A Iniciação Real e a Morte do Ego – Parte II

Memento mori, o recado que todo homem deveria lembrar - El Hombre

O que era Kykeon?

Qual poderia ser um elemento final mais apropriado para essas celebrações dos estados em mudança da natureza e do potencial agrícola do que consumir o kykeon, uma bebida geralmente à base de grãos que foi entendida como indutora de estados visionários.

Refletindo sobre as qualidades visionárias do kykeon, um iniciado descreveu o que aconteceu poeticamente:

“À meia-noite, vi o sol brilhando sob uma luz branca brilhante.”

Ao se unirem para unir, dançar, consumir a poção kykeon e se deleitar com seus efeitos reveladores, ​as pessoas que participaram promoveram um poderoso senso de conexão com amigos, família e o mundo em geral. Nesse sentido, os Mistérios forneceram um antídoto poderoso para sentimentos de isolamento, depressão e privação social.

O Kykeon é famoso por seu uso nos Ritos de Deméter, na cidade de Elêusis, onde foi usado pelos iniciados para experimentar o mistério da morte e do renascimento no ritual que passou a ser conhecido como Os Mistérios Eleusinos.

O Kykeon era diferente de uma bebida comum, pois possuía propriedades altamente psicoativas, provocadas por um fungo parasitário que cresce nos grãos de cevada e centeio que contém os alcaloides ergotamina. Segundo Hofmann, a ergotamina era o ingrediente psicoativo que alimentava os mistérios eleusinos.

MD, PHD, Albert Hofmann foi um cientista suíço, é mais conhecido como o “​pai” do LSD. Ao trabalhar no isolamento de princípios ativos presentes no fungo ergôt, sintetizou o Ácido Lisérgico obtido a partir da hidrolisação da ergotamina (substância obtida no fungo).

Era o que ​permitia aos iniciados nos Mistérios alcançar uma compreensão mais completa de seus objetivos na vida e para encerrar o medo da morte, como testemunhos de escritores antigos que participaram dos Mistérios atestam.

Entre os participantes estavam Sócrates, Aristóteles, Sófocles, Plutarco, Cícero, Platão, entre muitos outros, Platão menciona os mistérios especificamente em seu diálogo sobre o Fédon, alegando que somente aqueles que foram iniciados podem morar com os deuses. Foi sugerido que o Fédon lida com a imortalidade da alma, que Platão queria dizer que apenas os iniciados desfrutariam de uma vida após a morte gratificante. No contexto do diálogo, no entanto, parece mais provável que ele quis dizer que ​apenas os iniciados tinham uma compreensão dos assuntos mais importantes da vida enquanto viviam. Outros escritores antigos, como Plutarco, apoiariam essa interpretação. Ele escreveu que, depois de iniciado, perdeu o medo da morte e se reconheceu como uma alma imortal. O ingrediente psicoativo do ergot no kykeon, combinado com o ritual no subterrâneo Telesterion, produziu um evento de mudança de vida nos comunicantes. Os ritos de Deméter tinham uma importância incrível para aqueles que participavam deles, e kykeon foi a chave que abriu a mente daquele povo aos segredos de seus deuses.

Plutarco escreveu:

“Por causa das promessas sagradas e fiéis dadas nos mistérios … mantemos firmemente por uma verdade indubitável que nossa alma é incorruptível e imortal … quando um homem morre, ele é como aqueles que são iniciados nos mistérios. Toda a nossa vida é uma jornada por caminhos tortuosos, sem saída. No fim, surgem terrores, angústia medo e pânico. Então uma luz que se move ao seu encontro, prados puros que o recebem, cantos e danças e aparições sagradas.”

Dentro do templo escuro, os participantes tiveram que exclamar: “Eu jejuei, bebi o kykeon”. O que acontecia depois é, como o nome do evento sinaliza, mistério. No Fedro Platão apresenta este relato:

“Com uma companhia abençoada, nós seguimos na carruagem de Zeus e outros na de algum outro deus … vimos a  verdade e as visões divinas, e fomos iniciados naquilo que é justamente chamado o mais sagrado dos mistérios, que celebramos em um estado de perfeição … sendo permitidos como iniciados à visão de aparições perfeitas, simples, calmas e felizes, que vimos à luz pura, sendo puros e não sepultados naquilo que carregamos conosco e que chamamos de corpo, em que somos presos como uma ostra em sua concha.”

