As motivações para filosofar

Alimentando a mente. É comum nos sentirmos ansiosos… | by Cali (Renato  Caliari) | KiSimples | Medium

Introdução

Um casal de bons dançarinos sempre se esforça na busca de uma melhor apresentação, indo aos limites de seus corpos, pois se emprenham ao máximo para situarem-se dentro do ritmo da música, se aplicam em seguir fielmente a coreografia planejada, empregando todas as suas forças na transmissão de um espetáculo sublime.

Contudo, qual o motivo que leva o casal a dançarem? Dentro de um período capitalista, a resposta mais provável seria a de que fosse simplesmente pelo dinheiro, porém se este mesmo casal estiver situado em uma festa entre amigos, certamente não são pelo dinheiro que eles articulam ritmados seus corpos.

Assim, refletindo sobre uma possível resposta do próprio casal, sobre o motivo pelo qual dançam, e sendo ela a mais nobre resolução, eles diriam que dançam pelo simples prazer de dançarem, ou talvez por que pela dança conseguem por meio de seus corpos atingirem e reproduzir estágios mais próximos do belo, dentro da finitude humana.

Sem embargo, a dança sendo uma arte, goza da mesma dificuldade da filosofia, na pergunta pela qual é exercida, ambas, dançarina e filosofa, acabam por se pegarem refletindo no motivo pelo qual praticam cada uma das suas atividades artísticas, porém a segunda respectivamente irá usar sua própria ferramenta para responder por que a utiliza. Enquanto que a dançarina não pode dançar para responder dignamente por que dança.

Desta maneira, este artigo irá tentar responder “Por que filosofar? ”, baseando-se nos seguintes autores: Max Horkheimer (alemão, escola de Escola de Frankfurt, falecido em 1973) escritor de Eclipse da Razão, Enrico Berti (italiano, da Accademia dei Lincei) autor de Convite à filosofia e Marilena Chauí (brasileira) Introdução à história da filosofia, tendo como filosofo central Aristóteles, em sua obra Metafísica. Tomando o cuidado de articular de maneira coesa tantas linhas diferentes de pesquisa.

Seguindo, em vista de responder à pergunta que motiva este artigo, cabe inicialmente destrinchar esta problemática – Por que filosofar? Assim, observando a oração, notam-se dois elementos: o primeiro “Por que” que questiona qual a motivação do exercício sobre o objeto no caso a “Filosofia”. Deste modo, metodologicamente para tentar responder “Por que Filosofar? ”, tomo a liberdade de inicialmente explanar sobre o que é a filosofia e como ela nasce; na sequencia apresentar o porquê, ou melhor, os motivos pelos quais somos levados a realizar tal atividade, ou não; ao fim evidenciando como filosofar quiçá contribui para o aprimoramento do ser humano que o faz.

O que é Filosofia?

Ainda seguindo com o exemplo da dança, para explicar o que ela é em si, se mostra bem mais fácil, expor ela como uma ação, e discorrer sobre como ela nasce, isto é, sem desejar alongar-me sobre o exemplo, talvez a dança nasça de um desejo do bailarino em expressar todo o seu vigor físico, pelo prazer em dançar. O mesmo método aplica-se a filosofia, destarte qual seria a semente que origina e mantem a filosofia? Para Enrico Berti (2013, p. 56) “a filosofia nasce da maravilha, ou da pesquisa, da pergunta, da dúvida”. Assim, a filosofia é um ato honesto de perguntar que nasce do espanto, do maravilhar-se, sempre em vistas do real, verdadeiro. Para Berti afirmar isto, ele se baseia em dois dos maiores filósofos que nosso planeta já teve a honra de gerar e prover sustento – Platão e Aristóteles, sendo que o último Aristóteles (1984, p.14) na Metafísica diz que “Foi […] pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar”.

Em resumo, a filosofia brota de um encontro espantoso com algo, cominando em um ato quase instintivo de perguntar sobre o algo visto. Cabendo a cada filosofo contribuir com a humanidade apresentando sua parte na resolução acerca da Verdade.

Por que filosofar?

Sabendo agora que a filosofia é sempre a tentativa de buscar dentro da limitação humana respostas para a maravilha, cabe discorrer inicialmente que maravilha é essa e na sequencia por que ela deve ser questionada.

Num mundo banhado por estímulos vazios; gigantescos mundos ínfimos; dentro de aparelhos tecnológicos; e em diálogos vazios e sem paixão, realmente, fica difícil observar o maravilhoso universo que nos cerca e somos. Contudo, vale o esforço de abrir as janelas de nossas celas, e de nossas mentes e olhar tudo o que nos cerca, bem como os primeiros filósofos, chamados pré-socráticos fizeram, isto é, olharam para o mundo se se perguntaram o porquê daquilo, como diz Chauí (1994, p. 48) ao falar sobre Tales de Mileto: “Fez algumas descobertas astronômicas: além da previsão do eclipse solar, descobriu a constelação da Ursa Menor e aconselhou os navegantes a se guiarem por ela”.

Com efeito, o charme da maravilha está no olhar do observador, não é muito difícil, basta olhar o sol, e se perguntar o porquê de seu brilho, ver as aves que cantam e buscar entender o motivo do seu tipo de melodia, por fim, apreciar por exemplo, um par de bailarinos e se perguntar o porquê de seus movimentos precisamente coreografados despertam na plateia sentimentos tão alegres. Tudo isso passa despercebido aos olhares menos treinados e mais preocupados com a sobrevivência.

Assim, segundo Berti baseado em Aristóteles, existem três graus de maravilha. O primeiro baseado nos problemas mais simples, que estão presentes em nosso cotidiano, o segundo estágio se atem as problemáticas de ordem maior que a anterior, se na fase inicial maravilhamo-nos com a alternância das estações neste segundo indagamos sobre as fases da lua e os eclipses lunares. O último grau da maravilha é aquele que diferente dos anteriores se debruçam nos particulares, ao contrário, questiona o princípio de todas as coisas, ou melhor, a geração do universo. (BERTI, 2013, p. 63-66)

Após compreender a maravilha e seus graus, resta destrinchar os motivos pelos quais nós nos questionamos a cerca destas maravilhas ou não. Seguindo a regra popular que diz que ao se receber duas notícias uma boa e outra ruim, a péssima deve ser apresentada por primeiro, a fim de gerar inicialmente o impacto para depois ser amenizada pela novidade boa. Com efeito, começo na apresentação dos elementos de por que não nos questionamos acerca dos espantos do dia-a-dia, ou melhor, por que não filosofamos.

Por que não filosofamos

A filosofia entendida como ciência exige segundo Berti com base em Aristóteles, duas coisas básicas para seu exercício: pensar e tempo. A primeira uma raridade no atual contexto, ou até mesmo o exercício do pensamento acaba sendo ignorado. Assim, muitos de nós desprezamos nossa maior habilidade perante os demais animais, pois pensar sobre coisas úteis requer atenção, cuidado, paciência, elementos que não são dados a todos, ou não são desejados. (BERTI, 2013, p.104)

Já o tempo, tão escasso e mal utilizado é o segundo elemento de exigência, uma vez que somos seres finitos inseridos no tempo, o exercício do pensar exige intervalos, para que a reflexão acerca do se maravilhar possa ser frutífera.

Deste modo, uma pessoa pode não vir a filosofar, por que não possui tempo, para dedicar-se a pensar sobre a maravilha que até ela se deparou ou não, bem como também não deseja ou pode pensar sobre o espanto que a cerca. Resta seguir na discussão do outro extremo, por que somos motivados a filosofar?

O motivo de filosofar?

Retomando a analogia presente na introdução e repetida algumas vezes, agora frente a frente com a dançarina a questionamos, qual o motivo de você dançar? Muitas são as repostas, como exemplo: por questões culturais, devido a manutenção do corpo, para tranquilizar a mente, devido a religiosidade etc. Enrico Berti, buscando responder a mesma questão, porém tendo como objeto a filosofia, consome um capítulo inteiro de sua obra nesta empreitada na resolução das motivações que levam um ser humano a consumir tempo e pensamento no exercício filosófico.

Porém somente ao final de aproximadamente trinta páginas e sobre o ombro de Aristóteles ele chega a um consenso no qual consinto. O verdadeiro motivo que nos leva a filosofar é um desejo intrínseco ao ser humano em conhecer, essa é a primeira camada, a isca que todos mordem, porém somente os mais corajosos possuem o ímpeto de ir à ponta da vara. (BERTI, 2013, p.47)

Assim, o motivo de filosofar é de querer ir a fundo, de conhecer o que é o Real, concentrando-me ao máximo na investigação da Verdade, usando toda a minha capacidade intelectiva na busca das respostas. E tal processo é como que um ciclo infinito, pois à medida que se descobre respostas às maravilhas encontradas, novas surgem e as resoluções vão parecendo insuficientes. Mas, este processo que parece inútil, que exige tempo pode contribuir em algo para a humanidade, visto que em um primeiro olhar, ela não produz nada sensível, nada que agregue valor financeiro para a sociedade e mercado. Em suma, seria então a filosofia inútil?

Filosofia como possibilidade de aprimoramento

Sim, a filosofia é inútil. Parece uma expressão forte e devastadora para qualquer estudante de filosofia, porém a dançarina também receberia a mesma resposta. E isso mostra como estamos avançados, ou seja, enquanto humanidade nos damos ao luxo de gastar tempo e recursos com coisas que são inúteis. Pois se a filosofia tivesse como princípio e objetivo algo, este algo faria dela escrava. Por exemplo, dizer que a filosofia serve para construir conceitos somente, logo a filosofia é serva da construção de conceitos não possuindo possibilidade de ser utilizada para outros fins. Assim, a filosofia é útil pelo valor que ela possui em si mesma, bem como a dança e as outras artes. (BERTI, 2013, p.106)

Porém é notável a evolução física e mental de uma bailarina, que dançando aprimora-se como humana, o mesmo se dá no exercício filosófico, ao passo que a investigamos o porquê das coisas, nos debruçando sobre as perguntas que busquem revelar a verdade. Com efeito, a filosofia segundo Berti (2013, p. 111) é a “aquisição e uso da sabedoria”, desta forma neste caminhar de “por que filosofar? ”, dentre tantas respostas incertas algo se mostra claro, que nessa devassa o seu protagonista no mínimo irá conhecer um pouco mais sobre a sabedoria e como aplicá-la.

Enfim, o saber filosófico carregado de toda tradição e legado, possui em si o que a sociedade detém de mais nobre e próximo do Belo, e aqueles que segundo Max Horkheimer contribuíram na descoberta de um fragmento da verdade, são hoje lembrados pelos mais sábios como pessoas dignas de memória e honra. (HORKHEIMER, 2002, p. 172)

Conclusão

A filosofia nascendo deste maravilhar-se, e o exercício do filosofar o processo honesto e racional de questionamento a cerca deste espanto, motivado pela busca de respostas verdadeiras, tendo nenhuma utilidade prática, porém contribuindo indiretamente num aprimoramento das capacidades intelectuais daqueles que realizam tal ato de filosofar, resta então saltar e dizer para que fim a filosofia caminha.

É notável que o número de filósofos nunca foi grande, deste a antiga Grécia, berço da filosofia ocidental, tal habilidade somente estava ao alcance de um seleto grupo de homens. Contudo, em nosso contexto contemporâneo, inundado de estímulos e prazeres inúteis sempre à disposição, “por que filosofar? ” Não passa nem próximo de um número mínimo daqueles que nobremente conduziriam este saber sagrado as próximas gerações.

Sem pretensão de ser dogmático, porém, é evidente como ainda após a revolução digital com tanta informação, a humanidade não consegue refletir sobre a veracidade dos dados que nos cerca, e de como a Verdade constantemente é relativizada, sendo escrava daqueles que desejam utiliza-la para seu bel-prazer.

Desta maneira, as estantes das livrarias ficam abarrotadas de livros de autoajuda, sempre repetindo as mesmas formulas, os filmes lacaios do mercado presos em repetir as mesmas histórias, dentre tantas artes que perdem cada vez mais seu brilho, como uma dançarina que vai esgotando suas forças próximo ao término do espetáculo.

Deste modo, “por que filosofar? ” É um meio de se salvar da savana que não tem piedade, é a pequena brecha de luz da caverna, o conjunto de desenhos de uma dança que leva a Verdade. Assim, nós pequeno grupo nobre, somos incumbidos pela própria Verdade a tentar conduzir outros para fora, para abrirem seus olhos ao Belo e ao Bom.

Uma vez que do mundo recebemos tal habilidade que nos melhora constantemente, é justo devolver, animando outros neste movimento de também filosofar. Pois, somente desta maneira, com pessoas cientes da incrível capacidade que possuem de refletir e pensar, talvez possamos crescer pequenos passos no sentido de uma melhor humanidade, comprometida sobretudo com a Verdade que é intrinsicamente absoluta e imutável.

Autor: Anderson Alves Francisco

Fonte: Revista Pandora

Referências

ARISTÓTELES. Metafisica: Livro I; Tradução: Vincenzo Coceo. São Paulo: Abril S. A. Cultural, 1984 (Coleção os Pensadores).

BERTI, E. Convite à filosofia; Tradução: Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

HORKHEIMER, M. Eclipse da Razão; Tradução: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002.

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Magnificência – a virtude de saber-se digno de honra

Os Sete Magníficos (1960) | A Grande Ilusão
Os Sete Magníficos (1960)

“(…) olhar menos à verdade do que à opinião dos outros, é próprio de um covarde. ” (Aristóteles)

Segundo Aristóteles, megalopsykhia (a magnanimidade, o apreço, o alto apreço) é a postura correta em relação ao maior dos bens exteriores, a saber, a honra.

Franco e verdadeiro, levando os outros em consideração, magnânimo é quem age de acordo com a areté (excelência).

Versemos sobre essa disposição de caráter que, quando em falta, revela indevida humildade, quando em excesso, demonstra vaidade.

Sendo a honra, a finalidade comum de todas as virtudes, indubitavelmente honroso, o magnificente inspira o que tantos desejam, a saber, admiração.

Comumente, deter poder e riqueza confere distinção, e é na explicitação (no uso e emprego) disso que vários intentam angariar admiração. Muitos honram quem possui poder e riqueza, mas só merece ser honrado o ser humano bom, pois dispor desses atributos sem ser virtuoso não têm por que alimentar a pretensão de fazer jus ao epíteto de “magnânimo”, o que implica numa virtude perfeita.

Quanto às posses, as atitudes em relação aos gastos têm sido reveladoras dos princípios e dos valores que permeiam a vida dos indivíduos.

Extravagantes, os vaidosos se exibem, não por terem em vista a honra, mas por pensar que ao ostentar riquezas serão admirados. Ponderemos o quão longe estão da genuína magnanimidade.

Espíritos que têm a si mesmo em altíssimo apreço não ambicionam as coisas vulgarmente acatadas, pois, dotados de um caráter que basta a si mesmo, a pessoa verdadeiramente magnânima se arroga o que corresponde aos seus méritos, ao que não pode ser comprado, que sequer tem preço, mas elevado valor.

Altivo, possuidor de bom e nobre caráter, seria indecoroso para um indivíduo magnânimo fugir ao perigo, praticar atos vergonhosos, incorrer em injustiça.

É sobretudo por honras e desonras que o magnânimo se interessa, e as honras que forem grandes e conferidas por homens bons, ele as receberá com moderado prazer, mas as honras que procedem de pessoas quaisquer e por motivos insignificantes, ele as desprezará, visto não ser isso o que merece.

Quem aspira à magnanimidade irá se conduzir com moderação no que diz respeito ao poder, à riqueza e a toda boa ou má fortuna que lhe advenha, e não exultará excessivamente com a boa fortuna nem se abaterá com a má sorte.

O homem magnânimo despreza respaldado em julgamento justo, mas os ordinários o fazem sem que haja motivo sério.

É magnânimo saber que há condições em que não vale a pena viver. É também característico de quem faz jus à magnanimidade não pedir nada ou quase nada, mas prestar auxílio de muito bom grado. E adotar uma atitude digna em face das pessoas que desfrutam de alta posição e são favorecidas pela boa fortuna.

É coisa difícil e grande marca de altivez mostrar-se superior aos de classe elevada, embora seja fácil com os de classe mediana.

Sem dúvida, uma conduta altiva ao se relacionar com pessoas superiores em poder e riqueza não é sinal de má educação, mas altivez diante dos humildes é vulgar, afirma o Estagirita.

À magnanimidade convém sermos francos em nossos ódios e amores, falarmos e agirmos abertamente:

“(…) ocultar os seus sentimentos, isto é, olhar menos à verdade do que à opinião dos outros, é próprio de um covarde. ”.

A franqueza do magnânimo provém de certo desdém por miudezas.

Por não ser escravo de ninguém, é incapaz de fazer com que sua vida gire em torno de outro (coisa de aduladores, que sequer respeitam a si próprios) e não guarda rancor por ofensas que lhe façam, prefere relevá-las.

