Maçonaria, religião e política no Brasil

Discute-se neste ensaio a relação entre Igreja Católica e Maçonaria. Para tanto, toma-se como objeto a chamada Questão Religiosa, quando houve um embate entre as duas instituições, ocorrido no final do século XIX. Utiliza-se como fontes documentos produzidos pela Igreja Católica e por maçons. Ademais, faz-se o uso de bibliografia acerca do tema produzida por historiadores.

O recente debate eleitoral trouxe à tona a relação entre alguns candidatos e a Maçonaria, ressaltando-se o caráter supostamente antirreligioso dos maçons. Os comentários acerca do assunto, de diferentes origens e de conteúdos diversos, expressam um certo preconceito em relação aos maçons (BERGAMO, 2022). Os exageros e preconceitos são variados e, ainda que eventualmente possam ter algum elemento de verdade, expressam um conjunto de ideias equivocadas atribuídas à Maçonaria, em grande medida produzidas nos últimos séculos pela Igreja Católica. Desde o século XVIII são difundidas narrativas antimaçônicas, procurando desqualificar a Ordem, “relacionando sua origem e seus objetivos com tudo o que há de mais obscuro e contrastante com os valores morais, principalmente, no que se refere àqueles advindas da cultura cristã” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 35).

Um dos acontecimentos de maior repercussão na história da Maçonaria no Brasil foi a chamada “Questão Religiosa”, cujo auge ocorreu nos anos 1872 e 1873, quando o padre José Luís de Almeida Martins, que era maçom, foi suspenso pelo bispo do Rio de Janeiro por ter participado como orador de uma festa comemorativa da promulgação da Lei do Ventre Livre organizada pelo Grande Oriente do Brasil (GOB). Em seu discurso, o padre “enalteceu a Maçonaria e o Grande Oriente do Brasil, pela obra realizada em prol da emancipação dos escravos no Brasil” (CASTELLANI, 2001, p. 107). O ato de suspensão do padre Martins contribuiu “para mobilizar toda a organização maçônica que, através do Parlamento e da imprensa, desencadeou uma verdadeira luta contra os adversários da liberdade de pensamento” (BARATA, 1999, p. 93).

O embate entre Igreja e Maçonaria envolveu inclusive o governo imperial, que, no auge da crise, ordenou a prisão dos bispos de Olinda, dom Vital Maria Oliveira, e do Pará, dom Antônio Macedo da Costa, pelo fato de exigirem “que as irmandades religiosas expulsassem os maçons de seus quadros e, como algumas destas se recusaram a tal medida, foram interditadas pelos bispos” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 159). Como resposta, as irmandades apelaram ao governo imperial, que acatou o recurso. Os bispos se negaram a reconhecer a supremacia do poder secular do governo e, “diante da atitude dos bispos, expediu-se o mandado de prisão. D. Vital foi preso em janeiro e D. Macedo, em abril de 1874” (BARATA, 1999, p. 94). Os bispos, submetidos a julgamento, “foram condenados a quatro anos de prisão com trabalho forçado”, mas “no ano seguinte foram anistiados pelo Gabinete presidido por Caxias” (BARATA, 1999, p. 94).

Nessa disputa, a Igreja e a Maçonaria mobilizaram templos, escolas, clubes literários e até mesmo festas públicas, buscando sobrepor-se ao adversário. Em meio a esses embates, observa-se que “o número de padres maçons foi diminuindo gradativamente, a ponto de tornar-se aberração aos olhos da sociedade aquele que ousasse combinar a batina católica e o aventa de pedreiro-livre” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 157). Os maçons entendiam que, quanto mais templos fossem fundados, mais conseguiriam “defender-se e contra-atacar a Igreja, fazendo seus discursos penetrarem no corpo social e na vida cotidiana” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 160). Paralelo a isso, a Igreja intensificou o discurso que associava os maçons ao satanismo ou a imagens negativas. Nesse processo, “a luta maçônica contra o conservadorismo católico acabou por ganhar a simpatia dos segmentos liberais da sociedade, o que atraiu muitos desses homens para a iniciação” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 160).

Esses embates se inserem num processo conhecido como romanização pelo qual passou a Igreja, nos séculos XIX e XX, constituindo-se em ações reformadoras de bispos, padres e congregações religiosas com objetivo de moldar o catolicismo conforme o modelo romano. No Brasil, nesse processo de “europeização” do catolicismo, “os sacramentos, a moralidade e a autoridade clerical suplantaram como principal eixo da vida da Igreja os rituais e organizações autônomos e de base laica” (SERBIN, 2008, p. 79). Para Kenneth Serbin (2008, p. 81), a romanização seria “modernização conservadora” do catolicismo, afinal,

ao mesmo tempo que representou a reação contra a modernidade foi também seu produto e sua promotora. Assim como socialismo e o nacionalismo, o catolicismo procurou construir novas formas de comunidade em face da destruição dos laços tradicionais pelo capitalismo internacional. No processo, o papado, acentuadamente fortalecido, procurou criar a unidade da comunidade católica no mundo todo.

A romanização, iniciada no pontificado de Pio IX (1846-1878), não é exclusiva ao catolicismo no Brasil, inserindo-se “num processo mais amplo de transformação do aparelho religioso católico em escala mundial” (OLIVEIRA, 1985, p. 292). Esse processo esteve marcado, entre outras coisas, pelo combate a “sociedades clandestinas que conspiravam contra a Igreja” (BENIMELI, 2013, p. 95). No pontificado de Pio IX levou-se a cabo uma política que condenava “o racionalismo, o socialismo, o comunismo, a Maçonaria, a separação entre a Igreja e o estado, o liberalismo, o programa e a civilização” (BARATA, 1999, p. 103).

Em palestra proferida em 1916, Everardo Dias analisou o Syllabus Errorum, promulgado em 1864 por Pio IX, que, entre outras coisas, afirmava que “os fiéis devem odiar os livres-pensadores, filósofos, naturalistas, racionalistas, revolucionários e reformistas”, que “estão possuídos do demônio e serão castigados com penas eternas os invasores e usurpadores dos direitos e das propriedades da Igreja”, que “são abortos do Inferno o Socialismo, o Comunismo, as sociedade secretas e bíblicas e as associações católico-liberais” e que, no caso “de oposição entre as leis das duas potências, civil e católica, deve prevalecer o direito eclesiástico” (DIAS, 1921, p. 72-3).

Everardo Dias discutiu o tema da relação entre igreja e Maçonaria em conferência realizada em uma loja maçônica em 1908. Dias (1921, p. 17) afirma que “a Maçonaria respeita todas as religiões e, no entanto, combate todos os fanatismos”. Segundo Everardo Dias, “o Maçom tem por fim essencial combater o fanatismo, o erro e a ignorância” (DIAS, 1921, p. 18). Para Dias (1921, p. 22), “o Catolicismo não aceita a igualdade nem entre os próprios sectários, nem neste nem no outro mundo (…) onde há lugares separados para os grandes e pequenos”, sendo que “para averiguar a diferença entre pequenos e grandes não é o grau de fé que regula, mas as posições sociais e a maior ou menor quantidade de esmolas para as confrarias”. Segundo Everardo Dias (1921, p. 23), o Catolicismo “ama a discórdia entre os povos, desde que lhe advenha proveito. Acima dos interesses sociais está o interesse da cúria ou do papa!”. Referindo-se ao enfrentamento entre os maçons e o clero, afirma:

A Maçonaria, que é o mais formidável adversário das tiranias, dos fanatismos, das intrujices, tem, forçosamente, que dar combate franco e decisivo ao Clericalismo que a insulta e difama desde os púlpitos das igrejas, pelos confessionários, pelos jornais, pelos livros e até na banca das escolas (DIAS, 1921, p. 24).

O papado de Leão XIII (1878-1903) deu seguimento às ações de Pio IX, em um “contexto marcado pelo fim dos Estados pontifícios e da Campanha pela Unificação Italiana, o que agravava ainda mais a situação da Maçonaria, que era identificada como uma das causadoras da usurpação dos Estados pontifícios” (BARATA, 1999, p. 104). Em 1884, na encíclica Humanum genus, Leão XIII constata que “a seita dos mações fez progressos incríveis. Empregando simultaneamente a audácia e a astúcia, invadiu ela todas as categorias da hierarquia social, e começa a assumir, no seio dos Estados modernos, um poder que equivale quase à soberania” (LEÃO XIII, 1955, p. 6). O documento associa a Maçonaria à “corrente naturalista”, pois esta defende que “em todas as coisas a natureza ou a razão devem ser soberanas”, fazendo pouco caso “dos deveres para com Deus” (LEÃO XIII, 1955, p. 10). Leão XIII afirma que aos maçons, “pela palavra, pela pena, pelo ensino, é permitido atacar os próprios fundamentos da religião católica” (LEÃO XIII, 1955, p. 11). No cenário político, o papa constata que os católicos estariam lidando

[…] com um inimigo astuto e fecundo em argumentos. Ele prima em fazer cócegas agradavelmente nos ouvidos dos príncipes e dos povos; tem sabido prender uns e outros pela doçura de suas máximas e pelo engodo das suas lisonjas (LEÃO XIII, 1955, p. 21).

Leão XIII parece estar se preparando para uma cruzada, associando a atuação da Maçonaria inclusive ao processo de revoluções ocorridas na Europa. Os críticos da ordem estabelecida, da qual fariam parte tanto socialistas como a Maçonaria e mesmo outros setores da sociedade, afirmariam que “foi a Igreja, foram os soberanos que sempre fizeram obstáculo a que as massas fossem arrancadas a uma servidão injusta, e libertadas da miséria” (LEÃO XIII, 1955, p. 21-2). Leão XIII defendia a necessidade de “fazer desaparecer o contágio impuro do veneno que circula nas veias da sociedade e a infeta toda”, promovendo “a glória de Deus e a salvação do próximo” (LEÃO XIII, 1955, p. 23).

Não havia no interior da Maçonaria uma forma única de encarar a Questão Religiosa ou mesmo a relação com a Igreja. Pode-se afirmar que esse conflito entre Igreja Católica e maçonaria “foi historicamente datado, não representava um antagonismo eterno. Não havia até então, apesar da animosidade do Vaticano e de setores eclesiásticos, incompatibilidade entre catolicismo e maçonaria no Brasil” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 155). José Maria da Silva Paranhos, mais conhecido como Visconde do Rio Branco, Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, afirmava haver uma especificidade da Maçonaria brasileira em relação aos seus congêneres europeus. Segundo ele, “se as lojas maçônicas europeias interferiam excessivamente nos aspectos ligados à religião e à política dos Estados, as lojas brasileiras se ocupavam precipuamente do aperfeiçoamento moral e intelectual do homem e de atos beneficentes” (BARATA 1999, p. 96-97). Essa concepção, que destacava o caráter apolítico e beneficente da Maçonaria, fortalecia as posições regalistas, que se estruturavam a partir da noção de subordinação da Igreja ao Estado. Essas posições se chocavam com os setores liberais da Maçonaria, liderados por Saldanha Marinho, para quem “a liberdade de consciência era incompatível com o regime de união entre Igreja e Estado” (BARATA 1999, p. 99).

Portanto, considerando o ocorrido na chamada Questão Religiosa, percebe-se que muitos dos elementos de crítica à Maçonaria por parte da Igreja permanecem na contemporaneidade. Contudo, como se percebe, são questões episódicas, considerando que, a despeito de não se associar a nenhuma religião diretamente, a Maçonaria, em teoria, não proíbe crenças dentro de suas lojas. Nas últimas décadas, ao desvelar o véu de mistério da Maçonaria, muitos pesquisadores acadêmicos foram capazes de mostrar a ordem como uma organização atuante política e socialmente no meio em que está inserida (SILVA, 2015). Esses elementos mostram a importância de se olhar os fenômenos sociais livre de preconceitos, procurando superar as representações quase ficcionais construídas nos dois últimos séculos, olhando os fenômenos em sua concretude e contradições.

Autor: Michel Goulart da Silva

Michel Goulart é técnico em assuntos educacionais do Instituto Federal Catarinense (IFC). Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail para contato: michelgsilva@yahoo.com.br

Fonte: SILVA, M. G. da . MAÇONARIA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 12, n. 36, p. 14–18, 2022. DOI: 10.5281/zenodo.7482446. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/772. Acesso em: 7 mar. 2023.

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Referências

BARATA, A. M. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

BENIMELI, J. F. La masonería. Madrid: Alianza, 2013.

BERGAMO, M. “Maçonaria repudia ‘produção imbecil’ de ‘informações falsas’ depois de vídeo de Bolsonaro”. Folha de São Paulo [2022]. Disponível em: <www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 23/09/2022.

CASTELLANI, J. Ação secreta da maçonaria na política mundial. São Paulo: Editora Landmark, 2001.

DIAS, E. Semeando: palestras e conferências. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Escola Profissional Maçônica José Bonifácio, 1921.

LEÃO XIII. Sobra a Maçonaria. Petrópolis: Editora Vozes, 1955.

MOREL, M.; SOUZA, F. J. O. O poder da maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008.

OLIVEIRA, P. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.

SERBIN, K. P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008.

SILVA, M. G. Entre a foice e o compasso: imprensa, socialismo e Maçonaria na trajetória de Everardo Dias na primeira república (Tese de Doutorado em História). Florianópolis: UFSC, 2016.

SILVA, M. G. “Maçonaria e anticlericalismo no jornal O Livre Pensador”. Revista de Estudios Historicos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña, n. 12, 2019. SILVA, M. G. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

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Maçonaria dividida -com Deus ou sem Ele?

Em meados de 2016, a Grande Loja da Escócia alertou que o número crescente de pessoas que voltam as costas à religião pode afetar o futuro da Maçonaria  – uma vez que exige a crença em um Ser Supremo. A referência à população “sem Deus” trouxe lembranças amargas da minha jornada maçônica.

Por quase 25 anos estou tentando entender o(s) maior(es) paradoxo(s) da Maçonaria, e ainda estou lutando com isso…

Por um lado, sou um maçom orgulhoso e um estudante diligente de todas as coisas maçônicas: estou escrevendo artigos maçônicos e apresentando palestras; e leio ainda mais livros, estudos, ensaios e trabalhos sobre nossa Arte. Tudo me diz que somos a fraternidade de homens de bem que só podem ser descritos por superlativos: o mais velho, o maior, o maior, o mais tolerante, o… aquele que tem em sua bandeira os ideais mais nobres da humanidade – liberdade, igualdade (BTW, este era o nome da minha loja mãe!), amor fraterno, verdade, caridade.

Por outro lado, a estrutura e fragmentação mundial (cisma) absolutamente não reflete esses ideais. Vamos entrar no meio disso: por cerca de 140 anos a Maçonaria universal(?) está dividida em dois grupos concorrentes, deixando agora de lado os muitos grupos falsos e espúrios. De um lado estão os maçons anglo-americanos, que se autodenominam – desde 1929 – os “regulares” e do outro os maçons “franceses” (também conhecidos como maçonaria continental ou latina). Às vezes se autodenominam “liberais” ou “dogmáticos”. Já que soaria estúpido se eles seguissem os regulares e se chamassem “irregulares”.

A questão é o Grande Arquiteto do Universo (GADU) – como os maçons gostam de chamar o Ser Supremo ou Divindade… Em sua igreja, eles podem se referir a essa divindade simplesmente como Deus.

A Maçonaria Regular não pergunta sobre as especificidades de seu deus/Deus ou detalhes sobre sua religião. Tudo o que eles exigem é que o candidato confesse sua crença em um Ser Supremo – o que quer que esteja na fé do candidato. Em outras palavras: eles não admitem ateus entre eles. A Maçonaria liberal e adogmática considera que isso é um assunto privado, e a crença em uma divindade não é necessária; consequentemente, até os ateus podem se juntar às suas lojas. Mais exatamente, cabe às lojas, individualmente, decidir os requisitos.

primus inter pares para os regulares é a Grande Loja Unida da Inglaterra (UGLE) – toda nova Grande Loja “regular” do mundo buscará sua aprovação, na forma de ‘reconhecimento‘; é muito parecido com a forma como os países recém-formados imploram por reconhecimento diplomático por parte dos estados existentes. O corpo principal correspondente para o outro grupo (lembre-se, Londres os chama de “irregulares”) é o Grande Oriente da França (GOF ou GOdF) . Algumas fontes dizem que de todos os maçons do mundo cerca de 80% pertencem a lojas regulares (reconhecidas pela UGLE) e os 20% restantes são de filiação francesa.

O cisma aconteceu em 1877. No entanto, alguns dias ouvindo os “regulares” tem-se a impressão de que o outro grupo é composto por assassinos, criminosos e vigaristas da atualidade… Certos maçons menos instruídos usam palavras muito duras ao descrever o liberalismo Maçonaria Continental e considerá-los os piores inimigos. Uma breve lição de história pode não doer neste momento.

* * *

A história do “grande cisma” na Maçonaria não é tão clara quanto muitos maçons anglo-americanos acreditam. O Grand Orient de France (GOF), na verdade é mais antigo que a maioria das lojas norte-americanas: data de 1728! Curiosamente, mais de cem anos depois, em 1849, o GOF fez uma exigência para seus membros: a crença em uma divindade (Deus). Tanto a Constituição dos Modernos quanto a dos Antigos (ou seja, as duas Grandes Lojas concorrentes entre 1751 e 1813) na Inglaterra tinham inicialmente uma vaga referência a Deus, sem formulá-la, expressis verbis, como “requisito”. Nem mesmo em 1813, quando a atual UGLE foi formada pela “amalgamação” dos Modernos e Antigos, isso era uma exigência. Então, em 1877, o GOF decidiu removê-lo e deixar para o julgamento de todos os homens maduros em que acreditar.

Antes disso, eles (GOF) também cometeram alguma “invasão” no sul dos EUA: reconheceram um grupo maçônico na Louisiana sem qualquer discriminação racial, enquanto as lojas locais eram instituições racistas abertamente brancas, proibindo negros e homens de cor de ingressar. Então, sua Grande Loja cortou os laços com o GOF e pediu a outras Grandes Lojas americanas que fizessem o mesmo.

No entanto, mesmo a decisão de 1877 da UGLE de declarar o GOF “irregular” não foi automaticamente seguida por todas as Grandes Lojas regulares. No início do século XX e até o final da Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial) havia Grandes Lojas Americanas e outras que ainda mantinham relações amigáveis ​​com o Grande Oriente, ou seja, elas se reconheciam como maçons “regulares” e a intervisitação era permitida.

… esse detalhe teológico praticamente admitiria principalmente os seguidores das três principais religiões abraâmicas …

Então, pela primeira vez em sua história, a UGLE – nas boas e velhas tradições coloniais dos britânicos – publicou, em 1929, seu conjunto de “Princípios Básicos”: uma lista de regras usadas para determinar se uma Grande Loja era regular aos olhos de ‘Londres’. Embora os maçons gostem de pensar que estas eram ou são regras “eternas” – elas foram discretamente modificadas em 1989. Por exemplo, um detalhe importante, a saber, a “crença na vontade revelada ” do Grande Arquiteto do Universo foi removida porque esse detalhe teológico praticamente admitiria principalmente os seguidores das três maiores religiões abraâmicas, que consideram o ‘livro’ sagrado de sua religião a vontade revelada de sua Divindade. (Infelizmente, a maioria das outras Grandes Lojas anglo-americanas, incluindo minha grande loja em Ontário, não seguiu… O que significa que eles se anunciam como tolerantes em relação a qualquer religião, mas depois eles usam o requisito restritivo – crença na revelação – em seus questionários .)

