homem em relação às coisas materiais enquanto coisas e dão a ele o rumo de seu autoconhecimento. Sem a fundamentação filosófica que retribua à espiritualidade do Homem o seu caráter de realidade e, portanto, que a torne passível de ser objeto da investigação racional, a Maçonaria não tem como tratar adequadamente a ideia religiosa.

Decorrem desse raciocínio algumas consequências morais. A principal delas é a inutilidade de atribuição de valor às coisas materiais enquanto coisas em si – e não enquanto meios cujo fim seja espiritual. O apego à coisa material qua res é uma ilusão que aprisiona o Homem nos fantasmas de sua própria criação mental. Já o desapego permite ao Homem o uso das coisas materiais enquanto meios para se atingir um fim. E esse fim não pode ser material, deve ser espiritual. Por exemplo, se eu uso ferramentas e outros materiais pra construir uma casa, o fim não deve ser tanto o de abrigar a mim e a minha família, mas sim o de prover um locus seguro para a convivência familiar, que é a instância mais básica na qual cada ser se desenvolve espiritualmente. Seu eu consumo alimentos, não devo fazê-lo com o fim precípuo e único de me alimentar, mas com o fim de me alimentar para que eu possa existir na matéria (no corpo) enquanto espírito, não enquanto corpo. Em outras palavras, o fim deve ser sempre espiritual para que o Homem seja verdadeiramente livre, no sentido de não ser escravo de si mesmo.

As religiões, pelo menos em princípio, têm exatamente aí o seu campo de ação. Esse campo é real e, portanto, as religiões não são, por necessidade, o ópio do povo ou um instrumento de dominação. Só o são quando as suas instituições são tomadas por aqueles homens que, ainda ignorantes, por colocarem nas vaidades pessoais os seus maiores objetivos, subjugam os outros homens, que, também ignorantes, não lhes rendem oposição. Toda religião, portanto, é válida em termos epistêmicos. Se defendemos a liberdade de investigação da natureza material, devemos, da mesma forma, defender a liberdade de investigação da natureza moral do Homem, a qual se pode dar de diversos modos, seja pela Filosofia, seja pela Religião.

A liberdade civil é uma instância na qual o indivíduo, enquanto espírito, exerce a sua liberdade de consciência na sua relação com todos os outros indivíduos. Essa liberdade deve ser instruída, no sentido de ser fundada na compreensão individual, pela Razão, de que os demais indivíduos são exatamente espíritos que se relacionam similarmente.

Se se negar ao Espírito essa realidade, a Liberdade perde toda sua fundamentação. De fato, se tudo é matéria, se a consciência do Eu nada mais é que uma série complexa de sinapses nervosas e atividades elétricas neuronais, se o estado psíquico do indivíduo é o mero resultado de uma sequência fortuita de eventos históricos, se o estado social nada mais é que a síntese infeliz de estruturas econômicas de produção e de intercâmbio, então de que serve a Liberdade, se ela afinal não dirá respeito a algo real, mas apenas a uma tentativa frágil de equilibrar o sofrimento humano dentro de níveis toleráveis, quando, tristemente, a única realidade é a matéria? Aí sim a Religião será equivocadamente compreendida como instrumento de dominação, porquanto as suas promessas de alívio moral serão promessas vazias, dirigidas a uma substância inexistente. Mesmo que se admita ser o indivíduo a junção corpo-alma, mesmo assim perderão o sentido as promessas de felicidade após a morte do corpo, pois, se não há mais corpo e se a Identidade do indivíduo, sua substância, só se concebe dessa maneira, a substância não mais existirá após a morte do corpo. Se a Maçonaria admite a vida futura, não há como negar a realidade do Espírito. Cabe relembrar que não pretendo aqui provar o dualismo filosófico, mas apenas argumentar que é o dualismo a única posição filosófica compatível com os princípios maçônicos mais elementares. A Liberdade de Consciência, fundamentada na especulação filosófica maçônica e de modo tal a assegurar-lhe um campo de atuação real, se manifesta primordialmente nas liberdades civis do regime democrático e na liberdade religiosa sob um ambiente de tolerância.

2.3. Da possibilidade de uma Ciência da Religião

Nesta seção apresento uma classificação dos objetos naturais de investigação racional de acordo com a visão dualista do universo. Nessa classificação, as preocupações do Homem com a espiritualidade, a transcendentalidade, a relação com Deus, a soteriologia e a hermenêutica do sofrimento humano, as quais, no conjunto de suas sistematizações na História, podemos caracterizar como as religiões, têm lugar no campo das ciências legítimas. Em outras palavras, a Religião é uma área legítima de estudos, pois seus objetos de investigação têm significado real.

O Universo é composto, portanto, de duas substâncias primordiais independentes e separadas, necessariamente atuantes uma sobre a outra, a saber: a substância material e a substância espiritual. Acima dessas duas substâncias primordiais está Deus.[8]

A substância material é única e simples e é o elemento comum formador de todas as substâncias mais complexas nos diversos graus de manifestação da matéria no Universo, uma das quais é a manifestação perceptível pelos nossos sentidos e pelo nosso intelecto e que compreende a parcela do Universo que nos é permitida conhecer. Já a substância espiritual primordial é a substância do princípio anímico, presente em todos os seres e que também se manifesta dentro de um espectro contínuo de intensidade e amplitude, desde a mais absoluta latência, como nos minerais, passando pela sensação desprovida de percepção, como nos vegetais, pela sensação e percepção com eventuais lampejos de inteligência, como nos animais, até o espírito humano racional.[9]

O princípio anímico precisa da matéria para se desenvolver. Como essas duas substâncias são separadas, deve haver uma substância intermediária entre espírito e matéria, a qual se costuma chamar de fluido universal, e que, na filosofia maçônica, tomando o termo emprestado à filosofia grega pré-socrática, é denominada a quintessência[10] ou éter. Por ser um fluido, a quintessência é passível de determinação pela ação do espírito. A matéria, sem a ação inteligente do espírito intermediada pela quintessência, constitui-se no caos primordial, é a díada indeterminada dos ensinamentos pitagóricos, simbolizada, na Maçonaria, pelo binário. A figura a seguir ilustra as mônadas imersas na matéria. Classifiquei, como Aristóteles, os seres vivos em almas vegetal, animal e racional, mas acrescentei a mineral, que, embora não apresente fluido vital, tem-no em estado latente.