É avesso a maledicências e conversas fúteis, pois não fala sobre si mesmo nem sobre os outros e tampouco fica alardeando seus feitos. Também não sucumbe aos elogios que lhe fazem. A tranquilidade paira sobre as atitudes, a fala e o modo de portar-se de uma pessoa verdadeiramente magnânima, pois quem costuma levar poucas coisas a sério em nada se apressa.

Como afirmamos no início, quem está aquém da magnanimidade é indevidamente humilde, e quem o ultrapassa é vaidoso. Ponderemos sobre esses extremos.

As pessoas vaidosas aventuram-se a honrosos empreendimentos que não tardam a denunciá-las pelo que são. Adornam-se com belas roupas, ares afetados e coisas que tais, desejam que suas boas fortunas se tornem públicas, tomando-as para assunto de conversa, como se desejassem ser honrados por causa delas.

É vaidoso aquele que se julga digno de grandes coisas sem possuir qualidades para tanto. Desdenhosos e insolentes, sem virtude não é fácil carregar com elegância os bens da fortuna, pondera o filósofo.

Vaidosas, exibidas, essas pessoas costumam se julgar superiores aos demais, desprezando-os, proceder como virtuosos está fora de seu alcance, embora imitem o homem magnânimo, excedem em relação aos méritos próprios.

Em contrapartida, é indevidamente humilde, diz Aristóteles, o homem que se julga menos merecedor do que realmente é. Se comparado às pretensões do magnânimo, a pessoa indevidamente humilde revela-se deficiente em confronto com os seus méritos próprios.

O que é digno de coisas boas e ainda assim, indevidamente humilde, está roubando de si mesmo daquilo que merece, e parece ter algo de censurável porque – excessivamente modesto –  não se julga digno de boas coisas e também parece não se conhecer, do contrário desejaria as coisas que merece.

Ambas disposições de caráter são típicas de tolos, no entanto, são vícios que, ainda que equivocados e um tanto indecorosos, não desonram ninguém, até porque nem são nocivas aos demais. Contudo, a humildade indébita se opõe ainda mais à magnanimidade do que a vaidade, tanto por ser mais comum como por ser ainda pior:

“Quem se considera indigno de nobreza e riqueza irá se abster de ações e empreendimentos nobres.”

Mas a pessoa verdadeiramente magnânima, visto merecer mais do que os outros, deve ser boa no mais alto grau, pois o melhor sempre merece mais, e o melhor de todos é o que mais merece, conclui o filósofo.

Autora: Luciene Felix Lamy

Fonte: Blog Conhecimento sem Fronteiras

Referência

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.

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Luz, Paz e Bem

Frases do pequeno príncipe

Vivemos tempos de crise. A essência cede lugar à aparência. Tudo parece repelir a convivência pacífica de opostos. A simples manifestação de uma opinião – sobre qualquer assunto – enseja ataques gratuitos, especialmente no Tribunal das Redes Sociais. Intolerância geral. “Enquanto os homens exercem seus podres poderes” (Caetano Veloso), a felicidade parece estar cada vez mais distante.

Mas esta época pode ser muito boa, se soubermos o que fazer com ela.

“Somos feitos para a felicidade, para a interação, para a bondade, enfim para facilitarmos a existência uns dos outros” (Ana Jácomo).

“Gente simples, fazendo pequenas coisas, em lugares não muito importantes, consegue mudanças extraordinárias (Provérbio africano)”.

Esta não é uma situação passageira. Há uma mudança de eixo na nossa forma de viver. O grande desafio é encontrar a melhor maneira. E é neste cenário que novamente se apresenta singular oportunidade de a Maçonaria reafirmar sua missão.

O filósofo Epicuro observou que os grandes navegadores devem sua boa reputação às tempestades. Paz não é a ausência de conflito, mas a constante e corajosa luta contra a injustiça.

“A coragem é um meio termo entre o medo e a confiança” (Aristóteles).

“A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Guimarães Rosa).

Por outro lado, é sabedoria deixar de lutar por algo que não proporciona paz. A própria Maçonaria precisa superar suas dificuldades e conflitos. Precisa se manter no caminho reto, que historicamente trilhou. Ser a Sublime Instituição que prometemos aos neófitos. Ficar imune ou em contraste com os desencontros do mundo profano.

Para tanto, cada obreiro deve honrar, contínua e permanentemente, o seu juramento da Iniciação. Um ensinamento indígena diz que quando não se cumpre a promessa, os fios da ação ficam soltos ao nosso lado, enrolam-se nos pés e impedem a livre caminhada. Por isso, os nativos têm o costume de “colocar as palavras para andar”, ou seja, agir de acordo com o que se fala, o que conduz ao caminho da beleza, em que há harmonia e prosperidade naturais.

Todos nós, eternos aprendizes, juramos cultivar a paz, a concórdia e o respeito, além de defender a liberdade de consciência, comprometidos com a indagação responsável, a informação segura, a meditação serena, a ação benfazeja. A começar na própria Loja, nosso comportamento social deve ser reflexo lógico do que se faz no particular, mais do que somente imagem para consumo externo. Coincidência entre discurso e prática. Em suma, coerência!

Assim, em equilíbrio e harmonizados, estaremos aptos a contribuir na construção social, cujo pressuposto básico é a vida humana em grupos, que, sem dividir, impor ou segregar, devem ter um mínimo de homogeneidade para poder evoluir, renovar e construir. A vida em sociedade precisa de palavras bonitas e menos cara feia. Mais respeito e pouco julgamento. Mãos dadas, menos individualidade. Discernimento para quando se negue a verdade e se idolatre a mentira. Menos regulamentos e melhores relacionamentos.

A propósito de harmonia, a Constituição de Anderson já determinava que os artesãos deveriam se abster de toda prática profana prejudicial à caridade fraterna ou às boas relações. Dirigir-se sempre uns aos outros pelo tratamento de Irmão, agindo com cortesia, dentro e fora de Loja. Evitar comitês particulares, conversações paralelas, linguagem imprópria, falas inconvenientes, ou comportamento jocoso, porque a Loja somente se envolve com o que é sério e solene. Facultava o regozijo, com alegria, mas evitando todo excesso gravoso, sob a pena de frustrar louváveis esforços. Recomendava abrandar temperamentos, evitar pendências cotidianas e querelas sobre temas polêmicos, porque somos de todas as origens, e temos o direito de livre pensar, mas fundamentalmente há obrigação de respeitar o outro.

Todos nós, Maçons, somos iguais em direitos e deveres gradativamente conquistados e cumpridos. Somos credores de respeito e lealdade, mas também devemos fidalguia e amabilidade.

Nesta linha de ideias, haveremos de ter muito cuidado com as disputas e as divergências, com o julgamento descuidado e a condenação precipitada das palavras, do silêncio, da presença e da ausência; do que se pensa, do que se faz e do que não é feito.

Estar imunes à Santa Inquisição dos Passos Perdidos, tão comum no mundo profano, em que muitos, para tirar atenção de si próprios, medem supostas falhas alheias com uma régua que eles mesmos inventaram. Distinguir entre obsequiosos, altercadores, e aduladores, pois a simulação da bondade é a mais perigosa das maldades. Respeitadas as possibilidades e a capacidade de cada obreiro, observar os que se omitem, reclamam muito, mas pouco ou nada fazem; e quem acha que tudo pode ou faz; ou quem se faz de modesto; além dos que se apropriam de feitos alheios. Resistir e neutralizar eventuais máculas contra a reputação de quaisquer Irmãos; em especial os ausentes.

Por outro lado, as sinceras manifestações dos Irmãos, em Loja, devem ser respeitadas, pelo que realmente significam, e não por interesses ou ideias contrárias. Importante assumir o que se diz, mas não se sentir responsável pelo que o outro entende.

A Arte Real também engloba saber ouvir ou falar, com lealdade. O tom do que é dito depende do jeito de ouvir, e vice-versa. Não se há de melindrar com ideias e pensamentos lançados em abstrato, para aprendizado de todos. E se algum confrade for prejudicado de qualquer modo, a fraternidade deve prover ou viabilizar sua defesa, e restabelecer a verdade e a justiça.

As decisões coletivas e legítimas sempre devem ser acatadas. Diálogo e respeito são imperativos, especialmente aos que pensam diferentemente, não havendo por que impor opiniões e condenar as contrárias. Conforme José Saramago,

“O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.”

É básico e lapidar que somente deve portar avental o Irmão em perfeita harmonia com os demais obreiros. Empatia é saber enxergar a alma alheia. É compreender que nem sempre o fácil para um também será para outro. Não ferir a ninguém, viver honestamente e dar a cada um o que é seu, antes de ser uma regra moral e a pedra angular da Justiça, é um imperativo de sobrevivência, corolário da Ética, para além das religiões, mitos e filosofias.

Tal como foi fatal para Sócrates, é um perigo julgar tudo e todos, impor e condenar precipitadamente, sem se importar com as consequências. Antes disto, caberia perguntar: – “e se fosse comigo?” Às vezes, silenciosamente, as pessoas se afastam para refletir. Outras vezes, porque já refletiram.

“O sábio não diz tudo o que pensa, mas pensa tudo o que diz” (Aristóteles).

O homem é escravo do que fala e dono do que cala.

“O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito” (Fernando Pessoa).

Então, que nossas palavras sejam para abençoar, bendizer, somar e unir; que a diferença de ideias aproxime e faça crescer; e que quando nos reunirmos, a primeira pergunta seja: “-Vamos falar bem de quem?” A música de Frejat ensina:

“Eu te desejo não parar tão cedo, pois toda idade tem prazer e medo. E com os que erram feio e bastante, que você consiga ser tolerante”.

Por isso, embora sejam importantes os tratados de amizade e a intervisitação intensa, antes, há que ter harmonia com os Irmãos mais próximos. O momento é de esquecimento, de perdão, de desapego aos conceitos, atitudes e preconceitos que segregam, dividem e afastam. Para reconciliar, é preciso resiliência, mente flexível, otimismo, capacidade de se recuperar de situações de crise e aprender com ela. Não há razão de dividir para governar, e a unificação de potências, o bom relacionamento, ideal do projeto impessoal de entendimento, é um objetivo final, que passará pela pacificação geral e pelo ecumenismo.

Assim, a Ordem manterá suas tradições, atuará na vanguarda da evolução, e continuará sendo o Luzeiro da Humanidade. A liberdade é o mais precioso dos direitos. Ser livre não é só questão de leis (Platão). Somente é livre aquele que reconhece a ordem divina dentro de si, o verdadeiro nível pelo qual o homem pode se governar. É preciso manter vivos e aprimorar os atributos que fizeram com que o Mestre apoiador tivesse despertado o seu olhar para nos convidar à iniciação.

A nós, seres imperfeitos, cabe unicamente fazer o bem, não para ganhar o céu, mas para tornar suportável a vida na Terra.

São nossas atitudes e não nossas crenças que nos fazem melhores. Há leis universais implacáveis: a do retorno, a da verdade, e a do mérito. Os princípios estão acima e antes das pessoas.

Estudar e melhorar a si mesmo é a arte mais difícil, é missão árdua, e requer dominar instintos, aprimorar virtudes. Compete a cada um de nós decidir pela sincera reforma íntima, em busca do estado de ataraxia, quietude absoluta da alma, o ideal do sábio (epicurismo). Tirando os bens materiais, o dinheiro, a aparência, o estudo, os títulos e cargos, as realizações, o que resta é o que a gente é. Então, o que nós somos, em essência?!

Que nos sirva de estímulo saber que a melhor coisa a se fazer por alguém é ser sua inspiração, pelo exemplo. Com a energia positiva do sincero e fraternal abraço habitualmente trocado entre os Irmãos, que haja saúde, força, sabedoria, beleza e união de todos, para que a Maçonaria se consolide em uma central de energia psíquica e moral, na qual a sociedade encontre os seus líderes quando deles necessite.

E, se nos perguntarem: – Quantos sois vós? Responderemos: – Somos um só!

Autor: Alceu André Hübbe Pacheco

Alceu é Mestre Instalado da ARLS Pedro Cunha, Nº11, jurisdicionada à Grande Loja de Santa Catarina.

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Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes e Rousseau

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Essa animação é uma ótima contribuição da UNIVESP TV.

Excelente oportunidade para entender um pouco sobre da vida e obra desses grandes homens.

Assista que vale o tempo investido!

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“Quem não é geômetra não entre!” Geometria, Filosofia e Platonismo

Imagem relacionadaA Academia de Platão, artista desconhecido, mosaico, Pompeia, c. séc. I a. C.

O objetivo deste artigo é analisar, a partir dos textos de Platão e de comentadores, a apresentação de argumentos a favor da utilização da matemática e da geometria como propedêutica à aprendizagem da filosofia, bem como investigar as reverberações da ontologia e da epistemologia platônicas nesse programa pedagógico. Pretende-se, ainda, apontar comparativamente similaridades entre crises nos fundamentos da matemática e seu impacto na concepção de racionalidade, tanto no universo grego antigo como na contemporaneidade.

“Dois e dois são três” disse o louco.
“Não são não!” berrou o tolo.
“Talvez sejam” resmungou o sábio.
Skepsis. (José Paulo Paes)[2]

Introdução

Gostaríamos de começar este artigo com uma crônica de nossos dias. A revista Carta Capital, em sua coluna Brasiliana, de setembro de 2006, comenta o sumiço do “Professor”. Trata-se de uma história da Praça XV, no centro de Florianópolis, onde vivem diversos moradores de rua. Entre eles, o “Professor”:

Se autodenominava revolucionário e falava português, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, holandês, ao todo sete idiomas. Antes de ter ido embora, ensinava estas línguas aos colegas, logo depois do almoço, a divisão dos restos dos pães doados pelo padeiro do outro lado da  rua.[3]

Falava também de Marx e Weber, e suas aulas acabavam em longas discussões oportunamente regadas à cachaça de R$1,50. Os amigos contam que pouco antes de seu desaparecimento, havia feito uma revelação a todos: retirando de sua sacola uma pasta cinza, teria mostrado papéis com números, desenhos, uns triângulos de ponta-cabeça. Eram esboços de sua autoria – havia esclarecido, e concluíra enfático: “Aqui está a equação matemática, cuja solução será capaz de explicar… tudo nesta vida!”[4]

Sim, a equação matemática capaz de explicar tudo… Apesar de infinitamente distante da Praça XV, o mundo para o qual olharemos, aquele das relações entre geometria e filosofia na época clássica, parece ter alojado a mesma tensão gnoseológica: aqui, a brincadeira é aquela de achar, na matemática, a explicação “de tudo nesta vida”. Certamente, essa ambição de compreender o mundo descobrindo seus números e as relações entre eles é antiga e não está reservada, exclusivamente, àquele âmbito da cultura que costumamos chamar de ocidental[5]. Hoje, nós a pensamos bastante influenciados, ainda, pelo paradigma da ciência moderna, aquela fundada por Galileu, que via a natureza como um livro, encontrando nela um léxico matemático[6], e teorizada por Descartes ao falar de mathesis univesalis, uma ciência geral relativa à ordem e à medida[7].

A relação entre matemática e natureza (phýsis) tornou-se particularmente diferente, a partir do momento em que foram publicados, em 1638, os Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze[8]. Uma das razões principais foi o fato de Galileu romper com a tradição aristotélica que separava o trabalho do físico daquele do geômetra, pois enquanto o primeiro examinava coisas reais, o segundo examinava razões em função de abstrações – os métodos de cada um não podiam ser os mesmos, dentre outras coisas, porque o espaço vazio da geometria seria incompatível com a ideia de lugar natural e de cosmos[9]. O “caso Galileu” é, ainda, objeto de muita pesquisa, e alguns trabalhos recentes mostram as conexões complexas entre o que, hoje, chamamos física, astronomia, matemática e ontologia. Ao retomar certos pressupostos platônicos sobre a constituição matemática da matéria, Galileu teria, inclusive, dado margem a acusações de que suas pesquisas sobre o movimento possuíam implicações teológicas que ultrapassavam, sobremaneira, o campo da física[10]. Que Galileu tenha herdado de Platão o estilo dialógico ou certos pressupostos metafísicos, como a circularidade do movimento dos astros, é fácil de ser constatado, mas o atomismo e o projeto de uma geometrização da natureza dependem de um esclarecimento que tentaremos fazer, aqui, por meio de um comentário do renomado helenista Gregory Vlastos. Com sua ajuda, faremos esse salto de, aproximadamente, dois mil anos, mergulhando no período que nos interessa nesse momento, a saber, aquele universo em que floresceu Platão.