* * *

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A história da minha Loja Mãe e sua Grande Loja pode ilustrar a confusão mundial em poucas palavras. Apenas uma década antes desta grande confusão entre a Maçonaria Francesa e Inglesa começar, as lojas maçônicas finalmente foram permitidas na parte húngara da Monarquia Austro-Húngara, em 1868 (mas não na metade austríaca… onde a proibição geral de 1795 ainda estava em vigor ). Imediatamente surgiram duas grandes Lojas: uma de tradição “Joanita” – que significa o tradicional Craft ou Lojas Azuis, conferindo os três graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre Maçom; e outro corpo trabalhando no (vermelho) Rito Escocês, ritual ligado à Maçonaria “francesa”, conferindo também os três graus básicos e os “mais altos” 4-33 graus. Ainda hoje, em muitos países latinos, esse é o rito mais praticado! Tudo isso aconteceu no final da década de 1860 e início da década de 1870.

Então, tivemos o impasse UGLE-GOF em 1877. Se examinarmos os registros históricos, o mundo não prestou muita atenção a isso…

De volta aos nossos corpos húngaros, de uma forma única não vista em nenhum outro lugar do mundo, eles também decidiram amalgamar e ‘dividir’ as funções entre eles, formando em 1886 a Grande Loja Simbólica da Hungria, ficando exclusivamente a cargo dos três Graus do Craft, e o Conselho Escocês administrando os altos graus de 4 a 33. As diferentes lojas trouxeram suas próprias tradições para a recém-formada grande loja (simbólica).

Nunca saberemos se Londres os considerava regulares ou não – naquela época isso não era um problema tão grande como se tornou depois de 1929 , quando a UGLE publicou sua lista de Princípios Básicos.

E nessa época, a Maçonaria Húngara já foi banida (desde 1920), o que significa que a questão do reconhecimento nunca surgiu.

[Um intermezzo interessante do período da Guerra Fria: Por um breve período após a Segunda Guerra Mundial, a Grande Loja Húngara ganhou vida, embora na bagunça daqueles anos houvesse muitas tarefas mais importantes do que buscar “reconhecimento” de Grandes Lojas distantes… E então os comunistas a proibiram novamente, confiscando o prédio da Grande Loja e todos os documentos. Assim, quando os maçons fugiram dos soviéticos e chegaram como imigrantes exilados ao Canadá, legalmente não eram maçons, devido à falta de reconhecimento adequado entre as duas Grandes Lojas. Que bagunça… Isso os torna “clandestinos”?]

Então a história e o colapso dos regimes comunistas na Europa Oriental permitiram o reinício da Maçonaria legal em 1989 no leste de Budapeste. Durante as décadas de maravilhamento no deserto, as lojas no exílio guardavam a luz, iniciavam os maçons e esperavam por tempos melhores. Uma das lojas húngaras mais solidárias e ativas no exílio foi uma loja “francesa”, ou seja, sob a jurisdição do Grande Oriente de França (GOF).

Apesar disso, a reinstituída Grande Loja da Hungria prometeu ‘lealdade’ à UGLE, tendo em consideração que cerca de 80% dos maçons do mundo pertencem a jurisdições cujas Grandes Lojas são reconhecidas por Londres – como a UGLE é frequentemente chamada.

Segundo um dos maçons que sugeriu e promoveu essa ideia de adesão ao tipo UGLE da Maçonaria, foi um momento doloroso e triste na história da Maçonaria Húngara. Eles tiveram que cortar os laços com metade de suas tradições e (quase) repudiar metade de sua história.

E depois que foi decidido, em 1989, que os maçons húngaros deveriam seguir o tipo “regular” de maçonaria anglo-americana, muitos membros descontentes saíram e organizaram um corpo reconhecido pelo Grande Oriente da França. Tendo em mente o quão fatalmente eles guardaram a luz e preservaram as tradições maçônicas, apesar das duras circunstâncias históricas durante os anos da tirania…, é extremamente difícil e doloroso dizer que aqueles “não são maçons”, que eles “não são irmãos”. Quem é maçom, se não são considerados maçons?

* * *

Hoje em dia, muitos maçons, lojas e Grandes Lojas da tradição inglesa (UGLE) consideram seus ex-irmãos das lojas continentais/francesas como inimigos mortais. Literalmente. É compreensível que, obedecendo as regras de sua Grande Loja, os maçons não interajam “maçonicamente”, já que a intervisitação é proibida de qualquer maneira, se o reconhecimento mútuo não existir. No entanto, a animosidade e os sentimentos quase de ódio em relação aos corpos maçônicos não reconhecidos parecem ser difíceis de justificar.

Além disso, se olharmos para a história do mundo, a história moderna dos últimos dois ou três séculos, é absolutamente claro que os maçons pertencentes ao tipo continental de maçonaria fizeram muito mais para implementar essas nobres ideias de liberdade e igualdade do que qualquer jurisdição regular. Claro, ninguém nunca tenta explicar essa controvérsia.

Apenas para esclarecimento: fui feito maçom em uma loja “regular” sob a jurisdição de uma Grande Loja totalmente reconhecida pela UGLE. E mais tarde me juntei a outra loja “regular” na jurisdição de Ontário, Canadá, uma descendente direta dos corpos das Ilhas Britânicas e uma antiga Grande Loja Provincial da UGLE. E estou absolutamente ciente de minhas obrigações e das promessas que fiz de respeitar as regras e cumprir as leis maçônicas da jurisdição onde sou maçom ativo. Deixando claro: não tenho relações maçônicas com membros de lojas pertencentes a jurisdições apoiadas e reconhecidas pelo GOF. No entanto, tenho colegas de escola e amigos, velhos amigos de antes de ser maçom, que trabalham – maçonicamente – do outro lado da cerca. Eu não vou me sentar com eles em uma loja… mas eu nunca vou negar sua amizade! E, apesar das minhas obrigações, tenho dificuldades moralmente – para chamá-los de não-maçons.

* * *

Eu conheci meu outro significativo no Canadá, anos depois de me tornar um maçom. Quando revelei minha participação na fraternidade, falei longa e eloquentemente sobre os nobres ideais da Ordem e o que acreditamos. Então, em um certo ponto, tive que responder a duas grandes perguntas. Primeiro, o discutido acima, por que não são os maçons franceses irmãos, se realmente somos uma irmandade tão tolerante, grande e universal… Infelizmente, sempre me sinto perdendo toda a minha credibilidade quando não consigo explicar isso. Claro, estou familiarizado com todos os chavões usuais sobre a exigência da crença no GADU e a devoção do GOF à ideia de Laïcité (caráter secular). Mas, convenhamos: não há explicação razoável que um humano decente possa invocar, sem vergonha, para o ódio em nome da tolerância, igualdade e amor fraterno.

A outra grande questão será o assunto de um outro post: maçons negros. Excluídos por razões raciais pelos maçons brancos da América do Norte, todos os defensores da igualdade na terra supostamente criada com base nos princípios maçônicos…

Autores: Istvan Horvath
Traduzido por: Luiz Marcelo Viegas

Fonte: The Other Mason

*Horvath é Mestre Maçom, Maçom do Arco Real, membro da Philaletes Society, do Quatuor Coronati Correspondence Circle e da Scottish Rite Research Society. 

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As contenções da liberdade. A Maçonaria e a Internunciatura Apostólica no Brasil do século XIX (Parte III)

A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO DE CONFLITOS PARA O SUCESSO DE UM NEGÓCIO - DVF

A instrução da Internunciatura

Há que se considerar que o conflito católico-maçônico no Brasil, que deu origem a instrução da internunciatura, estava situado no conflito que era universal, mas que reflete as especificidades das relações dos segmentos em conflito a partir da questão religiosa. Preocupava, sobretudo, a experiência Europeia em função das associações da maçonaria com governos que restringiam a presença da igreja. Além disso, havia evidente intenção de reforçar a autoridade simbólica do catolicismo junto à sociedade brasileira, e como decorrência reforçar também a autoridade das ações do clero no enfrentamento. A especificidade da experiência brasileira também deve levar em conta a manifesta hostilidade interna dos setores liberais e do governo, e a perplexidade geral resultante do encarceramento dos bispos católicos na crise da Questão religiosa.

Do ponto de vista estratégico o documento pelo seu agente emissor, marcava posição junto ao Estado brasileiro, transformava a questão doméstica em questão diplomática, por causa da procedência do texto, a Santa Sé, a diplomacia vaticana, e a internuciatura. Além disso, inibia as ações da igreja no Brasil, para aproximação com a maçonaria, a defesa que muitos faziam dela, com a tese de não ter ela a índole anticlerical que se verificava em outras partes do mundo. Ao mesmo tempo, o documento mantinha a igreja como interlocutora nas questões em debate no Império.

Do ponto de vista social o documento tem um caráter marcadamente segregador, na medida em que distingue os “afiliados” da maçonaria, como objeto de tratamento específico, restritivo, e também simbólico em relação aos fieis católicos que recebiam elogio implícito da sua fidelidade, ao contrário dos que eram objeto de sanções eclesiásticas. O discurso pressupunha a prerrogativa da igreja como portadora de autoridade que o catolicismo possuía para julgar a Maçonaria

Se o discurso atrai, o documento procurava reforçar sua força autoritativa por ser um discurso que historicamente a igreja reeditava. Além disso, a proximidade temporal com a Questão Religiosa sugeria que a igreja mantinha sua posição mesmo em face do rigor com que foi tratado sob a lei durante a crise, e fazia repercutir sua palavra junto aos setores envolvidos, que incluía proeminentes intelectuais e juristas que tomaram posição a favor da igreja, além de congregar em torno da autoridade eclesiástica os fiéis católicos, e mandar uma mensagem implícita para os protestantes, envolvendo todos os setores que estiveram nos embates da Questão Religiosa: o poder público, os fiéis católicos, e os protestantes como beneficiários indiretos. [42]

Uma vez que o embate se dava também no plano institucional, deve-se ter em conta que as instituições operam como um conjunto das formas ou estruturas fundamentais da organização social, tal como são estabelecidas pela lei ou costume nas diversas sociedades, é esta concepção que realça o papel dos conflitos políticos e a atribuição do caráter propriamente político assumido por determinadas instituições sociais, como no caso, a igreja católica e a maçonaria. A pergunta a ser colocada é se a influência política das instituições lhes é própria ou se revela somente a incidência de fatores externos.

A fórmula que sustentaria a estratégia era a recorrência à doutrina católica, especificamente no que refere à maçonaria, mais ainda a questão sacramental que se expressava “… num conjunto coerência relativa de representações, valores e crenças”. Valores e crenças operando como ideologia

Diz respeito ao mundo no qual os homens vivem suas relações com a natureza, a sociedade, os outros homens e sua própria atividade sócio-política. Faz-se presente em todas as atividades dos membros de uma sociedade de tal forma que ela (a ideologia religiosa) é indiscernível de sua experiência vivida”. [43]

Lembremos que todo ato de comunicação constitui-se um processo, no qual a ação percorre uma trajetória, com vista a tornar comuns os elementos de comportamento, experiências, sentimentos, ou modos de vida. Sua efetivação promove um sentido de unidade entre ideias e aspirações. Este o processo de comunicar reveste-se de função social, porque ao prover a identidade de aspirações, por exemplo, remete a normas que estruturam a ação comum dos sujeitos que estão envolvidos nesse processo, e que resulta em forma organizativa dos agrupamentos sociais. Sabe-se que nessa função social o processo se propõe a prover a estrutura ideológica para a vida dos seus destinatários através de recursos semiológicos, psicológicos, semânticos, etc.

No caso aqui referido se reconhece episcopado de um lado, clero, fieis e público geral, de outro, tendo a instrução pastoral como instrumento de mediação. A teoria comunicativa informa a necessidade de um “campo comum” entre emissor e retor, e que quanto maior a interação entre estes, melhor se realiza o processo comunicativo. O emissor pretende sempre que sua mensagem possua o poder modificador e leva em conta a situação histórica e a disposição dos destinatários.

Como lembra José Carlos Araújo, este projeto corresponderá ao “estado de espírito ideológico” mannheimiano no qual “as ideias são estranhas a realidade e transcendem a existência social”, ainda quando tais ideias, situacionalmente transcendentes permanecem “no nível da realização e na manutenção da ordem de coisa existentes”. [44]

Neste contexto o depositário das ideias ideológicas é o grupo religioso, institucionalmente denominado igreja católica, pois, possui um sistema intelectual, racional e ético, que porta e veicula uma interpretação doe sobreo mundo abarcando a vida ante e pós morte. [45]

Tal caráter ideológico do discurso produzido pela igreja católica é inevitável na medida em que sempre operou como representante de uma determinada ordem e pretendeu exercer o controle das ideias e interesses remissos a transcendência, impossíveis de serem efetivados no quadro de uma ordem autônoma, e porque pretendeu manter as coisas, ou seja, a posição da igreja foi de assegurar seu lugar social historicamente instituído.

Como demonstra Mannheim, sempre o grupo dominante que esteja em pleno acordo com a ordem existente irá determinar o que se deve considerar utópico, ao passo que o grupo ascendente em conflito com as coisas como estão, determinará o que deve ser considerado ideológico. [46]

A perspectiva da igreja católica era acordar-se com a ordem existente, pois não lhe convinham mudanças. Por esta razão ela caracterizará, por oposição, as utopias em relação aos grupos ascendentes a direção política que carrega consigo uma visão emancipada do mundo e do homem, a modernidade. O poder político ambiguamente representava a visão dominante e o conflito com outra ordem que abalaria o status quo.

Embora o senso comum repute negatividade ao conflito, a sociologia já demonstrou que ele é um dos mecanismos básicos da interação social. De fato, o conflito fixa fronteiras entre os grupos internos de uma mesma sociedade, robustecendo a consciência dos grupos, uma vez que a distinção favorece a afirmação de identidades. Quando grupos sociais se repulsam reciprocamente forjam no sistema social total um equilíbrio, ainda quando reclamam delimitação entre eles, e o meio ambiente social.

O documento em estudo Instrução aos Revmos. Ordinários do Brasil[…] é sugestivo a partir da sua construção enunciativa. Dentro da estrutura do direito canônico, a modulações de linguagem oferecem sugestões que não correspondem literalmente ao que a forma sugere. Evidentemente que o caráter do pronunciamento não tinha mero conteúdo de instrução, mas era um instrumento normativo, que fixava padrões de “como proceder”, bem como, embora aparente impor mecanismo para a contenção de uma dupla militância de católicos que se ligassem a maçonaria, o documento oferecia recursos para enfrentamento ideológico com a maçonaria, em seguida anunciada como “seita maçônica”, o que lhe atribuía à condição de grupo religioso, diretamente, e com o poder civil, indiretamente.

O texto refere-se “a seita maçônica que tantos danos tem causado a religião nesse país..”. o que apresenta a justificativa para o combate contra a maçonaria de forma tríplice: sua condição de seita, os males a religião, e os danos aos país. Apela-se a ação do clero, tomando-se como óbvio os danos, uma vez que não se enumera nem caracteriza tais males, mas se afirma de forma implícita, que a omissão do clero corresponde à perpetuação dos danos a religião e ao país. Mas não havia como não saber os comprometimentos do clero com ideologias alheias a ortodoxia romana. Não se cogita, portanto, um diálogo pacificador, mas “forte repressão” que não será resultado de ações isoladas ou resultados de improvisos, mas que demanda escrupuloso rigor na sua implementação.

Obviamente, uma crise de legitimidade no sistema social, como a ambígua separação de poderes em um estado confessional, como o Brasil imperial, impõe aos grupos com posições de influência objetivamente similares que, por meio do conflito, constituam-se grupos autoconscientes, com interesses próprios a defender, e a própria estrutura social estabelece o grau de conflito admissível, e seu limite é que não provoque a anomia social, como evidenciado na Questão Religiosa.

Considerando que toda identidade é política, compreende-se que no texto incide um enunciado sobre a construção das identidades, que sempre são politicamente ativas, e sua afirmação ou o surgimento se dá num espaço ocupado por outras pretensões de identidade e porque a referida afirmação consiste em traçar uma fronteira de alteridade que separa oque se é do que não se é. Ao mesmo tempo, não se ignora que toda identidade é contingente e remete a condições históricas, sociais, culturais e políticas, contingência que desautoriza suas pretensões de detenção da verdade, de legitimação universal ou de superioridade natural.

Segundo a perspectiva de Rubem Alves (1982), uma vez que o sagrado e a verdade não habitam as instituições, mas invadem o nosso mundo através da consciência, e que os sistemas religiosos são organizações simbólicas do mundo, cuja linguagem não é facilmente distinguida dos outros instrumentos linguísticos, é neste lócus que se acentuam as múltiplas formas do conflito, muitas vezes já esgotadas nas formas institucionais, mas mantidos em seus aparatos simbólicos.

Segundo o mesmo autor, “a combinatória de todos os conceitos de uma linguagem é o limite do que pode ser pensado com ela[…] Nenhuma linguagem pode assimilar os conceitos estranhos a si mesma, sem com isso condenar-se a destruição”[47], como sugere o texto da Instrução remetendo a norma da doutrina católica acerca da maneira de tratar os maçons, principalmente no que diz respeito aos sacramentos e aos outros bens espirituais, de cuja comunhão eles deveriam ser inteiramente privados, no caso, em forma de antítese de dois princípios: a norma da doutrina católica, e a maneira de tratar os maçons.

Ainda segundo Alves, “a aceitação de um discurso como verdadeiro e ortodoxo, e a rejeição de outro como falso e heterodoxo se dá ao nível do poder político dos sujeitos que o enunciam e sustentam tais discursos. O que importa é quem tem a última palavra” (Id., p. 38). No mesmo sentido Maurice Durverger (1961) indica que política é enfrentamento, onde os grupos que exercem o poder lutam contra os que lhes ameaçam o que se dá com vistas à preservação do bem ou resistência ao mal, concebida a partir do status social dos oponentes, objetivando a preservação de determinada ordem ou sua subversão. Afirma o autor:

toda a contestação da ordem social existente é a imagem e projeto de uma ordem superior, mais autêntica. Toda luta é portadora de um sonho de integração, e constitui um esforço para o encarnar. Para muitos, luta e integração não são duas faces opostas, mas sim um único e mesmo processo de conjunto gerando a luta naturalmente a integração, tendendo a antagonismos, pelo seu próprio desenvolvimento para a supressão e para o advento de uma Cidade harmoniosa. [48]

Estas formas de embate político têm como background o poder exercido sempre em proveito de algum grupo, nível onde conflituam os interesses dos diversos segmentos sociais. O fato é que as instituições políticas determinam o quadro interior no qual se desenrolam os combates políticos, e assimilam em sua arena de luta as instituições “para-políticas”, aquelas que não instituídas como organizações políticas, mas que exercem efetivamente este papel na sociedade, como a igreja. O ambiente onde se desenvolvem os antagonismos pode polarizar os blocos em disputa em uma oposição máxima.

A instituição é um mecanismo social que estabelece os parâmetros comportamentais dos indivíduos de forma especializada, de sorte que eles reproduzem os objetos predeterminados pela Instituição, assim, força os indivíduos a produzirem segundo o modelo pré-estabelecido, como, por exemplo, a dimensão excludente entre ser católico e maçom que se considerava intolerável.