Portanto, Natureza[11] é o conjunto harmonioso de seres inorgânicos e orgânicos animados por um princípio inteligente por intermédio de uma substância quintessencial, animação que concorre para um processo contínuo de geração e corrupção, de nascimento e morte, em suma, transformação dos seres.

Os mistérios da Natureza compreendem, portanto, os mistérios da matéria e os mistérios da relação entre espírito e matéria. O imenso trabalho intelectual que resultou na ciência moderna é apenas o fruto do inato desejo humano de desvendar os mistérios da Natureza. Ao conjunto das ciências que têm por objeto a matéria enquanto fenômeno inteligível, como, por exemplo, a Física, a Química, a Geologia e, em particular, a Astronomia, chamo ciências hílicas.[12]

Assim como a matéria é formada a partir de um elemento material primordial, assim também o espírito é a individualização do elemento inteligente primordial. Os sistemas filosóficos e as religiões que brotaram em todas as épocas e lugares do planeta são, dessa forma, e analogamente às ciências hílicas, o fruto do inato desejo humano de desvendar os mistérios da substância espiritual e  podemos denominá-los ciências monádicas. Nelas incluo a Filosofia e a Religião, a qual podemos agora denominar de Ciência das Religiões. Essas estruturas do pensamento humano têm por fim a compreensão da substância essencialmente espiritual do Universo.

Às ciências que tratam dos fenômenos associados primordialmente à existência humana, às conexões entre os homens mediante a influência da parcela quintessencial de sua substância, chamo de ciências psíquicas, nas quais incluo a Psicologia propriamente dita, a Sociologia, a Economia, a História e até mesmo a Linguística.

Essa divisão, embora não seja usual, é, no entanto, compatível com a Filosofia Maçônica da natureza tríplice dos seres no Universo: Espírito, Matéria e relação Espírito-Matéria. Cada Ciência não precisa restringir-se a apenas uma dessas categorias. Até nos cristais podemos pressupor, possivelmente em seu estado mais primevo, a atuação de um princípio anímico, em razão da forma geométrica de organização de seus elementos. Assim, embora seu objeto seja a Matéria, há em seu objeto uma ψυχή incipiente. Na Biologia, o caráter psíquico, no sentido aristotélico, é bem mais forte do que o hílico. No outro lado do espectro, temos a Matemática. A Matemática é um conjunto de descrições de relações lógicas entre as partes de uma estrutura. O espírito humano, devido ao seu cará- ter racional capta a estrutura subjacente ao objeto. Por esse aspecto, ela é monádica, pois construtos matemáticos são construtos eminentemente abstratos da mente humana. Por outro lado, as estruturas matemáticas têm sua origem na experiência do homem no mundo e, por conseguinte, participam da natureza hílica e psíquica das coisas.[13]

A Religião pode, portanto, ser tida como uma área legítima de investigação intelectual, porquanto devotada ao princípio espiritual do Universo. Se há leis poderosas que regem o mundo visível, há também as que regem o invisível. A Liberdade de consciência, que engloba em seu seio a liberdade da ciência e a liberdade da religião, é o substrato para a descoberta desses dois lados de nosso mundo.

Continua…

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Notas

[8] – Vide, e.g., o capítulo II de O Livro dos Espíritos (Allan Kardec), particularmente a questão 27.

[9] – Aristóteles classificou três tipos de almas: vegetativa, sensitiva e racional. Por alma vegetativa podemos entender o princípio anímico dos vegetais, por alma sensitiva, o dos animais e, por racional o do Homem. Para mais sobre isso, vide Gardeil (2013), Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino, tomo I (Psicologia, Metafísica), pp.42-44.

[10] – No que respeita ao conceito de quintessência na Alquimia, podemos nos basear no que diz Paracelso, em De Misteriis Naturalibus, I, 4. Na quintessência estão ocultos os arcanos ou forças operantes de um mineral ou de uma planta. Essas forças são operadas pela Medicina para proporcionar curas (ABBAGNANO, 1982, p. 787-788).

[11] – Existem três concepções filosóficas de Natureza: a aristotélica, a estóica e a plotiniana. A definição mais antiga e mais aceita de Natureza ou φύσις (phýsis) é a aristotélica, segundo a qual a Natureza é o princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes. Aristóteles, em Metaphysica, Δ, 4, expõe várias definições equivalentes de Natureza, mas a primeira é, a meu ver, a mais sintética: “Chama-se Natureza, em um modo, a geração das coisas que crescem, como se se pronunciasse o y estendendo-o” (φύσις λέγεται ἕνα μὲν τρόπον ἡ τῶν φυομένων γένεσις, οἷον εἴ τις ἐπεκτείνας λέγοι τὸ υ). Aqui, ἐπεκτείνας está na terceira pessoa do singular do particípio aoristo ativo do verbo ἐπεκτείνω, tendo havido oclusão do σ, por estar precedido de ν: ἐπεκτείν-σ-ας > ἐπεκτείνας. O y refere-se ao y alongado da palavra φύσις (phýsis). O alongamento simboliza o crescimento, o devir, a perpetuação do movimento, da criação. A segunda definição mais importante é a concepção estóica de que a Natureza é a ordem e a necessidade das coisas, concepção segundo a qual cabe à Natureza presidir à regularidade e à ordem do devir. Já a concepção plotiniana é radicalmente diferente, pois, para Plotino, a Natureza é uma manifestação inferior do Espírito, ou seja, matéria e espírito não são substâncias separadas, diferem apenas em grau [Abbagnano (1982), pp. 669-672]. Não preciso dizer por que discordo absolutamente desta concepção e, ademais, considero as duas primeiras como duas faces de uma só concepção. Com efeito, o princípio de vida e de movimento de todas as coisas é a ação do espírito sobre a matéria, a finalização do ato evidenciando assim a enteléquia. Por ter sua origem no princípio inteligente, o cosmo é necessariamente ordenado, de modo que considero a concepção estóica como uma leitura moral da concepção aristotélica

[12] – De ὑλικός (hylikós), material, relativo à matéria, ὕλη (hýlē).