Vlastos[11], partindo do pressuposto aristotélico de que a teoria da estrutura da matéria de Platão é uma variante da hipótese atômica de Leucipo e Demócrito[12], analisou o modo como Platão adaptou a concepção atomista ao propor que os átomos fossem suscetíveis de dois tipos de alterações: a primeira, relativa à existência de variedades de cada um dos tipos primários de matéria (éter e neblina são, por exemplo, variedades de ar)[13]; a segunda, relativa à mudança de um tipo de matéria em outro, como no caso dos átomos de fogo, ar e água, devido a eles terem faces idênticas, isto é, triângulos equiláteros. Lembremos que o Demiurgo imprimiu uma forma estereométrica regular à matéria, ao transformá-la de caos em cosmos; fogo, ar, água e terra são constituídos de tetraedros, hexaedros, octaedros, icosaedros, respectivamente[14]. Esse atomismo geometrizado será aquele retomado por Galileu, que, defendendo a matematização da natureza como método para a elaboração de uma nova ciência, deu, como observou Alexandre Koyré, “uma prova experimental do platonismo”[15].

Desnecessário lembrar que a exclamação no título deste artigo “Quem não é geômetra não entre!” se refere à famosa advertência que se podia ler no portal da Academia de Platão[16]. Advertências análogas eram comuns nas entradas de templos e santuários antigos, nos quais, no lugar da geometria, eram requeridas pureza e outras qualidades, funcionando como uma “senha” para iniciados. De maneira análoga, iremos utilizá-la ao longo do ensaio, para indicar-nos o lugar que a matemática e a geometria assumem em um momento de grande importância na definição do pensamento ocidental e da filosofia em seu nascer: aquele da “descoberta” de um “método científico”, entre o V e o IV séculos a.C.[17] “Quem não é geômetra não entre!”, portanto. Partiremos, daqui, para compreender a importância do diálogo entre a filosofia, a matemática e a geometria na construção desse método. Partiremos de Platão, lembrando que a palavra matemática vem do verbo mantháno, que significa, aprender, compreender, e esse saber (máthema) pode ser relativo à ideia (suprema) de Bem (República 505a). Hé mathematiké é o que concerne à ciência da matemática[18]; as matemáticas são os conhecimentos que se apreendem em um corpo de disciplinas que se constitui de aritmética, geometria em duas dimensões, geometria em três dimensões, a astronomia e a harmonia dos sons (República 525a-531d), e que são fundamentais na formação do filósofo[19].

Desse modo, uma sentença como a do frontão da Academia encaixa-se muito bem naquela que devia ser a prática das ciências matemáticas no interior da escola de Platão. Um entre muitos, podemos ficar com o testemunho de Proclo:

Platão (…) deu um imenso impulso a toda a ciência matemática e em particular à geometria, pelo apaixonado estudo que a isso dedicou e que divulgou quer recheando seus escritos de raciocínios matemáticos, quer despertando em toda parte a admiração por estes estudos naqueles que se dedicam à filosofia.[20]

Sobre o papel que Platão teria exercido como matemático, os estudiosos discordam, tendendo mais a considerá-lo um formador de jovens matemáticos do que um descobridor de novos métodos ou teorias. É o que afirma, por exemplo, Boyer: “Platão é importante na história da matemática principalmente por seu papel como inspirador e guia de outros e talvez a ele se deva a distinção clara que se fez na Grécia Antiga entre aritmética (no sentido de teoria dos números) e logística (a técnica da computação)”[21].

A distinção a que se refere Boyer, sem oferecer maiores detalhes, é importante para nos dar a medida da preocupação platônica e mesmo de sua presença, ainda hoje, nos debates sobre a natureza da matemática. No Filebo (56d-e), Sócrates faz distinção entre a aritmética do homem comum e a do filósofo, com base na diferença dos “objetos” a que se dirige cada um: enquanto o primeiro opera com unidades que são distintas (ao contar dois exércitos, sabe-se que eles são diferentes), para o segundo, as unidades são todas indistintas (números são coleções de unidades puras)[22]. A rigor, a aritmética (como a geometria) do filósofo aplica-se apenas ao mundo do ser[23]. Um problema decorrente dessa visão da aritmética e, também, da geometria é o de explicar como essas disciplinas se aplicam ao mundo físico. Uma tentativa será feita no Timeu, no qual temos uma teoria especulativa da construção geométrica do mundo, interligada ao realismo epistemológico e ontológico de Platão[24].

Acrescente-se, ainda, que, independentemente das atividades de Platão como matemático, textos como o Mênon e o Teeteto mostram o quanto as questões matemáticas estão presentes na discussão sobre os critérios para a aquisição de conhecimento verdadeiro e sobre impasses gerados devido a problemas internos à geometria e à aritmética. Desde o famoso artigo de F. Cherniss, Plato as a mathematician[25], à recente obra de P. Pritchard, Plato’s philosophy of mathematics[26], tornou-se claro como a relação entre matemática e filosofia é estreita, e um primeiro momento de crise ocorre exatamente aqui, na Academia de Platão. É desse momento que falaremos a seguir de uma crise que é ocasião de “afinar os instrumentos” para a ciência antiga e para a filosofia dos séculos V e IV, de maneira especial. Uma crise que, em seu momento final, levará Aristóteles a sair “batendo a porta” e – numa imagem um pouco naïve e pela qual desde já nos desculpamos – derrubando, teoricamente, a famosa escrita no frontão. No entanto, para podermos compreender essa crise, será preciso recuar, observando como se desenhou a relação entre filosofia e geometria, ao longo de anos de fecunda simbiose, desde aqueles que a mitologia das origens da filosofia designou como ponto inicial, por meio de um “fundador”, Tales de Mileto.

Considerações sobre a relação entre a geometria e a filosofia que nasce

Galeno conta uma anedota que ilustra muito bem qual é a imbricação cultural das ciências matemáticas (e, de maneira especial, da geometria) no mundo grego: Aristipo teria sido jogado durante um naufrágio numa praia desconhecida, e vendo desenhadas na areia algumas figuras geométricas, teria ficado aliviado, pois, naquele momento, sabia não ter caído em terras bárbaras, e sim em terras gregas[27]. Encontrava-se, de fato, na costa da Sicília, próximo da cidade de Siracusa. É verdade que Tales de Mileto, segundo o testemunho de Proclo, no Comentário ao primeiro livro dos elementos de Euclides, provavelmente retirado do sumário da mais antiga História da geometria de Eudemo, teria ido ao Egito estudar exatamente a geometria, que aqui nasceu para responder a necessidades práticas: “Foi o primeiro que, tendo ido ao Egito – trouxe de lá esta doutrina e a introduziu na Hélade, e ele próprio fez muitas descobertas e, de muitas, deixou uma ideia aos seus sucessores, abordando alguns problemas de modo mais geral, e outros de modo mais prático” (In Eucl. 65, 3).

Na medida em que o Egito é geralmente considerado o berço da civilização grega, “o reconhecimento da origem egípcia não era outra coisa senão o corolário da certeza de que a geometria era um traço essencial da identidade cultural helênica”[28]. Entre outras descobertas de Tales, a tradição informou-nos sobre o famoso teorema, pelo qual o ângulo inscrito em um semicírculo é um ângulo reto, que parece ter sido o primeiro teorema de geometria demonstrado de forma dedutiva[29]. Com Tales, um dos sete sábios já segundo Platão (Protágoras, 343a), a matemática insere-se em um programa maior, que poderíamos chamar de organização racional do conhecimento e do mundo, que passava pela astronomia, pela política e – sobretudo – pela conduta humana, isto é, pela ética. Esse programa não é invalidado mesmo se concordarmos que algumas célebres “proezas” atribuídas a Tales sejam de cunho até anedótico, como a de ter conseguido determinar a distância de um barco a partir da costa (D.L. I, 27) ou a altura de uma pirâmide (PLÍNIO, N.H. 36, 82). Elas são, claramente, anacrônicas, pois pressupõem o uso do conceito de proporção (analogía, lógos), um dos conceitos que nos interessa neste artigo, e que parece ter sido descoberto somente no âmbito pitagórico – posteriormente, portanto[30].

De fato, tanto o desenvolvimento teórico da matemática como a aproximação entre ciência (em geral e, especialmente, a geometria) e ética aparecem de forma ainda mais significativa no pitagorismo[31], constituindo-se como o primeiro momento daquele que Boyer chamava de “período heroico da matemática”:

Praticamente não existem documentos matemáticos ou científicos até os dias de Platão no quarto século a.C. No entanto, durante a segunda metade do quinto século circularam relatos persistentes e consistentes sobre um punhado de matemáticos que evidentemente estavam intensamente preocupados com problemas que formaram a base da maior parte dos desenvolvimentos posteriores na geometria.[32]

É no interior do complexo e multifacetado movimento pitagórico que teriam sido cunhados os termos-chave de nossa discussão: “filosofia” e “matemática” (aquilo que se aprende, como dissemos antes)[33]. Os termos indicam os interesses fundamentais da escola, articulados no sentido daquele que, para Platão, era o grande objetivo da historía, da pesquisa pitagórica: um trópos tou biou, um estilo de vida, uma ética, uma conduta humana que dizia respeito, ao mesmo tempo, a preocupações religiosas e práticas ascéticas ligadas a uma concepção da imortalidade da alma reencarnacionista e a preocupações políticas. Uma geometria, digamos, aplicada à vida, mas em um sentido diferente daquele técnico ao qual estamos acostumados. É novamente Proclo a nos impedir de pensar nas pesquisas matemáticas dos pitagóricos como em algo simplesmente “funcional”: “Pitágoras fez do estudo da geometria um ensino liberal, subindo aos princípios com a investigação e estudando seus problemas sob um ponto de vista puramente abstrato e teórico. Deste modo foi ele que descobriu o tratamento dos irracionais e a construção da figuras cósmicas”[34].

Desde o teorema de Pitágoras até todas as outras “descobertas” geométricas que Proclo, Euclides e outros atribuem aos pitagóricos, como também o fazem autores como Eudemo e Aristóxeno com relação ao desenvolvimento por estes da teoria musical (relações harmônicas de quarta, quinta e oitava)[35] e ao campo da astronomia[36], a filosofia pitagórica tem uma intenção e uma acepção claramente teóricas, mesmo fazendo parte de um quadro geral filosófico e ideológico, em que as diversas disciplinas e interesses se compunham. Boyer, também, realça essa característica: “No mundo grego a matemática era aparentada mais de perto à filosofia do que a negócios práticos, e este parentesco permaneceu até hoje” (1974, p. 48). Ao que parece, a aritmética torna-se disciplina intelectual antes do que cálculo técnico (logística), já com os pitagóricos, o que é atestado por Aristóteles ao afirmar que aqueles “foram os primeiros a se dedicar às matemáticas e a fazê-las progredir” (Met. 985b24). Mas, ao mesmo tempo, diz Aristóteles, dedicaram-se à natureza (phýsis), no sentido do trabalho filosófico pré-socrático de determinar quais seriam os princípios (archai) ontológicos e epistemológicos da realidade. Dessa forma, “nutrindo-se das matemáticas, pensaram que os princípios delas fossem princípios de todos os seres”, concluindo, assim, que “o universo inteiro é harmonia e número” (Met. A 5, 985b25-26).

Vai além dos limites deste ensaio uma análise, ainda que breve, da contribuição pitagórica à história da matemática e da geometria, ou melhor, da aritmogeometria – célebre expressão de Abel Rey –, como se costuma chamar esse conjunto ainda indistinto de teoremas e teorias que a tradição nos transmite dos estudos do movimento pitagórico[37]. Concedemos à paciência historiográfica somente mais duas observações. Primeiro, que seria melhor falar não de uma aritmogeometria, e, portanto, de uma correspondência entre números e figuras geométricas, mas de uma correspondência mais generalizada (cosmológica) entre número e todas as entidades constitutivas da realidade. Se é verdade que o número um é o ponto, o dois é a linha, o três é o plano, é também verdade que Eurito pensava poder indicar os números do cavalo e do homem, e Filolau o número que correspondia à memória, ao éros, a certas divindades[38]. Segundo, que é oportuno lembrar uma outra vertente matemático-filosófica pré-platônica não pitagórica, na qual poderiam estar autores eleatas, como Zenão, e outros, como Anaxágoras e Demócrito. No entanto, a economia destas páginas não nos permite um tratamento adequado do tema[39]. Estamos interessados, no momento, em mostrar que o conhecimento sobre o princípio (arkhé) da filosofia pitagórica, o arithmos, o número indivisível, inteiro, que é a base da geometria e da filosofia pitagóricas (Met., 985b, 990a, 1078b, 1092b), entra em crise, na metade do século V. É, novamente, Boyer a introduzir muito bem os termos da questão:

Os diálogos de Platão mostram que (…) a comunidade matemática grega fora assombrada por uma descoberta que praticamente demolia a base da fé pitagórica nos inteiros. Tratava-se da descoberta que na própria geometria os inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever mesmo simples propriedades básicas.[40]

Trata-se, provavelmente, de uma crise que acontece no âmbito pitagórico: Hipaso seria seu autor, pela descoberta das grandezas incomensuráveis (asýmmetronou sýmmetroi; álogos)[41]. A anedótica da história da filosofia conta-nos que, por esse motivo, teria sido expulso da escola pitagórica[42]. A “ciência normal” de kuhniana memória já fazia aqui, provavelmente, sua primeira vítima. É uma crise grave nos fundamentos do conhecimento matemático, e não somente uma questão periférica, uma aporia secundária da geometria. O incomensurável irrompe no céu puro e imaculado das figuras e dos números racionais e de seus axiomas e princípios evidentes, dos quais procede a rigorosa cadeia de consequências necessárias. A crise atinge os próprios alicerces epistemológicos, tanto da matemática como da geometria.

Como já foi observado, frente aos problemas com a incomensurabilidade, muitas demonstrações perderam seu poder de convencimento, sendo reduzidas a raciocínios plausíveis. Como números significam, na época, “números racionais”, originou-se o que é chamado hoje “álgebra geométrica dos gregos”, por exemplo, “o retângulo de lado a e b” era usado em vez de “a vezes b“. Coube a Eudoxo (século IV a.C.) a tarefa de fornecer fundamento sólido para a matemática[43]. Semelhante reação crítica e busca de rigor só ocorreriam, novamente, no século XIX, aparecendo, aliás, em um nível de maturidade filosófica semelhante ao de Eudoxo, que, com sua teoria das proporções, formulou uma primeira abordagem satisfatória dos números irracionais. Lembremos como Dedekind, para fundamentar a Análise (que é um desdobramento do cálculo diferencial e integral), seguiu métodos semelhantes aos de Eudoxo. Outras crises, entretanto, surgiram ligadas, principalmente, à Teoria dos Conjuntos, de Cantor, cujos pressupostos metafísicos (dentre eles, a existência de infinitos atuais) levaram, em certos contextos, a intrincados paradoxos. Um depoimento eloquente sobre a situação e suas implicações na própria possibilidade do conhecimento humano é dado por Hilbert:

O objetivo de minha teoria é estabelecer de uma vez por todas a certeza dos métodos matemáticos. Essa é uma tarefa que não foi realizada mesmo durante o período crítico do cálculo infinitesimal (…) Nós agora chegamos à mais estética e delicada estrutura da matemática, isto é, a análise (…) em certo sentido a análise matemática é a sinfonia do infinito (…) O estado atual das coisas, em que nos chocamos com os paradoxos é intolerável. Apenas considerem as definições, os métodos dedutivos que cada um aprende, ensina e usa em matemática, o modelo da certeza e da verdade conduzindo a absurdos. Se o pensamento matemático é defeituoso, onde encontraremos verdade e certeza?[44]

Nessa afirmação de um dos maiores matemáticos dos séculos XIX e XX, constatamos o eco das propostas tanto platônica como cartesiana do que compreendemos como mathesis universalis. Resultados de Gödel mostraram que o sucesso do programa de Hilbert é muito improvável, se não impossível. O debate, ao menos no terreno filosófico, continua. Temos, deve-se destacar, os que mostram como é possível aceitar a existência de contradição dentro de um sistema de pensamento, sem trivializá-lo ou torná-lo irracional, como na lógica paraconsistente – o que não deixa de refletir, ainda, a intenção de uma forma lógica, a coexistência da racionalidade com a contradição[45]. Temos, ainda, o apelo para que a filosofia reavalie a “aversão contumaz à irracionalidade” existente no mundo científico e em si própria[46]. Tais considerações sobre o período contemporâneo permitem-nos ver, ainda que superficialmente, o impacto das questões filosóficas relacionadas à lógica e à matemática, em um projeto de salvar a racionalidade e um critério seguro de conhecimento. Tendo isso em mente, voltemos ao ambiente grego e, por analogia, compreendamos o impacto de certos problemas no projeto pitagórico-platônico de alicerçar uma epistemologia e uma ontologia em bases matemáticas.