Na formação social brasileira, ainda no século XIX, o sacerdote operava como referência societária e comunitária, desta forma, se parte do clero se tornava membro da maçonaria, isto podia ser tomado como consentimento ou legitimidade para a participação de leigos católicos na maçonaria, o que representava uma “dissidência” e consequentemente um enfraquecimento do próprio catolicismo.

O empenho da igreja em manter seu status e papel social reflete o fato que as instituições, enquanto respostas aos problemas concretamente vividos na organização da vida social, somente se justificam na medida em que preservam sua eficácia prática, e que em sua institucionalidade o passado tem sempre prioridade sobre o presente, onde aquele funciona como modelo desses, daí a remissão ao enfrentamento com a maçonaria como experiência de longa data na trajetória da igreja, como sendo certo e mais que certo, que a maçonaria deveria ser considerada entre as sociedades condenadas pelas Constituições Apostólicas.

Na medida em que as instituições são eficazes, ninguém precisa alterá-las, e a funcionalidade é confundida com verdade, o discurso sobre outras instituições toma forma de justificação ideológica, e passa-se a usar a descrição das realidades institucionais, como base para os imperativos éticos, que no documento em estudo se nomeia como bens espirituais, conformidade a “norma da doutrina católica[…]”; “sacramentos e aos outros bens espirituais, as bênçãos e […]” “cerimônias eclesiásticas”; “poderão ser absolvidos da excomunhão em que incorreram e para este fim Sua Santidade benignamente concede[…];” reconciliado com Deus e com a Igreja pela absolvição.

Ainda segundo Durverger o combate político insere-se nas práticas sociais onde os sujeitos refletem as categorias sociais em conflito, e se subordinam a situações conjunturais e históricas do próprio ambiente societário no qual se situam, assim, compreende-se o apelo ao clero “contra os males a religião e ao país”.

Uma vez que não se cogita o diálogo pacificador, se reafirma que “será tanto mais fortemente reprimida”, quanto mais “escrupulosamente for observada pelo clero a norma da doutrina católica acerca da maneira de tratar os maçons”, a fórmula que sustentaria a estratégia era, portanto, a recorrência à doutrina católica, no que refere à maçonaria, mais especificamente a questão sacramental, explicitamente no que diz respeito aos sacramentos e aos outros “bens espirituais”, de cuja comunhão eles devem ser inteiramente privados até que abjurem da “ímpia seita”.

Não se ignora que o conflito com outros grupos torna mais nítido as fronteiras de cada grupo, ao contrário das tensões intramuros que ameaça derrubar as fronteiras já estabelecidas do grupo, o que explica a insistência que o texto revela nas informações chegadas a Roma, apontando a lassidão com que o problema de admissão dos maçons nas práticas religiosas acarretava, quando afirma textualmente que: “a S. Sé esteja bem informada de que a praxe seguida pelos párocos desse império difere muito nesse ponto a Sagrada Congregação”, com a aprovação do Santo Padre.

Nesta seção o quadro ganha nova gravidade porque se aponta para a cumplicidade ou omissão do clero. O clero, não era infenso as relações que marcavam a vida social dos Oitocentos, e muitos deles, adotavam a maçonaria como espaço pra expressão de suas convicções políticas liberais. Por isso, se apela ao princípio de autoridade porque a matéria estava agora no âmbito da Sé romana, e se estabelece velada ameaça, apontando que a questão não estava cativa da dimensão administrativa, mas jurídica, porque sob os olhares do órgão sensor, a Sagrada Congregação da Santa Inquisição. Ambas, a Cúria e a Congregação estavam sob o aval do próprio pontífice.

É conhecido como os sistemas religiosos tendem a absorver a personalidade inteira dos seus fiéis. Porque a união entre os membros é muito mais forte do que naquelas onde prevalecem relações do tipo fragmentário. Assim, os credos tendem a reprimir os antagonismos internos e os desvios de conduta, sobretudo, entre as lideranças e aqueles investidos de autoridade, como já indicamos, com a adesão de clérigos e fiéis a maçonaria.

Na verdade, a reação pode ser mais forte nestas condições porque o inimigo de dentro põe em contradição os valores e interesses do grupo e ameaça a unidade. A quebra da norma, ou transigir com o erro, significa e simboliza uma deserção daqueles princípios que o grupo considera vital para seu bem estar, e para sua sobrevivência. O religioso que transige contribui para a fortaleza do grupo oposto ao transferir para este a sua lealdade, primeiro porque sugere possível a dupla militância, segundo porque esta lealdade pode ser mais forte, principalmente pelo fato que transfere maior convicção a sua causa nova

A estes teve por bem “relembrar as coisas seguintes, que todos deverão cumprir fielmente”. Outra vez o expediente discursivo aparece de forma sutil, porque se tratava não de novo regramento, mas de “relembrar” o que já era dever do clero, porém, esta “lembrança” exigia que as obrigações fossem “cumpridas fielmente”. E o documento insiste: “e falando primeiramente do sacramento do matrimônio, não se pode de modo algum tolerar o que sucede em algumas dioceses, segundo consta, a saber, que sejam celebrados os matrimônios dos maçons com toda solenidade do rito católico”.

Neste ponto importa pensar porque as dioceses casavam os mações, contra a regra católica. Num ambiente em que não somente os estratos médios e subalternos da sociedade aderiam à maçonaria, mas de fato, predominava entre membros da elite intelectual e política, não convinha ao clero se indispor com estas elites, por isso, as autoridades diocesanas tendiam a contemporanizar com tais práticas, preterindo o rigor. De resto, senão na hierarquia, mas no clero graduado no governo diocesano a percepção sobre a maçonaria não se fazia sobre os documentos eclesiásticos, mas sobre o contexto social do Brasil imperial.

O objetivo no documento era colocar os maçons numa condição de pária social, subtraindo a legitimidade das suas relações sociais, notadamente, familiares, num contexto que o status civil do casamento fixado em lei brasileira era novo e não gozava de plena efetividade enquanto norma jurídica. Esta estratégia não significava apenas uma hostilidade aos maçons, e sim um mecanismo de demarcação dos espaços de poder dentro da ordem política imperial, com o enfraquecimento da maçonaria, através de uma contrapropaganda que subtraísse sua possibilidade de ampliar a inserção sobre segmentos sociais tradicionalmente menos infensos a influência do catolicismo, ou seja, catalisar novos membros para a maçonaria entre os católicos. Mas fica a pergunta até que ponto sansões eclesiásticas inibiam a adesão à maçonaria?

Havia irmandades católicas com membros e dirigentes maçons, tanto que foram objeto de sansões eclesiásticas pelo bispo de Pernambuco na Questão Religiosa, e também livres pensadores, profissionais liberais e acadêmicos, além de membros do governo em todas as instâncias, já filiados as diversas lojas pelo país.

Se percebermos a comunidade como a realidade social dentro da própria instituição social, no sentido em que ambas afirmam os mesmos símbolos, uma vez que os símbolos que a comunidade usa foram mediados pela instituição, se entende mais precisamente o que era a sansão eclesiástica num ambiente social e culturalmente católico.

Se por um lado a hermenêutica da instituição é uma em que a significação dos símbolos já foi esgotada pelo passado, cabendo-nos agora simplesmente explicitá-los com maior clareza e aprofundá-los, a comunidade, por sua vez, possui uma compreensão que os símbolos não se encontram apenas no significado herdado do passado, mas precisa ser ressignificados no presente vivido.

O documento afirma que antes, se algum maçom, sendo conhecido como tal, desejar contrair matrimônio, o pároco é obrigado a procurar com todas as forças, “que ele deixe a maçonaria”. Ora, em todas as relações de conflito, as disposições hostis agressivas acumuladas, podem não só descarregar sobre o objeto primordial da hostilidade, mas também sobre os objetos substitutivos. Neste caso, exemplarmente, a hostilidade contra “a seita maçônica” volta-se contra o maçom católico, pretenso beneficiário dos bens espirituais. É evidente que a privação da vivência religiosa dos indivíduos particulares não poria fim a “seita maçônica que tantos males tem feito a religião e ao país”. Portanto, o conflito direto com funções primárias de oposição não esgota a experiência conflitual, pois, ela pode derivar para objetos substitutivos ou obter satisfação alternativa mediante uma simples liberação da tensão, como as restrições às práticas religiosas para atingir a maçonaria, coagindo alguns a deixá-la, sob pressão social ou familiar.

A literatura sobre a situação religiosa da América Latina sob influência católica, explica a substituição do foco sob o maçom anelante por casar-se, para a família da nubente, na recomendação que “caso não queira [abjurar da maçonaria], o pároco se esforce seriamente em afastar com oportunas admoestações a esposa e seus pais de semelhante consórcio”, pois segundo anotado no jornal mexicano El abogado cristiano ilustrado: “a igreja tem em seu poder as mães, esposas, filhas, irmãs, toda a família, enfim, que satisfazem todos os seus gastos e gestos”[49], favorecendo a submissão da consciência [50].

E o documento insiste que:

Quando, porém, o pároco não puder de modo algum impedir a realização do matrimônio, e prudentemente recear que, negando sua assistência, resultará escândalo ou dano grave, então leve o fato ao conhecimento do ordinário, o qual, em virtude da faculdade competente que agora lhe é outorgada, depois de examinadas e pesadas todas as circunstâncias do caso, poderá permitir que o pároco assista o matrimônio passivamente, isto é, sem as bênçãos e sem as outras cerimônias eclesiásticas, apenas como testemunha autorizável, e neste caso.

A resposta a violência, com a exclusão do hostil assegura a sobrevivência do grupo e elimina a acumulação de disposições hostis, permitindo a manutenção interativa das relações, uma vez que o conflito modifica os termos tradicionais do relacionamento, pois, a simples hostilidade não produz necessariamente estes efeitos e até pode preservá-los. Nesse caso, a admissibilidade tinha objetivos precisos: impedir que se retorne aos níveis de tensão com o Estado como na Questão Religiosa. Evitar tensões com Estado que tendia a favorecer a maçonaria, afinal, a doutrina não previa este expediente de tolerância a que a igreja, contra sua vontade, se submetia para minimizar consequências do enfrentamento.

A Instrução determinava ainda:

devem ser tomadas previamente as precauções e providências necessárias para a educação de toda a prole, e observadas as demais condições de estilo. A referida faculdade poderá ser delegada em reservado aos párocos, sempre que o ordinário achar necessário. Quanto, porém, ao matrimônio entre uma parte católica e outra que afastou da fé para professar alguma religião falsa, ou seita herética, é preciso requerer a costumada e necessária dispensa com as prescrições e cláusulas conhecidas e de estilo. [51]

Como dissemos, é menos perigoso para um grupo se quem se separa se passa para o inimigo do que se, como faz o dissidente, forma seu próprio grupo rival dentro da instituição. Além disso, professando repartir valores do grupo, o dissidente cria confusão e, portanto, suas ações se consideram como uma tentativa de derrubar fronteiras. Pelo contrário, a percepção de perigo interno pelo conjunto do grupo faz com que se robusteçam suas fileiras, aumentando a discussão interna e a participação na vida grupal, ou seja, mobiliza as defesas do grupo.

Além disso, a exigência que os Ordinários, “em nome da S. Sé, recomendem aos confessores, que admoestem severamente aos seus penitentes, para que não se associem a maçonaria”, aponta para um catolicismo como o único espaço de objeção a maçonaria e a adesão progressiva de católicos, sobretudo, clérigos, que abria a mencionada faixa de vulnerabilidade que enfraqueceria ainda mais a condição do catolicismo no Brasil, já vitimado pela Questão Religiosa, o regalismo e o protestantismo que se estabelecia.

Segundo Vieira o núncio temia o protestantismo, pois, a igreja católica mantinha o desejo de possessão, subjugação inclusive de aniquilamento do inimigo, tendendo a se satisfazer mediante combinações e sucessos separados da luta. Quando o conflito é simplesmente um instrumento determinado por um objetivo mais amplo, não há razão para restringi-lo ou inclusive, evitá-lo, sempre que possa ser reimplementado por outras medidas que ofereçam possibilidade de êxito.

O documento procura criar uma rede sem escapatória insistindo que a ruptura quanto à maçonaria devia incluir outras sociedades secretas semelhantes a estas, nem tão pouco “tomem parte em suas reuniões, nem lhe prestem apoio ou proteção”, e os mesmos confessores “neguem absolvição sacramental aos que se mostrem pertinazes”.

Quanto, porém, “aos que se arrependerem sinceramente”, prossegue o documento, estes “poderão ser absolvidos da excomunhão em que incorreram” e para este fim Sua Santidade benignamente concede aos Ordinários as faculdades necessárias e oportunas pelo espaço de dez anos.

Demais, saibam os Confessores que os afiliados a sociedade denominada pedreiros livres, embora estejam arrependidos de terem prestado o juramento, não se pode dar a absolvição sacramental, senão depois que eles de uma vez para sempre, tiverem deixado de um modo absoluto e positivo a dita sociedade, ou ao menos prometerem deveras que o farão o quanto antes.

Ainda mais, deve-se proibir absolutamente que os maçons notórios sejam padrinhos de abismos ou de crisma, visto como eles, enquanto aderirem à uma seita condenada pela Igreja, são incapazes de promover a educação cristã de seus filhos espirituais quando se torne preciso.

Ainda na questão simbólica, foi dada a ênfase a questão dos enterramentos. Neste particular Pernambuco tinha um caso emblemático, com a negação de sepultura ao general Abreu e Lima por haver defendido a legitimidade das bíblias protestantes. A regra impunha que

Resta que se observe com exatidão as prescrições da Igreja relativas a sepultura e exéquias de maçons. Ei-las: não se pode dar sepultura eclesiástica aos maçons notórios, senão depois que eles, feita a devida retratação, se tiverem se reconciliado com Deus e com a Igreja pela absolvição. Se, porém, a morte lhes vier inesperadamente, de modo que não tenham podido fazer a retratação de estilo, e, não obstante, tiverem mostrado desejo e dado sinal de arrependimento, neste caso poderão ter sepultura eclesiástica, mas sem exéquias pomposas e solenes. Também devem ser privado da sepultura eclesiástica aqueles que, depois de recebido os sacramentos, pedir para ser sepultado com as insígnias maçônicas, exceto o caso de tenha demonstrado essa vontade. Quando, porém, por perversidade de outrem, contra o desejo do finado, forem colocado no féretro emblemas maçônicos, a menos que se tenha conhecimento disso, se faça retirá-las inteiramente de junto do cadáver. É, pois, manifesto do que fica exposto, que não é de modo algum permitido o que ali se costuma praticar em alguns lugares segundo esta Sagrada Congregação está informada, que os cadáveres sejam sepultados segundo o costume maçônico com acompanhamento e presença do clero.

Nas diversas formulas em que se instituem os conflitos sociais, a irracionalidade constitui-se apenas em uma das variantes do processo e representa o esforço por alcançar metas culturalmente prescritas através de meios socialmente proibidos, e em regra referem-se mais aos instrumentos do que a expressão. Todavia, outros tipos de desvio podem servir para liberar a tensão. A ação não serve como meio para obter um resultado específico.

A conclusão do documento guarda o caráter incisivo que permeia todo o texto:

Quando aos casos em que se deve negar a sepultura eclesiástica se houver receio de grave perturbação, os Ordinários, para procederem com mais segurança em negócio de tanta monta, observem a resposta da Sagrada Penitência. Convém a saber: todas as vezes em que se exigir com graves ameaças exéquias e sepultura eclesiástica para um defunto que tenha sido excomungado notório deve ser inteiramente privado das mesmas segundo os Sagrados Cânones e disposições de Direito, a sagrada Penitência em 10 de dezembro de 1860 prescrevem que se proceda do seguinte modo: “Se procure fazer tudo de conformidade com os sagrados cânones, quando porém não se possa fazer assim sem perigo de perturbações o escândalo, o pároco não preste de modo algum, nem por si, nem por outro Sacerdote o seu concurso para as exéquias e sepulturas”.

A conduta está relacionada a um campo social, e o conflito, como fenômeno social, somente pode ser compreendido dentro de um quadro de ação recíproca, como infere Montenegro

Religião é a própria concepção da monarquia apoiada num mito, cuja condição de representação mental primitiva embasa a religiosidade do povo, valorizando o paternalismo no campo social e político, traduzido na linguagem religiosa como providencialismo, mesmo porque “a coroa tem da religião uma imagem utilitária, já imbuída do racionalismo e valendo-se da união com a igreja, num momento histórico alheio a suas causas, não mais subsistentes, para investir contra ela, e reduzindo-a a impotência, assomar como força soberana única e incontestável, a ponto de tê-la submissa, mercê da política regalista. Neste quadro sintomática a incapacidade política da Cúria, do episcopado e do clero brasileiros aferrados aos dispositivos do direito canônico e da legislação civil, incapazes de promoverem uma revisão ou reforma no Estatuto Eclesiástico, na metodologia pastoral e de retificarem posições axiológicas sediças, mesmo sobre as violentas pressões do tempo. Muito ao contrario apegam-se ferrenhamente a privilégios temporais injustificáveis fomentando a onda de anticlericalismo e ceticismo religioso que assolou o Império. [52]

Finalmente, conclui o documento

sendo certo e mais que certo, que a maçonaria deve ser considerada entre as sociedades condenadas por Constituição Apostólica, de maneira alguma se pode permitir que os maçons assistam o Santo Sacrifício da Missa, e outras funções eclesiásticas de caráter oficial, isto é, com representantes da seita. Se deve igualmente proibir que o clero por convite ou mandado dos maçons celebrem missa ou funções eclesiásticas, como encomendadas ou mandadas pelos maçons, ou publicadas como tais em convites ou folhas públicas.

Considerações finais

Observando a imprensa secular, os jurisconsultos, os debates parlamentares, as reações populares, percebe-se nitidamente que a questão não se restringia a um desentendimento de duas agências políticas, antes, envolvia toda sociedade brasileira. Tradicionalmente católica, com sua própria compreensão da fé, amplos setores não percebiam contradição entre ser católico e maçon.

Mas o problema não se esgota como expediente doutrinário, a crise era política, do catolicismo historicamente atrelado ao estado, que, sentindo-se traído por este no apoio a maçonaria, acena com a ruptura das relações de compromisso, consequentemente, com a quebra da ordem.

Sentindo que sua condição no combate era desfavorável, o catolicismo substitui a estratégia, abandona o embate direto da igreja no Brasil com o Estado, e deixa que a questão seja reelaborada como expediente diplomático, pressionando o Estado a restaurar suas relações internacionais, e obrigando a igreja do Brasil a se conformar as diretrizes da igreja universal.

O documento da inernunciatura evidencia a tese citada de Rui Barbosa, que a questão não era forânea, circunstancial, o pessoal pelo temperamento voluntarioso do bispo. O documento deixa entrever que a igreja em Roma continuava com as mesmas demandas que sempre tivera em relação ao catolicismo brasileiro, e entendia que o governo imperial estava fadado a direcionar os interesses dos Estado na conformidade com a religião oficial e da tradição brasileira.

Finis

Autores: João Marcos Leitão Santos e Elza Silva Cardoso Soffiatti

Fonte: REHMLAC

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Notas

[42] – João Marcos Leitão Santos. A inserção do protestantismo em Pernambuco 1860-1891. (Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo/USP, São Paulo, 2008). João Marcos Leitão Santos. “Protestantismo e tradicionalismo católico em Pernambuco no século XIX”. In: História das religiões no Brasil, Sylvana Brandão; Luiz Carlos Luz Marques, & Newton D. de Andrade Cabral (Recife: Bargaço, 2012), v. VI.