[13] – Por exemplo, as estruturas algébricas são essencialmente estruturas relacionais e as estruturas topológicas são estruturas espaciais. Já os sistemas dinâmicos são estruturas espaço-temporais.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Um Substrato Filosófico (Parte 2)

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2.1.2. Da referência da Identidade

A insatisfação dos filósofos modernos em relação aos problemas da identidade e da mudança exemplificados pelo paradoxo da nave de Teseu tem sua causa, segundo penso, no uso inadequado da ideia de identidade aos entes materiais. O problema da mudança não é resolvido se retomarmos a primitiva concepção de identidade estabelecida por Aristóteles: a de que a identidade nada mais é do que uma unidade de substância, pois, para Aristóteles, a substância depende da matéria: ela é o princípio da individuação[6]. A concepção aristotélica não pode ser solução definitiva, pois, a meu ver, existe uma diferença fundamental no uso do termo substância e, portanto, da identidade, quando nos referimos à nave de Teseu – ou a qualquer ente material – e quando nos referimos a um ser racional ou ao ser dotado de um princípio anímico.

Existem três concepções distintas de Identidade: a de Aristóteles, a de Leibniz e a de Weissmann (ABBAGNANO, 1982, p.503-504). Para Aristóteles, a Identidade é uma unidade de substância. Para Leibniz, duas coisas são idênticas se uma puder ser substituída pela outra em qualquer proposição sem alteração de seu valor-verdade[7]. Para Weissmann, a Identidade é uma convenção.

Quando falamos da substância da nave de Teseu, essa substância é uma convenção, como argumentarei em seguida, pois ela é dada por aquele que define ex ante a ideia da nave de Teseu. Assim, a Identidade da nave de Teseu é uma convenção. O problema de Weissmann foi pressupor que sua definição de Identidade seria aplicável a qualquer ente. A natureza convencional da substância só se aplica às coisas materiais.

O mesmo já não ocorre quando um ser racional particular cogita de sua identidade. O Homem tem a percepção da permanência do Eu e é a isso que permanece que damos o nome de substância. Entretanto, muitos filósofos questionam essa posição com o argumento de que a percepção do Eu se dá mediante uma série de juízos emitidos acerca de si mesmo e de tal modo que esses juízos apenas qualificam certos aspectos do Eu que são percebidos pela consciência da própria experiência existencial. Em outras palavras, a identidade jamais é inteligida num sentido pleno, sequer pelo próprio indivíduo.

Concordo com isso, porém contra-argumento que a identidade é uma abstração mental de natureza análoga à abstração que se faz da noção de limite de uma sequência numérica no Cálculo. O limite de uma sequência convergente é definido em termos de aproximações sucessivas. Por exemplo, podemos conceber a ideia de número racional mediante uma razão entre dois números inteiros, que naturalmente podem ser medidos por qualquer escala que pensemos, uma vez que, estabelecida a unidade de mensuração, só o que teremos de fazer em seguida é contar quantas unidades sejam necessárias para o numerador e para o denominador. Já para o número irracional isso não é possível. A aceitação da existência do número irracional só se tornou possível porque admitimos sua existência pela aceitação da ideia de aproximações sucessivas por números racionais.

O mesmo se dá com a identidade, de modo análogo. Em qualquer auto definição de sua Identidade, o indivíduo sempre fará menção a um atributo qualitativo, o qual claramente é sujeito aos problemas de identidade e mudança a que vimos nos referindo. Jamais, porém, alcançar a intelecção do que seja sua identidade. A intelecção da substância e, portanto, da Identidade, só se concebe como o limite (inalcançável) de um processo de introspecção infinito e é, por conseguinte, uma abstração do ponto de vista da Razão. Essa posição frente ao problema metafísico da Identidade e da Mudança não sofre dos paradoxos que assolam as posições tradicionais. De fato, se trocarmos a nave de Teseu por uma pessoa, as partes que mudam podem ser de duas naturezas: ou uma parte material ou uma qualidade. Em outras palavras, ou uma mudança quantitativa (corporal) ou uma mudança qualitativa. É neste ponto precisamente que me afasto de Aristóteles. Para Aristóteles, a forma substancial do Homem é o conjunto ψυχή-σῶμα (psyché-sōma), alma-corpo, sendo que a ψυχή é o princípio vital que anima a vida, não a alma do Homem propriamente dita.

Para mim, a identidade não é a unidade de substância, que requer o conjunto alma-corpo, mas aquilo que subsiste no Espírito independentemente da matéria, do corpo ou mesmo de suas qualidades obtidas nas suas experiências existenciais. A identidade do Homem se dá em sua espiritualidade, no sentido de ser aquela fagulha divina que faz o Homem ser o que verdadeiramente é: Espírito. A intelecção da substância, entretanto, não se dá de forma definicional, o que em si já seria uma convenção, mas por uma intuição a priori da consciência do Eu e cujo sentido jamais é apreendido absoluta e instantaneamente, mas apenas de modo aproximado. Se eu tentar determinar a minha identidade, ou seja, se eu tentar determinar o que é aquilo que eu julgo me identificar, é impossível proceder a essa introspecção sem o auxílio de uma série de proposições predicativas. Deverei necessariamente dizer de mim mesmo coisas como “Eu sou X”, em que X é qualquer predicativo. Esse predicativo é uma qualidade, uma característica, e certamente pode ser concebido como tendo validade em um tempo t. O problema, do meu ponto de vista, é que o predicativo X não é, na verdade, parte de minha identidade, como uma tábua é parte da nave de Teseu. É meramente uma tentativa de aproximação. Por essa série de proposições predicativas, tenho uma consciência de ser uma Identidade, embora não consiga determiná-la precisamente, pois, assim que tento determiná-la, necessariamente tenho que fazê-lo mediante a atribuição de um predicativo sujeito à Mudança. Não poderia ser de outro modo, pois toda proposição é racional, isto é, pertence a um mundo que parte de um alfabeto finito e com um número finito de regras sintáticas, com a complicação adicional de que cada termo é passível de infinitas conotações que transcendem sua denotação inicial, uma polissemia infinita cujos significados não são apenas convencionados, mas podem ser também idiossincráticos. Assim, a intelecção da identidade é o limite de uma introspecção, é uma concepção admitida como real por aproximações, é uma abstração mental cuja referência é uma certeza íntima de ser. O uso da linguagem não se presta a essa intelecção. Se alguém me pergunta “Quem és?”, o que posso responder? Posso dizer “Sou o Fulano”, mas então vem a pergunta “Quem é Fulano?”. Diria então “Sou tal coisa, tenho aquela profissão, sou pai Sicrano, filho de Beltrano”, mas todos esses atributos não me definem. A teoria da continuidade psicológica de Locke, da qual falarei mais adiante, diz que toda essa sequência de fatos dos quais me lembro perfazem a minha Identidade, mas eu digo que não. A pergunta “Quem sou” não tem resposta racional. Quando o Homem diz quem é, na tentativa de determinar sua identidade, ele não consegue senão listar um número finito de proposições predicativas e orná-las com algum relato histórico de suas experiências, o que definitivamente não é uma resposta adequada à pergunta. Além disso, ele sente o incômodo de saber não estar respondendo apropriadamente a ela. Esse é um exercício mental que qualquer um pode fazer e, quaisquer que sejam as circunstâncias, o incômodo virá. Entretanto, mesmo sabendo não poder determinar quem é, o Homem sabe que é um indivíduo. Ao dizer “Eu sou”, a certeza íntima dessa verdade o livra de qualquer incômodo. Voltando ao argumento, se trocarmos a nave de Teseu por uma pessoa, todo o paradoxo se torna inaplicável exatamente porque as partes ou serão do corpo ou serão as qualidades, mas essas partes não definem a identidade e, por conseguinte, são irrelevantes para o problema da Identidade e da Mudança. A determinação predicativo-proposicional da Identidade é um problema sem sentido, pois não poder ser resolvido no âmbito no qual se insere: a Razão, ou antes, o λόγος (lógos) ou discurso racional. O problema da Identidade de uma substância não se resolve pela explicação da permanência de suas partes, pois a identidade não tem partes, ela “é” o que subsiste. Além disso, somente os seres vivos, ou melhor, os seres que têm ψυχαί (psychái, almas, no sentido aristotélico), têm identidade e esta é de natureza puramente espiritual.