Crise nas matemáticas

Os testemunhos de Arquitas[47], Platão[48] e Aristóteles[49] parecem concordar sobre o fato de que a preocupação fundamental, e a matriz da pesquisa dos pitagóricos, é a música, no sentido da investigação da natureza do som e dos princípios que subjazem à produção dos acordes[50]. A vida de Pitágoras, de Jâmblico, está repleta de referências a esse interesse de Pitágoras. Deve ter sido exatamente essa experimentação musical a sugerir aos pitagóricos que são as relações (lógoi) numéricas simples que determinam a harmonia dos acordes. A passagem da harmonia musical à geometria é quase obrigatória: serão as mesmas relações a reger as proporções das figuras geométricas. Da mesma forma que os acordes musicais podem ser reproduzidos em instrumentos e escalas diferentes, obtendo-se a mesma harmonia e agradando ao ouvido, assim, as formas dos corpos geométricos que obedecem a relações numéricas simples geram um efeito harmônico semelhante na vista e podem ser reproduzidas[51]. Por isso, provavelmente, o grande interesse de Pitágoras pelos triângulos, especialmente aqueles casos particulares de triângulos retângulos cujos lados mediam 3, 4 e 5: é, aqui, que nasceria a primeira formulação de lógos, de razão, de proporção: todos os triângulos (de qualquer tamanho) que tivessem a relação (o lógos) 3-4-5 seriam iguais.

É necessária, aqui, uma observação terminológica com relação à utilização do termo lógos, no sentido de proporção, de razão geométrica. O termo é utilizado na expressão tôn autôn lógon ékhein, isto é, “ter a mesma proporção”. Como bem sabemos, lógos significa, fundamentalmente, palavra, mas uma palavra diferente do épos, que se quer representado na fala, a realidade. O lógos é a palavra (ou um conjunto discursivo de palavras) penetrante, que aponta para a tentativa de expressão da natureza da coisa. Nesse sentido, conhecer o lógos, a proporção do triângulo 3-4-5, é compreender sua razão, seu sentido mais profundo[52]. Mas, com a descoberta das proporções, ocorreu a descoberta da incomensurabilidade: se a simples relação entre a diagonal e o lado de um quadrado não pode ser expressa por um conjunto de números inteiros, então, o número inteiro e indivisível não pode ser considerado como o arkhé da realidade (Met., 983a15).

A crise é, portanto, uma crise que se instaura entre os números (que, até Aristóteles, são considerados monadikói, inteiros, indivisíveis, não sendo possível pensá-los diferentemente) e os lógoi, as proporções. O ponto de partida não discutido é a proposição pitagórica de que “a mônada é indivisível”, o que de fato corresponde a um Axioma de Peano: “1 não é sucessor de nenhum número”. Isso significa que o número 1 não tem predecessor e, portanto, é a arkhé absoluta, é o início de tudo[53]. Não há, também, número menor do que 1, e, portanto, 1 é indivisível[54]. A aritmética pitagórica assume a contradição conscientemente e encontra – aparentemente – uma solução: aquela de separar números (aríthmoi) de lógoi, afirmando estes últimos não serem números, e, sim, pares ordenados de números, díades (dyás) finitas. Apesar de Aristóteles se distinguir dos pitagóricos, na medida em que estes insistiam que as unidades têm extensão espacial, confundindo a unidade aritmética e o ponto geométrico (Met. 1080b16-20)[55], é de Aristóteles a melhor definição do que foi a solução pitagórica: “Os lógoi não são definidos como números, e sim como relações numéricas e afecções do número” (Met. 1021a 8-9). Poderíamos dizer que “a matemática científica e com ela a filosofia recorreram ao ostracismo”[56]. Entre outras palavras, aquelas de Imre Toth:

Os pitagóricos perceberam a intolerabilidade desta contradição lógica entre as duas proporções axiomáticas e (…) Platão compartilhava plenamente essa opinião. O monstro lógico do folclore matemático, o número fracionário, foi expulso da teoria superior dos números. Entretanto o povo vivia feliz nessa desprezível promiscuidade lógica, e, sem preocupar-se com nada, continuava a fazer cálculos com números fracionários: pela simples razão de que, com toda maravilha, a presumida intolerável contradição lógica não levava a nenhum erro no curso dos cálculos, enquanto as teorias dos savants, logicamente imaculadas, só podiam tornar insuportavelmente difíceis esses cálculos. De sua parte o povo achava as aflições lógicas de consciência dos pitagóricos – com as quais tornavam deliberadamente difícil a vida – não só inúteis, mas, sobretudo, extremamente “ridículas”.[57]

Como demonstra a comédia aristofânica, satirizando posições filosóficas, o povo continuava a usar proporções e frações para calcular o preço do pão e outras trivialidades (Aves, versos 903-1020; Nuvens, versos 607-620). No entanto, não é só o povo, pois os próprios matemáticos, em determinados momentos de crise, ignoram os problemas ligados aos fundamentos. Por meio da seguinte afirmação, feita pelo genial Paul Cohen, comentando o comportamento dos matemáticos, em função da “crise dos fundamentos” na virada do século, podemos constatar que as questões radicais de teor metafísico sobre a natureza da matemática e sua relação com o conhecimento humano não parecem extrapolar, seja na Antiguidade, seja hoje, o espaço da “Academia”, e mesmo dentro dela encontram uma solução que consiga passar entre Cila e Caríbdis:

A posição realista [isto é, platonista] é a que a maior parte dos matemáticos gostariam de adotar. Somente quando se torna consciente de algumas das dificuldades da teoria dos conjuntos é que o matemático começa a questioná-la. Se estas dificuldades o inquietam particularmente, ele correrá para o abrigo do formalismo [grosso modo, este afirma que a matemática é uma combinação de símbolos sem sentido e que, portanto, seus enunciados não podem ser verdadeiros ou falsos, pois não se referem a coisa alguma no mundo] enquanto que sua posição normal será em algum ponto entre as duas, tentando desfrutar o melhor dos dois mundos.[58]

Retornando ao contexto da matemáticas na Grécia, observemos que se a crise aritmética é gerada e, de alguma forma, “resolvida” no interior do movimento pitagórico, a crise da geometria, que é uma crise de sua fundamentação axiomática, parece ser toda acadêmica, isto é, interior à escola de Platão. Ao que sabemos, pelo próprio Aristóteles, o tema da fundamentação axiomática da geometria era discutido com vivacidade na Academia[59]. O que os acadêmicos percebem é que muitas das proposições fundamentais da geometria são utilizadas como se fossem teoremas demonstrados, sem, todavia, terem sido demonstrados. A essa situação é aplicada uma metodologia de demonstração, já utilizada em muitas outras questões filosóficas: a via da negação, da contradição, já apontada no Parmênides (136a) da seguinte forma: “Não deves considerar as consequências que emergem da hipótese de que cada coisa exista, mas deves também supor que essa mesma coisa não exista”. Assim, os filósofos-geômetras da Academia exploram o campo dos axiomas e de suas consequências, para tentar provar a verdade deles. No entanto, eles tropeçam, com o método negativo, exatamente, naquilo que não queriam encontrar, que queriam refutar: uma geometria oposta, “onde as paralelas se encontram, as diagonais são comensuráveis e as retas curvas”[60]. Claramente, Platão oporá um “outro método” (álle méthodos), para alcançar aquilo que cada coisa “é” (hò estín), e tal método está além daquele da geometria e áreas que decorrem dela, as quais, quanto à apreensão do “ser” (tò ón), têm apenas “sonhos” (República 533b8), pois não conseguem chegar a alguma demonstração de que sejam verdadeiras as hipóteses de que partem – nas demonstrações geométricas, pode-se ter uma cadeia coerente de consequências a partir de uma premissa falsa (Crátilo 436c-438d).

Resposta de Platão

A essas crises Platão, e depois Aristóteles, antes de Euclides, respondem como filósofos. Eles vislumbram, na explicação metafísica, a possibilidade de resolver o irracional e o incomensurável, fundamentando, para além da matemática e da geometria, seus postulados. Partamos de um conhecimento geral da estrutura da epistemologia e ontologia platônicas – tanto do “raciocínio a partir das ciências” (lógos ek tôn epistemôn), pelo qual toda ciência tem como seu objeto um objeto único e idêntico, como a própria Teoria da Ideias. Segundo esta última, o objeto do conhecimento verdadeiro, da ciência, não pode ser particular, sensível (todos os quadrados que existem, todos os sons que existem), pois, dessa forma, seria um objeto móvel (pois a realidade é móvel). Portanto, objeto da ciência poderão ser somente outras realidades, isto é, as idéias desses mesmos objetos, pois elas sim são imutáveis[61]. “Pois das coisas que são sujeitas a perene fluxo não há ciência” – dirá, também, ainda que em outro contexto, Aristóteles (Met. 1078 b 17). Com relação à geometria, no fr. 3 do De ideis, diz: “Se a geometria não é ciência deste determinado igual e desse determinado comensurável, mas do que é simplesmente igual e do que é simplesmente comensurável, então haverá o igual em si e o comensurável em si: e estas são as Ideias”[62].

As ciências matemáticas, portanto, têm como objeto realidades imóveis, idênticas a si mesmas, não sensíveis. Surge, naturalmente, uma pergunta, a essa altura: Isso significa que esses objetos da matemática são Ideias? Isto é, pertenceriam ao mundo inteligível? Platão responde que não. E responde num dos lugares centrais de seu pensamento, que é o Livro VI da República. A resposta constrói-se com uma famosa metáfora, a “metáfora da linha”: Sócrates, para explicar para Glauco a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível, convida-o a “dividir uma linha (grammèn) em duas partes desiguais (ánisos)” – trabalho de geômetra, portanto – e a dividi-la novamente em duas, “segundo a mesma proporção (tòn autòn lógon)”[63]. A linha é uma linha plasticamente epistemológica, que distingue, tanto na parte do inteligível (nooménou) como na parte do visível (oroménou), “imagens” e “modelos destas imagens” a serem apreendidos. Frente à dificuldade de compreensão que Glauco expressa (oukh hikanôs émathon), Sócrates desenvolve uma das páginas mais lúcidas de Platão sobre a epistemologia da matemática de seu tempo:

Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria (geometrias), da aritmética (logismoùs) e de coisas deste tipo (pragmateuómenoi) supõem (hypotémenoi) o par e o ímpar, as figuras, três espécies (eíde) de ângulos, e outras irmãs destas, segundo o método (méthodon) de cada uma. Essas coisas dão-nas por sabidas (eidótes) e fazendo-as como hipóteses (hypothéseis), nenhuma palavra (lógon), nem a si nem aos outros consideram mais necessário prestar conta, como se fossem evidentes (phanerôn) a todos; e partindo destas e passando ao que resta, caminhando coerentemente atingem ao que tinham se proposto a alcançar (República 510 c2-d2).[64]

Da mesma forma, os geômetras:

Servem-se de figuras visíveis (oroménois eidesi) e fazem raciocínios (lógous) sobre elas, pensando (dianooúmenoi) não nelas, mas naquilo com que se parecem (éoike), raciocinam com respeito ao quadrado mesmo e à diagonal mesma, mas não ao quadrado, à diagonal, ou aquela que desenham, e semelhantemente quanto às outra figuras. Estas mesmas que estão fazendo ou desenhando, das quais há sombras e imagens na água, eles usam agora como imagens, buscando ver aquilo mesmo que alguém não pode ver exceto pelo pensamento (diánoia) (República 510d4-511a1).

Glauco, finalmente, compreende. Sócrates está se referindo “à geometria e às artes (tékhnai) afins a ela” (511b 3-8), não à dialética das ideias, ciência suprema. De fato, Sócrates confirma a distinção entre a parte superior da linha (a potência heurística da filosofia) e aquela das ciências matemáticas:

Aprende então o que quero dizer com a outra parte do inteligível, aquela que o raciocínio mesmo atinge com o poder da dialética (dialégesthai), fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses mesmo – um tipo de acesso, de apoio, para chegar ao não hipotético (anupothétou), ao que é princípio de tudo. Alcançado isso, retorna, atendo-se a cada resultado, de tal modo que desça até a conclusão, sem fazer uso de nada visível, movendo-se das ideias (eídesin) umas às outras, terminando na ideia (eide) (República 511 b3– c1).

Assim, a matemática, no interior da metáfora da linha, é ciência, e uma ciência que está na linha na metade do caminho (metaxú) entre o mundo sensível (pístis, crença e eikasía, conjetura) e o mundo inteligível. Mas, a bem ver, é ciência apenas analogamente à ciência mesma, à dialética (dialetikè méthodos), aquela que diz respeito às ideias, destruindo as hipóteses e arrastando, aos poucos, os olhos da alma do lodo bárbaro (borbóro barbarikó)[65] em que ela se encontra. Tanto que Platão faz Sócrates afirmar que, relativamente à matemática e à geometria: “Sobretudo por costume (éthos) as chamamos com frequência de ciências, (epistéme), mas é necessária outra denominação, mais clara que opinião e mais obscura que ciência: nesse sentido antes a definimos como entendimento (diánoia)” (República 533 d1). Algo que seja “metade do caminho entre opinião e intelecto” (hós metaxú tes doxés te kaì nou tén diánoian) (República 511d). Diánoia, ou seja, conhecimento mediado.

Especialmente na geometria, Platão entrevê uma profunda ambiguidade ou, melhor, duplicidade, que é, ao mesmo tempo, seu ponto de força: sua irresistível aproximação ao sensível, sua contaminação com as imagens reais, permite-lhe ser ponte entre o inteligível e o sensível. Assim, a matemática torna-se, epistemologicamente, uma “terra de meio” lugar mediano, necessário de ser atravessado no caminho das Ideias, das verdades não hipotéticas. Ecoa, aqui, o frontão da Academia “Quem não é geômetra não entre!”. A geometria é a porta, a conexão, entre os dois mundos.

Conexão que se expressa na metodologia do caminho desenhado pela linha: das hipóteses até os princípios primeiros, e vice-versa. Em um caminho ascendente e descendente, que é típico da epistemologia platônica (no Banquete, a erótica é esse caminho de mão dupla, embora seja, muitas vezes, muito mal interpretada, sendo apenas lida na visão de uma ascese, de uma ascensão em direção à alma, um abandono do corpo). No caso da ciência matemática, ela é o caminho, não a meta, pois seus pressupostos não são demonstrados, e, sim, remetem para um caminho ulterior, até sua fundamentação na plenitude das ideias. É nesse sentido que a matemática procede analogicamente: síntese dos dois mundos, as verdades matemáticas e geométricas são capazes de representar todo o ser, mas apenas em chave analógica. Pois é no ser inteligível que elas encontram, ainda, seu fundamento último.

Conclusão

Consideramos pertinente fazer duas observações finais. A primeira diz respeito a como Aristóteles compreende a solução de Platão. Não podemos nos dedicar à solução aristotélica da mesma crise por óbvios motivos de economia do texto. A reclamação dele, na Metafísica (992a33-b1), dirigida contra “os filósofos de agora, para os quais as matemáticas tornaram-se filosofia”, refere-se, claramente, a Platão e à Academia. O erro de Platão seria aquele de ter considerado a matemática como parte integrante e indistinta da metodologia da ontologia: a crítica de Aristóteles é dirigida à “linha” e sua continuidade, portanto. Para Aristóteles, é inconcebível que o objeto da matemática seja algo “fora do sensível”: a metafisicização da matemática é o seu problema. O objeto de matemática (figura e número) está dentro da realidade, não fora dela, aproximando, sob certos aspectos, sua posição àquela dos pitagóricos[66].

Uma segunda e última observação diz respeito à expressão “platonismo”, utilizada na filosofia contemporânea da matemática para indicar, grosso modo, a crença de que objetos matemáticos existem independentemente de nós e que, com eles, não temos nenhuma interação causal; podemos descobri-los, mas não criá-los. Um importante registro do termo aparece em uma conferência de Paul Bernays, de 1934[67]. Ao tratar da axiomatização da geometria por Hilbert, comparando-a à de Euclides, Bernays destaca que, enquanto o segundo fala da “construção” de figuras, o primeiro assume a existência delas, mostrando “uma tendência de ver os objetos como desvinculados de qualquer ligação com o sujeito pensante”, à qual Bernays chama de platonismo[68]. Embora o termo tenha surgido aqui, a tendência era mais antiga, como vemos pelo que dizia Russell num ensaio de juventude (1901, na revista Mind): “A aritmética deve ser descoberta exatamente no mesmo sentido em que Colombo descobriu os índios do Oeste, e nós não criamos os números, como ele não criou os índios…”[69]. Nossa observação diz respeito ao fato de Platão ser não “platonista”, nesse sentido acima descrito. Acreditamos que o platonismo descreva, somente de forma limitada, a “filosofia da matemática” de Platão, que tem objetivos e ambições bem maiores: aqueles de fundamentar a matemática no interior de um caminho epistemológico que permita a esta chegar ao princípio de toda a realidade. Ambições epistemológicas, portanto, mais do que simples afirmações ontológicas. A matemática e a geometria são portas e, como tais, abrem-se e fecham sobre a verdade e seus possíveis caminhos dialéticos.