Assim, é bem claro que os psicodélicos tenham inspirado o dualismo mente, corpo predominante no Ocidente, não apenas na filosofia, mas também na religião: a influência de Platão no cristianismo era substancial. Nietzsche chegou a afirmar que “o cristianismo era platonismo para o povo”. Independentemente da validade ou não dos argumentos de Platão, seu pensamento visionário esclareceu nossa cultura. Através de uma caverna sombria, Platão veio a ver a luz e esse raio de sol da filosofia, ciência, razão e o próprio “Mito da Caverna”  surgiu da experiência Iniciática psicodélica.

Agora, se olharmos para culturas que usaram plantas psicoativas em rituais religiosos ou xamânicos por milênios, há uma constante nos ritos de provocar uma ​experiência de morte (EQM) e renascimento, o que às vezes é chamado de morte simbólica, descida ao submundo ou V.I.T.R.I.O.L.

A experiência psicodélica está profundamente ligada à experiência e ao conhecimento da morte.

Isso ficou evidente para o Timothy Leary, Ph.D., professor de Harvard, psicólogo, neurocientista, escritor e futurista, que na década de 1960 modelou a experiência psicodélica em torno do Livro Tibetano dos Mortos, ou o Bardo Thodol, o texto milenar do budismo tibetano que lida com a navegação pelos mundos intermediários (bardos) que continuam até o mundo dos mortos. Escatologia budista, na qual se acredita que a continuidade da mente está além deste plano da realidade.

Leary nos diz que os psicodélicos poderiam ser usados ​​como uma bússola para navegar por esses planos sutis da realidade, que emulavam os mundos intermediários ou zonas liminares que os místicos haviam atravessado antes.

A chave para uma experiência psicodélica e uma experiência mística, sugere Leary, é a morte do ego.

Na alquimia, a primeira etapa do processo alquímico é Nigredo, a morte do velho para que (dessa massa putrefata) nasça algo novo e melhor. A queda da árvore seca para nasça uma árvore nova. A queda do ego para o nascimento do homem natural, o homem divino.

Como em Elêusis ou nas meditações budistas, na yoga, no Vipassana e nas diversas outras práticas de expansão da consciência, o que se pode aprender em uma genuína experiência psicodélica é que a única coisa que pode realmente morrer é o ego, essa personalização ilusória, e esse é apenas o primeiro passo da experiência com a realidade que se esconde por trás de nossos condicionamentos e sistemas de crenças.

No entanto, as nuvens escuras acabaram por obstruir o sol com o surgimento de um cristianismo militarista. Em 392 dC, os templos eleusinos foram fechados por decreto pelo imperador romano cristão Teodósio I. Com isso, a Idade das Trevas começa, escondendo a luz do pensamento pagão ou secular, apenas para retornar com o Renascimento e depois com o Iluminismo.

A Morte do Ego

Morte do ego é uma “perda completa de auto identidade subjetiva”. O termo é utilizado em vários contextos entrelaçados, com significados relacionados. Na psicologia junguiana, o sinônimo termo​ morte psíquica é usado, que refere-se a uma transformação fundamental da psique. Na morte e na mitologia, o renascimento e morte do ego é uma fase de auto-entrega e de transição, como descrito por Joseph Campbell , em sua pesquisa sobre a mitologia da Jornada do Herói . É um tema recorrente na mitologia do mundo e também é usado como uma metáfora em algumas correntes do pensamento ocidental contemporânea.

O conceito também é usado na espiritualidade contemporânea e na compreensão moderna das religiões orientais para descrever uma perda permanente de ​”apego a um sentido separado de si mesmo” e ​egocentrismo. Esta concepção é uma parte influente dos ensinamentos de Eckhart Tolle, onde o Ego é apresentado como um acúmulo de pensamentos e emoções, continuamente identificados com, o que cria a ideia e sentimento de ser uma entidade separada, e só por desidentificação, a consciência pode verdadeiramente estar livre do sofrimento (linha filosófica budista).

Nossas consciências são como água cheia de barro agitada numa jarra de vidro. O Budismo chama isso de “mente nublada”, na qual é impossível enxergar de forma clara. Essa agitação sempre nos impossibilita de compreender melhor nossos sentimentos e reagir de uma forma mais adequada, gerando, assim, mais confusão e inquietude.

Através da experiência de morte do ego e, pela prática de diversas formas de expansão de consciência se aprende a aquietar essa água para que todo o barro assente e, enfim, possamos ver do outro lado.

O que resta quando removemos o ego, é a consciência real e imortal, diriam os místicos de todas as idades.