[43] – João Carlos Libâneo, apud José Carlos S Araújo, A Igreja católica no Brasil Um estudo de mentalidade ideológica (São Paulo: Paulinas, 1986),27.

[44] – José Carlos S. Araujo, A Igreja católica no Brasil, 42.

[45] – Riolando Azzi, O altar unido ao trono (São Paulo: Edições Paulinas l993).(História do Pensamento Católico no Brasil –V. III).

[46] – Karl Mannheim, Ideologia e utopia (Rio de Janeiro: Guanabara, 1983), 227.

[47] – Rubem A. Alves, Dogmatismo e Tolerância (São Paulo, Paulinas, 1982), 35-36.

[48] – Maurice Durverger, Introdução à política (Lisboa: Estudios Cor, 1961),17.

[49] – EL ABOGADO CRISTIANO 13.6.1901.

[50] – Maria Luiza Marcílio, Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil (São Paulo: Loyola, 1993).

[51] – Sobre esta questão de casamentos com membros de uma religião falsa ver João Marcos Leitão Santos. “Religião e Direitos Civis. Direito acatólico em Pernambuco no século XIX”, Revista da Faculdade de Direito de Olinda (2005): 121-139. Ítalo Domingos Santirocchi.“O matrimônio no Império do Brasil: uma questão de Estado”. Revista Brasileira de História das Religiões 12 (2012): 81-122.

[52] – João Alfredo Montenegro, Evolução do Catolicismo Brasileiro (Rio de Janeiro: Vozes, l979).

Fontes

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Bibliografia

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As contenções da liberdade. A Maçonaria e a Internunciatura Apostólica no Brasil do século XIX (Parte II)

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Jesuitismo em delírio

Segundo a ordem que o nosso jovem prelado acaba de expedir, os maçons não servirão mais de padrinhos, tanto nos batizados como nas crismas e casamentos, porque estão excomungados.

Admira que só agora se lembrasse ele desta sábia medida, o que prova que, ou ignorava quando entrou para o bispado, ou cometeu o pecado de permitir que tal se fizesse contra a disposição expressa da igreja como agora alega.

Enfim, diz o rifão antes tarde do que nunca.

Como consequência lógica, já que o anátema data de tempos atrás, deve declarar nulo todos os batizados, crismas e casamentos feitos, em que figurem maçons atendendo ao que não estão autorizados [19].

A uma igreja que se erigira á margem da cátedra episcopal, com amorfa vida das ordens religiosas, e sob influência tutelar das elites, o Estado não devotava maior preocupação. A mudança se dá com o processo de romanização. D. Fr. Vital Maria Gonçalves de Oliveira escolhido como alvo era um contraste com a “legião de religiosos mansos, pacíficos, cordatos, dotados de submissão absoluta, incapazes de reação violenta contra o poder estatal, onde os maçons de então se escudavam” [20].

Sim foi um choque tremendo. Parecia uma outra igreja que falava pela voz do jovem prelado de Olinda. Habituáramos a uma religião decorativa, oficial, a uma igreja que, vivendo a sombra do Estado, tranquila na segurança do monopólio religioso, num meio de alto a baixo tido como católico, limitava-se a rotina do culto [21].

Outra vez a imprensa empresta sua hermenêutica do problema:

Motim em Pernambuco

Os excessos do episcopado e a inexplicável morosidade do poder civil em satisfazer as justas esperanças da opinião pública ultrajada, vão produzindo seus naturais resultados funestos. [22]

E o analista católico completa:

No período monárquico, a religião não pode ser considerada pelo historiador, sem que, ao lado do profundo sentimento católico que anima o povo e do prestígio que ela tem para as massas, se mostram bem salientes estes fatos: o regalismo, o enfraquecimento das ordens religiosas, o desprestígio do clero, a reação enérgica, mas efêmera, do episcopado e do elemento católico contra as usurpações do poder público, o racionalismo ou o ceticismo das classes dirigentes (grifo nosso) [23].

Por isso não e difícil acompanhar Nestor Duarte afirmando que:

A igreja e o Estado entraram no Brasil já discutindo competências, a reivindicar jurisdição, disputar poderes, com grave dano tão só, porém, para a Coroa, que vem vindo, já de longe, arrastando concurrente (sic) e concorrida, na hora histórica, precisamente, em que o poder real em outras nações encetou o ciclo do Estado Moderno. [24]

Assim se reeditava a tese de que a Questão Religiosa sintetizou-se dentro de uma unilateralidade própria de uma maçonaria toda diferente dos primeiros moldes da organização europeia, em não ser uma luta entre católicos e ateus, ou mesmo ainda entre católicos e protestantes, porém, essencialmente, entre católicos e católicos, ou melhor, entre católicos escolásticos e ortodoxos, contra a tese de uma maçonaria operante como um complexo de formação secreta, fermento políticos ou símbolo de progresso liberal, como incentivo de revoluções25.Não se passava na elite católica adepta da maçonaria a ideia que na intimidade daquela irmandade iria encontrar germes de ação anticlerical.

Os antagonismos com a maçonaria remetiam a períodos precedentes, por isso,

em 1817 ensaiaram os maçons o primeiro e subterrâneo movimento contra a religião, lançando nos termos de sua proclamação na revolução pernambucana deste ano, os planos sobre a liberdade de culto religioso. Se a ideia de fato não atingia diretamente a igreja católica, todavia, levantava uma premissa perigosa aos conceitos de nosso composto sociológico–o principio da liberdade religiosa–como porta aberta aos cismáticos religiosos, dos ímpios e dos ateus. Não era possível a um povo tipicamente católico como o nosso, o cisma de competições religiosas, que se nos afigurava, então, como um conceito inqualificado de impiedade cristã. E daí, quem sabe, tenha vindo, entre outros fatores, a fracassar o movimento revolucionário de 1817. Um dos sentidos da revolução era o do espírito combativo contra a exclusividade religiosa e não tinha, assim, raízes na alma popular (grifo nosso). [26]

O governo imperial já informara a D. Vital que “considerando que a maçonaria como sociedade secreta, e permitida pela lei civil, não tem fins religiosos nem conspira contra a religião católica, e que, portanto, faltam-lhe o caráter e o intuito que a sujeitou a jurisdição eclesiástica e a condenação sem forma e figura de juízo”[27], ou seja, os maçons não estavam sob jurisdição eclesiástica, mesmo vinculados a entidades católicas. O argumento, paradoxalmente, se fundava sob o princípio da liberdade de consciência, ao passo que:

Esquecia-se até, que esta liberdade de consciência, que permitia este combate descoberto contra os princípios da igreja, por mais absurdo que parecesse fora defendido pelos próprios sacerdotes, ansiosos pelos princípios da pura liberalidade social, e sem pressentirem, porém, que abriam caminho para os seus próprios inimigos. [28]

Os emissários episcopais já haviam cientificado o Vaticano das tensões, e o secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Antonelli, notificado o barão de Alhandra, autoridade diplomática brasileira, para dar-lhe ciência da posição do Papa, em apoio explícito aos seus bispos e o enfrentamento ao governo brasileiro.

O fracasso do governo atingia indiretamente a maçonaria. Começam sinais de indisciplina eclesiástica, que Dom Vital indicara porque “os homens do estado responsáveis pela violência, são cegos à situação política do Brasil. Eles não vêm que a religião é a melhor parte da autoridade contra os assaltos da revolução que avança, são vitimas da cegueira e levarão o país a ruína” [29].

A problemática da Questão Religiosa não se esgota entre 1872 e 1875 como se percebe nos debates parlamentares posteriores, implicava toda a questão do padroado e no embate do direito eclesiástico com o civil [30], e o Imperador entendia com o Marquês de São Vicente, principal jurista do Império, que no Direito Público o Estado tem direito de fiscalizar o culto, a doutrina e a disciplina da religião do Estado.

Dar a religião católica o privilégio de religião do Estado e criar uma igreja nacional, eis a visão galicana, expressa concisamente por Joaquim Nabuco em A Invasão Ultramontana (1873). O Conselho de Estado, “o cérebro da Monarquia”, segundo Joaquim Nabuco e a maioria dos juristas e políticos, apoiava esta doutrina e defendia com o gabinete de Rio Branco e o Imperador a doutrina regalista temendo“(jus cavendi…) a invasão do temporal pelo espiritual” [31].

A leitura dos textos de D. Vital e D. Macedo Costa nos mostra uma inflexibilidade doutrinal e uma identificação completa entre igreja como instituição e salvação ou Reino de Deus[…] limitaram-se a defender a doutrina da igreja, isto é, os textos pontifícios, especialmente os de Pio IX contra o maçonismo e o regalismo”[32].

Mas isto revela uma incongruência. Afirmar a verdade da igreja na questão doutrinal é afirmar a verdade do discurso da igreja, na ordem temporal. Havia uma compreensão que o conflito não fora espontâneo. Tobias Barreto, que foi “o único em sua geração” a a desinteressar-se pela questão interrogou se a questão não serviria como cortina de fumaça para esconder a lei do ventre livre, que emancipava os escravos nascidos depois de o 28 de setembro de 1871. Depois Hermes Lima [33] também sugeriu que o presidente do Conselho de Estado agiu para dar ao país novos motivos de preocupação, e assim teria engendrado a controvérsia religiosa.

Como fica claro, a Questão de fato se pretende a algo mais do que um bispo solitário, expressão do enfrentamento mais geral entre a Igreja e maçonaria, porque antes da sua sagração, a maçonaria estava mobilizada com uma estratégia aguerrida.

Segundo Freire:

A consciência da ordem católica, encarnada por D. Vital, em momento dramático da vida brasileira, encontrou no senso de ordem política, que animou então contra a igreja, e particularmente, contra os seus bispos mais severamente ortodoxos, os estadistas principais do império, radical contradição. Eram, entretanto, dois aspectos essenciais –essas duas ordens –de um só sistema não só de convivência como de ordenação[…], um sistema mais compreensivo ou mais amplo, que qualquer das suas ordens. [34]

Em carta a D. Vital, afirmava o ministro João Alfredo:

A nossa constituição permite todas as religiões com seu culto doméstico e particular. Organizam-se aqui sociedades compostas de estrangeiros para fins religiosos diferentes dos nossos com autorização do poder civil e funcionam livremente. Quando isso acontece, não sei como poderia o governo proibir as sociedades maçônicas que se compõem de católicos que não tem fins contrários à religião do império e que dado que os tivessem, trabalham de portas fechadas. [35]

Na resposta ao conselheiro, afirma D. Vital:

Compreenda V. Exia que esta questão é de vida ou de morte para a igreja brasileira cumpre-nos antes arcar com os maiores sacrifícios que afrouxar. E mais: Se eu fosse político ou de mais idade, diria que graves perturbações da ordem pública estão iminentes em quase todo o Brasil e são inevitáveis, apesar da minha prudência, a causa, reservo-me para dizê-la a V. Exia pessoalmente, quando tiver ensejo. [36]

Continuidade das tensões: A maçonaria sobrevive

Oliveira Torres lembra, que numa época em que não existiam partidos estruturados, “as lojas maçônicas eram instrumento de ação política, estava a serviço dos objetivos, ideais e preconceitos da burguesia da época” [37]. A Questão Religiosa espelhava um estado de ânimo da formação sociorreligiosa do Brasil imperial e não pode ser vista sem pensar a influência já apontada do jansenismo e do galicanismo que legou a formação dos nossos juristas na tradição da Universidade de Coimbra, e que informou a ereção da igreja no Brasil, muito mais do que a doutrina católica propriamente, o clero era ainda composto de muitos regalistas e revolucionários. Tudo, aliás, se complica enormemente porque existe uma tradição maçônica brasileira especialíssima [38].

As consequências indiretas do conflito foram altamente fecundas sob o aspecto religioso. A ala mais exaltada e polêmica da maçonaria considerou a solução do conflito como a favor da Igreja, seus direitos, sua liberdade. “A igreja foi vencedora na parte substancial da questão, reconhece-o a própria maçonaria. E Dom Vital no seu admirável Resumo Histórico, nos escreve: “‘a questão despertou o sentimento católico no Brasil’.

A questão maçônica tornou-se religiosa por haver o bispo de Pernambuco respondido as questões postas pela imprensa não católica? O deputado Saldanha Marinho, o “Ganganelli”,arguia que o bispo poderia ser enquadrado na mesma lei em que se apoiava contra a maçonaria se não fosse “certa leniência do Estado”, e acusava não somente Dom Vital e Dom Macedo Costa, mas o episcopado: “E gravíssima a questão religiosa, que o episcopado irrefletida e imprudentemente levantou, urge que seja resolvida sem demora” [39]. O enfrentamento da Igreja era também com o poder temporal, no dizer de Macedo Costa, se a maçonaria podia dizer, a igreja podia replicar.

Para que se pudesse lançar a culpa ao governo, como fez o bispo do Pará, de modo peremptório, era necessário que esse mesmo governo se identificasse com a maçonaria. Por isso, a questão deixou de ser maçônica, para ser religiosa, porque, sendo assim, a culpa não seria da maçonaria, mas dos bispos e da igreja. Configurou-se, então, o choque mais amplo, que ia além da desinteligência local entre bispos e maçons, entre liberais e ultramontanos. Não lucrava muito o governo com esta mudança, porque passou a ser o alvo da retórica acusatória do episcopado.

A conclusão pode ser a forma lacônica e premonitória de descrever a conjuntura do Monsenhor Joaquim Pinto de Campos

Tristes e pesados se revezam os dias desta parte integrante do rebanho cristão. As mais urgentes necessidades corriam a revelia de toda vigilância pastoral; a lanterna da fé quase se extinguia nos ermos da consciência; a caridade, filha preciosa das entranhas divinas, quase que se esfriavam nas obras dos homens; as evidências do catolicismo eram postas em questão; a heresia pompeava ao remanso da indiferença de uns, e do fervor de outros; e quando o desejo dos flagícios e dos escândalos mais ameaçava de soltar-se de todos os diques, eis que o Espírito Santo, supremo instruidor dos pastores, nos favoreceu com o remédio apropriado as nossas enfermidades espirituais! [40]

Além da escassez de mão-de-obra, o perfil do clero também comprometia. Segundo Maciel de Barros:

O clero nacional, dos tempos pombalinos até as vésperas da Questão Religiosa, não se distinguia com raras exceções por qualquer demonstração de ortodoxia. Mais frequentadores das letras francesas do que das latinas, mais versados em literatura profana do que em obras pias, muitos de nossos clérigos estavam saturados de ideais iluministas… Ao lado do ideal iluminista, o clero professava geralmente, no que diz respeito às relações entre a Igreja e o Estado, o mais ferrenho regalismo, apoiado nas tradições lusitanas, particularmente a pombalina. Basta dizer que entre os muitos eclesiásticos que faziam parte da Assembleia Legislativa, de 1826 a 1829, contavam-se vários que não titubeavam em reconhecer o primado do Imperador… [41]

Continua

Autores: João Marcos Leitão Santos e Elza Silva Cardoso Soffiatti

Fonte: REHMLAC

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Notas

[19] – JORNAL DO RECIFE, 16.03.1873

[20] – Flávio Guerra, A questão religiosa, 53.

[21] – Manoel de Oliveira Lima, O Império brasileiro (1821-1889) (São Paulo: Melhoramentos, 1930), 130.

[22] – JORNAL DO RECIFE, 10.05.1873

[23] – Júlio Maria, O catolicismo no Brasil (Rio de Janeiro: Agir, 1950),19, 20.

[24] – Nestor Duarte, A ordem privada e a organização política nacional. Contribuição a sociologia política brasileira (São Paulo: Nacional, 1939), 26.

[25] – Nas perseguições havidas com a fundação da Igreja Presbiteriana do Recife, em agosto de 1878, os populares afirmaram, as três fontes, como base da legitimidade social ao acusarem os protestantes: “desafiaram Roma, o Imperador e a Maçonaria” Moacyr Soares; Israel F. Gueiros; Nicodemos L Pereira, Anais do centenário. Igreja Presbiteriana do Recife 1878-1978 (Recife: do autor, 1978).

[26] – Flávio Guerra, A questão religiosa, 57.

[27] – Flávio Guerra, A questão religiosa, 104.

[28] – Flávio Guerra, A questão religiosa, 107.

[29]Carta Pastoral do bispo de Olinda premunindo seus diocesanos contra as ciladas e maquinações da maçonaria (Recife, 1873[D. frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira]), 19.

[30] – João Dornas Filho, O padroado e a igreja brasileira (Rio de Janeiro: Cia Ed. Nacional, 1937).

[31] – Antonio Carlos Vilaça. Pensamento Católico no Brasil, 57.

[32] – Antonio Carlos Vilaça. Pensamento Católico no Brasil, 58.

[33] – Hermes Lima, “A Questão Religiosa”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco 28, no. 3l/34 (1917):323-326.

[34] – Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala (São Paulo: Círculo do Livro, 1959), 25.

[35] – Antonio Carlos Vilaça. Pensamento Católico no Brasil, 42.

[36] – Antonio Carlos Vilaça. Pensamento Católico no Brasil, 52.

[37] – João Camilo de O. Torres, História das ideias religiosas no Brasil (São Paulo: Grijalbo, 1968), 156.

[38] – Antonio Carlos Vilaça, Pensamento Católico no Brasil, 61.

[39] – J. Saldanha Marinho, A igreja e o Estado (Rio de Janeiro: Perseverança, 1874).

[40] – Joaquim Pinto de Campos, Polêmica religiosa (Recife: Tipografia do Jornal do Comércio, 1862), 4.

[41] – Roque S. Maciel de Barros, “Vida Religiosa e A questão religiosa”, in História da Civilização Brasileira, Sérgio Buarque de Holanda(Paulo: DIFEL, Difusão Europeia do Livro, 1971), tomo II, vol. 4. S.,321.

As contenções da liberdade. A Maçonaria e a Internunciatura Apostólica no Brasil do século XIX (Parte I)

Fósforo – Breve ensaio sobre a contenção física e a liberdade humana –  (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento

Resumo

A maçonaria brasileira foi compreendida como não possuindo uma disposição anticlerical que marcou parte de sua trajetória europeia. No Brasil imperial ela foi uma fonte de articulação política presente nas altas esferas do poder. Este fato fez com que a igreja católica, religião oficial, com vistas a inibir iniciativas do governo, contrárias aos interesses eclesiásticos se insurgisse contra a maçonaria no que ficou conhecida como Questão Religiosa (1872-1875). Enfraquecida internamente, a igreja deslocou sua estratégia antimaçônica para a esfera diplomática entre o Estado vaticano e o Estado Brasileiro, o que se verifica no documento aqui estudado: Instruções aos revmº Ordinários do Brasil, sobre o modo como devem proceder com os afiliados à maçonaria, 1878.

Introdução

Com o esgotamento das relações coloniais do Brasil com a metrópole portuguesa, e às vésperas da independência do país, em 1822, um crescente movimento de caráter emancipacionista liderado por profissionais liberais, bacharéis, sobretudo, e eventualmente, padres progressistas começou a se articular em diversas organizações, quase todas clandestinas com vistas a influir no novo ordenamento jus-político do Estado nascente, entre eles, ganhou particular relevância a maçonaria. A historiografia brasileira tem argumentado que o status da maçonaria brasileira guardava similitudes com o modelo europeu, e singularidades conjunturais do primeiro Brasil oitocentista.