Autores: Gabriele Cornelli e Maria Cecília de Miranda N. Coelho

Fonte: Kriterion – Revista de Filosofia

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Notas

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada por Gabriele Cornelli no Seminário “Filosofia, cultura e complexidade”, organizado pela Cátedra Charles Morazé, da Universidade de Brasília, em setembro de 2006, sob a coordenação do Prof. Dr. Wilton Barroso Filho.

2 Socráticas: poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17.

3 MORESCHI, Bruno. Professor, cadê você? Carta Capital, n. 411, p. 6, set. 2006.

4 Idem, p. 6. Menos pretensioso, mas não menos ambicioso, lembremos como um dos líderes mundiais, na pesquisa em geometria algébrica, e representante do chamado “Novo neoplatonismo”, Igor R. Shafarevich, concluiu uma conferência sobre matemática e religião na academia de Göttingen: “Desejo exprimir a esperança de que… a matemática possa servir agora como modelo para a solução de muitos problemas de nossa época: revelar um objetivo religioso supremo e avaliar o significado da atividade espiritual da humanidade” (apud DAVIS, Phillip J.; HERSH, Reuben. A experiência matemática. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. p. 82).

5 Cf. LLOYD, Geoffrey. La curiositá nei mondi antichi: Grecia e Cina. Roma: Donzelli, 2003. p. 55.

6 GALILEI, Galileu. Il Saggiatore. Milano: Feltrenelli, 1965. § 6.

7 O termo é sempre associado a ele e aparece nas Regras para a direção do espírito, mas já havia sido usado antes por Erhard Weigel, professor de Leibniz. Sobre a história do conceito, ver: DUMONCEL, Jean C. La tradition de la mathesis universalis: Platon, Leibniz, Russell. Paris: Unebévue, 2002. Ver, também, o detalhado e cuidadoso artigo de: PATY, Michael. Mathesis universalis e inteligibilidade em Descartes. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 8, 1998, p. 9-57.

8 GALILEI, Galileu. Duas novas ciências. 2. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Nova Stella / Istituto Italiano di Cultura/Mast, 1987. Alguns aspectos da nova abordagem galileana são desenvolvidos em: COELHO, Maria Cecília M. Nogueira. Matemática e lógica em Galileu. Anais… Brasília: Ed. UnB, 1992. p. 265-291. Y

9 Cf. ARISTÓTELES. Física II, 2; IV, 7-8.

10 Sobre o tema, veja: REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Nessa obra, o autor defende que o atomismo de Galileu era um problema mais grave para a igreja do que sua defesa (realista) do heliocentrismo.

11 VLASTOS, Gregory. O universo de Platão. Brasília: Ed. UnB, 1987. p. 47et seq.

12 De generatione et corruptione, 315b28et seq.

13 Timeu 58d. PLATONE. Opere complete com il texto greco. A cura di G. Iannotta, A. Manchi, D. Papitto. Itinerari di navigazione a cura di G. Giannantoni. Roma: 1999. CD-ROM.

14 Timeu 54c. Ao quinto sólido regular (o dodecaedro), Platão faz corresponder o universo, Timeu 55c; vemos, aqui, a importância do pressuposto metafísico de uma simetria universal, na formulação de teorias cosmológicas e cosmogônicas. Sobre a importância desse conceito de simetria no pensamento racional, veja: WEYL, Hermann. Symmetry. Princeton: Princeton U.P., 1980.

15 KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. In: Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 152-172. Sobre a questão dos modelos da astronomia (uma das matemáticas) veja: DUHEM, P. Salvar os fenômenos – ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Suplemento 3, 1984. Y

16 Ageometrètos mèdeis eisito. A referência é datada posteriormente, nos escritos de João Filopono e de Olympiodoro, neoplatônicos, que viveram no século VI d. C.; e por João Tzetzes, autor bizantino do século XII (Chiliades, 8, 972). Cf. SAFFREY, Henry. Ageômetrètos mèdeis eisitô: une inscription légendaire. Revue des Études Grecques, n. 81, p. 67-87, 1968.

17 Utilizamos a expressão “método científico”, mesmo sabendo das discussões sobre a possibilidade de anacronismo, dadas as diferenças de abordagem entre a ciência moderna e o que seria a ciência helênica.

18 Máthemata, Leis 817e, no plural designa as ciências matemáticas. Podemos encontrar, com base em um comentário de Aulo Gélio (Noites áticas, I, 9), uma diferenciação entre os discípulos da escola pitagórica nas qualidades de acusmáticos e de matemáticos, referindo-se, respectivamente, a uma fase em que escutavam e a outra em que perguntavam e exprimiam o que haviam sentido. A última fase seria quando consideravam os princípios da natureza, e eram chamados físicos. Cf. ZHMUD, Lonid. Mathematici and akousmatici in the pythagorean school. In: BOUDOURIS, K. I. Pythagorean philosophy. Athens: Ionia, 1992.

19 República 523a-525b. Aristóteles também usará o termo mathematikai (Met. 981B24). ARISTÓTELES. Metafísica. Ed. trilíngue por V. G. Yebra. Madrid: Gredos, 1982.

20 PROCLUS. In primum Euclidis elementorum librum, 64. Leipzig: Ed. G. Friedlein, 1873.

21 BOYER, Charles. História da matemática. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1974, p. 63. No entanto, é o próprio Boyer que defende Platão como criador do chamado método analítico e autor da fórmula para triplas pitagóricas (cf. Boyer, idem, p. 64 e 65). Quanto aos matemáticos do círculo de Platão, Boyer identifica Teodoro, Teeteto, Eudoxo e Menéxeno. Uma das razões para termos utilizado o livro de Boyer, neste artigo, foi a difusão deste texto no ambiente universitário brasileiro. A precisão matemática é assegurada pela tradução da Professora Elza Gomide. Quanto à acuidade em apresentar as questões da história da matemática, ainda que o texto de Boyer não tenha o mesmo grau de detalhamento que os de Thomas Heath, por exemplo, pensamos que trata-se de um manual confiável.

22 A mesma questão aparece no Teeteto 196a, na República 525d-506b, no Gorgias 451b e no Sofista 245b.

23 Ver República 510 d-e, 507a-c; Sofista 238a.

24 Sobre a utilização desta terminologia, sabemos que pode ser um anacronismo. Notemos, porém, como está imbricado o debate hodierno e a tradição platônica por meio do comentário de uma expoente filósofa da matemática contemporânea “Plato originated the most dramatic version of realism about universals and his spetacular theory of forms… contemporary thinkers have proposed a more modern argument, modern in the sense that it partakes ot the “naturalizing” tendency… The moral for the defender of universals is clear: to show that there are universals, don’t try to give a pre-scientific philosophical argument; just show that our best scientific theory cannot do without them”. MADDY, Penelope. Realism in Mathematics. Oxford: Clarendon, 1990. p. 12-13. Penelope esta mais interessada em bloquear uma desanalogia metafísica e epistemológica entre a matemática e as ciências naturais do que em manter um realismo estrito em relação a elas. Anteriormente uma defensora do realismo naturalizado, a autora é, atualmente, uma das importantes defensoras da posição naturalista Cf. Naturalism in Mathematics Oxford: Clarendon, 1997. Y

25 Review of Metaphysics, n. 4, p. 395-425, 1951.

26 Sankt Augustin: Academia Verlag, 1995.

27 Protreptico 5. Cf. ARISTÓTELES. Metafìsica 996a 29- 36.

28 CAMBIANO, Giuseppe. Figura e numero. In: VEGETTI, M. Introduzione alle culture antiche II: il sapere degli antichi. Torino: Bollati Boringhieri, 1992, p. 83. Confira, também, a avaliação negativa com relação a estas tradições da origem oriental da matemática grega em SALAS, Omar Daniel Alvarez. Pitágoras y los Orígenes de la Matemática Griega. México: Universidad Nacional Autonoma de México, 1996, p. 66et seq. Y

29 11 A 20 DK.

30 Cf. SALAS, op. cit., p. 82. O termo analogia aparecerá em Platão (República 534a6) indicando igualdade de relações entre formas de conhecimento e também, ao lado de symmetría, indicando como as coisas foram colocadas de maneira comensurável e proporcional (Timeu 69b3).

31 Lembremos do frag. 11 de Filolau, que diz serem a falsidade e a inveja da mesma natureza do infinito e do absurdo.

32 BOYER, op. cit., p. 47. O autor identifica como matemáticos desse período: Árquitas de Tarento, Hipaso de Metaponto, Demócrito de Abdera, Hípias de Élis, Hipócrates de Quios, Anaxágoras de Clazômenas e Zenão de Eléia.

33 Sobre o uso dos termos “matemática” e “filosofia”, veja: 58 B 15 DK; DL, 1, 12 e Fédon 62c; 69e. É interessante lembrar como esse sentido mais amplo permanece, sendo encontrado, por exemplo, nos próprios títulos atribuídos à obra de Sexto Empírico. SEXTUS EMPIRICUS. Adversus mathematicus. Trad. de R. G. Burry. London: Heinemann, 1933-1949.

34 In Pr. Eucli, 65.

35 58 B 18 DK.

36 58 A 36-37 DK.

37 Sobre a expressão de Rey, cf. CAMBIANO, op. cit., p. 86.

38 Cf. os testemunhos A12 e A14, como também: ARISTÓTELES, Met. 1092B8. Mais detalhes, ver: CORNELLI, Gabriele. As origens pitagóricas do método filosófico: o uso das archai como princípios metodológicos em Filolau. Hypnos, n. 11, p. 71-83, 2003.

39 Cf., nesse sentido, o restante do sumário de Eudemo, presente em PROCLO, In Pr. Eucl. II, 64. Ver, também, o artigo clássico de OWEN, George E. L. Zeno and the mathematicians. Proceedings of the Aristotelian Society, p. 199-222, 1958.

40 BOYER, op. cit., p. 53. O problema só foi resolvido no século XIX, quando se demonstrou a impossibilidade de se fazer a duplicação do cubo com régua e compasso.

41 Teeteto 147 d 4;An. Post. 1, 10, 3. O termo “irracional” é utilizado, habitualmente, nesse contexto; lembremos que ratio, palavra latina, também carrega esse sentido, ligado mais diretamente à matemática – o conceito de razão como comparação entre dois segmentos –, bem como o conceito, mais geral, de faculdade de conhecer (o conhecimento, por sua vez, não deixa de ser um processo comparativo).

42 18A4DK. O tema é discutido, de maneira particularmente interessante, por Nussbaum, ao inseri-lo no debate sobre uma ciência da medida no campo ético. Cf. The Protagoras: a science of practical reasoning. In: NUSSBAUM, Martha Craven. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 89et seq.

43 AABOE, Asger. Episódios da história antiga da matemática. Rio de Janeiro: Ed. SBM, 1984. p. 54.

44 HILBERT, D. On the infinity. In: BENACERRAF, Paul; PUTNAM, Hillary. Philosophy of mathematics. Cambridge: C. U. P., 1983. p. 183-221, p. 184, 191.

45 Para o principal criador da lógica paraconsistente, o filósofo brasileiro Newton da Costa, “Desde Heráclito, passando por Hegel, Marx e Lênin, e, em nossos dias, por Wittgenstein, tem havido filósofos admitindo que a contradição pode ser aceita em teorias e contextos racionais que expressam conhecimento legítimo. Wittgenstein afirmou: “se uma contradição fosse efetivamente agora descoberta na aritmética “isso provaria apenas que uma aritmética, com essa contradição, poderia prestar serviços muito bons”. Para alguns pensadores, a existência de contradição é, aliás, característica básica de toda teoria que traduza qualquer porção não muito restrita da realidade. No entanto, até há alguns poucos anos, filósofo algum tratou de desenvolver sistemas lógicos paraconsistentes que se destinassem a justificar ou tornar plausíveis suas ideias “o que não deixa de ser surpreendente” (COSTA, Newton Carneiro Affonso da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 2. ed. São Paulo: HUCITEC/Ed. USP, 1994. p. 147-148).

46 GRANGER, Gilles Gaston. O irracional. São Paulo: Ed. UNESP, 2002. Nesse instigante livro, o autor busca, também, uma tentativa de compreender a irracionalidade como uma força criativa importante ao desenvolvimento do pensamento.

47 47 B 1 DK.

48 República 530c-31d.

49 Política VIII, 5, 1341b-42a.

50 JÂMBLICO, Vida, p. 64-65 e p. 68-69. Sobre os sentidos mais amplos do termo “harmonia” e algumas análises de suas ocorrências na literatura, ver: CORREA, Paula da Cunha. Harmonia, mito e música na Grécia antiga. São Paulo: Humanitas, 2003.

51 Cf. SALAS, op. cit., p. 104.

52 Ver nota 31.

53 Cf. CATTANEI, Elisabetta. Enti matematici e metafisica: Platone, l’Accademia e Aristotele a confronto. Milano: Vita e Pensiero, 1996. p. 220.

54 Essa concepção, grávida de consequências para a matemática, não é, obviamente, alheia a sentidos políticos: o 1 constituiu-se desde sempre como um limite intransponível, uma entidade indivisível, atrás da qual não havia antecedentes. Até isso podia se revestir de valências políticas: “Um é para mim dez mil, desde que aristós“, afirmava Heráclito (22 B 49a DK). Cf. CAMBIANO, op. cit., p. 87. Ver, num outro sentido político, o fr. 3 de Arquitas.

55 Aristóteles define monás como substância sem posição, ao contrário de ponto (stígme), substância com posição (Anal. Post., I, 87a).

56 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 222.

57 Apud CATTANEI, op. cit., p. 222.

58 Citado por DAVIS, op. cit., p. 362. Sobre as reflexões acerca da matemática (por filósofos e matemáticos) e o trabalho dos matemáticos, veja, especialmente: SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics: the philosophy of mathematics. Oxford: O.U.P., 2000.

59 Para uma discussão mais detalhada sobre o problema de uma fundamentação axiomática, veja: SCHOLZ, Hans. A axiomática dos antigos. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 1, p. 5-20, 1980.

60 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 226.

61 República 507b-c; 596a-b.

62 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 245, nota 98.

63 República 509d-e.

64 As citações são apoiadas na tradução de M. Helena R. Pereira; porém, modificadas por nós em alguns trechos. Cf. PLATÃO. República. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1987.

65 O termo aparece, também, no Fédon (69d), indicando o lugar dos que não se purificaram por meio de uma iniciação, ao filosofar corretamente (pephilosophekótes orthôs).

66 Met. 987 b 10-14.

67 Publicado posteriormente. BERNAYS, Paul. Sur le platonisme dans le mathématique. Le Enseignemant Mathematique, v. 34, p. 52-69, 1935.

68 BERNAYS,ibidem, p. 53. Lembremos que há várias variantes do platonismo. Uma das abordagens mais heterodoxas pode ser encontrada em: BALAGUER, Mark. Platonism and anti-platonism in mathematics. Oxford: Oxford Universtity Press, 2001.

69 CATTANEI, op. cit., p. 286, nota 294.

Virtude

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Na busca incessante do significado da Virtude me deparei com livros e artigos de dois filósofos, Aristóteles e Santo Agostinho, que me deram boa base para o desenvolvimento deste trabalho.

A Virtude, segundo o dicionário, é

“O que expressa boa conduta; em conformidade com o correto, aceitável ou esperado; segundo a religião, a moral, a ética etc.”

Segundo Santo Agostinho,

“A definição mais acertada e curta de Virtude é a que diz que ela é ordem do amor” (Agostinho, 1961, p. 330).

A Virtude, segundo Aristóteles, é “uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, a virtude encontra e escolhe o meio termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania.”

A Virtude, segundo a maçonaria, “é a disposição da alma que nos induz à prática do bem.”

Mas, que relação podemos estabelecer entre os conceitos desses pensadores? O que realmente fazemos para nos aperfeiçoar intelectualmente através da prática da Virtude?

Aristóteles nos ensina que a Virtude se divide em moral e intelectual. A Virtude intelectual é gerada por natureza, nasce e cresce graças aos resultados do ensinamento e da educação, e a Virtude moral não é gerada em nós por natureza, é sim o resultado do hábito que nos torna capazes de praticar atos justos. Ele classifica a Virtude como o meio termo entre dois vícios, ou seja, a justa medida em que o excesso ou a deficiência culminam em vício de suas ações. Já Santo Agostinho, define a virtude como um hábito que faz o bem, ou, as ações do homem conforme a natureza que, voltadas ao bem, o conduz a um fim.

Tanto Santo Agostinho como Aristóteles entendem que a Virtude é gerada em nós por natureza, já está no interior do ser humano e se cria dentro do homem apenas o meio para o hábito de se praticá-la. Mas, para Santo Agostinho, a Virtude só pode existir no homem se este viver conforme o Amor (uma vida em Deus), através da graça concedida por Ele, e é esse Amor a maior virtude que o homem pode ter.

Nesses dois conceitos acredita-se que a finalidade da virtude é o “bem supremo”, que para Aristóteles é a felicidade da Humanidade e, para Santo Agostinho, é o Amor.