Para se evitar a ideia de que o indivíduo intelige plenamente sua identidade, o que, de fato, é impossível, alguns autores preferem falar de continuidade psicológica. Essa é, por exemplo, a posição de Locke (MASLIN, 2009, p. 264-265). O indivíduo se dá conta de permanecer o mesmo psicologicamente, embora não consiga identificar o seu quid, ou seja, isso que permanece. A principal crítica que se faz à posição lockeana é exatamente essa de não se poder identificar a quidditas. Porém, isso não significa que não possamos assumir a realidade da identidade enquanto uma abstração mental que possui significado. A concepção de Leibniz corresponde, do meu ponto de vista, a esse processo análogo ao de aproximações sucessivas, porquanto cada passo pode ser interpretado como um mundo possível ou uma proposição acerca de cujo valor-verdade se fala. Assim, as três visões acerca da Identidade não estão erradas, mas apenas olham a questão sob um ponto de vista restrito. Aristóteles concebe a Identidade como unidade de substância, mas admite que a substância é um conceito que não separa a ψυχή do σῶμα. É fácil entender porque Aristóteles considera assim. Ele estava interessado em definir substância relativamente à vida, aos seres vivos. A ideia que ele fazia de ψυχή era a do fluido vital. Leibniz faz menção aos mundos possíveis, mas não admite a ideia de conceber a Identidade como o limite desse processo, em vez do processo em si. Isso é estranho, pois foi o próprio Leibniz quem mais contribuiu com a ideia de limite no Cálculo e, apesar de ter concebido a ideia de mônada como uma unidade real inextensa e, portanto, espiritual (ABBAGNANO, 1982, p. 651), tal como eu também considero ao falar de substância, ele não abordou a questão da Identidade sob a perspectiva da mônada, mas antes pelo processo de introspecção em si sem levar em conta que o processo é aproximativo. Mesmo quando ele fala da substituibilidade nos diversos mundos possíveis, ele parece não se dar conta de que o exercício mental de listar todos esses mundos possíveis é impossível de ser realizado racionalmente. É por isso que eu considero a intelecção da substância e, portanto, da Identidade, como uma intuição a priori. Weissmann define a Identidade como uma convenção, mas não vê que essa definição só se aplica à matéria, não à identidade como eu considero deva ser concebida.

A Identidade, portanto, refere-se à unidade de substância tal como a concebo, porém sem o artifício aristotélico de conceber a substância como determinada pela matéria. Talvez o conceito de mônada seja mais apropriado. Porém, o melhor termo vem de Duns Scotus: haecceitas, a última realidade do ente. Haec é o pronome latino demonstrativo neutro isto, de modo que haecceitas seria algo como istidade, a qualidade de ser isto para o qual se aponta. O reconhecimento da unidade individual também é, para Scotus, óbvio. Foi esse o sentido de se ter dito acima que todos temos a certeza íntima de ser. Scotus é enfático em dizer que a matéria não pode ser a fonte de determinação da individuação, pois a matéria é ela mesma fonte de multiplicidade e potencialidade (WILLIAMS, 2013, p. 160). Por realidade última do ente entende-se justamente o limite do raciocínio introspectivo descrito acima. Scotus usa a ideia de contração para se referir analogicamente a esse aspecto. O importante, porém, é que a identidade, se for determinada pela matéria, qualquer que seja a forma, estará sujeita aos paradoxos da Mudança. A realidade última do ente não pode ser um conceito predicável.

2.1.3. Da necessidade do dualismo

No mundo real, não existe a nave de Teseu como identidade. Não existe esta folha de papel que você, leitor, lê, se esta folha for concebida como uma coisa que possui identidade. A substância da folha – aquilo que nos permite dizer que a primeira folha deste texto é uma folha tal como a folha seguinte – só existe na mente, não no mundo real. A Natureza não distingue a folha ou a nave de Teseu como um ente cuja Identidade possui significado. Ela é apenas a composição de matéria com uma forma específica. Quem “identifica” a nave de Teseu como uma singularidade que tem identidade é a nossa mente. Somos nós que escolhemos um pedaço de matéria com uma forma específica e lhe damos o nome de “nave de Teseu”. Esse é o sentido aristotélico de identidade, o de unidade de substância ou matéria designada. Todas as “coisas” materiais são ajuntamento de matéria com uma forma específica. No mundo real, só o que podemos dizer das coisas materiais é que a matéria existe. Uma pedra, um rio, são partes do mesmo princípio material, apenas em composições diferentes. Como dizia, para a Natureza não existe a identidade da nave de Teseu. Existe uma parte de si, composta por madeira, metal e tecidos que foram agrupados de modo a tomar uma determinada forma que, para o Homem, possui um significado e que, por ter significado, recebeu o nome de nave de Teseu. O que delimita a nave de Teseu? Onde ela começa e onde ela termina? Para a Natureza não tem sentido essa demarcação. Quem estabelece os limites é a nossa mente e esse limites são, muitas vezes, vagos. As coisas materiais não têm identidade e, portanto, não se sujeitam ao paradoxo de Hobbes, pois as coisas são matéria e a matéria possui identidade somente enquanto matéria, ou melhor, enquanto princípio material.