O ego não existe por si só. Se você meditar profundamente sobre um determinado ego (“eu”), vai perceber que ele se desvanece como uma nuvem. Ele não possui essência, não tem nada de concreto, é apenas uma associação de pensamentos que adquire uma personalidade própria. É como um fluir de pensamentos e emoções que se enredam e assumem a ilusão de ser alguma coisa real. Todos os egos são apenas associações de pensamento, assumem uma personalidade e quando estão no comando temos tanta certeza de sua existência que pensamos: este sou eu, eu sou assim, eu quero isso, eu não quero aquilo, é minha opinião. Porém, nada mais falso, são apenas pensamentos agrupados e associados que assumem vida própria e por alguns momentos acabam por assumir o comando.

Importantíssimo entender que a verdadeira iniciação, é uma morte momentânea do ego, uma abstração dos sentidos, dos pensamentos e da racionalização, uma expansão da consciência ilimitada do ser. O ego/personalidade é o nosso software/papel teatral, é essencial para atuação dos personagens no palco tridimensional em que nos encontramos​.

O ego não pode ser morto, pois não existe, é a ilusão de identificação com algum conceito que você criou de si mesmo (personalidade, corpo, status, etc.). Quando você diz que vai matar o ego, é o próprio falando. Quando você diz que se tornará superior ao ego, é o próprio falando. Quando você diz que vai lutar contra ele, é o próprio falando. Qualquer mentalização provém do ego. O que está além é a vontade pura, sem pontes para a expressão. É algo que não se descreve, não se fomenta e não se põe em movimento linear.

Deste modo, quem insiste em querer dissipar o ego está vivendo uma fantasia. Sendo o ego uma característica da mente, tudo o que for do pensamento parte inevitavelmente do mesmo princípio: o ego. Portanto, a ação em si já uma característica “corrompida” pela mente, impedindo que haja a separação, tão aclamada pelo pseudo consciente, entre seu Eu Profundo e o ego. Matá-lo então é um pensamento tolo.

Portanto, matar o ego é impossível, ele sempre existirá, a não ser num estado da não-forma, no estado da divindade em si, do espírito, do total abstrato e subjetivo. Enquanto houver antropomorfização do espírito, a mente persistirá.

O ego é a soma de nossos muitos defeitos psicológicos que vivem em nosso mundo interior, que foram criados e continuam a ser alimentados inconscientemente por nós mesmos.

Esses defeitos se nutrem das energias dos centros da máquina humana. Cada um desses defeitos é chamado também de “eu” ou ainda “detalhe do ego”.

O ego é realmente a causa de nossos sofrimentos, inconsciência, erros, vícios, medos, fraquezas, etc.

No antigo Egito o ego era conhecido como os demônios vermelhos de Seth. No BhagavadGita o ego é simbolizado como os “parentes” com os quais Arjuna, iluminado diretamente pelo Sr. Krishna, deveria travar terríveis batalhas. Na mitologia grega o ego é, entre outros simbolismos, representado pela Medusa, causadora de todo tipo de sofrimento aos homens e que é decapitada pela espada de Perseu. Na Bíblia podemos reconhecer o ego na passagem na qual o divino mestre Jesus pergunta ao demônio que possuía o infeliz geraseno qual era o seu nome, sendo que este lhe responde:

“Meu nome é Legião, porque somos muitos.” (Marcos – 5,1-20).

Também dentro do cristianismo podemos encontrar o ego representado nos chamados sete pecados capitais relacionados por Tomás de Aquino: luxúria, ira, inveja, cobiça, gula, preguiça e orgulho.

Enquanto mantermos em nosso interior essa natureza inumana e selvagem, seremos criaturas limitadas, inconscientes, sofredoras e vítimas das circunstâncias. Se os seres humanos não carregassem dentro de si o ego incontrolável, o mundo seria um verdadeiro paraíso.

Nossa consciência é uma partícula divina, que podemos também chamá-la de Essência.

Conforme escreveu Victor Hugo:

“Escuta tua consciência antes de agir, porque a consciência é a divindade presente no homem.”

A Essência é o que de mais nobre levamos dentro e é imortal. Conforme vamos eliminando os detalhes do ego vamos fortalecendo essa consciência ou alma, já que cada eu mantém aprisionada uma fração de nossa Essência.

Considere cada um, como uma garrafa que mantêm a nossa verdadeira consciência aprisionada. Quebrando a garrafa retorna a nós aquela parcela de consciência que estava presa. É dessa forma que vamos realmente mudar interiormente, substituindo pouco a pouco nossos muitos defeitos e vícios psicológicos por nobres e belas virtudes.

O trabalho da morte do ego é antiquíssimo e sempre foi ensinado à humanidade pelos vários Mestres, Jesus Cristo, Buda, Quetzalcoatl (O Cristo asteca), Hermes Trismegisto no Egito, Krishina entre outros, que vieram para instruí-la, mostrando-lhe os meios para acabar com seus próprios sofrimentos e limitações.