Acredito que eu possa ser um exemplo de como agir para se aperfeiçoar intelectualmente. Ainda profano, não sabia trabalhar a Pedra Bruta, por isso ao passar pela Câmara de Reflexão, observando os símbolos que ali estavam, fui levado a refletir e procurar respostas no meu “eu interior”. Nessa busca pelo aperfeiçoamento intelectual é necessário o aprimoramento de meus conhecimentos; na jornada para meu aprimoramento moral devo pautar meu comportamento pela prática da Virtude, e assim encontrar “a Pedra Filosofal”, no seu mais puro significado, dentro de mim. Para isso preciso trabalhar, e estar sempre na constante e incessante construção de templos à virtude, usando o maço e o cinzel para lapidar a Pedra Bruta, pois somente desbastando as asperezas da vida profana que deixei de lado quando renasci como Aprendiz, sendo justo e comedido, usando a medida justa da Régua de 24 polegadas para estar dividindo meu dia e praticando retamente minhas ações, na busca por uma vida virtuosa.

Mas, qual a Virtude que, no nosso dia a dia, no nosso convívio e relacionamento interpessoal, buscamos realmente e quais as Virtudes esperadas de um maçom?

No meu entendimento, não devemos praticar uma ou outra Virtude, mas sim todas possíveis a cada situação apresentada em nossa vida, para que tornemos o nosso meio um pouco melhor a cada dia, seja como maçom, como cidadão ou como pessoa comum. Nosso trabalho tem como objetivo melhorar o mundo, e a prática das Virtudes é o caminho para chegarmos lá.

Segue alguns exemplos de Virtudes que ao meu temos que praticar mais e mais:

  • A Justiça: Virtude que nos faz dar a cada um, o que lhe corresponde, que deve fazer-se de acordo com o direito e a razão. A Justiça é o apoio do mundo e a injustiça é a origem e manancial de todas as calamidades que o afligem.
  • A Prudência: Virtude que faz prevenir e evitar as faltas e perigos, a que nos faz atuar com sobriedade, discrição, moderação e previsão.
  • A Temperança: Virtude que modera os apetites e as paixões, e trabalhar com moderação, sobriedade e continência.
  • A Humildade: Virtude de assumir e reconhecer os erros próprios.
  • A Caridade: Virtude que atua como extrema sensibilidade aos sofrimentos alheiros. É o AMOR FRATERNAL, muitas fezes confundido com a filantropia.

Mesmo com pouco tempo em nossa Sublime Ordem, percebo que em muitos casos esses conceitos parecem não ser corretamente assimilados por todos, seja por desconhecimento de seus significados, ou por estar o irmão ainda em seu processo de lapidação.

Acredito eu que, após iniciados, nós maçons devemos buscar o crescimento intelectual e o aprimoramento moral, e isso exige tempo, estudo e dedicação, para que a cada dia nos tornemos melhores em todos os sentidos, e para que, um dia, nossas paixões e vícios sejam enterradas nas masmorras que nos propusemos a cavar.

O Maçom deve ser escolhido para ser Iniciado não por motivos profissionais, familiares ou de amizade, mas sim por ser o profano reconhecido Maçom em sua essência, encontrando nele as virtudes que tanto valorizamos.

“A Virtude é um hábito do bem, ao contrário do hábito para o mal ou o vício” Santo Tomás de Aquino

Autor: Davidson Dionizio de Oliveira
ARLS Pioneiros de Ibirité, 273 – GLMMG
Oriente de Ibirité, Minas Gerais

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Referências

ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001

https://www.maconaria.net/virtudes-e-vicios/

https://www.maconaria.net/sobre-as-virtudes-maconicas/

https://www.maconaria.net/v-i-t-r-i-o-l/

https://www.significados.com.br/virtude/

https://www.dicio.com.br/virtude/

https://blog.cancaonova.com/seminario/virtudes-e-vicios-em-santo-agostinho/

https://sentadonalua.wordpress.com/2012/07/12/a-etica-de-santo-agostinho-frente-a-etica-aristotelica/

http://iblanchier3.blogspot.com/2018/06/virtude-virtudes-e-bons-costumes.html

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A Temperança e o Protrepticus de Aristóteles

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O intuito desse breve trabalho é relacionar a virtude da temperança com o Protrepticus de Aristóteles, obra cujo conteúdo trata-se de uma exortação à filosofia, feita para um certo Themison, que ao que tudo indica, seria um rei numa cidade do Chipre. Logo no início do texto, Aristóteles mostrará ao rei por que a filosofia é a realização natural do homem e o maior dos bens, e durante os primeiros capítulos dá as razões por que ela deve ser procurada. Pretendo mostrar como a temperança, ou sophrosyne, é de suma importância para aquilo que Aristóteles tem em mente: mostrar a constituição do homem e da natureza para assim convencer ao rei as razões do filosofar. Vou me apoiar principalmente nos primeiros capítulos do Protrepticus, o Cármides de Platão e também me guiarei por autores que esclareçam o conceito de sophrosyne nos filósofos gregos.

Sophrosyne

A sophrosyne é o assunto do diálogo Cármides, de Platão, e ela geralmente é traduzida como temperança ou moderação[1]. A etimologia da palavra sophrosyne apresenta os seguintes elementos:

  • saos ou sos – são, salvo, em boa saúde;
  • phron/phren – coração, espírito;
  • syne, sufixo que indica qualidade.

No Cármides nenhuma definição precisa é dada, segundo o dicionário de termos filosóficos de F.E.Peters, mas o que Platão tem em mente ao falar de sophrosyne é o conceito pitagórico de harmonia e também as palavras de Heráclito no fragmento 112, onde ele diz que: “Sophrosyne é a maior das virtudes, e sabedoria é falar e agir na verdade, fazendo jus a natureza das coisas”. Nesse diálogo, Sócrates diz ser a moderação ou temperança, um grande bem e verdadeira fonte de felicidade. Podemos dizer que o conceito de sophrosyne é um modo de agir e de pensar, um modo de entender os limites, um modo de se relacionar com a natureza das coisas. O contrário da sophrosyne é a hybris, o excesso, a falta de medida.

Apesar de o conceito de sophrosyne apresentar concepções populares, práticas, religiosas, políticas dentre outras, vamos nos ater a dois aspectos principais. Na introdução da edição portuguesa do Cármides feita por Francisco de Oliveira, ao enumerar esses diferentes aspectos, ele diz acerca da sophrosyne encarada sob o aspecto do autoconhecimento: “ …este plano é primordial na estrutura do Cármides e no diálogo aporético, devendo situar-se no âmbito mais vasto da identificação de virtude e conhecimento e da unificação das virtudes”. Mais à frente faremos o paralelo disso com o Protrepticus. Há também o aspecto ético ou prático da sophrosyne, que é a prática do bem ou a prática da virtude, em oposição aos prazeres[2].

Aqui portanto, já podemos vislumbrar algo acerca dessa relação, já que o conselho que Aristóteles dá ao rei no primeiro capítulo do Protrepticus e suas justificações nos primeiros capítulos a respeito da hierarquia da natureza, com a razão no topo dessa hierarquia, mostrarão em que sentido o filósofo vai se relacionar ou vai se apoiar na sophrosyne para atingir a vida feliz. Sendo a razão aquela que deve imperar sobre todas as outras partes, tanto em Platão como em Aristóteles, o Protrepticus deixa claro qual a maneira do filósofo agir para atingir a vida feliz.

Necessário se ater por instantes as noções de Platão e Aristóteles das partes do homem. Em Platão, há uma divisão da alma em três partes, a racional, a irascível e a concupiscente; a alma bem ordenada, aquela alma que tem harmonia entre as partes, é a alma cuja parte racional domina as outras duas. Em Aristóteles, como veremos, isso se dá numa divisão tripartida também, há uma parte vegetativa, uma sensitiva e uma parte racional. Aquele que deseja iniciar na filosofia deverá por meio da temperança estabelecer o que é melhor para si e para os outros, segundo a ordem natural, esta portanto o levará da pratica rumo a sabedoria.

Por fim, devo dizer que a virtude da temperança ou da justiça em Aristóteles estão relacionadas com a ética. A parte sensitiva do homem, que estaria acima da parte vegetativa e abaixo da parte racional, é aquela que controla as paixões, por meio do intelecto ou dianóesis, ela busca encontrar a justa medida na prática dessas virtudes.

O Protrepticus

O primeiro capítulo do Protrepticus Aristóteles diz a Themison que aquele que tem muito dinheiro, está mais apto a filosofar, pois tem mais tempo para estudar. Porém, sem sabedoria, esse acúmulo de bens intelectuais só produziria loucura: “…a felicidade não consiste em adquirir muitas coisas, mas sim na maneira pela qual a alma é disposta.” Para o homem cuja alma está em desarmonia, está mal disposta, a riqueza, a força, a beleza não podem ser bens, essas pelo contrário, são nocivas frente a essa desarmonia. Aqui como no Cármides, há uma preocupação com a sanidade do espírito, o são de espírito pode esperar usufruir dos bens do mundo com a devida moderação e harmoniosamente, mas aqueles cuja alma é destemperada, só podem aguardar um fim trágico, já que a falta de temperança aliada a tais bens, só levariam tal homem a cometer a hybris, a loucura como aquela retratada na peça de Ésquilo, Os Persas, onde Xerxes age em oposição ao comportamento moderado.

Estabelecido portanto esse primeiro passo, que a alma desordenada não poderá usufruir de modo correto os bens, Aristóteles inicia uma explicação acerca da constituição das coisas, a ordem na qual o homem e consequentemente sua razão está inserida, e mostra de que maneira a filosofia é a realização natural dos homens. Vamos tentar acompanhar esses passos.

Aristóteles explica que entre as coisas, algumas são engendradas por um pensamento e por uma arte, enquanto outras são engendradas pela natureza. Algumas porém são engendradas pelo acaso, e nesse caso, não pode haver finalidade, e portanto não pode haver realização. Tudo que é engendrado segundo a arte e a natureza é engendrado segundo um objetivo, e esta é sua melhor realização. Na natureza, Aristóteles dá o exemplo da gênese das coisas:

“…não é verdade que algumas sementes, em qualquer terra caiam, germinam sem proteção, ao passo que outras precisam, além disso, da arte do cultivador? Quase do mesmo modo, alguns animais dão conta, por si mesmos, de toda a sua natureza, aio passo que o homem precisa de muitas artes para a sua preservação, tanto por ocasião da gênese primeira, quanto mais tarde, durante a nutrição.”

Toda a gênese se produz com vistas a um objetivo, esse objetivo pelo qual a coisa foi engendrada é o mesmo pela qual ela deveria ser engendrada. E a natureza engendra os seres para o melhor, não para eles destruírem ou prejudicar essa ordem. Podemos ver nitidamente que o que está em foco nessas passagens é que tudo aquilo que é engendrado por uma arte ou pela natureza é feito segundo uma finalidade, e essa finalidade é aquilo pelo qual o ser foi engendrado, é o seu bem maior. A realização natural é o que se realiza por último lugar na ordem da gênese, no homem, primeiro se realiza aquilo que se refere ao corpo, e por último a alma, que é a realização do melhor. Dando sequência a esse esquema, a última parte da alma, a melhor, é a parte racional. “E realmente, se a sabedoria é, em conformidade com a natureza, nossa realização, então, de todas as coisas, exercer a sabedoria será a melhor.”

Dentro do que foi dito acerca da realização do homem, ele é engendrado segundo a natureza, mas sua constituição de corpo e alma faz com que o corpo esteja subordinado ao fim maior que é a alma, pois ela vem depois desse na ordem natural, e na alma, realizar a virtude com vistas à sabedoria. Aqui fica claro aquela tripartição da alma, estando as virtudes subordinadas ao bem maior que é a aquisição da sabedoria.

O que está sendo dito ao rei no Protrepticus é que a natureza e a arte, que a imita, trabalha segundo uma ordem, essa ordem só pode funcionar bem segundo o fim para qual a coisa foi feita, se houver harmonia entre as partes que constituem o todo. Diz Platão na República, 430e: “ A temperança é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e desejos…”. Essa ordenação é um alinhamento com a natureza das coisas, o meio mais propício de fazer bem as coisas, de se atingir o fim para o qual a coisa foi feita.

Na constituição do homem, portanto, seu fim último, o motivo para o qual ele foi engendrado é o uso da razão, mas a razão ordenada, a razão dentro de uma harmonia, pois essa razão sem a ordenação devida se transforma em loucura.

A temperança, sophrosyne, é o elemento inicial das lições ou exortações que Aristóteles está mostrando ao rei, através das virtudes como a justiça e a temperança, o rei poderá ser sábio. No primeiro capítulo ela se mostra do ponto de vista prático e ético, ao evitar a hybris, o homem pode esperar o bem para ele e para os outros, e na sequência do texto, ao mostrar como age a natureza e as artes, Aristóteles busca mostrar como essa mesma natureza se dá no homem, qual a maneira de atingir o fim último do homem, aqui ela se mostra não como virtude prática, mas sim como autoconhecimento. Esse autoconhecimento é a sabedoria[3], e essa é uma virtude intelectual, enquanto a sophrosyne é uma virtude prática. Há em Aristóteles uma divisão entre virtudes práticas e intelectuais. Mas nessa breve exposição, está além de minhas capacidades esgotar tal assunto. O fato é que uma virtude prática como a sophrosyne pode ser justificada no Protrepticus pela sua relação com a ordenação da natureza e do homem.

Dando sequência ao texto, Aristóteles dirá que: “ …somos capazes de aprender as ciências que tratam do que é justo e lucrativo…”, e que “…o anterior é sempre mais passível de conhecimento do que o posterior, e o que é melhor por natureza…”. Aqui há novas justificativas, a primeira da possibilidade de aprender as ciências do justo, ou seja, é possível o homem saber a respeito do lugar das coisas, da harmonia entre as coisas, e em segundo lugar, que o anterior tem sempre mais atributos de ser conhecido que o posterior, isso por causa da relação de causa e efeito, o posterior depende do anterior na ordem das coisas, é claro, mas o que Aristóteles quer deixar claro aqui é que será em vista à intelecção que todas as coisas deverão ser escolhidas pelo homem, pois todo o resto da hierarquia das coisas subsiste em função do melhor.

A sabedoria do filósofo será portanto a consciência dessa ordem nas coisas, a hierarquia da natureza dentro e fora dele. As leis por exemplo são um produto dessa razão e a consciência da lei a sabedoria dessa ordem, mas a atitude, o submeter-se a elas será a sophrosyne, a temperança é a prática, uma virtude prática, é se por em conformidade à ordem das coisas e o regular-se conforme a ordem natural do homem, fazendo com que a parte racional dirija as outras partes do homem. A sophrosyne, que aqui traduzo por temperança, ou moderação, é a ordenadora das virtudes, esse reconhecimento do lugar nas coisas, o entrar em harmonia com a ordem é também uma atitude de humildade, onde o homem sabe o seu lugar e não ousa se por acima daquilo que deve, a virtude da justiça também se assemelha à temperança, já que a justiça, segundo W.K.C. Guthrie é ocupar-se de seus próprios assuntos, cada um fazendo o que deve ser feito e segundo o modo como deve ser feito. Eis aqui portanto novamente a noção de ordem, de harmonia, ser temperante é estar não só consciente dessa ordem mas agir segundo essa ordem.

É interessante que alguns dizem ser a temperança a maior das virtudes, a que ordena todas as outras virtudes. O homem temperante é o homem são, aquele que sabe a ordem de importância das coisas.

Considerações finais

A temperança, virtude que mostra ao homem o seu lugar e o faz agir segundo aquilo que se deve fazer, ou nas palavras de Sócrates no Cármides, “…é saber o que se sabe e o que se não sabe.”, está presente no Protrepticus de Aristóteles nos conselhos que esse dá ao rei. Ao mostrar a hierarquia das coisas da natureza e do homem, Aristóteles estabelece uma harmonia oriunda da estrutura das coisas mesmas, segundo Hilary Armstrong “ A vida moral do homem deve formar um todo ordenado e dirigido a um fim púnico, da mesma forma que o universo forma um sistema ordenado dirigido a um fim único”, o filósofo deverá ser temperante para alinhar prática e pensamento, e assim não agir de forma errada, que poderá leva-lo a cometer coisas perniciosas para si e para os outros.

Autor: Fernando Gomez

Fonte: Revista Pandora

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Notas

[1] – Nas notas da edição portuguesa do Cármides, Francisco de Oliveira diz que: “Como se vê, irá ser difícil uma tradução exata para o termo: prudência, sensatez, sabedoria, moderação, temperança.

[2] – Esses aspectos são defendidos por Crítias ou por Cármides no diálogo, e o caráter aporético do Cármides força-nos a conceber nesses termos a temperança, para que ela possa relacionar-se com um fim estabelecido em Aristóteles.