Diluída territorial e socialmente a maçonaria no Brasil abrigava desde descontentes antilusitanos, populares letrados, até o establishment imperial através do primeiro imperador e membros influentes no Parlamento e no Conselho de Ministros.

O discurso propugnado por este movimento da maçonaria representava marcada antítese com a base ideológica da sociedade brasileira, desde o período colonial até o império: o catolicismo romano. Ações recorrentes foram levadas a cabo pela hierarquia católica no Brasil, sobretudo, no esforço de restringir a participação do clero no movimento, cujos resultados foram tímidos, uma vez que com o crescimento no país das teses regalistas, eventualmente galicanas, o catolicismo assistia o enfraquecimento de sua força como sujeito político hegemônico, e partiria para o enfrentamento teopolítico com a maçonaria.

Este contexto se agrava a partir de meados do século XIX com o crescimento do liberalismo e o ensaio de ideias republicanas, coincidindo em sua temporalidade com a emergência do movimento Ultramontano, e o esforço católico de fortalecer a Sé Romana, sob Pio IX, principalmente.

As crises nas relações do Estado com a igreja católica tiveram seu ponto decisivo na já sobejamente investigada Questão Religiosa ou Questão dos Bispos (1872-1875), que a partir da rigorosa postura antimaçônica do episcopado brasileiro [1], notadamente, os bispos de Pernambuco e do Pará D. Fr. Vital Maria Gonsalves de Oliveira e D. Antônio de Macedo Costa, respectivamente, culminou com uma ação penal movida contra os bispos e seu encarceramento, posteriormente revisto através de um ato de anistia.

Cerceada em seus espaços de intervenção por uma legislação que inibia sua influência no país e com as práticas de gestão do Estado de influência liberal, a igreja desloca o topoi argumentativo da relação igreja e Estado no Brasil, para as relações Estado brasileiro e Estado Vaticano. Parte do implemento desta estratégia foi feita através do fortalecimento da Internunciatura Apostólica no Brasil. A primeira explicação para isto está no fato de que, com o alijamento da legitimidade do discurso político católico, a enunciação passa à representação vaticana, protegida pelas condições próprias que fixam as relações diplomáticas no âmbito internacional.

Três anos após anistiados os bispos, as relações igreja-Estado-maçonaria ainda eram pauta privilegiada. Assumidas as funções de Internúncio Apostólico no Brasil, em 1876, D. Cesare Roncetti fez ostensiva distribuição de um documento raramente referido nos estudos sobre a maçonaria, objeto deste trabalho: Instruções aos revmº Ordinários do Brasil, sobre o modo como devem proceder com os afiliados à maçonaria. Chancelaria Suprema e Sacra Congregação Romana e Inquisição Universal. Roma, 1878.

O ordenamento político que se institui a partir da Proclamação da Independência (1822), se fez acompanhar de um precário aporte burocrático, intelectual, e político. A maioria do aparelho burocrático do Estado era recrutada entre portugueses e sua formação se dava nas academias jurídicas da península lusitana. Era o agregado de interesses, e não a adesão a filosofias políticas que estava na gênese da organização dos partidos políticos que se estabelecerão ao longo do Império.

Neste contexto não é de estranhar que outros agentes e tendências também buscassem formas organizativas, e vias de participação política para prevalência dos seus interesses e demarcação de espaços nas instâncias de poder. Nesta ambiência, era a maçonaria que detinha a maior capacidade aglutinadora e organizativa, seja pela sua trajetória histórica secular na Europa, seja por razões conjunturais do Estado brasileiro emergente.

De fato, desde a abdicação do imperador Pedro I em favor do seu filho menor, Pedro II, desprovido de capacidade jurídica pela insuficiência etária, o Brasil esteve por nove anos sob uma Regência provisória, onde a figura preeminente foi o padre Diogo Antônio Feijó. Regalista moderado e galicano radical, cedo Feijó tentou organizar uma Igreja nacional na forma galicana. Como era de se esperar a hierarquia eclesiástica e os setores conservadores se opuseram a este projeto, sendo esta a gênese mais sólida dos conflitos que se arrastarão por todo o período Imperial, somente chegando a termo com a inauguração da ordem republicana, em 1889.

Setores que buscavam a contenção da influência católica na vida nacional, passaram a tomar iniciativas com este fim que alijavam prerrogativas do catolicismo, provocando um discurso cada vez mais reacionário e veemente da igreja católica alijada do que considerava os inalienáveis direitos do poder espiritual. O ápice deste enfrentamento se deu no início da década de setenta, quando membros da hierarquia eclesiástica resolveram aplicar as normas romanas contra a maçonaria ensejando com que aqueles que se sentiram vitimados buscassem proteção jurisdicional do Estado.

A questão religiosa

A Questão Religiosa, ou Questão dos Bispos, é tomada entre os historiadores como uma das causas que levaram ao fim do Império e a Proclamação da República no Brasil, e tratada na literatura especializada não será detalhada neste trabalho, que se restringe a apresentar dela uma síntese para favorecer a compreensão do leitor, e situar o lócus de enunciação do documento Instrução aos Revmos. Ordinários do Brasil[2].

Na província de Pernambuco, foco da Questão Religiosa, a maçonaria não estava disposta a ceder espaço ao novo bispo ultramontano nomeado em 1871. Quando o diocesano fundou em 1872 o jornal A UNIÃO para defesa do catolicismo, no mês seguinte surgiu o jornal FAMÍLIA UNIVERSAL, maçônico, para o enfrentamento.

Tendo D. Vital no mesmo ano expedido uma carta circular ao clero advertindo contra a maçonaria e acenando com a suspensão de ordens para os padres ligados a ela, enviado ainda a mesma advertência às irmandades religiosas da sua diocese, acrescentou a recomendação de que os filiados maçons deveriam abjurar ou serem expulsos. Esbarrou, todavia, na recusa irmandade do Santíssimo Sacramento, que punida canonicamente recorreu ao Estado. A justiça acolheu o parecer da Seção de Negócios do Império contra a medida do Bispo. Mas D. Vital manteve sua decisão com base na legislação eclesiástica e no apoio que recebeu da Sé de Roma.

A maçonaria respondeu com uma ação organizada que incluía ampliar a campanha na imprensa, promover maior unidade entre seus membros, inclusive os dissidentes, e prover um fundo pecuniário específico para o confronto. Ao lado disso, os católicos ligados à irmandade fizeram questão de afirmar sua condição de maçons pela imprensa, e também marcaram uma missa para comemorar o aniversário de uma das suas lojas no Rio de Janeiro, e outra pelo passamento de um dos seus membros, além de explorarem a imprensa contra a pessoa do bispo de Pernambuco e alguns dogmas da igreja.

Os jornais maçons passaram também a publicar artigos de autores protestantes, sobretudo, autores franceses, e o ápice da questão veio justamente por um artigo do protestante Laurence Louis-Felix Bungener sobre a virgindade perpétua de Maria cuja publicação aumentou a crise. Em 21 de novembro D. Vital expediu uma Pastoral contra os insultos que a igreja vinha sofrendo, e o ataque “ao mais sagrado” da doutrina católica. Estimulou os padres a protestarem e a rezarem. Estes obedeceram e iniciaram rosários e novenas de desagravo à virgem contra a provocação da maçonaria.

Na festa de Apresentação de Nossa Senhora, em novembro, D. Vital quebrou o silêncio para que o “bom e católico povo pernambucano” fizesse o desagravo a Nossa Senhora, e resolveu “caridosamente recomendar às instantes orações” dos seus paroquianos os “pobres infelizes, que as pregam menos por malícia e mais por ignorância. Coitados! São dignos de toda a nossa comiseração”[3]. Ao clero determinava: “destruir o erro e amar as pessoas”.

Depois dos avisos protocolares da legislação eclesiástica sem a resposta desejada das irmandades ou ante a recusa destas, o bispo declarou o interdito canônico, restrito a esfera espiritual, com o aviso de que a interdição seria suspensa quando as irmandades obedecessem suas determinações.

Tomando como pressuposto a “boa fé”, e principalmente a ignorância de muitos acerca do que era na realidade a maçonaria, D. Vital publicou em fevereiro de 1873 a Carta Pastoral Contra as Ciladas da Maçonaria, na qual historiava a condenação da mesma pelos Papas, anunciava o que entendia ser os objetivos dela, a saber: destruir a religião, o catolicismo em particular. O bispo no mesmo texto também discutiu as questões referentes ao exequatur e o placet, argumentos da maçonaria contra o interdito das irmandades e vedou a leitura dos jornais maçons, com a solidariedade do clero.

O bispo estava seguro. Rejeitou sugestões do internúncio para recuar e anunciou com firmeza:

Não imagine que o bispo está desanimado. Felizmente tenho por mim um grande partido da melhor gente, tanto na capital como fora dela. Todos os dias me chegam atos de adesão de clérigos e leigos com milhares de assinaturas: saio todos os dias[…] Todos me cumprimentam. Sem força moral ficaria eu, se agora cedesse.[4]

De fato o bispo tinha simpatia de muitos, inclusive de outros bispos do Império, e agora também o internúncio. Mas lhe faltava a simpatia do governo imperial. A primeira iniciativa para pacificar a contenda foi do ministro João Alfredo Corrêa de Oliveira, que pediu moderação ao bispo. Este lhe respondeu que: “Não fui perturbar os maçons em suas oficinas, Exmo. Sr., não saio da Igreja da qual sou chefe. Não questiono diretamente com os maçons, porém sim com as irmandades”, e sentenciou: “… esta questão é de vida ou de morte para a Igreja brasileira”[5].

Consultado o Pontífice sobre a crise apoiou as iniciativas do bispo e determinou que se estendessem a todo o episcopado as suas recomendações. Ao bispo se ordenou levantar o interdito em junho do mesmo ano. Ato contínuo, o bispo publicou sem o placet imperial o brevê Quamquam Dolores [6] se indispondo ainda mais o governo.

Mais um passo foi dado com o envio pelo Império brasileiro do Barão de Penedo, embaixador em Londres, para conferenciar com o Papa, e pedir sua intervenção contra o bispo, ao mesmo tempo em que no Brasil, o Ministério da Justiça denunciou o bispo. Dom Vital respondeu à citação, mas foi detido em janeiro de 1874 e transferido para a capital do Império para julgamento, pois, o governo temia por manifestações populares.

É fato amplamente conhecido a discordância de visão estratégica e de ação entre Dom Vital e o novo internúncio Domênico Saguigni. O primeiro implementou suas ações na direção de forçar o governo a decidir-se a favor (ou contra) o catolicismo, segundo o modelo de Trento. O segundo, como diplomata, era politicamente mais astuto e defensor do Trono contra o que lhe parecia uma ameaça ao catolicismo [7].

Na mesma época o ministro João Alfredo encontrou-se com o internúncio dando conta de possíveis desordens populares, e pedindo que o ele fizesse ver a Dom Vital a situação pedindo que “acalmasse” o bispo que ele se comprometia com a manutenção da ordem pública. O internúncio sugeriu a D. Vital realizasse uma viagem pastoral para visitar a diocese. O bispo recusou-se a sair do Recife e intensificou suas ações reformadoras. O ministro João Alfredo procurou o internúncio outra vez para lhe dar conta da gravidade da situação, e que eram necessárias medidas que satisfizessem os mais exaltados acalmando aos ânimos. Conforme entendia, além de atacar o dispositivo do placet D. Vital também atacava a Constituição do Império com suas ações.

Segundo Vilaça, “o contexto ideológico é o da Questão Romana, isto é, a revolução de Gregório VII pela liberdade da Igreja, perspectiva apologética, triunfalista e militante. A visão dos juristas e políticos é o josefinismo” [8] instaurado pelo Marquês de Pombal. Oliveira Viana já indicara que dos participantes nesta questão “erraram, os bispos por falta de tato político, a Santa Sé a princípio por dubiedade, o internúncio por cartesianismo diplomático, o Governo Imperial por vingativo capricho, a magistratura por subserviência ao Executivo[…]”[9].

Universalmente, a restrição da igreja ao liberalismo como doutrina política [10] criara uma hostilidade que se punha em tensão também com a maçonaria brasileira, que até 1872 tinha um caráter considerado “político e patriótico” e “identificada com os anseios das classes mais cultas, desde a independência” [11]. Assim, o ambiente no qual se debatia a igreja na Europa influenciou as ideias e o caráter dos jovens que ascendiam ao episcopado no Brasil, importando a polêmica para o país como o tradicionalismo propugnou [12].

O Império estava marcado pela galicanicidade administrativa. “A realidade-ambiente da classe dirigente nacional era positivamente de uma elite imbuída nos conceitos do século racionalista” [13], desambientada dentro do cenário multiforme e religioso brasileiro. Mas, de fato, o que há são as mentalidades do catolicismo tradicional, do rigorismo antimaçônico do Syllabus. O argumento era a defesa episcopal da liberdade eclesiástica ante o regalismo e o galicanismo do Conselho de Estado no Brasil, como se vê na Pastoral do bispo de Olinda:

Liberdade! Palavra celeste descida do seio do Eterno Pai; liberdade palavra sublime, palavra de inefável doçura, à qual nenhum coração resiste; palavra misteriosa que faz tremer os soberanos da terra, leva a esperança ao pobre na choupana, faz rejubilar tanto o cidadão civilizado como o índio na floresta selvagem, imensa…Mas, aqui não é mais de alegria, tornou-se uma palavra tenebrosa, cujo sentido foi alterado, de nenhuma palavra tanto se abusou. Só o catolicismo garante a verdadeira liberdade, só ele dá verdadeira significação e frutos saborosos… Liberdade não é licença; a liberdade sem limites não é progresso, é o trabalho de um cadáver em decomposição! Se amanhã a loucura de uma liberdade sem freio se apoderar dos espíritos…os direitos mais sagrados seriam destruídos… não seríamos poupados; pode acontecer até que nos seja proibido também orar ao Deus dos nosso pais….somente o filho de Deus feito homem é o nosso libertador, nele está a nossa salvação. Por amor dele, obedecei à autoridade terrena, e dai a César o que é de César; mas não vos esqueçais que não sois escravos de ninguém e que a vossa obediência é devida antes de tudo a Deus (grifos nossos). [14]

Na Questão Religiosa se pôs a prova a base das relações entre poder espiritual e o temporal, consequência da ausência de claros limites na configuração das relações institucionais e sociais. Mas o estado regalista não se permitiu perder suas velhas e poderosas posições no domínio espiritual, associado à maçonaria anticlerical. Ausência de limites, regalismo de Estado e maçonaria anticlerical compõem esta tríade do enfrentamento na crise, porque a Questão Religiosa surge da trajetória destas três dimensões.

A chave do argumento imperial em defesa da posição maçônica era que ela não tinha o perfil antirreligioso da Europa, não se aplicando as condenações pontifícias de então, postura que o bispo D. Macedo Costa, do Pará, chamava de ingênua e equivocada. Mesmo plural ao redor do mundo, a maçonaria tinha, segundo seus defensores, um ponto convergente na “tendência para a tolerância religiosa”, mesmo porque o anticatolicismo não se relaciona com a gênese do movimento, porque havia lojas protestantes, inglesas; e católicas, escocesas [15]. Na verdade, o que ocupava D. Pedro II e seus ministros não era a sobrevivência da maçonaria, mas a expansão da autoridade episcopal. O embate, portanto, não se desvinculava da ordem jurídica e do poder político.

A atividade maçônica formulava neste aspecto dualista de conflitos jurisdicionais, as premissas sectárias de exploração do que pejorativamente chamava de clericalismo. Por sua vez, os regalistas viam a ação de Roma como uma intromissão externa no Império e reagiam. Assim, não podia convir a Igreja a continuidade deste modelo de união como o Estado, que insistia em fazer dela um mero departamento seu.

Este quadro gerava no clero uma problemática de dupla subordinação jurisdicional, eclesiástica e civil, como se evidencia deste comentário na imprensa à época:

Notícias de Pernambuco

Tem dois superiores, um eclesiástico outro civil. Esses dois superiores estão em conflito, e exigem dos vigários pronta e rigorosa obediência as suas ordens encontradas. Daqui o que resulta? Se um vigário, como o da freguesia de S. José o cônego João José da Costa Ribeiro, não se decide logo a prestar exclusiva obediência ao diocesano, este o suspende ex informata consientia, como acaba de declarar, para que nenhum recurso legal fique ao pobre padre. Se, porém, o vigário recusa-se a funcionar na igreja interdita, porque continua a considerá-la como tal é o caso do vigário da freguesia de Santo Antonio que declarou, em ofício do datado de 24 do corrente, dirigido ao presidente da província, preferir obedecer ao seu diocesano, o exmo. presidente manda proceder contra ele com todo o rigor da lei. Apertada situação! Dizer que, tendo sido levantados os interditos pela autoridade civil, mediante o processo legal, e que, portanto, os vigários devem obedecer ao governo exclusivamente, é dizer uma verdade, é lembrar o cumprimento de um dever, mas isto não tira que o bispo o persiga, pois que está armado de um poder sem fiscalização possível. Este estado de coisas sugere-nos uma triste reflexão; e é que, ao passo que recomenda-se ao promotor público que proceda contra os vigários, o bispo que afrontou a lei, que declarou ao governo que continuará a desobedecer-lhe enquanto for bispo, está entretanto impune e campeia em seu palácio, tratando o poder temporal como um poder igual, senão inferior a sua. Cenas características do nosso país. Poupam-se os grandes, os chefes, os poderosos, processam-se e punem-se os pequenos. Em face das leis do país, é criminosa a desobediência dos vigários as ordens do governo civil; mas antes de serem eles punidos por tal desobediência, cumpre que seja o bispo, que é o culpado de tudo, e cuja desobediência é incomparavelmente mais grave. [16]

Para o articulista do JORNAL DO RECIFE o diagnóstico e as responsabilizações estavam definidas, pois, era o bispo o culpado de tudo, coadjuvado pelos outros inimigos sociais, o “animal” jesuíta. “O rumo que vão tomando certas folhas nesta diocese” como diria Dom Cardoso Ayres, antecessor de Dom Vital, referia a interesses obscuros de certa imprensa pernambucana.

Em 1864, dez anos antes da Questão Religiosa, D. Antônio de Macedo Costa, bispo de Pará, já colocava as apreensões eclesiásticas, apontando nos seus motivos, principalmente:

a extensão da aplicação do placet as definições dogmáticas, sobre o pretexto de poderem conter preceitos contrários aos direitos majestáticos; o Conselho de Estado, arvorado em juiz de última instância, para os atos de jurisdição episcopal; a faculdade que as Assembleias Provinciais se arrogavam de criar e dividir paróquias; as licenças de residência dadas aos párocos pelos Presidentes das Províncias; a proibição da admissão de noviços nas ordens religiosas instaladas no império; a intervenção do governo civil na organização do ensino dos próprios Seminários e na escolha dos professores ou na demissão deles; assim como a elaboração dos estatutos dos seminários, na escolha dos compêndios destinados ao ensino, na distribuição das matérias pelos cursos. E, para evitar a transposição das competências, propunha estremar bem os limites dos dois poderes. Isso não só no interesse da igreja, mas no interesse dos povos, no interesse da liberdade, no interesse da civilização. [17]

Dom Vital, rigorosamente, negou aos membros das confrarias apenas os benefícios religiosos. Era a defesa de prerrogativas religiosa, e não intervenção na ordem civil, agravado pela ausência das fronteiras sobre o que Rui Barbosa afirmou que o conflito episcopal, que a maioria da gente, entre nós, se representa um incidente acabado, mas que foi apenas o primeiro pródimo das perturbações inerentes ao sistema de religiões oficiais. A imprensa acompanhava a tese anunciando: Não há que duvidar; o ilustre barbadinho quer acabar com todas as sociedades secretas, para maior glória da religião [18].