Cada um ensinou a mesma doutrina, porém adaptada ao seu tempo, com seus próprios termos e símbolos. Infelizmente quando o Mestre parte, os homens, manipulados por seus próprios egos, começam a distorcer a doutrina e pouco a pouco o principal se perde ou é oculto da humanidade.

A camada egóica é o primeiro estágio de transição entre o mundo externo finito, e o mundo sútil infinito. O ego está no mundo e a alma experimenta o mundo usando ego como veículo.

“O ego são hábitos da mente. São as identificações equivocadas e os padrões repetidos de pensamento que ocorrem repetidamente, no tempo passado e no tempo futuro(ilusões). O ego que encobre a experiência do ser ontológico. O ego surge, prendendo sua atenção e  puxa você para fora em direção ao mundo limitado temporal, assim refletindo ilusões, em vez de ir para dentro, em direção ao Ser(presente). Isso acontece com tanta freqüência e tão continuamente que a identidade original nunca tem a chance de entender sua natureza real. Você só pode escapar dos hábitos do ego, permanecendo na consciência como consciência(imanência do real). Seja quem você é. Seja como você é. Fique quieto. Ignore todos os hábitos do ego, que surgem na mente e fixe sua atenção no Ser, no agora.

… o ego não existe no agora, pois a mente temporal transcende sua ilusão de tempos que não é você, sua natureza original.” (Annamalai Swam)

Considerações finais

Diante de tudo o que foi exposto, podemos dizer que a experiência iniciática ritualística somada a experiência psicodélica têm como principal orientação e objetivo​, ​induzir um conhecimento experimental da morte​, uma EQM; ​a Verdadeira Iniciação​, um mergulho nas profundezas da Psiquê, uma amostra do Mysterium tremendum et fascinans, um vislumbre da eternidade divina, que sacode o indivíduo, e de alguma forma experimenta e entende o ​significado da morte na epifania psicodélica, com a experiência bioquímica na qual ele eleva a consciência cumprindo o papel de Hermes. O psicopompo do submundo que leva Perséfone de volta ao mundo superior, através do grande limiar da existência humana e em suas visões ou nas didáticas teatrais psicodramáticas de Elêusis,​o mistério filosófico da morte é revelado​.

Do mesmo modo, essa Tecnologia/Pedagogia do supra-mundo, somada aos ​símbolos, alegorias e psicodramas e ​transmissão de conhecimentos sistema mestre discípulo​, a experiência de quase morte (EQM) ou a experiência psicodélica, desencadeia uma transformação profunda e na maioria das vezes irreversível.

Acreditamos que essa transformação ocorreu devido à beleza e profundidade do que foi vivenciado (e entendido) em Elêusis. Escreveu o poeta Pindar

“Bem-aventurado aquele que viu essas coisas
antes de deixar a terra:
porque ele entende o fim da vida mortal
e o começo de uma nova vida, dada na divindade.”

Em várias tradições, quem conhece a morte, quem retornou de seu domínio ou que ​foi iniciado nos seus segredos é considerado alguém especial, que leva a marca do xamã, do místico, do profeta, do mestre, no sentido de poder orientar (direcionar para o Oriente) e conduzir os novos aprendizes neófitos, pois já mergulhou nas profundezas de si mesmo, não através de símbolos incompreendidos, ritualísticas automatizadas e alegorias desapercebidas, mas através da ​iniciação real, a morte Iniciática, e consequentemente sua “ressurreição”, a experiência em si resulta no conhecimento de si mesmo. Essas histórias de morrer e renascer se repete nos mitos e refere-se a essa ​iniciação “Real”.

O conhecimento de si mesmo, o ​desbastar da Pedra Bruta, é o primeiro passo para a “educação” do ego/personalidade. Através dessa “morte” momentânea, damos um “reboot”, um novo início, conscientes dos condicionamentos, preconceitos e fanatismos que acumulamos através de nossa formação humana normótica.

Primeiro o ​VITRIOL​, em seguida ​erguer templos a virtudes, e cavar masmorras aos vícios, vigilantes e perseverantes.

Não é totalmente difícil entender que a morte confere poder sobre os outros e também sobre a própria vida, talvez porque diante do conhecimento da imortalidade se perca o medo e a ansiedade que caracterizam os mortais, justamente porque eles pensam que são mortais. ​Aqueles que beberam do elixir da vida eterna se tornam imortais.

Para platonistas e budistas, manter a morte em mente é o fundamento da ética individual, pois a vida encontra seu significado na morte ou pelo menos a possibilidade de sua transcendência.