[3] – Isso nos remete a fórmula conhece-te a ti mesmo. Esse preceito délfico é caro a Sócrates, por causa da identificação de conhecimento e virtude e pelas discussões acerca da possibilidade de se ensinar as virtudes, como no Ménon 87c-89ª, no Protágoras ou em Eutidemo 282c. A identificação de sophrosyne com a inscrição délfica feita por Crítias no Cármides, é a interpretação tradicional. Sobre isso as notas de rodapé de Francisco Oliveira na edição do Cármides de Universidade de Coimbra, também E. Martens.

Referências Bibliográficas

F. E. Peters, Greek Philosofical Terms. A history Lexicon, New York, University Press, 1967. Platão, Cármides, introdução, versão grego e notas de Francisco de Oliveira, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981. Aristóteles, Da Geração e Corrupção Seguido de Convite à Filosofia, São Paulo, Landy, 2001. Platão, República, tradução de M. H. Rocha Pereira, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1976. W. K. C. Guthrie, Los filósofos Griegos, México DF, Fondo de Cultura Econômica, 2008. A. H. Armstrong, Introducción a la Filosofia Antigua, Buenos Aires, Eudeba, 2007.

Aristóteles: o mundo da experiência, as quatro causas, ética e política

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Em 1996, descobriu-se em Atenas, Grécia, o sítio arqueológico onde funcionou o Liceu – a escola fundada por Aristóteles (384-322 a.C.), para concorrer com a Academia, a escola anterior, fundada por seu antigo professor, Platão (427-347 a.C.). A fundação do Liceu não reflete nenhuma ingratidão do discípulo com seu mestre, que por sinal já havia morrido cerca de dez anos quando a escola aristotélica surgiu (336 a.C.).

Aluno de Platão, a quem reconhecia o gênio, Aristóteles passou a discordar de uma ideia fundamental de sua filosofia e, então, o pensamento dos dois se distanciou. Talvez seja esse o ponto de partida para se falar da obra filosófica aristotélica.

Platão concebia a existência de dois mundos: aquele que é apreendido por nossos sentidos – por assim dizer, o mundo concreto -, que está em constante mutação; e um outro mundo – abstrato -, o mundo das ideias, imutável, independente do tempo e do espaço, que nos é acessível somente pelo intelecto.

O Mundo da Experiência

Para Aristóteles, existe um único mundo: este em que vivemos. Só nele encontramos bases sólidas para empreender investigações filosóficas. Aliás, é o nosso deslumbramento com este mundo que nos leva a filosofar, para conhecê-lo e entendê-lo.

Aristóteles sustenta que o que está além de nossa experiência não pode ser nada para nós. Nesse sentido, ele não acreditava e não via razões para acreditar no mundo das ideias ou das formas ideais platônicas.

Porém, conhecer o mundo da experiência, “concreto”, foi um desejo ao qual Aristóteles se entregou apaixonadamente. Assim, ele descreveu os campos básicos da investigação da realidade e deu-lhes os nomes com que são conhecidos até os nossos dias: lógica, física, política, economia, psicologia, metafísica, meteorologia, retórica e ética.

Aliás, ele inventou também os termos técnicos dessas disciplinas e eles também se mantêm em uso desde então. Exemplos? Energia, dinâmica, indução, demonstração, substância, essência, propriedade, categoria, proposição, tópico, etc.

O Que é Ser?

Filósofo que sistematizou a lógica, Aristóteles definiu as formas de inferência que são válidas e as que não são, além de nomeá-las. Durante dois milênios, estudar lógica significou estudar a lógica aristotélica.

Aristóteles aplicou a lógica, antes de mais nada, para responder a uma questão que lhe parecia a mais importante de todas: o que é ser?, ou, em outras palavras, o que significa existir? Primeiramente, o filósofo constatou que as coisas não são a matéria de que se constituem.

Por exemplo, uma pilha de telhas, outra de tijolos, vigas e colunas de madeira não são uma casa. Para se tornarem casa, é necessário que estejam reunidas de um modo determinado, numa estrutura muito específica e detalhada. Essa estrutura é a casa; e os materiais, embora necessários, podem variar.

Com o tempo, nosso corpo está em constante mutação – transforma-se da infância para adolescência, desta para a idade adulta e, finalmente, para a velhice. Nem por isso deixamos de ser nós mesmos. Da mesma maneira, um cão é um cão em virtude de uma organização e estrutura que ele compartilha com outros cães e que o diferencia de outros animais que também são feitos de carne, pelos, ossos, sangue…

As Quatro Causas

Para Aristóteles uma coisa é o que é devido a sua forma. Como, porém, o filósofo entende essa expressão? Ele compreende a forma como a explicação da coisa, a causa de algo ser aquilo que é. Na verdade, Aristóteles distingue a existência de quatro causas diferentes e complementares:

  • Causa material: de que a coisa é feita? No exemplo da casa, de tijolos.
  • Causa eficiente: o que fez a coisa? A construção.
  • Causa formal: o que lhe dá a forma? A própria casa.
  • Causa final: o que lhe deu a forma? A intenção do construtor.

Embora Aristóteles não seja materialista (vimos que a forma não é a matéria), sua explicação do mundo é mundana, está no próprio mundo. Finalmente, para o filósofo, a essência de qualquer objeto é a sua função. Diz ele que, se o olho tivesse uma alma, esta seria o olhar; se um machado tivesse uma alma, esta seria o cortar. Entendendo isso, entendemos as coisas.

Mas o pensamento aristotélico não se limitou a essa área da filosofia que podemos chamar de teoria do conhecimento ou epistemologia. Deixando de lado os domínios que deram origem a outras ciências e nos limitando à filosofia propriamente dita, Aristóteles ainda refletiu sobre a ética, a política e a poética (que, no caso, compreende não apenas a poesia, mas a obra literária e teatral).

Ética e Política

No campo da ética, segundo Aristóteles, todos nós queremos ser felizes no sentido mais pleno dessa palavra. Para obter a felicidade, devemos desenvolver e exercer nossas capacidades no interior do convívio social.

Aristóteles acredita que a autoindulgência e a autoconfiança exageradas criam conflitos com os outros e prejudicam nosso caráter. Contudo, inibir esses sentimentos também seria prejudicial. Vem daí sua célebre doutrina do justo meio, pela qual a virtude é um ponto intermediário entre dois extremos, os quais, por sua vez, constituem vícios ou defeitos de caráter.

Por exemplo, a generosidade é uma virtude que se situa entre o esbanjamento e a mesquinharia. A coragem fica entre a imprudência e a covardia; o amor-próprio, entre a vaidade e a falta de autoestima, o desprezo por si mesmo. Nesse sentido, a ética aristotélica é uma ética do comedimento, da moderação, do afastamento de todo e qualquer excesso.

Para Aristóteles, é a ética que conduz à política. Segundo o filósofo, governar é permitir aos cidadãos viver a vida plena e feliz eticamente alcançada. O Estado, portanto, deve tornar possível o desenvolvimento e a felicidade do indivíduo. Por fim, o indivíduo só pode ser feliz em sociedade, pois o homem é, mais do que um ser social, um animal político – ou seja, que precisa estabelecer relações com outros homens.

O Papel da Arte

A poética tem, para Aristóteles, um papel importantíssimo nisso, na medida em que é a arte – em especial a tragédia – que nos proporciona as grandes noções sobre a vida, por meio de uma experiência emocional. Identificamo-nos com os personagens da tragédia e isso nos proporciona a catarse, uma descarga de desordens emocionais que nos purifica, seja pela piedade ou pelo terror que o conflito vivido pelas personagens desperta em nós.

Tudo isso é, evidentemente, um resumo ultra sintético do pensamento aristotélico. Sua obra é gigantesca, apesar de a maior parte dela ter se perdido ao longo dos tempos. O que chegou até nós corresponde a 1/5 de sua produção. São notas suas e de seus discípulos que passaram nas mãos de estudiosos da Antiguidade, da Idade Média (parte dos quais em países islâmicos), e que foram reorganizadas pela posteridade.

Principalmente em função disso, a leitura de Aristóteles é difícil e seus textos não possuem a qualidade artística que encontramos nas obras de Platão. Para conhecer os aspectos relacionados às ciências na obra aristotélica clique aqui.

Autor: Antonio Carlos Olivieri

Fonte: O Mundo de Gaya

Nota do Blog

[1] – Clique AQUI para ler o artigo As Quatro Causas em Aristóteles

[2] – Clique AQUI para ler o artigo O Tempo em Aristóteles

Bibliografia

  • “Dicionário de Filosofia”, Nicola Abbagnano, Martins Fontes, 2000.
  • “História da Filosofia”, Bryan Magee, Edições Loyola, 2001.
  • “História da Filosofia”, Julián Marías, Martins Fontes, 2004.
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Longe de Aristóteles, longe do coração

Quando lemos ou ouvimos falar em ética, nos reportamos para a esfera política, tantos são os casos de corrupção. No entanto, a Ética, como apresentada nas obras de antigos gregos, não se limita apenas a isso; ela tem a ver com a conduta cotidiana de todo indivíduo, idealizada como a excelência da vida humana.

A partir do seu berço, a Antiga Grécia, o estudo da filosofia, passa inevitavelmente por três grandes nomes: Sócrates, Platão e Aristóteles. Este último, no entanto, foi o que apresentou uma espécie de enciclopédia de todo o saber que foi produzido e acumulado pelos gregos, em todos os ramos do pensamento e da prática, que, no conjunto, se chama de “Filosofia”. Suas influências no mundo ocidental se propagaram por 20 séculos, e suas obras ainda são leitura obrigatória para os estudantes dos cursos de Filosofia da atualidade. Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, a Aristóteles devemos a distinção entre o saber teórico e o saber prático.

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, cidade macedônica ao norte de Atenas. Saiu de sua cidade natal e foi para Atenas a fim de tornar-se discípulo de Platão, na Academia. Gastou muito dinheiro com manuscritos (os livros da época) e foi um dos primeiros a organizar uma “biblioteca”, por isso seu mestre sempre se referia à sua casa como “a casa do leitor”. Foi ele quem propôs a existência de quatro fatores na relação causal: forma, matéria, motivo (que produz mudanças) e o fim (pelo qual ocorre um processo de mudança). A “forma” não é só o formato, mas a força que dá o formato, que modela a matéria, visando uma figura. Para Aristóteles, não há necessariamente aí uma “providência externa” projetando e executando acontecimentos terrenos. Por isso, ele cria o termo “enteléquia“, “finalidade interior” ou “impulso interno”. Assim, tudo é fruto apenas de “causas naturais”. Elaborou as noções de ato (energeia) e de potência (dynamis). Ato seria o estado atual do ser, enquanto potência, aquilo em que esse ser se transforma. Assim, uma semente, enquanto ato, é apenas uma semente, mas, como potência, é uma árvore. A potência atualiza-se em ato sempre em vista de uma finalidade.

Mas Aristóteles compreendia muito bem que tudo também tinha ou provinha de uma “fonte” – ou seja, “toda causa precisa ter uma causa anterior”. Donde desenvolveu a ideia do “motor imóvel” (primum mobile immotum) – um ser invisível, incorpóreo, indivisível, sem espaço, assexuado, sem paixão, sem alteração, perfeito e eterno. Esse ser não é exatamente “o criador do mundo”, mas “aquele que o movimenta”, como uma força mecânica imprescindível, a todas as coisas – pura energia (Actus Purus). É ele, também, quem dirá que a ética é um saber prático, pois refere-se à práxis[1]. Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis. Na práxis ética somos aquilo que fazemos e esse “fazer” tem em si mesmo uma finalidade boa e virtuosa.

Podemos dizer que Aristóteles não somente fundou a Ética como disciplina filosófica, mas também expôs a maior parte dos problemas que ocuparam a atenção dos “filósofos morais”, uma vez que foi ele quem definiu o campo das ações éticas. Estas não são definidas apenas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha.

O estudo da conduta ou do fim do homem como indivíduo é a Ética. Ela também é uma reflexão que leva o indivíduo a discutir, problematizar e interpretar o significado dos valores morais, que estabelecem a conduta e os costumes de cada sociedade, os quais, na maior parte dos casos, são acatados como se fossem algo natural, e não cultural. Ser ético, portanto, é agir de modo a não ferir um código moral preestabelecido, de tal forma que, uma vez sendo esse o procedimento de todos, resulte em um bem comum e em uma boa relação entre membros de uma sociedade.

Sobre a virtude

No diálogo Menão[2], Platão explora a questão da “virtude”, perguntando-se se ela pode ser ensinada, se pode ser adquirida com exercícios, ou se nós a recebemos por natureza. Ali, Sócrates diz que antes deve-se saber o que é a virtude, pois, de outra forma, não haverá como saber como ela nos chega, ao que Menão rebate, questionando “como é possível buscar o que não se conhece?”, uma vez que corre-se o risco de, mesmo o encontrando, não reconhecê-lo. Enquanto Platão tenta resolver esse embate de argumentos com sua teoria da “reminiscência” – acreditando que em nós já há um “conhecimento verdadeiro” sobre todas as coisas universais e necessárias, que pode ser acessado -, Aristóteles, seu discípulo, mantendo-se fiel ao modo filosófico de pensar que pergunta pelo que é, prefere tomar este outro caminho, que se resume na máxima “não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons” (Ética a Nicômaco).

No sistema aristotélico, a ética é a ciência das condutas, cujo objetivo último é garantir ou possibilitar a conquista da felicidade (ética eudaimônica), e esta consistiria na realização humana e no sucesso daquilo que o homem pretende obter ou fazer, e o faz no seu mais alto grau de excelência, ou seja, para chegar aonde deseja, o homem deve desenvolver suas virtudes (areté).

Os escritos aristotélicos sobre a ética e a política são a chave para a compreensão da posição filosófica do pensador de Estagira acerca da filosofia da práxis. Ética a Nicômaco é a obra de Aristóteles menos questionada quanto a sua verdadeira autoria, embora haja uma série de textos, divulgados e explorados durante toda a Idade Média, que foram atribuídos a ele sem qualquer comprovação disso, compondo o chamado Corpus Aristotelicum.

Aristóteles elabora uma hierarquia de bens do desejo, considerando-os desiguais, apropriados e até impróprios, numa busca incessante de chegar a um bem que seja mais próprio ao homem, ou seja, o orientador da vida humana. As pistas para se encontrar esse “bem maior” se encontram nas seguintes proposições:

  • deve ser perfeito, definitivo e suficiente por si mesmo para fazer feliz o homem que o possui, sem necessidade de mais nada;
  • deve ser procurado por si mesmo e não em ordem de conseguir outro bem qualquer, o que faria do segundo maior que o primeiro;
  • deve ser algo real e atual, presente, não uma simples potência, aptidão ou capacidade para adquirir um bem qualquer;
  • não deve ser algo que vem ao homem de forma puramente passiva, como uma dádiva, mas deve ser fruto da ação humana, como uma conquista, na qual esteja envolvida a atividade humana que possa ser considerada a mais nobre, pois o fim deve ser o mais nobre;
  • deve fazer o homem bom;
  • deve ser algo firme, estável e contínuo, que dure por uma longa vida, não algo peremptório e efêmero, descontínuo e curto.

Feito isso, a tarefa se torna menos árdua, mas não menos complexa. Deve ser feita uma investigação do homem não como “ser estático”, mas “em ação”, em funcionamento; portanto, deve-se entender suas “funções”. Descartadas as que são comuns ao homem e aos outros seres, como viver e sentir, chega-se ao viver conforme o logos – uma atividade da alma em consonância com a virtude. Assim, duas são as condições para que o homem alcance o seu bem próprio: saber qual é esse bem (condição necessária) e viver uma vida regulada pelo logos (condição suficiente), ao que o filósofo grego concluirá que a “virtude dianoética” do cultivo da sabedoria na “vida teorética” é a atividade que distingue o homem dos outros animais, sendo, portanto, a mais nobre, a mais desejada e superior. “Virtude dianoética”, para Aristóteles, é a perfeição da alma racional. Duas são as virtudes dianoéticas: phrónesis, a sabedoria que diz respeito aos princípios dos homens, e sophia, a sapiência que diz respeito às verdades supremas.

Aristóteles acrescenta à consciência moral a vontade guiada pela razão, como outro elemento fundamental da vida ética. Segundo Marilena Chauí, “A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. O prudente é aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros” (1998).

Todas as ações humanas tendem a “fins” que são “bens”. O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas tendem, subordinando-se a um fim último, que é o “bem supremo”, ou a felicidade. Esse “bem supremo”, realizável pelo homem, consiste em aperfeiçoar-se enquanto “homem”, isto é, consiste em uma atividade da alma segundo a sua virtude – havendo mais de uma virtude, então, segundo a melhor e mais perfeita. Diz ele: “Realizando ações justas, tornamo-nos justos; ações moderadas, moderados; ações corajosas, corajosos”. Para Aristóteles, as ações acabam por se tornar “hábitos”, “estados” ou “modos de ser”, que nós mesmos vamos construindo, sem necessidade alguma de imposições ou coerções externas. Aristóteles proclama os valores da alma como valores supremos, embora, com seu forte senso realista, reconheça uma utilidade também nos bens materiais, em quantidade necessária, já que eles, mesmo não estando em condições de proporcionar a felicidade, podem, de certa forma, comprometer a realização dela com a sua ausência.