Já os animais, os vegetais e os seres racionais possuem Identidade porque são seres munidos de um princípio anímico. Além disso, a Identidade não pode se referir aos seus corpos, justamente porque os corpos mudam e a Identidade não pode ser intermitente. Logo, a Identidade é uma categoria ontológica que só pode dizer respeito a um princípio que não seja o material. Quando dizemos “Eis o meu relógio”, a identidade que atribuímos ao relógio não é da mesma natureza da identidade que atribuímos a um ser racional (ou a um animal cujo princípio anímico o torna próximo do racional). A identidade do relógio é uma classificação mental que passou a ser convencionada. Já a identidade do ser anímico é “posta”, é dada. Tanto é assim que o paradoxo de Hobbes só é paradoxo porque se refere à nave de Teseu e não ao espírito. Também não poderia se referir a um indivíduo munido de corpo, pois o corpo não pode ser parte de sua identidade. A identidade do indivíduo é a haecceitas de seu espírito, ou seja, ele mesmo independentemente de qualquer qualidade ou atributo.

Para que a Identidade seja um conceito ontológico não-vazio, é preciso admitir-se que há dois princípios no universo, o material e o espiritual, e que somente o espiritual é composto por unidades que possuem Identidade, os espíritos. Toda identidade material é uma classificação mental e mera convenção. Em outras palavras, o princípio filosófico do dualismo não pode ser negado. Existe o princípio material e existe o princípio espiritual e esses princípios são separados. No mundo espiritual, cada ser vivo é uma mônada e sempre que nos refiramos à Identidade, esta é a identidade da mônada, concebida somente como abstração mental aproximativa.

Continua…

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Notas

[6] – Com efeito, “Dizendo-se dela (da identidade) por diversos modos, por um lado dizemos que um modo, algumas vezes, é o mesmo numericamente; por outro lado, que, tanto pelo enunciado como numericamente, seja uno” [Aristóteles, Metaphysica, I (isto é, Livro iota ou 10), 3, 1054ª, 34]. Λεγομένου δὲ τοῦ ταὐτοῦ πολλαχῶς, ἕνα μὲν τρόπον κατ’ ἀριθμὸν λέγομεν ἐνίοτε αὐτό, τὸ δ’ ἐὰν καὶ λόγῳ καὶ ἀριθμῷ ἓν ᾖ (…). Subentende-se o infinitivo com acusativo εἶναι (verbo ser, que omiti, trocando por “é”) na oração subordinada objetiva direta do verbo λέγομεν (dizemos), a partir do acusativo neutro ἕνα τρόπον (um modo). O importante aqui é a Identidade ser una não só numericamente, mas também “pelo enunciado”, ou seja, pelo modo segundo o qual a substância da coisa é inteligida.

[7] – 8 Leibniz antecipava com isso a moderna concepção filosófica de mundos possíveis e, portanto, da Lógica Modal, que acrescenta aos operadores tradicionais da Lógica de primeira ordem (a saber, a conjunção, a conexão e a negação) os operadores de possibilidade e de necessidade. Ao dizer que a substituibilidade de duas coisas idênticas deve valer para qualquer proposição, ele quer dizer que é necessário que a substituibilidade valha ubicumque et salva veritate. Cumpre ressaltar, porém, que a modalidade já havia sido considerada por Duns Scotus na Idade Média

Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Um Substrato Filosófico (Parte 1)

1. Introdução

A Franco-Maçonaria, instituição essencialmente filantrópica, filosófica e progressista, tem por objeto a busca verdade, o estudo da moral universal, das ciências e das artes e o exercício da caridade. Ela tem por princípio: a existência de Deus, a imortalidade da alma e a solidariedade humana. Ela considera a liberdade de consciência como um direito próprio a cada homem e não exclui a pessoa por suas crenças. Ela tem por lema: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. [1]

Neste artigo procuro dar à tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade uma fundamentação filosófica coesa e que justifique um elemento a partir dos outros. Esse substrato filosófico deve ser compatível com os princípios filosóficos mínimos da Maçonaria, especialmente no que concerne ao Rito Escocês Antigo e Aceito. São eles a crença em um princípio criador e a crença na imortalidade da alma. Não existe, até onde sei, na investigação maçônica, uma abordagem nessa direção. Não é meu objetivo traçar qualquer panorama histórico sobre o surgimento dessa tríade e muito menos constatar se é ou não genuinamente maçônica ou apropriada pela Maçonaria no século XVIII na onda dos movimentos de reforma social.

Na busca do substrato comum que fundamente e justifique a tríade, o que mostro é que os princípios mínimos da maçonaria requerem, para bem justificar a tríade:

  • a concordância com o dualismo filosófico, ou seja, de que matéria e espírito são dois princípios separados;
  • a concordância com a ideia de que a Identidade não pode ser definida como unidade de substância, como o fez Aristóteles, mas como haecceitas, à maneira de Duns Scotus, sem qualquer necessidade de determinação pela matéria ou forma;
  • considerar a liberdade de consciência como sendo o significado correto do termo Liberdade na tríade, tomando as liberdades civil, religiosa, econômica etc. apenas como expressões da liberdade de consciência na coletividade;
  • precisar o conceito de Igualdade não como igualdade quantitativa no sentido aristotélico, mas como aquela Igualdade que Leibniz adotou no contexto da Lógica e imediatamente estendida ao contexto jurídico, fazendo-se aqui, além disso, uma extensão aos diversos outros contextos relevantes da vida social;
  • reconhecer que o termo Igualdade na tríade refere-se não à igualdade entre os homens, mas ao que, em termos genéricos, poderíamos chamar de igualdade de tratamento no mundo das instituições;
  • definir a Fraternidade como a forma da relação inter homines com base no reconhecimento da alteridade recíproca, tal como fundamentado por Max Scheler no que concerne à compaixão e, finalmente,
  • mostrar que, com base no fundamento estabelecido, cada termo da tríade é compatível com os outros. A compatibilidade, neste caso, significa que a violação de qualquer um implica a violação dos demais.