Fora também interditada a confraria e a igreja Santa Rita de Cássia, cuja mesa ia reunir-se para tomar conhecimento da sentença do prelado.

Continua…

Autores: João Marcos Leitão Santos e Elza Silva Cardoso Soffiatti

Fonte: REHMLAC

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Notas

[1] – Ver João Marcos Leitão Santos, A filosofia social do Episcopado reformista em Pernambuco no século XIX(2013). (Unpublished).

[2] – Para uma discussão sobre a questão religiosa ver, principalmente: Vieira, 1980, Santos, 2012, Guerra, 1952; Pereira, 1973; Soffiatti, 2012; Castro, 1981; Azevedo, 1981; Alves, 1961; Azzi, 1993; Bastian, 1990, com referências completas na bibliografia.

[3]Carta Pastoral do bispo de Olinda saudando seus diocesanos depois da sua sagração (São Paulo, 1872 [D. frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira]), 13.

[4] – Antonio Carlos Vilaça, Pensamento Católico no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 1975),47.

[5] – Manoel Antonio dos Reis, O bispo de Olinda perante a história (Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878), 71.

[6] – Ao receber a resposta do Papa na Quanquam Dolores, e publicá-la, sem o placet imperial, o bispo provocou nos setores republicanos e liberais a acusação de interferência de um chefe estrangeiro em assuntos internos do Brasil e de hostilidade de D. Vital ao governo. Em 1874 o núncio foi transferido para Portugal. O julgamento de D. Vital a seguir, desarmava os radicais.

[7] – O núncio estava convencido de que havia uma conjugação de forças e interesses entre o protestantismo, liberalismo e republicanismo para destruir a igreja, o que não era de todo equivocado, muito embora “destruir” não fosse o projeto daqueles. Cria que o protestantismo chegado ao Brasil era elemento de conquista alemã e não americana como se pensava, no que estava equivocado.

[8] – Antonio Carlos Vilaça, Pensamento Católico no Brasil, 54.

[9] – J. F. Oliveira Viana. O idealismo na constituição brasileira, São Paulo: Imprensa Oficial, 1928), 173.

[10] – Elza Silva Cardoso Soffiatti, Igreja católica, política e Pio XII. O Estado democrático (São Paulo: Paco, 2012).

[11] – Antonio Carlos Vilaça, Pensamento Católico no Brasil, 54.

[12] – João Marcos Leitão Santos, “Protestantismo e tradicionalismo católico em Pernambuco no século XIX”, in Sylvana Brandão; Luiz Carlos Luz Marques, & Newton D. de Andrade Cabral, História das religiões no Brasil (Recife: Bargaço, 2012), v. VI.

[13] – Flávio Guerra, A questão religiosa do segundo império brasileiro: fundamentos históricos (Recife: Irmãos Pongetti, 1952), 147.

[14] – Manoel Antonio dos Reis, O bispo de Olinda perante a história, 69.

[15] – Típico é o fato de que D. Vital assistiu na França o Arcebispo de Paris dá as bênçãos religiosas ao sepultamento do marechal Magnan, grão-mestre do Grande Oriente na França pelo que o Arcebispo foi censurado pelo Papa Pio IX, fazendo publicar a Multíplices Inter Machinacones, fulminando a Maçonaria, contando com adesão em geral do episcopado francês, e inaugurando uma nova era nas relações da Igreja com a Maçonaria, que agora tendia ao caminho das ideias regalistas.

[16] – JORNAL DO RECIFE, 27.07.1873.

[17] – Antonio de Macedo Costa, Representação à Assembleia Geral Legislativa (Rio de Janeiro: Lamounier, 1864): xvi.

[18] – Barbadinho era uma referência pejorativa ao bispo D. Vital.

De Deus ao Grande Arquiteto do Universo

Pierre Dupont, Portrait de Pierre François, huile sur toile, 76 x ...

Na abertura dos trabalhos na Grande Loja da França se fala “Á Glória do Grande Arquiteto do Universo”, e essa mesma invocação é repetida ao término dos trabalhos. Ao ouvir isso, os Irmãos consideram essa expressão como um fato original e raramente questionam a sua origem e significado profundo. Mas é necessário conhecer nossa História para saber de onde viemos. O presente artigo nos permitirá saber como chegamos a essa noção de Grande Arquiteto que é, pelo Rito Escocês Antigo e Aceito, a pedra angular do caminho iniciático. Vou tentar explicar como a Maçonaria iniciática passou de Deus ao Grande Arquiteto do Universo.

Desde o nascimento do Cristianismo até o fim do Idade Média, Deus está em toda parte e em tudo, e ai de quem contestasse este postulado. Na Maçonaria, até o século XVIII, os trabalhos se desenrolavam e seus juramentos eram realizados sobre a Bíblia, “na presença de Deus e de São João”. A invocação de Deus era vital na época porque, desde a Idade Média, a onipotência da Igreja Apostólica Romana governava não apenas a consciência, mas também todas as instituições, desde corporações menores até a realeza. Ela condenava à morte aqueles que não pensavam dessa forma. Desde o início da Maçonaria, a crença é, portanto, obrigatoriamente em Deus, Grande Geômetra (de acordo com a expressão de Pitágoras) que mede o universo com sua bússola, como mostrado por muitas iconografias do século XIV, e ainda permanece hoje na Maçonaria Anglo-Saxônica.

Em toda religião, a Palavra Divina tem uma virtude criativa. Assim, em Gênesis, seres e coisas adquirem sua existência no momento em que Deus as cria e dá nome a elas. Essa noção criacionista da Palavra ainda se encontra nas sociedades tradicionais, sendo uma condescendência primitiva, onde o recém-nascido só entra no estado de criatura após vários dias ou várias semanas, a partir do momento em que recebe um nome, resultado de um ato de fala. Dar um nome para um ser ou uma coisa é equivalente a um ato divino e fornece uma forma de poder para quem nomeia sobre aquele que é nomeado.

Então, dando um nome à divindade, o homem de alguma forma, garante poder sobre ela e a reduz para a dimensão humana. Os homens, com a cumplicidade de alguns religiosos, apreenderam a noção de Deus para dar-lhe não apenas um forma humana (isso é chamado de antropomorfismo), mas também sentimentos que o representam como um parente (um exemplo é o Deus Pai), um patriarca que pede para ser adorado, que se eleva a Juiz Supremo (veja o último julgamento) e que pune aqueles que pecam contra ele (ver Inferno e Purgatório). Deus é assim concebido à imagem do homem e é apenas um reflexo de sua personalidade. Aqueles que permanecem escravos de concepções imperfeitas e estreitas sobre o que é a Divindade, são suscetíveis a gerar fanatismo, fundamentalismo e perseguições, que são a negação da liberdade de consciência, como vemos com muita frequência em nossa sociedade atual.

Pela Maçonaria dos Antigos, à qual nós pertencemos, desde que a ideia permaneça única e homogênea nas Lojas e não difere da ideia de Deus do mundo profano, isto é, da Igreja Católica Romana, a ideia de um Deus Geômetra se tornou o início do renascimento do Grande Arquiteto do Universo (a primeira menção se deve a Philibert Delorme por volta de 1565, que o retirou de Platão), que não apresentou problemas aos irmãos: o Grande Arquiteto era Deus. Mas com o início do Iluminismo, se passa a  defender a ideia da religião natural e gradualmente abandonará a noção de espiritualidade, uma ideia que será adotada pela Maçonaria dos Modernos, como evidenciado pela primeira versão das Constituições de Anderson de 1723, cuja versão de 1738 e as versões a seguir, contém a crença em um Deus obrigatório. Enquanto isso, os Antigos (Escoceses, Irlandeses e Católicos do norte da Inglaterra) mantêm a crença em Deus, mas não a impondo como um dogma, ao contrário dos ingleses.

A questão de Deus na Maçonaria continuará na segunda metade do século XIX, mas o uso da palavra “Deus” se torna polêmico por certos Supremos Conselhos e certas Grandes Lojas. Existem várias razões para isso:

  • Campanhas anti-maçônicas em países católicos depois que o Papa perdeu muito de seu poder quanto ao Estado em 1870;
  • O renascimento de doutrinas ultramodernas favoráveis à Santa Sé;
  • A radicalização da doutrina católica (infalibilidade pontifical, proclamação da afirmação “fora da Igreja não há Salvação” que vai contra a liberdade de consciência);
  • E especialmente a atitude ultraconservadora da Igreja Católica que se manifesta contra a modernidade, liberdades individuais e coletivas, direitos humanos, democracia, sufrágio universal, ciência, filosofia.

Este fato foi debatido no Concílio dos Supremos Conselhos, reunidos em Lausanne de 6 a 22 de setembro 1875 para atualizar as Grandes Constituições de 1786, que regiam o Rito Escocês Antigo e Aceito, sobre a definição de Grande Arquiteto do Universo.

Para satisfazer todas as crenças e admitir todos os pontos de vista, os representantes dos doze Supremos Conselho presentes (dos vinte e três na época) usaram três expressões diferentes para definir o Grande Arquiteto do Universo, a saber:

  • No preâmbulo “a Maçonaria é uma instituição de fraternidade universal cuja origem volta ao berço da sociedade humana; ela tem como doutrina o reconhecimento de uma força superior que ela proclama existir sob o nome de Grande Arquiteto do Universo”;
  • Na Declaração de Princípios “A Maçonaria proclama, como proclama desde a sua origem, a existência de um princípio criador sob o nome Grande Arquiteto do Universo”;
  • Manifesto “Para elevar o homem à seus próprios olhos, para torná-lo digno de sua missão na Terra, a Maçonaria postula o princípio que o Criador Supremo deu ao homem também a liberdade mais preciosa, herança da humanidade inteira, que nenhum poder tem o direito de extinguir ou amortizar e que é a fonte dos sentimentos de honra e dignidade”. [1]

Três interpretações de Deus para satisfazer todos os maçons: Força superior endereçada aos agnósticos; Criador Supremo endereçado aos teístas; Princípio Criador para os deístas. Mas esse desejo de atender todas as sensibilidades religiosas é interpretado como uma recusa em se pronunciar e levará a rejeições dos teístas acusando os deístas de suavidade e, os agnósticos de ateísmo.

O Supremo Conselho da França e, depois dele, a Grande Loja da França, manterá a invocação de Grande Arquiteto do Universo definida, fora de todo o significado religioso, como Princípio Criador, abrindo o caminho para a Maçonaria não mais teísta, mas deísta, enraizada na tradição dos Antigos, respeitosos da liberdade de consciência e do direito de todos de exercê-lo em sua abordagem enquanto os Anglo-Saxões mantêm o reconhecimento de Deus e de sua mensagem revelada, assim como da imortalidade da alma, que o Grande Oriente da França suprime qualquer referência a Deus e o Grande Arquiteto e que a Bélgica, defendendo a imortalidade da alma, usa a expressão “Princípio Superior” que constitui uma aberração, porque implica que há um ou mais Princípios inferiores.

Durante o século XX, entre ciência e fé, a ideia de Deus está se tornando cada vez mais heterogênea com a perda de marcos metafísicos e a lógica do cientificismo. A noção de Deus está dividida entre dúvida e desconfiança da ciência e o surgimento de seitas que se tornam novas religiões, como a Cientologia ou Nascidos de Novo Cristãos (Born again Christians). Para nós, Maçons do Rito Escocês Antigo e Aceito, o Grande Arquiteto do Universo está a salvo destas discussões porque representa um símbolo, e um símbolo é interpretável por cada um de acordo com a abertura de sua consciência.

Para o Rito Escocês Antigo e Aceito, o Grande Arquiteto do Universo é o Princípio Criador. Etimologicamente, “princípio”, deriva do latim de principium, derivado de princeps, “que ocupa o primeiro lugar”. Significa “começo, origem dos tempos, causa original, fonte de todas as coisas”, então o adjetivo “criador” é supérfluo porque já está implícito no termo “princípio”. Pessoalmente, já anunciei várias vezes (e minha definição foi repetida no Journal de la Grande Loge de France), defendo a noção de princípio com P maiúsculo sem qualquer outro qualificador. Para mim este termo reconcilia todas as interpretações tomando uma dimensão transcendente aceitável por todos que procuram de boa-fé, sejam crentes ou incrédulo, mantendo uma religião venerando um Deus ou uma religião sem um Deus (como o budismo Ortodoxo).

Cristo em pé sobre o globo, cercado pelos quatro elementos (Lyon, Mathieu Huss, 1482)

Assim como Deus, o Princípio está sob o domínio do incognoscível, mas, diferentemente da religião, você não pode dar um nome sem cair em uma forma de profanação. É inefável que, sem nomear, a qualificação de Grande Arquiteto do Universo permite aos descendentes dos construtores que concebam uma entidade acessível à razão humana sem dar a ela poderes sobrenaturais que provavelmente favorecem a superstição. Se transpusermos essa qualificação de plano espiritual para o plano material, encontramos no Grande Arquiteto as noções da arquitetura de base, a saber: Ordem, Plano, Geometria, Harmonia, todas as noções que o homem pode integrar facilmente em seu sistema de pensamento.

Este princípio transcendente repousa não apenas na Palavra criativa, mas também na Luz (é necessário sabermos que a origem indo-europeia da palavra “Deus” denota a ideia de brilho). Esta trindade esotérica Princípio / Palavra / Luz, que não vai contra a interpretação religiosa da Trindade, baseada no tríptico Pai / Filho / Espírito Santo.

Nesse sentido, qual é a atitude da Igreja em relação a Maçonaria? Enquanto o Grande Arquiteto era Deus, nunca houve o menor problema. Mas a partir do momento em que os dois símbolos não coincidem mais a partir do século XVIII, as relações estragam e a atitude da Igreja se torna mais radical. Como os regimes totalitários político ou militares que a condenaram e ainda hoje a condenam, a Igreja Apostólica Católica Romana não foi deixada para trás em sua perseguição à Maçonaria. Para constar, mencionarei apenas os textos mais importantes publicados desde o nascimento da Maçonaria, na França e nos países subservientes a Roma:

  • A bula In eminenti apostolanus specula de 28 de abril 1738 do papa Clemente XII condenando os Francos-Maçons “que se reúnem na escuridão do segredo porque odeiam a luz”;
  • A bula Providas romanorum de Bento XIV de 16 de março de 1751, que confirma a penalidade de proibição e de excomunhão de 1738;
  • A carta apostólica Quo graviora de Leão XII de 13 de março de 1826, recordando a condenação da sociedade dos Franco-Maçons;
  • A cíclica Humanum genus de Leão XII de 20 de abril de 1884, confirmando a condenação da Franco-Maçonaria;
  • Mais perto de nós, a carta do Presidente da Congregação da Doutrina da Fé de 26 de novembro 1983, reafirmando a incompatibilidade entre a Igreja e Maçonaria; [2]
  • Deste último decorre a demissão em maio de 2013 do Pároco de Megève, infligido pelo bispo de Annecy o pedido do Vaticano de pertencer ao Grande Oriente da França, alegando que pertencer a Maçonaria e o serviço da Igreja Católica são incompatíveis.

Pessoalmente, considero que a condenação da Maçonaria pelo Vaticano aplica-se a Maçonaria sectária e anticlerical, mas nunca se referiu ao Rito Escocês Antigo e Aceito, porque nunca se opôs abertamente à religião, pelo contrário. Basta lembrar dessa passagem do manifesto do Concílio de Lausanne para se convencer disso:

“Para os homens para quem a religião é o consolo supremo, a Maçonaria [3] diz: cultive sua religião sem impedimentos, siga as inspirações de sua consciência; Maçonaria não é uma religião, ela não tem um culto …”.

Mais recentemente, outras Igrejas também tem se declarado hostis à Maçonaria, como a Igreja Anglicana cerca de vinte anos atrás, e as Seitas sectárias americanas como a Cientologia e os Nascidos de Novo Cristãos (Born again Christians), mas por diferentes razões: de fato, a Maçonaria Anglo-Saxônica, que é um quintal das Igrejas estabelecidas, é considerado um concorrente por Canterbury, uma vez que o número de fiéis caiu acentuadamente na prática do culto na Grã-Bretanha; por causa do importante lugar que ocupa nos Estados Unidos, representa um déficit para seitas de todos os tipos que passaram do declínio da espiritualidade para o benefício da religiosidade.

Após essa digressão no mundo da religião, vamos voltar ao nosso assunto.

O Princípio preexiste necessariamente a Palavra e para a Luz que são energias, isto é, forças. Até o espírito mais rebelde da metafísica é obrigado a observar que:

  • Por trás do princípio, existe a fonte, há energia,
  • Por trás da energia existe a lei, ou seja, um conjunto de regras,
  • Por trás da lei está o plano que permite o cimento de todas as coisas,
  • E que o plano apresenta o Arquiteto que o concebe.

E isso está em perfeita concordância com o conceito de Grande Arquiteto do Universo, ao mesmo tempo um símbolo menos redutivo e menos violador da consciência do que a interpretação de um Deus revelado, uma abordagem metafísica acessível a razão humana. Além disso, um símbolo é por definição interpretável e evolutivo de acordo com o conhecimento de cada um, seja cultural, religioso ou espiritual. Este símbolo tem, por outro lado, a vantagem de reconciliar religiões dogmáticas e religiões que não reconhecem a ideia de um Deus criador, tantos os crentes quanto os não crentes. Finalmente, este símbolo difere da ideia de Deus, pois ele representa um conceito, e nesse sentido ele não pode julgar nem Punir, muito menos ser adorado.

Assim, por reposicionamentos sucessivos na história da Maçonaria iniciática, o Grande Arquiteto do Universo foi gradualmente se destacando do conceito de Deus. O espaço assim criado entre Deus, proposto como o detentor da Verdade revelada, e o Grande Arquiteto do Universo, símbolo do Princípio, surgiu como um espaço de liberdade para as pressões por uma espiritualidade livre de todos os dogmas. Para o homem livre, elaborar sua própria ideia da Divindade se torna um dos desafios do século XXI.

No mesmo sentido dessa evolução do conceito da divindade, o lema dos Conselhos Supremos do Mundo, Deus meumque Juice (ou seja, o certo, para o Maçom Escocês, interpretar Deus de acordo com sua cultura e o grau de abertura do seu espírito), que combina harmoniosamente fé e razão e especifica o relacionamento reconhecido pelo Rito entre o Divino e o Homem, este último não sendo imposto, em sua qualidade de Maçom, de nenhuma outra maneira além da escolhida por sua consciência como um homem livre. E nessa afirmação do Grande Arquiteto do Universo, o Sistema Escocês respeita a liberdade de todos de pensarem ou não sobre a divindade. Após o Concílio de Lausanne, o Soberano Grande Comendador Crémieux declarou:

“Não damos forma ao Grande Arquiteto do Universo, deixamos cada indivíduo pensar o que quiser.”