Aproveitando a deixa da “utilidade dos bens materiais”, para não perder de vista aquilo que foi dito lá no início, voltemos à questão do exercício político e dos constantes deslizes praticados por aqueles que são eleitos democraticamente para, nos mais elevados cargos públicos, representar os cidadãos de uma cidade, estado ou país. O que temos visto, pelo menos no âmbito da política brasileira, é um sem-número de casos horripilantes de aquisição de bens materiais por parte de representantes impostores, por meio da malversação do erário público, da desmedida exploração de privilégios escusos e do conluio com bandidos e empresários corruptos e corruptores. Exemplos mais extremos de total e explícita falta de ética, que, em hipótese nenhuma, deveriam fazer parte da conduta de um simples cidadão, por conseguinte, menos ainda de cidadãos que se tratam pelo nobre termo de “vossa excelência”.

“Excelência”, esta palavra foi citada em um outro parágrafo na sua denotação própria, mas, como vemos, não podemos dizer o mesmo sobre ela no parágrafo acima. Excelência, na conduta enquanto cidadão, exercendo ou não um elevado cargo público ou uma profissão de destaque na sociedade, como a de médico, padre, professor ou advogado (como ainda é de costume se ter em grande prestígio) é exemplo de “vida ética”, não apenas para se tratar como assunto filosófico, mas, sobretudo, para se saber se o homem, mesmo com todos os percalços que lhe são impostos pela vida, ainda se conduz para e pelo bem.

Acima de tudo, Aristóteles diz que “A virtude tem a ver com paixões e ações, nas quais o excesso e a falta constituem erros e são censurados, ao passo que o meio é louvado e constitui a retidão”. Daí desprende-se que agir com paixão é agir com o coração. Uma paixão comedida, é certo, porém, movida pelo desejo, o benfazejo desejo que almeja somente o bem. Não um bem particular e interesseiro, mas um bem coletivo e comum. Exercer uma profissão, para muitos, é como exercer um “dom”, algo que parece estar na própria natureza do indivíduo, e que ele aparenta saber “de cor” como fazer, sem que ninguém o tenha ensinado. Um agir que ele sabe já em seu coração e que, exatamente por essa razão, deveria coincidir com o “agir ético”. O coração é, para Aristóteles, o órgão principal no corpo humano, pois é a partir dele que todos os outros órgãos se desenvolvem, além de ser, também, produtor, o recipiente e o distribuidor do sangue – o alimento do corpo. E, como os órgãos da percepção – os olhos, os ouvidos, a pele – estão ligados ao coração pelos vasos sanguíneos, as diversas sensações acabam por confluir no coração, onde as impressões do mundo exterior são coordenadas. Refutando Platão, que situava a coordenação dos sentidos no cérebro, Aristóteles define o coração como lugar responsável pela percepção e, ao mesmo tempo, como o centro das emoções.

Muito tempo já se passou desde que o estagirita escreveu seu tratado ético, como um guia para a conduta humana e, infelizmente, a mediania, uma virtude imprescindível para Aristóteles, parece estar longe da mente e do coração da maioria dos homens de hoje que se propõem às atividades mais “nobres” da vida humana. Com isso, toda a coletividade é prejudicada e ainda é impingida a assistir a vitória da impunidade sobre outra importante virtude, a justiça. Como o próprio Aristóteles diz, em Política, “[…] é fora de dúvida que os homens que estão no poder precisam possuir alguma superioridade sobre aqueles que são governados”. Porém, quando os representantes políticos, aqueles que deveriam servir de exemplo ao povo que o escolheu como “os melhores”, são o produtores de atos corruptos e promotores de crimes contra os próprios cidadãos a quem representam legitimamente, dificilmente encontramos nessa sociedade valores éticos. Diante de tais evidências, concluímos que Ética pode até ser uma palavra bonita de se pronunciar, mas sua “beleza” só tem mesmo eficácia na ação. “Ademais, errar é possível de muitos modos, ao passo que agir retamente só é possível de um”.

Autor: Jaya Hari Das

Fonte: Revista Filosofia

Notas

[1] – Práxis significa “prática e ação”. O primeiro grande gênio da filosofia a utilizar o termo foi Aristóteles, mas ganhou impulso com o materialismo dialético do teórico alemão Karl Marx (1818-1883), autor de O capital.

[2]Menão, ou melhor, Mênon, é um diálogo de Platão, no qual Sócrates conversa com o estudante Mênon, da região de Tessália. O diálogo versa sobre virtude e a natureza do conhecimento, mente e alma. Uma dos personagens marcantes do diálogo é o escravo de Mênon, para quem Sócrates ensina fundamentos da geometria, provando a capacidade de aprendizado dos homens.

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A arte de palavrear

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Artifício bastante usado nos discursos políticos, a retórica é um dos instrumentos centrais na estratégia de argumentação. Dentro do pensamento filosófico, Aristóteles estabeleceu os conceitos fundamentais para convencer, persuadir e emocionar.

Talvez isso possa parecer um tanto difícil, mas pense em um político que você, leitor, julga ser habilidoso. Ok, pense no que o torna hábil: é sua capacidade de descobrir o que determinada população precisa? Ou seria a capacidade de propor soluções pertinentes e, de fato, resolver esses problemas? Agora, pense em como esse político, essa figura pública, atinge os seus eleitores, como ele chega até essas pessoas. Em que pesem as novas tendências do marketing político[1] e os últimos avanços tecnológicos, esse político – velho ou moço, homem ou mulher, caucasiano ou afrodescendente – consegue alcançar o seu alvo com algo tão simples quanto elementar: os políticos usam as palavras.

Que os políticos gostam de falar (e realmente precisam falar) todos sabem; o que poucos têm noção é que, na maioria das vezes, as palavras que são ditas nos discursos políticos não são jogadas a esmo, mas, ao contrário, exaustivamente pensadas, estudadas e ensaiadas. A essa “arte-técnica” da oratória dá-se o nome de retórica. E, diferentemente do que se imagina, a retórica não é um recurso criado pelo marketing eleitoral.

Aristóteles tem um livro que, infelizmente, não faz parte do catálogo editorial brasileiro[NB], mas nem por isso deixa de ser fundamental. Em “Retórica”, o filósofo grego analisa com precisão os elementos que constituem um discurso. A leitura do livro mostra que alguns conceitos tidos hoje como inovadores já eram analisados pelo pensador, como o fato de a retórica ser dividida em três tipos: a política (ou deliberativa); a forense (ou legal); e o epidíctico (ou a oratória que censura ou louva um determinado elemento, aspecto, personagem).

No caso da retórica deliberativa, Aristóteles teoriza que a maneira mais importante e efetiva para obter sucesso em persuadir o eleitorado e dissertar sobre as coisas públicas é entender profundamente as formas de governo, assim como seus costumes, suas instituições e seus interesses. Isso porque, argumenta Aristóteles, “os homens são convencidos por considerações de seus interesses; e seu interesse está baseado na manutenção da ordem estabelecida”.

A discussão mais comum, hoje em dia, gira em torno da chamada retórica de Perelman[2], que tirou seus exemplos de discursos filosóficos e políticos, entre outros. Devido a isso ele assume o caráter de convencimento que a retórica proporciona aos discursos dos oradores. “Eu diria que a retórica se configura por um conjunto de estratégias linguísticas que visam à persuasão por meio da comoção”, opina a professora e doutoranda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Suzana Leite Cortez. João Bôsco Cabral dos Santos, doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica melhor: “o orador chama atenção construindo uma imagem que espelhe aquilo que seus ouvintes gostariam de ouvir. A gesticulação e a forma como se aproxima, toca e fala com as pessoas têm que estar em sintonia com a forma como as palavras são ditas e como esse orador direciona seu olhar”. Para João Bôsco dos Santos, “nos dizeres políticos é preciso falar o que o outro quer ouvir de si, como se fosse o outro dizendo para si mesmo”.

No maior dos dicionários da língua portuguesa, o Houaiss (Ed. Objetiva), a palavra “retórica” recebe significado de:

  • A arte da eloquência, a arte de bem argumentar;
  • Emprego de procedimentos enfáticos e pomposos para persuadir ou por exibição; discurso bombástico, enfático, ornamentado e vazio;
  • Discussão inútil; debate em torno de coisas vãs.

Sendo os dois últimos indicados como de uso pejorativo.

Se todos esses significados, para o bem ou para o mal, fazem parte da política, fica fácil dizer que a “retórica é intrínseca à arte da política”. E essas são as palavras do professor e doutor em História Econômica, Fábio Duarte Joly, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Segundo Joly, “sendo a política um exercício do convencimento com o intuito a se chegar a um consenso, a retórica joga nela um papel fundamental”.

O eleito

Quanto a esse último item, como não pensar no presidente dos Estados Unidos, eleito no fim de 2008, Barack Obama? “Yes, we can” foi o mote que fez história, que realmente moveu multidões às urnas. “Ele sensibilizou seus eleitores, utilizando o que denominamos uma retórica da redenção redimida: creiam-me, erramos, mas somos fortes, os melhores, sempre”, sentencia Bôsco. Já para o cronista português, José Manuel dos Santos, ouvir Obama “é voltar a ler a Retórica de Aristóteles. Ele convence porque argumenta (logos[3]), porque emociona (pathos[3]) e porque há um ‘eu’ que diz ‘vós’ e é reconhecido (ethos[3])”.

A parceria entre Obama e seu jovem redator de discursos de 27 anos, Jon Favreau, certamente funcionou melhor do que o esperado. Favs, como é conhecido, tornou-se um especialista na escrita do próprio presidente e entre os discursos deste escondem-se inúmeras palavras redigidas ou editadas pelo chamado prodígio.

A propósito, muito se fala em torno das habilidades oratórias do presidente dos EUA, mas esquece-se de que o Brasil teve um presidente – considerado por alguns um demagogo – que também tem o dom da palavra. Nesse caso, ficam claras, portanto, as diferentes maneiras de se apoderar da retórica. Em seus discursos, o presidente Lula se preocupa em utilizar um recurso que, na opinião de Bôsco, é voltado para conquistar os que fazem questão de rejeitá-lo, mas só consegue aumentar o apreço dos que o amam e “fomenta, ainda mais, o recalque de uma sociedade de uma social democracia falida, calcada na força disciplinarizante de instituições reguladoras”, brada o professor. À sua maneira, Cortez prefere indicar o uso de expressões populares, “como uma forma de estar mais próximo do grande público”.

Usar ou não usar? Eis a questão

Duas coisas podem acontecer àqueles que decidem realmente usar a arte de bem argumentar em seus dizeres. Podem receber grandes elogios sobre as performances utilizadas ou pelas belas e sábias palavras – mas, nesse caso, o elogio seria mais bem aplicado se dirigido aos ghost writers por trás dos discursos -, ou críticas ferrenhas atacando-os, acusando-os de fazer logomaquias por meio de happenings bizarros[4] e exagerados que transformam a política, por exemplo, em uma técnica para única e exclusivamente conquistar o poder. “A retórica desprovida de qualquer estudo científico é comumente vista como discurso ‘floreado’. Daí podemos falar em algo pejorativo”, arrisca Cortez. Como foi dito anteriormente por Joly – que também é o organizador da obra “História e Retórica: ensaios sobre historiografia antiga” (Ed. Alameda) -, Bôsco concorda que a retórica sempre fez parte da política e afirma que “a política sempre foi constituinte, constitutiva e constituída pela retórica”.

“O ser humano sempre teve necessidade de fazer valer suas opiniões”, completa Cortez, que coloca, além disso, que o uso da retórica tem bases culturais e se diferencia conforme mudam as habilidades de orador para orador e os entornos sociais[5]. O que difere seu uso atual com o de tempos anteriores é que hoje ela funciona como um ponto de tensão “da competição entre marqueteiros”, indica Bôsco. “Outrora a retórica era sempre apagada dos dizeres políticos porque soava como dizeres de uma égide proselitista, demagógica”, ele compara. Atualmente, é como se os oradores fizessem parte de um “campeonato de força ilocucionária”. A professora Suzana discorda dessa mudança. Para ela, são os “sujeitos que fazem parte da política” que podem mudar as formas de discursar, e não o contrário.

Do fim ao princípio

De volta ao político imaginado no início deste texto, é preciso saber que ele está sujeito aos desvios que a sensação do poder pode proporcionar. Todavia, se ele é lembrado por suas habilidades oratórias, isso pode ser considerado algo bom. Retornando às palavras do cronista português, “a reanimação de um verbo político inanimado é o início de um início. Porque a dignidade da política começa na dignidade da palavra que a diz”.

Para Joly, mesmo que o senso comum ligue retórica à enganação, se as pessoas souberem avaliar os discursos políticos tendo em vista sua construção retórica, elas terão meios suficientes para analisar melhor um determinado político. Dessa forma, torna-se óbvio dizer que a retórica por si só não é boa ou má. Bons ou maus são aqueles que se utilizam dessa arte com, ou sem, suas próprias noções de integridade.

Autora: Isabella Meneses

Fonte: Revista Filosofia

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Notas

[1] – Carreira levada ao ápice ao longo da década de 1990, o marketing político já é de conhecimento mesmo do público que não é militante. Além disso, no entanto, há os bastidores. No filmeRecontagem, protagonizado por Kevin Spacey, a alta cúpula decide com ações de marketing de guerrilha quais são as estratégias que devem ser tomadas para vencer as eleições para a presidência em 2000.

[2] – Filósofo do direito, o polonês Chaim Perelman observou que as áreas da Filosofia, do Direito e da História se estabeleciam utilizando a retórica como instrumento elementar. No site do Programa Especial de Treinamento em Ciências Jurídicas, há mais informações a respeito.

[3]Logos, Ethos e Pathos são as três principais formas de persuadir a audiência/ público/leitores. Logos é o apelo utilizado à razão; pathos é o voltado às emoções; e ethos é aquele calcado na reputação de quem se pronuncia.

[4] – Entre acontecimentos dignos de nota vale a pena recordar a performance do ex-deputado federal Roberto Jefferson durante um depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o escândalo dos correios. Naquela ocasião, o político atraiu a atenção usando artimanhas específicas de retórica, como se vê no link a seguir: http://www.youtube. com/watch?v= OkhaxJOI5Ss&NR=1

[5] – Os artifícios da retórica necessitam respeitar o contexto da audiência. De nada adianta, por exemplo, apresentar uma fala rebuscada para um público que não partilha do mesmo código de compreensão de quem transmite a mensagem. Nesse sentido, cabe ao político – caso se trate de um político – analisar se as metáforas cabem e se serão bem aceitas dentro daquele cenário. Talvez por esse motivo, a mensagem central é sempre a mais simples. Tome-se como exemplo o fato de Lula e Barack Obama terem feito uso, em 2002 e 2008 respectivamente, menção à ideia de “mudança”.

[NB] – Para a felicidade dos amantes da leitura, o livro Retórica  está disponível no catálogo editorial brasileiro. Inclusive é uma das sugestões de leitura do blog na página Biblioteca.

Outras Notas

[a] – Nelson Rodrigues se referia àqueles cuja capacidade retórica era superlativa como “homem-discurso”. No caso, o jornalista se referia ao também jornalista e político Carlos Lacerda, um dos principais algozes do então presidente Getúlio Vargas. Lacerda – ou Corvo, como era conhecido – era dotado de uma verve tão apaixonada quanto inflamada não apenas ao falar, mas também ao escrever. Não por acaso, uma de suas biografias se chama “O Demolidor de Presidentes”.

[b] – Preparando um Discurso:

A preparação de um discurso requer inúmeros cuidados, principalmente porque suas variações dependerão dos resultados que o orador pretende obter e do público ao qual ele irá se dirigir, como adverte Joly. “A emoção, a necessidade de tocar fundo os atos humanos, é uma característica marcante”, enumera Cortez.

Mesmo com essas subjetividades, de acordo com Bôsco, é possível elaborar uma lista das principais características de um discurso retórico, que deve:

  • Remeter a uma crença das pessoas do auditório;
  • Fabular imagens de realização de quem o escuta;
  • Conter dizeres que enganam porque persuadem por sua verossimilhança com um real possível;
  • Produzir efeitos de espelhamento do outro naquele que escuta;
  • Legitimar memórias, desejos imaginários, valores de verdade;
  • Fomentar a capacidade de um ser de sentir-se realizado;
  • Conter dizeres que deixam escapar vestígios da imaginação de quem ouve, que revelam seus saberes;
  • Provocar no ouvinte sensações de poder.
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