Em particular, a Igualdade e a Fraternidade não podem violar a Liberdade de consciência, entendida como a expressão idiossincrática máxima da individualidade. Não se procura aqui provar ou defender as teses filosóficas avançadas pelo dualismo, pela noção de haecceitas, pela igualdade no sentido de Leibniz ou a da Fraternidade como expressão da alteridade recíproca segundo Scheler. O que pretendo é somente argumentar que se a tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade deve possuir um substrato filosófico coeso e consistente com os princípios filosóficos mínimos da Maçonaria, então esse substrato deve ser dado precisamente por aquelas teses filosóficas.

2. Liberdade

Qual o sentido do termo Liberdade no lema Liberdade-Igualdade-Fraternidade? A resposta a essa pergunta deve ser compatível com os princípios básicos da Maçonaria e, além disso, deve ser compatível com os outros termos. É de uma liberdade essencialmente pessoal e interna de que falo: a liberdade de consciência, sem a qual a instrução individual e coletiva no campo filosófico não pode ser o cimento daquela Liberdade sob cujo amparo o cidadão livre exercerá as diversas manifestações de sua liberdade de consciência, como as liberdades civil, religiosa, política e econômica.

O Maçom tem por obrigação lutar contra a ignorância moral e intelectual da Humanidade e moldar, na estrutura psíquica do indivíduo e da coletividade, a compreensão de que a liberdade de pensamento, a liberdade civil, religiosa e todas as outras liberdades socialmente valorizadas são direitos inalienáveis do Homem, mas que, para bem exercê-las, é preciso instrução. As religiões e as filosofias que têm permeado a busca do Homem pela compreensão dos mistérios da alma e da Vida são, sob esse ponto de vista, tão legítimas quanto as ciências das quais o Homem se vale em sua busca pela compreensão dos mistérios da Natureza.

A Maçonaria é fundamentada no mito da construção do Templo de Salomão. A história vai evoluindo grau a grau no Rito Escocês Antigo e Aceito e sua função é naturalmente psicológica. A figura da reconstrução do segundo Templo, fundamental na Maçonaria, faz referência à reconstrução da sociedade de forma a que, em sua estrutura de direitos e deveres, as coisas do espírito tenham status de conhecimento tanto quanto as coisas da matéria. Isso requer reflexão. Entendo que a função dessa exigência é legitimar, frente ao materialismo que ainda domina a mente dos cientistas, a importância e mesmo a necessidade de conceder à Religião o privilégio de existir sem prejuízo da própria Ciência. Isso só é possível se se retirar da Religião o poder de impor aos homens, contra a vontade destes, as crenças e dogmas que as constituem, imposição que contradiz tudo aquilo que o Conhecimento humano alcançou pelo uso são da Razão. Deve-se permitir, assim, que o Homem religioso creia, não por imposição, mas pela Vontade e pela Razão próprias, e que assim o faça sem que por isso seja julgado.

No decorrer de nossa história no orbe, incontáveis foram os seres humanos cujas vidas foram sacrificadas em razão da simples manifestação de crenças religiosas que se opunham aos dogmas impostos por aqueles cujo fim era apenas a imposição de um estado de coisas apropriado para a preservação de suas posições de poder e para a satisfação de suas vaidades. A ignorância humana, que se fenomenaliza nas perseguições infundadas àqueles que pensam de modo diverso, não exime a vítima de outrora de ser o algoz de hoje. Os cristãos que morreram nas arenas do Império Romano e que serviram de pasto às feras e de espetáculo ao povo foram aqueles que mais tarde massacraram os seus irmãos cátaros nos campos da Provença e do Langue d’Oc e que queimaram nas fogueiras da Inquisição os inimigos do dogma. Não me refiro às pessoas específicas, mas às instituições como um todo. Refiro-me ao modus agendi das instituições religiosas e civis. Uma instituição que nasce sob os auspícios da esperança pode ser tomada duplamente pela ignorância. A ignorância dos que buscam o poder a todo preço encontra espaço de ação na ignorância daqueles que, sem instrução, não conseguem reter a instituição nos limites da tolerância e da razão. É justamente contra esse infeliz equilíbrio de ignorâncias que o Maçom, em geral, deve lutar.

Para que a Liberdade de consciência ganhe status de preceito, é necessário que se estabeleçam fundamentos filosóficos que concedam ao Homem o direito de se preocupar legitimamente com as coisas do Espírito. O que considero ser a base para esse dever é a aceitação da realidade espiritual. Filosoficamente, é a separação entre Espírito e Matéria enquanto dois princípios distintos do Universo. Com efeito, o monismo filosófico, segundo o qual não há distinção entre esses dois princípios, tem dois efeitos perversos que contradizem os princípios maçônicos mais elementares. É importante que se esclareça esse problema, porquanto, apesar do inequívoco exercício da obrigação de pensar, o Maçom poderia manter uma estrutura de crenças naquilo que concerne ao mundo filosófico profano e outra naquilo que se refere ao mundo filosófico maçônico. Essa inconsistência é danosa e conflituosa. O primeiro efeito perverso a que me refiro é o materialismo científico, que nega ao Espírito o caráter de ser objeto de reflexão racional. Por conta de tal materialismo, a Religião perde a seriedade e a importância que lhe é de direito aos olhos da própria Maçonaria. O segundo efeito perverso se dá no âmbito político e social. A Religião passa a ser vista como ópio do povo e não mais como uma estrutura de pensamento que permita ao Espírito estruturar sua relação com Deus, mas sim como um instrumento de dominação. Aqui argumento que a Religião tem caráter de conhecimento tanto quanto a Ciência e que não é – ou não precisa ser – um instrumento de dominação. Sem esse tipo de postura diante do problema da Religião, não há como a Maçonaria defender a Liberdade de Consciência.