Porque Deus é algo pessoal que não se compartilha. O Maçom Escocês não está esperando por uma resposta revelada, muito menos uma definição mundial. Aí reside a dificuldade da abordagem iniciática, mas descobrir toda a sua grandeza e procurar por seus mistérios nos permite alcançar harmonia e equilíbrio que garante a nossa plenitude como homens.

Atualmente, alguns cientistas de alto escalão têm uma visão da divindade muito próxima da nossa. Assim, o astrofísico Trinh Xuan Thuan, em Caos e Harmonia, publicado pela Fayard Editions, escreve:

“O universo é definido com extrema precisão. São necessários pouco mais de dez números (na verdade quinze números chamados “constantes físicas”) para descrevê-lo: o da força gravitacional, a velocidade da luz, aquela que dita o tamanho dos átomos, sua massa, a carga de elétrons, etc. No entanto, seria suficiente que um desses números fosse diferente para que o universo inteiro e, portanto, nós, não existíssemos. Uma relojoaria muito delicada porque, com mudanças de algumas casas decimais, nada acontece e o universo é estéril. O Big Bang tinha que ter alguma densidade. Estrelas produzem carbono. A Terra está a certa distância do sol. A atmosfera tinha uma boa composição. Tudo isso foi necessário para a vida aparecer. Milhares de outras combinações foram possíveis. Os físicos recriam [essa atmosfera] em laboratório, mas nenhum cria à vida. Essa competição de circunstâncias é extraordinária demais para que o acaso seja o único responsável.”

O autor usa a metáfora da relojoaria, como a definição de Voltaire de Grand Horloger (“É impossível para mim conceber ver um relógio sem relojoeiro”), mas especialmente detectamos a presença de um espírito acima de tudo, imaginação ou elucubração, como Nativos americanos que usam a frase “Great Manitou” (Grande Espírito) para designar Deus.

Em conclusão, o Franco-Maçom Escocês descobre que pertence a um conjunto universal unido governado pelo Princípio, símbolo da transcendência, sem o direcionamento a um Yahvé, um Deus, um Alá ou um Buda ou qualquer outro ídolo, conceitos que limitam aos preceitos de uma Igreja, com exclusão de todas as outras crenças. Através da iniciação, a fé se manifesta no nível de uma experiência interior independente de dogmas que restringem a liberdade de consciência.

Embora se recuse a lidar com questões da vida cotidiana (no nível religioso, político ou social) sem ignorá-la, o caminho escocês é um caminho exclusivamente iniciático em sua dimensão espiritual, que torna o maior grupo de Maçons do mundo.

Tradução: Rodrigo de Oliveira Menezes

Texto recebido por e-mail, sem o nome do autor, em Francês. Traduzido e publicado.

Fonte: Ritos & Rituais

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Notas

[1] – Independente da interpretação do autor, vale a ressalva que a Proclamação de Princípios do Concílio de Lausanne foi o ponto principal de embate entre os Supremos Conselhos, fazendo com que muitas das determinações acolhidas pelos seus representantes não fosse aceita ou seguida por Escócia, Estados Unidos e demais países alinhados. Existe um artigo muito bem escrito no próprio site que narra todo esse desenrolar podendo ser acessado pelo link: https://ritoserituais.com.br/2018/09/19/o-concilio-dos-supremos-conselhos-do-rito-escoces-antigo-e-aceito-parte-1/

[2] – A íntegra desse texto já foi publicada no site através do link: http://ritoserituais.com.br/2019/06/25/macom-pode-comungar/

[3] – Naturalmente, esta é a Maçonaria do Rito Escocês Antigo e Aceito.

Maçonaria e Secularismo

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O secularismo é um conjunto de princípios legais baseados no primado da liberdade de consciência; não é uma arma contra as religiões, nem uma religião civil. A universalidade da lei comum não deve se referir a nenhuma das várias religiões para se impor a todos os cidadãos. Uma loja maçônica é um lugar de aceitação da diferença, de pacificação de intercâmbios. Isso porque a Maçonaria considera que o secularismo é um princípio universal de pacificação social.

A oportunidade que nos é oferecida de questionar aqui as ligações entre a Maçonaria e o secularismo é particularmente bem-vinda.

Princípio emblemático da tradição republicana francesa, sacralizado pela Terceira República e considerado “intangível” até 1940, o secularismo é hoje o lugar de um profundo esquecimento e, no momento em que ele é perigosamente desafiado pelos “fanatismos” e intolerâncias, sejam eles culturais, políticos, econômicos, religiosos, raciais, não é mais propriamente defendido e a pior das confusões reina em torno da noção…

Às vezes, o secularismo é confiscado em favor de um projeto identitário e usado como uma arma contra o Islã. Outras vezes, e ao contrário, pode-se dizer, ele é reduzido a um simples princípio de tolerância a serviço de um projeto multicultural de organização de designações identitárias. Ele é também apresentado como uma espécie de religião civil – aquela daqueles que não teriam nenhuma religião – quando não é visto como uma mera máquina de guerra contra convicções e sentimentos religiosos!… Cada um à sua maneira, todos esses discursos constituem tantas desnaturações do secularismo republicano.

É verdade que em nosso país a Maçonaria é sempre associada ao secularismo. Com suas tomadas de posição vigilantes a cada suposta ameaça, ela seria até vista – sem trocadilho – como “guardiã do templo”! …

A inspiração das lojas

Desde seus primeiros passos, a moderna Maçonaria desenvolve um pensamento universalista.  As Constituições de Anderson – seu texto fundador – anunciam que ela pretende se tornar o “Centro da União, [permitindo] uma amizade sincera entre pessoas que poderiam ter permanecido a uma distância perpétua”, seja por razões políticas, religiosas ou nacionais.

A loja que trabalha nesse “centro da união” é uma comunidade que implementa uma “fraternidade eletiva” em busca do pluralismo social, político e religioso. Ela só pode existir e durar porque é soldada por rituais rigorosos e eficazes.

A Loja Maçônica em trabalho é também um método, uma disciplina que contraria toda a espontaneidade e se opõe a todas as inclinações naturais, para realizar uma mudança de estrutura mental para assegurar a superação de intercâmbios interpessoais em benefício da unidade da loja. É uma contra-cultura tradicional na qual os maçons, protegidos pelo segredo de seus intercâmbios, se tornam tantos “contrabandistas” heterodoxos.

O que esta contracultura propõe é, antes de tudo, o trabalho sobre si mesmo – os maçons falam do seu “templo interior” que torna possível encontrar a unidade interior, reconciliar-se consigo mesmo, a condição primeira para poder para realmente abrir para os outros que eles aprenderam a ver como irmãos e, ao fazê-lo, trabalhar para a melhoria da humanidade – no “templo da humanidade” – Esta contracultura se afirma como um continuidade espiritual, uma tomada de consciência da solidariedade universal.

Ela é o lugar de uma certa igualdade, marca de tolerância e de abertura. Em loja, aceitar a diferença do outro, aceitar sua palavra e a respeitar é, para todo maçom, um requisito absoluto. Mas a tomada em consideração desta alteridade é feita no âmbito de referências comuns que não podem ser transgredidas.

Com suas ferramentas tradicionais de pacificação progressiva das relações, a Maçonaria é, portanto, uma espécie de laboratório de sociedade, laboratório do laço social que faz germinar naturalmente o princípio do secularismo.

Embora supervisionadas de perto, as lojas maçônicas foram, na sociedade política muito fechada do século XIX francês, as únicas associações ativas toleradas e, portanto, naturalmente, os lares subterrâneos do essencial da vida intelectual e política do país. É por isso que, desde a capitulação de Sedan, a República surgirá toda armada de lojas. Léon Gambetta, e todos os Jules, Simon, Grévy, Favre e especialmente Ferry, para citar apenas essas eminentes personalidades da primeira geração republicana, todos vieram diretamente das lojas.

A construção republicana do secularismo

A República tem por ambição uma construção permanente do laço cívico além das designações identitárias de cada um, na busca e preservação do que é comum a todos. No final do século XIX e início do século XX, a Maçonaria será participará verdadeiramente dos combates políticos para a construção do secularismo do Estado e as concepções que ela defenderá não serão diferentes daquelas que a República vai se dedicar a implementar.

O secularismo é um conjunto de princípios jurídicos baseados no primado da liberdade de consciência. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, tem a religião por uma “opinião” como qualquer outra (Artigo 1.0), que surge, portanto, exclusivamente da liberdade de cada um. Isso necessariamente decorre da igualdade de todas essas opções espirituais aos olhos da lei e, portanto, a igualdade de todos os cidadãos, independentemente de suas opiniões ou religião. A universalidade da lei comum que não deve se referir a nenhuma das diferentes religiões para se impor ao conjunto dos cidadãos é indispensável.

O secularismo torna-se, assim, um princípio de organização social.  O poder público e a esfera a ele associada, com vistas a constituir, estabelecer e garantir os direitos e liberdades que beneficiarão a universalidade dos cidadãos, deve estar sujeitos a uma reserva absoluta em matéria de opções espirituais.

A esfera privada é a dos indivíduos e das comunidades, livre no respeito a lei.  Cada cidadão devem poder exercer estas liberdades individuais e privadas, que são as liberdades de consciência, de opinião religiosa ou outras – e da expressão, fora do domicilio privado, em nível de espaço civil aberto a todos, no respeito ao direito comum e à ordem pública.

Ao mesmo tempo, o Estado garante a independência dessas duas esferas e da unidade da comunidade política dos cidadãos em torno de valores comuns compartilhados.

Em uma sociedade secular, o reconhecimento do direito de cada um construir e expressar sua diferença é, portanto, sempre concebida em um espaço de relacionamento, confronto e diálogo com os outros. Esse comportamento representa, obviamente, um ideal difícil de construir e alcançar, que produziu em nosso país um modo de vida que é objeto de um consenso duradouro.

Ninguém precisa conhecer as escolhas filosóficas ou religiosas uns dos outros, elas lhes pertencem. Ninguém precisa conhecê-las, especialmente o Estado, que se proíbe de os recensear. Aqui, novamente, a religião é entendida como uma escolha individual, uma opinião – que se pode mudar – e não como um pertencimento. O culto público, que é legítimo, é praticado em lugares que lhe são normalmente reservados  e isso se traduz em nosso país pelo surgimento gradual de uma cultura compartilhada da discrição das expressões religiosas na sociedade civil.

É a própria essência da tradição histórica e jurídica francesa que vê nessa discrição compartilhada a melhor maneira de garantir que todos tenham a oportunidade de viver juntos em uma convivência serena e pacífica, baseada no respeito aos diferentes pensamentos.

Fundamentalmente, se o secularismo francês respeita todas as opções espirituais, é antes de tudo na medida em que elas são expressões da liberdade de consciência dos cidadãos. Assim, a República estará, sem dúvida, menos preocupada expressamente com o indivíduo cuja afiliação a uma comunidade é adquirida do que com o ateu, o agnóstico ou o crente individualista que rompe com seu grupo, porque eles estão sozinhos e sua liberdade precisa da proteção do Estado, que também deve ser capaz de proteger o direito de acreditar e de blasfemar.

Os desafios do presente

A construção republicana se define por seu caráter universalista, do qual o secularismo é uma ferramenta essencial.. Atualmente, assistimos a um ressurgimento de manifestações de afirmação identitária inspiradas na religião, mas que vão muito além das questões de culto, desafiando abertamente o secularismo e os princípios republicanos. E também observamos que a liberdade de consciência e a igualdade de todos recuam e não são mais garantidas em certos espaços privados.

No exato momento em que, portanto, parece que nosso secularismo constitucional devia, sem dúvida, ser exercido, além dos serviços públicos, na proteção do espaço social, “um lugar de compartilhamento sob o olhar dos outros”, em face de demandas urgentes de expressão religiosa, percebemos que o secularismo perdeu muito de sua força simbólica. O Estado republicano tem o dever de se envolver na defesa de projetos universalistas diante  ataques comunitaristas de certos grupos de pressão.

Como as lojas sabem fazer, a República deve se esforçar para criar públicos comuns.  Ela deve saber lutar contra as discriminações com base na igualdade, apresentando o que é comum aos indivíduos e grupos sociais, e não através do reconhecimento identitário, que se fechará como uma armadilha implacável sobre o cidadão e seus direitos.

Um estado neutro, sensível apenas à liberdade do cidadão individual é um modelo moderno e portador de progresso para o futuro. Seu instrumento fundamental é o secularismo, que por si só é capaz de impregnar um pensamento universalista da diversidade, livre da vulgata culturalista que atualmente está se espalhando sem restrições alguma no debate político e na mídia. Ela aparecerá então como um princípio universal de pacificação social.

Autor: Jean-Philippe Hubsch
Tradução: José Filardo

Fonte: REVISTA BIBLIOT3CA

Booz ou Boaz?

Wynfield, David Wilkie, 1837-1887; Ruth and Boaz

Nas Lojas brasileiras muito se confunde quanto à forma correta do nome Boaz, uns dizendo Booz, outros Boaz. Neste texto, eu procuro mostrar duas coisas. Primeiro, que o correto é Boaz, o que, aliás, é trivial, pois, para tanto basta observar a pronúncia hebraica. Em segundo lugar — e principalmente — , eu procuro dar uma explicação sobre o porquê de os tradutores antigos, ao escreverem a Septuaginta e a Vulgata, optaram pela transliteração incorreta do nome.

O termo Boaz aparece 18 vezes no Livro de Ruth, 3 vezes nas Crônicas, 1 vez em 1 Reis, 1 vez em Mateus e 1 em Lucas.

Na edição maçônica norte-americana da Bíblia Sagrada (Heirloom Bible Publishers, Kansas), o termo é Boaz. Na Encyclopedia of Freemasonry, de Albert Mackey (1917), é Boaz. Em Light on Masonry, de Elder D. Bernard (1828), é Boaz. O Manual of Freemasonry, de Richard Carlile (uma exposée da Maçonaria publicada aos poucos na revista The Republican, em 1825), é Boaz. No The Complete Ritual of the Scottish Rite Profuselly Illustrated, editado por um Soberano Grande Comendador (anônimo), 33o, e complementado por J. Blanchard, no século XIX (sem data), é Boaz. Em Morals and Dogma, de Albert Pike (1871), é Boaz.

Em todas as obras antigas, enfim, o termo é Boaz. Isso não nos surpreende, se observarmos que na escrita hebraica massorética, o que temos é בֹּ֫עַז (Bṓʿaz) e que, além disso, não existem vogais repetidas no Hebraico, de modo que Booz é uma pronúncia incorreta. Nos tempos modernos, o Irmão Harry Carr, em seu artigo “Pillars and globes, columns and candlesticks”, publicado em Ars Quatuor Coronatorum, Transactions of the Quatuor Coronati Lodge №2076 London, em 2001, e apresentado antes na Vancouver Lodge of Education and Research, em 20 novembro de 1998, é Boaz. Nesse artigo, Harry Carr reproduz alguns trechos de exposées publicadas entre 1760 e 1765, nos quais o termo é Boaz.

Por que, então, alguns autores nacionais insistem que o correto é Booz ou, quando muito, que tanto pode ser Booz quanto Boaz? Há duas razões para esse erro. O primeiro deles — e mais óbvio — é o desconhecimento do Hebraico. Em geral o argumento usado é que na escrita hebraica antiga não existiam vogais até o surgimento dos sinais massoréticos (século X), o que, segundo eles, justificaria qualquer pronúncia. Porém, não atentam para o fato de o Hebraico não admitir vogais repetidas, o que prontamente elimina Booz, de modo que, neste caso, a suposta ambivalência não existe.

A segunda razão está nas traduções portuguesas da Vulgata. De fato, na Vulgata o termo é Booz. Se São Jerônimo (347–420 d.C.) traduziu o Antigo Testamento diretamente do Hebraico para o Latim, por que optou por Booz e não Boaz? Só vejo duas explicações. Primeiro, em sua época, ainda não existiam os sinais massoréticos, que indicam as vogais. Somente alguém absolutamente fluente em Hebraico poderia ler corretamente o texto hebraico. São Jerônimo, porém, era ilírio e só aprendeu Latim e Grego no início de sua vida adulta. Quando maduro, mudou-se para Jerusalém para estudar Hebraico. É bem provável que, diante de uma dúvida, consultasse a Septuaginta, a versão grega da Bíblia, que também traz Booz (Βοος, que deve ser lido como Βοός, pois não é possível, por razões morfológicas, dizer Βόος em Grego).

Nessa série encadeada de porquês, surge mais um. Por que a Septuaginta traz Booz e não Boaz? Por uma razão muito simples. Boaz é nome próprio e é oxítono. Em Grego, um nome próprio masculino pode terminar em –ας, como ὁ Ξανθίας (cuja pronúncia é ksanthías, donde veio o nosso Xântias), mas não pode jamais ser oxítona. O mesmo ocorre com os substantivos terminados em –ας, como ὁ νεανίας (o jovem), que não podem ser oxítonos. Por outro lado, substantivos terminados em –ος podem ser oxítonos, como θεόϛ (theós, pronuncie the-ós, com o th ligeiramente aspirado).

Dessa forma, os sábios que verteram a Bíblia para o Grego podem ter optado por Booz (Βοός) em vez de Boaz apenas para preservação do acento tônico na última sílaba, uma exigência natural se a intenção era não desvirtuar demais a pronúncia de um nome próprio e fazê-lo ser entendido pelo leitor ou ouvinte grego. Em outras palavras, se a intenção era fazer a história bíblica minimamente inteligível ao grego, os tradutores tinham de resolver a seguinte questão: ou preservavam a grafia BOAZ mas trocavam o acento tônico da última para a penúltima sílaba (ou seja, Bóaz) ou trocavam Boáz para Boós e preservavam a oxítona. O nome Boáz, oxítono, soaria muito estranho ao ouvido grego, mas não Boóz e tampouco Bóaz. O que é mais próximo de Boáz: Bóaz ou Boóz? Eles julgaram que era Boóz. Dessa forma, São Jerônimo, mesmo que estivesse ciente da correta pronúncia hebraica, pode ter optado por Booz por influência da Septuaginta, tendo preferido, sabiamente, manter uma coerência entre a versão latina e a versão grega já estabelecida há séculos.

Os autores maçônicos antigos devem ter sabido disso, pois todos, no mínimo, eram fluentes em Latim, com boas noções de Grego e alguns até de Hebraico, além de, sendo em sua maioria protestantes, terem em mãos a versão protestante da Bíblia, que, ao contrário da Vulgata, trazia Boaz, graças ao gênio de Lutero. Textos não-maçônicos também trazem Boaz, como Historiarum Totius Mundi Epitome, seção 16, de Cluverius Johannes, de 1667.

Conclui-se, assim, que a pronúncia correta é Boaz e que, além disso, Booz é apenas a herança de uma característica fonética do idioma Grego, que herdamos por intermédio da Vulgata. A opção pelo aparente erro fonético se deve à perspicácia dos antigos tradutores, convictos que estavam de tornar esse e outros nomes hebraicos inteligíveis aos ouvidos gregos, sem prejuízo do significado mais profundo das histórias que traduziam.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Rodrigo é  Ph.D em Economia pela University of California at Los Angeles (UCLA), M.Sc. em Matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e Ba. em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). É professor adjunto do Departamento de Economia da UnB, Mestre Instalado, filiado à Loja Maçônica Abrigo do Cedro n.8, jurisdicionada à Grande Loja Maçônica do Distrito Federal.