Na seção 2.1 apresento uma fundamentação filosófica para a liberdade de consciência conforme julgo dever ser concebida pela Maçonaria. A Liberdade deve vir acompanhada da emancipação intelectual. Em particular, a liberdade religiosa necessita de uma fundamentação filosófica racional. Essa fundamentação é o dualismo, a separação entre Espírito e Matéria e está construída de modo a comportar a consistência entre as categorias ontológicas de Identidade e Mudança. Em outras palavras, é a tomada de posição de que o Espírito é uma realidade e que a liberdade de consciência tem a ver com a compreensão da primazia do Espírito sobre a Matéria. Na seção 2.2 abordo o tema da liberdade de consciência e suas ramificações em liberdade civil e religiosa. Na seção 2.3 trato da possibilidade de uma ciência da Religião, já com base na fundamentação filosófica apresentada nas seções precedentes.

2.1. Uma fundamentação filosófica para a liberdade de consciência

Um dos grandes problemas da Filosofia – e um dos mais antigos – é o problema da Identidade e da Mudança. Como conceber que um indivíduo hoje, com suas características de hoje, seja o mesmo indivíduo de ontem, com as características de ontem? São a mesma pessoa ou não? E se são, por quê? Essa questão aparentemente óbvia traz um vendaval de paradoxos e por isso mesmo jogamos à face a nossa incapacidade de compreender as coisas mais simples. Nesta subseção, depois de apresentar de forma geral as diversas respostas, apresento minha própria visão sobre o problema e argumento que só se pode abordar a questão da Identidade e da Mudança se se admitir que Espírito e Matéria são duas substâncias diversas e reais. É esse dualismo que fundamenta e justifica a liberdade de consciência, manifestada nas liberdades civis e na liberdade religiosa, pois dá à consciência o mesmo status de objeto de conhecimento que se atribui aos objetos da Ciência propriamente dita. Em outras palavras, a Maçonaria luta pela liberdade de consciência justamente porque essa luta faz sentido, ela corresponde a uma libertação real do Homem, não a uma metáfora existencial ou a um ideal político. É tão válido epistemicamente investigar a natureza íntima da matéria no contexto das ciências naturais quanto investigar as condições sob as quais o Homem é livre para agir conforme sua consciência.

2.1.1. O paradoxo da nave de Teseu

A Identidade é uma categoria ontológica que se refere, entre outras coisas, àquela consciência da permanência do Eu a despeito da consciência da mudança. Já Aristóteles, no desenvolvimento da lógica, estabeleceu que a identidade é uma propriedade transitiva: se α é idêntico a β e se β é idêntico a γ , então α é idêntico a γ. [2] A transitividade é uma propriedade importante no surgimento de paradoxos da Identidade e da Mudança.

Thomas Hobbes, em seu tratado De Corpore, cap. 11, considerou a seguinte questão.[3] Depois que Teseu matou o Minotauro e retornou de Creta, sua nau permaneceu ancorada no cais. Temos, agora, dois problemas:

Problema 1: Com o tempo, partes da nave vão se desfazendo e essas partes vão sendo repostas. Depois de muito tempo, todas as partes foram repostas. A nave totalmente reposta é idêntica à nave de Teseu?

Problema 2: Qualquer que tenha sido sua resposta ao problema 1, considere a seguinte complicação. Em vez de as partes se desfazerem, elas são retiradas e igualmente repostas pelas mesmas partes que constituíram a nave reposta do problema 1. As partes retiradas são guardadas em um galpão e lentamente vão sendo remontadas até que, no fim, toda a nave de Teseu é reconstruída no galpão. A nave totalmente reconstruída é idêntica à nave de Teseu?

Consideremos agora as possíveis respostas ao problema 1. Se a resposta for “sim”, ou seja, se afirmarmos que a nave reposta é idêntica à nave de Teseu, então devemos responder “não” ao problema 2, pois a Identidade não pode ser numericamente múltipla. Duas cadeiras perfeitamente iguais não são a mesma cadeira, pois, no mínimo, elas não podem ocupar o mesmo espaço durante o mesmo lapso de tempo. De fato, responder “sim” ao problema 2 significa dizer que a nave de Teseu é aquela que foi reconstruída e, portanto, não é a que foi reposta. Porém, a nave reconstruída é a única que tem a mesma constituição da nave de Teseu. Esta corresponde a uma mudança de posição da nave de Teseu. Não tem sentido dizer que a nave reconstruída tem menos direito a ser a nave de Teseu do que a reposta. Imagine que um indivíduo A tem um crucifixo de duas peças que recebeu de herança de sua avó e que possui imenso valor sentimental. Um indivíduo B possui um crucifixo perfeitamente igual (note que não digo idêntico) e se encontra com A. Agora imagine que B pede a A o crucifixo de A, retira a primeira parte do crucifixo de A e põe em seu lugar a parte correspondente do crucifixo de B. Em seguida, retira a outra parte do crucifixo de A e a repõe com a parte correspondente do crucifixo de B. Por fim, entrega ao indivíduo A o crucifixo reposto e toma para si o crucifixo reconstruído com as peças originais do crucifixo de A. Qual será a reação de A? Portanto, responder “sim” ao problema 1 implica responder “não” ao problema 2, mas esta última resposta não tem o menor sentido.

Se a resposta ao problema 1 for “não”, então devemos necessariamente resolver a seguinte complicação adicional. As partes são repostas aos poucos. Se a primeira parte a ser reposta é, por exemplo, um pequeno parafuso, não há porque negar que a nave ainda seja a mesma, da mesma forma que o senso comum não nos permite negar que uma pessoa mantenha a integridade de sua identidade mesmo ao perder um fio de cabelo. Assim, se a resposta tiver sido “não”, deve haver um ponto no meio desse processo de reposição a partir do qual a nave deixa de ser a nave de Teseu e passa a ser outra nave, a nave reposta. Existirá, portanto, digamos, alguma fração máxima de partes da nave que, se retiradas, ainda não subtraem à nave de Teseu a sua identidade. Por exemplo, 2% (qualquer fração positiva servirá para os propósitos da argumentação, por ínfima que seja, até mesmo uma fração na escala atômica). Se se repuser uma parte que represente 1%, então a nave parcialmente reposta ainda será a nave de Teseu. Da mesma forma que a retirada de 1% não subtraiu à nave de Teseu sua identidade, então, aplicando uma segunda vez esse mesmo pressuposto, poderíamos retirar outra parte correspondente a 1% e ainda assim manter a identidade da nave de Teseu, pois a parte reposta é ainda da “mesma” nave, conforme admitimos no passo anterior.[4] Após cem reposições de centésimas partes distintas, sendo que a cada reposição parcial a nave continua a mesma, então ela será a mesma. Entretanto, todas as peças foram repostas, de modo que, no fim desse processo, a nave reposta é idêntica à nave de Teseu, o que contradiz a reposta que demos à pergunta do problema 1. Em outras palavras, o pressuposto que justificaria o “não” também não tem sentido. A única maneira de escapar a esse imbróglio é admitir que o que garante a Identidade da nave de Teseu é a sua constituição original, com as partes originais. Isso implica responder “sim” ao problema 2, já que a nave reconstruída é precisamente aquela com as peças originais. Entretanto, isso implica admitir que a Identidade deve ser intermitente, que a nave de Teseu ancorada no cais perde a Identidade no momento em que tem sua primeira parte retirada e volta a tê-la assim que a nave é inteiramente reconstruída no galpão.

Alguém poderia contra argumentar que a causa do paradoxo repousa na hipótese implícita de que a Identidade não pode ser intermitente e de que não pode ser numericamente múltipla. Essas, porém, são condições que caracterizam a Identidade. Ou se nega a ideia de Identidade ou se aceitam os paradoxos do problema da Identidade e da Mudança.

O paradoxo da nave de Teseu é um problema metafísico antigo e ainda hoje na Filosofia se encontram diversas soluções para esse problema. Ele se refere à mudança das partes de um ente composto ou do ente em si. Todas as soluções existentes introduzem a ideia de modalidade temporal à oração Σ:{α é β}. A estratégia de resolução do paradoxo normalmente é caracterizar temporalmente um desses três elementos constitutivos da oração: ou o “sujeito no tempo t” ou o “predicado no tempo t” ou o “verbo ser no tempo t”.

Quando falamos de uma parte da nave de Teseu, podemos dizer que se trata de uma “parte no tempo t°”. Se essa parte é reposta, a peça que a repôs é a “parte em outro tempo t¹”, em que t¹ > t°. Estamos, assim, temporalizando o predicado. Nesse caso, o sujeito e o verbo ser mantêm, ambos, a sua identidade no tempo e o predicado absorve, sozinho, todo o impacto da Mudança trazida pela sujeição do ente ao tempo. O esquema oracional dessa solução é dado, portanto, pela oração Σρ:{α é β-em-t}, em que o predicado é o elemento oracional que depende do tempo. O problema, porém, permanece, pois se concentra agora inteiramente sobre como explicar a identidade do predicado. Em outras palavras, transportaríamos o paradoxo da nave de Teseu para as partes constitutivas da nave, o que, na verdade, não resolve o paradoxo.

Alternativamente, podemos conceber o esquema oracional segundo o qual a identidade do sujeito é mutante, ou seja, Σς:{α-em-t é β}. Quando a mudança temporal recai sobre o sujeito, dizemos que a mudança é qualitativa. A mudança então se dá nas qualidades intrínsecas do ente. Mas como uma propriedade intrínseca pode mudar? Se uma parede branca é pintada de vermelho, não é a cor branca que sofre uma mudança em sua essência (a brancura), mas sim a parede é que sofreu uma mudança de uma de suas partes (a camada de pintura). É um caso análogo à reposição de uma parte da nave de Teseu.

Outra solução é a chamada solução adverbial, que considera o esquema oracional dado por Σν:{α é-em-t β}, ou seja, tanto o sujeito como seu predicativo mantêm suas identidades e o que muda é o tempo em que o ser se dá. Entretanto, na Lógica [5] o verbo ser não admite tensão dada por um advérbio.

Em qualquer caso, o problema da Identidade e da Mudança recai sobre aquele elemento caracterizado pela modalidade tempo.

Continua…

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Notas

[1] – Trecho publicado pelo Irmão Hubert no Chaîne d’Union, ainda no século XVIII e trazido à consideração quando da convenção de 1864 do Grande Oriente de França.

[2] – Se designarmos por σ a relação de identidade e por Ω o conjunto de todos os entes do universo, então, ∀α,β,γεΩ, se ασβ e βσγ, então ασγ.

[3] – Na verdade, em Elementorum Philosophiae Sectio Prima de Corpore. No capítulo 11, intitulado De eodem et diverso (Sobre o mesmo e sobre o diverso), ele introduz o paradoxo de Teseu na subseção final, em que trata do princípio de individuação. O problema da individuação é “o problema da constituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza comum” (ABBAGNANO, 1982, p. 526). O princípio da individuação é a determinação de todas as coisas que são inerentes ao ente em ação. Como argumentarei mais adiante, tal determinação só pode ser atingida como um limite infinito, pela mera consciência do Eu, sem qualquer predicado inerente. Hobbes apresenta três visões sobre o problema e a segunda é a que nos interessa aqui, pois ela atribui a individuitas na unidade da forma. “De acordo com a segunda visão, ademais, dois corpos, quanto à existência simultânea, seriam um e numericamente o mesmo corpo; pois se, por exemplo, aquela nave de Teseu (sobre cuja diferença, ao serem paulatinamente retiradas as tábuas velhas e continuamente refeitas por novas colocadas no lugar delas, os sofistas atenienses outrora disputaram) fosse numericamente a mesma depois de mudadas todas as tábuas e conservasse, à medida em que são removidas, e mesmo das conservadas e na mesma ordem compactadas uma nave de novo fabricasse, não resta dúvida que esta seria numericamente a mesma que aquela nave que havia no princípio e teríamos duas naves numericamente as mesmas, o que é o maior absurdo.

[4] – Que sentido haveria em pressupor que a mesmidade (ou sameness, pra citar um termo em Inglês já comum na Filosofia) tivesse gradações?

[5] – A Lógica Modal acrescenta aos operadores lógicos tradicionais (de conjunção, conexão e negação) os operadores de possibilidade e de necessidade e de um modo geral o suficiente para comportar o modo da temporalidade.

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