Fonte: Medium

Imagem usada no post:

 “Ruth e Boaz” de David Wilkie Wynfield – óleo sobre tela – 102 x 163 cm – 1879 – (Harris Museum – Art Gallery (Preston, United Kingdom))

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Para historiador, Papa Francisco derruba o evangelho e se aproxima da Maçonaria

Papa Francisco e Ahmad el-Tayeb, em Abu DhabiPapa Francisco e Ahmad el-Tayeb, em Abu Dhabi Foto:Getty Images

Professor emérito da Universidade de Roma, Roberto de Mattei critica documento assinado pelo Papa em Abu Dhabi como traição do passado e da doutrina.

Na última terça-feira, 5 de fevereiro, o Papa Francisco concluiu uma visita oficial aos Emirados Árabes Unidos. A viagem representou um marco nas relações inter-religiosas em todo o mundo: foi a primeira vez que um chefe da Igreja visitou um país da Península Arábica. Durante a visita, o Papa se reuniu com 150 líderes religiosos e assinou o Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, com Ahmad el-Tayeb, Grande Imame da Mesquita Al-Azhar do Egito.

A aproximação tem sido celebrada na maior parte do mundo. Católicos tradicionalistas – incluindo teólogos e historiadores -, no entanto, acreditam que as declarações do Papa Francisco feitas durante o evento derrubam a doutrina do Evangelho. Em outras palavras, que o Papa é um herege.

Documento sobre a Fraternidade convida “todas as pessoas que têm fé em Deus e fé na fraternidade humana a unirem-se e trabalharem juntas para que sirvam de guia às futuras gerações para promover uma cultura de respeito mútuo na consciência da grande graça divina”.

Comentando sobre a Arca de Noé, o Papa afirmou: “De acordo com o relato bíblico, a fim de preservar a humanidade da destruição, Deus pediu a Noé que entrasse na arca junto com sua família. Nós também em nome de Deus, a fim de salvaguardar a paz, precisamos entrar juntos como uma família numa arca que pode navegar pelos mares tempestuosos do mundo: a arca da fraternidade ”.

Para o historiador e católico tradicionalista Roberto de Mattei, o documento e as recentes declarações do Papa Francisco estão em descontinuidade com os ensinamentos dos papas Gregório XVI a Pio XI e o Quarto Concílio de Latrão, convocado pelo Papa Inocêncio III em 1213.

“Se os homens, de fato, em nome da fraternidade, são obrigados a viver juntos sem um fim que dê sentido ao seu sentido de pertencimento, a Arca se torna uma prisão, e a fraternidade – imposta em palavras – é destinada à fragmentação e ao caos”.

Além disso, segundo de Mattei, a ideia de fraternidade, nova palavra de ordem do atual pontificado, se alinha aos ideais da Maçonaria, condenada pela Igreja. A Maçonaria é ecumênica, exigindo apenas o reconhecimento do Grande Arquiteto do Universo – a religião da pessoa sendo livre (inclusive nenhuma, se acreditando em Deus dessa forma geral).

“Na realidade, a Maçonaria continua a ser condenada pela Igreja, mesmo que os homens da Igreja, nos mais altos níveis, pareçam abraçar suas ideias. Mas o ensinamento do divino Mestre continua a ressoar em corações fiéis: lá o amor pelo próximo só pode ser baseado no amor a Deus. E sem referência ao Deus verdadeiro, que só pode ser amado dentro da Arca da Salvação da Igreja, a fraternidade é apenas uma palavra vazia que esconde o ódio de Deus e do próximo.”

Segundo Chad Pecknold, professor de teologia da Universidade Católica da América, as declarações são controversas, mas devem ser interpretadas dentro de seu contexto. “A ideia de que Deus deseja a diversidade de cor, sexo, raça e idioma é facilmente compreendida, mas alguns podem achar intrigante ouvir o Vigário de Cristo falar sobre Deus querer a diversidade das religiões”.

Com informações de LifeSite Ne

Letícia Yazbek

Fonte: Aventuras na História

El Vaticano y los masones

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Las pésimas relaciones existentes entre la masonería y la Iglesia católica tienen sus orígenes en los años de la unificación italiana, cuando sociedades secretas de distinto tipo combatieron el poder temporal del papado y concretamente los Estados Pontificios. La masonería ha mantenido históricamente buenas relaciones, incluso de coincidencia, con otras confesiones cristianas. El Código de Derecho Canónico, en cambio, ha mantenido hasta 1983 la pena de excomunión para los católicos afiliados a la masonería. La reforma de este código coincidió con una declaración del cardenal Ratzinger en la que se apuntaba ya la línea de involución que ahora se expresa en un reciente artículo de L’Osservatore Romano, en el que se postula la incompatibilidad “entre la fe cristiana y la masonería”. En contra de esta opinión, el autor de este artículo piensa que la masonería es una sociedad laica, con una finalidad filantrópico-cultural y humanístico-filosófica, que tiene un ideario de fraternidad universal y perfeccionamiento del hombre lo suficientemente amplio y ambiguo en sus formulaciones para que tengan en ella cabida hombres de diferentes creencias y opiniones políticas… Esta misma posición es la que adoptaron Juan XXIII y Pablo VI, así como el antecesor del cardenal Ratzinger en su mismo puesto, el cardenal Seper, quien ya en 1972 propició la posibilidad de la presencia de los católicos dentro de la masonería.

El viernes 22 de febrero de 1985 la televisión italiana daba la noticia de que la Iglesia mantenía la incompatibilidad entre ser católico y masón. Al día siguiente, l’Osservatore Romano publicaba en primera página, a tres columnas, un artículo anónimo – aunque, evidentemente, reflejo oficial del antiguo Santo Oficio romano – bajo el título: Reflexiones a un año de la declaración de la Congregación para la Doctrina de la Fe. Inconciliabilidad entre la fe cristiana y la masonería. Artículo que ha suscitado toda una serie de comentarios sobre la política vaticana que van más allá del mero problema masónico.

Oportunismo político

Sobre la oportunidad o coyuntura del momento elegido caben múltiples especulaciones, que fundamentalmente giran en torno, no tanto de la próxima discusión parlamentaria del informe elaborado por la comisión que se ha ocupado de la famosa logia P-2, sino más bien de los contactos políticos que en estos días están teniendo lugar en Roma con vistas a la búsqueda de un sucesor de Pertini en las ya cercanas elecciones presidenciales. Algunos han querido ver otras connotaciones en el hecho de que dicho artículo comparta la titularidad de primera página con otro que lleva por título: Estados Unidos ayudará a los ‘contras’ en Nicaragua.

Pero, al margen de especulaciones más o menos sugestivas, es evidente que el intentar justificar las reflexiones vaticanas como aclaración a un breve documento aparecido en el mismo periódico, no hace un año, sino 15 meses (26 de noviembre de 1983), resulta tanto más llamativo por cuanto dichas reflexiones no consiguen su objetivo.

En primer lugar, ya el título no es excesivamente acertado. Hubiera sido más correcto haber hablado de fe católica, pues ciertamente no existe incompatibilidad entre fe cristiana y masonería, desde el momento que son muchos los obispos anglicanos, ortodoxos y luteranos que hoy día son masones sin problemas de fe cristiana, como en su día lo fueron el primado de la Iglesia anglicana, el doctor Fisher, y el patriarca Atenágoras, de la Iglesia ortodoxa, con quienes Juan XXIII, lejos de todo triunfalismo personalista, inició, con su sencillez y humildad características, una apertura de diálogo ecuménico en tina atmósfera de comprensión fraternal.

Subversión y naturalismo

Tampoco resulta excesivamente acertado el planteamiento inicial del artículo, en el que se dice que el juicio negativo de la Iglesia contra la masonería ha sido inspirado por múltiples razones prácticas y doctrinales. Entre las prácticas cita “la actividad subversiva” de la masonería contra la Iglesia. Entre las doctrinales, que la masonería tiene ideas filosóficas y concepciones morales opuestas a la doctrina católica, que llevan “a un naturalismo racionalista, inspirador de su actividad contra la Iglesia”. El traer como pruebas dos documentos de León XIII, la Humanum Genus, de 1884, y una carta al pueblo italiano de 1892, da la sensación de cierta pobreza y parcialidad histórica, no ya porque la Iglesia a la que se refiere León XIII no es la de hoy, ni los problemas políticos de la reunificación italiana tienen por qué seguir afectando todavía hoy a la Iglesia universal, sino porque la masonería actual tampoco tiene nada que ver con la del siglo XIX ni con una cuestión política concreta, pasada o presente.

Recordemos que solamente Pío IX y León XIII, en sus documentos y alocuciones, hablaron más de 400 veces contra la masonería, identificada en muchos casos con la carbonería (lo que es insostenible desde el punto de vista histórico) y siempre con las sociedades patrióticas y secretas que en aquellos años lucharon por la unificación italiana, en contra de los intereses temporales del Papa, que se oponía a la pérdida de sus territorios pontificios. El acento político de aquellos ataques quedó reflejado en el leit motiv que en todos ellos sintetizaba el pensamiento pontificio y que no era otro que el que la masonería y las sociedades secretas atacaban “los derechos del poder sagrado y de la autoridad civil”, que “conspiraban contra la Iglesia y el poder civil”, que “atacaban a la Iglesia y los poderes legítimos”. El propio León XIII, en la Humanum Genus, alude a las prohibiciones de la masonería por parte de ciertos Gobiernos y recalca que “el último y principal de los intentos” de la masonería era “el destruir hasta sus fundamentos todo el orden religioso y civil establecido por el cristianismo, levantando a su manera otro nuevo con fundamentos y leyes sacadas de las entrañas del naturalismo”. Y como prueba del proceder de la “secta masónica” y de su “empeño en llevar a cabo las teorías de los naturalistas”, añade que la masonería “mucho tiempo ha que trabaja tenazmente para anular en la sociedad toda injerencia del magisterio y autoridad de la Iglesia y a este fin pregona y contiende deberse separar la Iglesia y el Estado, excluyendo así de las leyes y administración de la cosa pública el muy saludable influjo de la religión católica”.

Es claro que hoy el Vaticano II propugna esa separación entre Iglesia y Estado, sin incurrir por ello en ideas naturalistas. Pero es igualmente importante constatar que la propia Iglesia, cuando poco después de morir León XIII (1903) promulgó el Código de Derecho Canónico (27 de mayo de 1917) que ha estado en vigor hasta el 28 de noviembre de 1983, sintetizó todas las normas doctrinales y prácticas habidas contra la masonería en el canon 2.335, en el que se decía que “los que dan su nombre a la secta masónica o a otras asociaciones del mismo género que maquinan contra la Iglesia o contra las potestades civiles legítimas, incurren ipso facto en excomunión simplemente reservada a la Sede Apostólica”.

Poder terrenal

Esta identificación de masonería como una sociedad que “maquina contra la Iglesia o contra las potestades civiles legítimas” sólo se puede comprender desde la óptica de la problemática planteada en Italia por la famosa “cuestión romana” o pérdida de los Estados pontificios, donde estaban simbolizados los dos poderes, el civil y el eclesiástico, el trono y el altar, o si se prefiere, la Iglesia católica y el poder legítimo gubernamental, coincidentes ambos en una misma persona, el Papa, en cuanto rey de Roma y jefe de la Iglesia católica.

En el nuevo Código de Derecho Canónico, el canon 2.335 ha sido sustituido por el 1.374, en el que se dice textualmente: “Quien se inscribe en una asociación que maquina contra la Iglesia debe ser castigado con una pena justa; quien promueve o dirige esa asociación ha de ser castigado con entredicho”.

Es decir, que ha desaparecido toda referencia a la masonería, a la excomunión y a los que maquinan contra las potestades civiles legítimas, tres de los aspectos básicos que sólo tenían razón de ser en el contexto histórico de un problema concreto italiano del siglo XIX, que, evidentemente, al no existir hoy resultaba anacrónico mantener. Y así lo entendieron los expertos que durante más de 20 años trabajaron en la redacción del nuevo Código de Derecho Canónico, a pesar de las presiones que a última hora se ejercieron, especialmente desde ciertos sectores fundamentalistas de la Iglesia, para que se mantuviera la excomunión contra los masones.

Golpe involucionista

Sin embargo -y en parte fruto de estas presiones-, el cardenal Ratzinger, prefecto de la Congregación para la Doctrina de la Fe, sorprendía el 27 de noviembre de 1983, es decir, la víspera de entrar en vigor el nuevo Código de Derecho Canónico, con un hecho sin precedentes en la historia de la Iglesia, publicando una “declaración sobre las asociaciones masónicas”, por la que, antes de ser nombrada y constituida la comisión pontificia de interpretación del código, se adelantaba en sentido restrictivo, por no decir negativo, haciendo decir al código lo que en modo alguno se recoge en él, echando por tierra uno de los pequeños avances que en los últimos años se había conseguido en la clarificación de las relaciones entre la Iglesia y la masonería.

En dicha nota se decía, en síntesis, que “permanecía inmutable el juicio negativo de la Iglesia respecto a las asociaciones masónicas porque sus principios siempre habían sido considerados inconciliables con la doctrina de la Iglesia, por lo que la inscripción en ellas permanecía, prohibida”, a pesar de que en el nuevo Código de Derecho Canónico no se mencionara expresamente a la masonería. Y añadía que “los fieles que pertenecieran a las asociaciones masónicas estaban en estado de pecado grave y no podían acceder a la santa comunión”. Finalmente, concluía diciendo que “no competía a las autoridades eclesiásticas locales pronunciarse sobre la naturaleza de las asociaciones masónicas”.

Ante la reacción de no pocas conferencias episcopales contra esta nota, que suponía una contradicción con lo practicado por la Iglesia desde el Vaticano II y por la propia Congregación para la Doctrina de la Fe, que había autorizado hacía ya 10 años, pública y oficialmente, la pertenencia de los católicos a ciertas masonerías, l’Osservatore Romano se ha visto obligado a hacer el reciente comentario, más desafortunado, si cabe, que la nota precedente y que supone una vuelta a la época inquisitorial. Y lo más grave es que tanto la declaración de 1983 como las reflexiones de 1985 están inspiradas en un documento tan reaccionario y erróneo como la declaración que los obispos alemanes hicieron el 28 de abril de 1980 contra la masonería.

Ritos y religión

Pues las reflexiones vaticanas del 23 de febrero de 1985 no son otra cosa que una glosa de dicha declaración alemana, a la que sigue en sus puntos fundamentales, como el relativismo, el concepto de la verdad en la masonería, las acciones rituales, la visión que los masones tienen del mundo, etcétera. El paralelismo es tanto más llamativo cuanto falso el planteamiento de la declaración alemana. Pues ya el punto de partida es gravemente erróneo al considerar a la masonería como una religión o pseudorreligión y a los rituales masónicos como si tuvieran un carácter sacramental.

Pues la masonería no es, ni ha sido nunca, una religión. Es una sociedad laica, con una finalidad filantrópico-cultural y humanístico-filosófica, que tiene un ideario de fraternidad universal y perfeccionamiento del hombre, lo suficientemente amplio y ambiguo en sus formulaciones para que tengan en ella cabida hombres de diferentes creencias y opiniones políticas, sin que esto suponga indiferentismo ni sincretismo, sino simplemente tolerancia y respeto con relación a la libertad de pensamiento y creencias de los demás, en una asociación en la que tienen cabida todos los creyentes -es decir, no ateos-, sean éstos cristianos, católicos, musulmanes, hebreos, budistas…

Y esto lo comprendieron muy bien Juan XXIII y Pablo VI, así como el antecesor del cardenal Ratzinger en su mismo puesto, el cardenal Seper, quien ya en 1972 propició la posibilidad de la presencia de los católicos dentro de la masonería. En concreto, intervino, tanto en Francia como en el Reino Unido e Italia, un representante del Vaticano, en la persona del entonces secretario de la Comisión Pontificia para los no Creyentes y consultor de la Sagrada Congregación para la Doctrina de la Fe, don V. Miano, encargado de estudiar los problemas que planteaba el canon 2.335 y de exponer viva voce que podía ser aceptada la interpretación de dicho canon según la cual se restringía la excomunicón sólo a los miembros de aquellas asociaciones “que se dedicaban a complós contra la Iglesia y los poderes civiles legítimos”. Posteriormente, el 19 de julio de 1974, el cardenal Seper hacía ya público un documento en este mismo sentido. Criterio que fue renovado el 12 de marzo de 1975, en respuesta a la Conferencia Episcopal Brasileña.

El Vaticano se contradice

De acuerdo con esta pauta, diferentes conferencias episcopales, como la inglesa, norteamericana,canadiense, francesa, escandinava, dominicana, etcétera, fueron adoptando medidas que resolvíanlos problemas pastorales y de conciencia planteados a tantos católicos que no veían motivos de incompatibilidad con su pertenencia a la masonería.

Ante el radical cambio de actitud que supuso el documento de Ratzinger del 26 de noviembre de 1983, varias conferencias episcopales pidieron aclaraciones a Roma en el sentido de saber quién tenía razón en todo este problema, si Ratzinger o su antecesor, Seper; preguntas que hasta ahora habían quedado sin respuesta. Finalmente, ha llegado una respuesta, indirecta en su formulación, con la que se pretende eludir la cuestión fundamental de la hostilidad de la masonería contra la Iglesia, que era el único motivo jurídico de incompatibilidad que existía en el código antiguo y se intenta volver a cuestiones doctrinales y de principios, basadas no en documentos masónicos actuales, sino en los testimonios y doctrina de León XIII. Cuando precisamente hoy día se sabe tanto del entorno histórico de aquella época y del confusionismo ideológico entonces existente, al menos en lo que a la masonería se refiere.

En síntesis, el documento que nos ocupa es una clara marcha atrás en la trayectoria seguida por la propia Congregación para la Doctrina de la Fe durante estos últimos años, y más concretamente desde el Vaticano II. Pues del reconocimiento explícito de que hoy día podían existir -y de hecho existen- masonerías que ya no maquinan contra la Iglesia, la conclusión lógica hubiera sido que, por tanto, los principios ideológicos y morales que inspiraban a dichas masonerías no eran opuestos a la Igleisa católica. Y para ello hubiera bastado la lectura y análisis de las constituciones y prácticas de dichas masonerías actuales, sin necesidad de remontarse a León XIII. Sin embargo, la conclusión ha sido precisamente la contraria. La masonería ya no máquina contra la Iglesia, pero sus principios doctrinales no han cambiado, y por tanto, los católicos que se inscriben en la masonería -realizando un simple juego de palabras- ya no están excomulgados, aunque “su inscripción constituye objetivamente un pecado grave”, y, por tanto, “no pueden acceder a la santa comunión”. Y de paso se desautoriza a las conferencias episcopales y autoridades eclesiásticas locales que en los últimos años se habían pronunciado de una manera más o menos abierta y favorable a la entrada y permanencia de los católicos en la masonería. En adelante se centraliza en Roma el juicio de valor sobre la naturaleza de cualquier logia del mundo -uno más de los absurdos del reciente documento-, aunque muy en la línea involucionista y de recorte de prerrogativas impuesta por la política actual vaticana.

Autor: José A. Ferrer Benimeli

*Benimeli é sacerdote jesuíta, profesor de Historia Contemporánea da universidade de Zaragoza e presidente do Centro de Estudios Históricos de la Masonería Española. Autor, entre otras obras, de Masonería e Iglesia católica, El contubernio judeo-masónico comunista y Masonería, Iglesia e Ilustración.

Fonte: El País

Este artigo foi publicado na edição impressa de 10 de março de 1985.

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