No caso da filosofia platônica, a morte, como Sócrates sugere, é a possibilidade de separar os impuros dos puros e elevar a alma a um estado beatífico de unidade com os deuses e as formas da eternidade. Esse estado de pureza contemplando a justiça, a bondade e a beleza, e agindo de acordo com estas noções mais altas que advêm da ideia do bem.

Também se sabe que uma das práticas espirituais de linhas específicas de monges budistas e yogues hinduístas é contemplar imagens de cadáveres, lembrando-lhes que a existência é impermanente (​memento mori), que o corpo é perecível e que eles têm uma oportunidade inestimável para finalmente transcender a morte ainda em vida.

Segundo Manly P. Hall, o que foi ensinado em Elêusis foi que a alma humana era a fênix, o misterioso pássaro de fogo renascido de suas cinzas. E simbolicamente, o ensinamento de que precisamos morrer para acessar nossa essência divina (ou simplesmente vislumbrar a realidade por trás do “véu de Maya” e da ilusão da ignorância).

Como escreveu o iniciador João Batista, nosso Patrono, que oferecia às margens do rio Jordão, a Iniciação Real através da prática essênia do afogamento ritualístico:

“Somente quem nasceu de novo terá acesso ao reino dos céus.
Mas para nascer de novo, é necessário estar disposto a morrer.”

O INICIADO

De um ponto de vista psicológico, o iniciado deve abandonar os anseios regressivos que demandam a eterna e passiva felicidade do útero, pelo Êxtase da Iluminação. Através deste processo, o homem livra a si mesmo de suas amarras inconscientes e, desta forma, libera e purifica suas energias mais profundas para realizar sua Verdadeira Vontade. Muitos vivenciam este processo como uma morte a perda do mundo infantiloide do ego criança e dos desejos que nunca tiveram a vontade ou a força para realizarem a si mesmos.

O homem não redimido está adormecido e simplesmente se debate em suas fixações inconscientes, acreditando nos sonhos da infância, aos quais se apega fixamente por meio dos ergs da natureza, para sempre sob sua inquieta misericórdia.

Para ser transformado, o homem em sua forma mais inferior deve encontrar uma energia despertadora em alguma fonte mais elevada. Esta força é o Gênio Superior, despertado e sustentado através dos rigores da preparação, culminando em iniciação.

O iniciado cria a si mesmo desde Si Mesmo, e através disto ele é rejuvenescido. Finalmente, o iniciado pronuncia e grita, seu próprio nome, aquele que ele finalmente escolheu para simbolizar sua Verdadeira Vontade. Este é seu renascimento. Mas mais ainda, pois ele não é o mesmo homem, mesmo em sua aparência física, pois para alguns isto também muda.

Para muitos, o nascimento do iniciado pode ser visto como a aurora de um Novo Sol. É o resultado do Velho Sol sendo devorado pelo Mar, fertilizado e prenhe, dando nascimento ao Novo Sol – A Aurora Dourada.

Israel Regardie
(What you should know about the Golden Dawn)

A Prudência nos alerta para encerrar por aqui.

Autor: Geovanne Pereira

Geovanne é professor de Filosofia, psicanalista, Mestre Maçom da ARLS Jacques DeMolay, n°22 – GLMMG e, para nossa alegria, também um colaborador do blog.

*Clique AQUI para ler a primeira parte do texto.

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O caráter secreto das Ordens de Mistério

Henryk Siemiradzki : Phryne em Poseidonia, em Eleusis, 1889

Nas Ordens de Mistério da Antiguidade, sempre houve uma nítida separação entre o iniciado e o profano. Do iniciado exigiam-se severos votos de segredo. A publicação dos segredos, além de fazer os ensinamentos recaírem sobre ouvidos moucos, representava perigo para a sociedade iniciática, uma vez que, sendo um grupo pequeno e seleto e, muitas vezes, possível vítima de detração por parte da sociedade, expunha-a a perseguições políticas potencialmente fatais, como, por exemplo, aquela de que foi vítima a Escola de Crótona, fundada por Pitágoras.

A exigência do silêncio sobreviveu aos tempos. Começando nos Mistérios da Antiguidade, perpassou pelas corporações de pedreiros da Idade Média até as Ordens que, já existindo no fim da Renascença, ainda hoje subsistem. A tradição de manutenção do segredo quanto aos ensinamentos internos é, assim, bastante antiga.

Neste texto, ilustro com fragmentos de textos antigos quatro evidências documentais (todas as traduções dos originais são minhas). Os documentos são dois textos do Corpus Hermeticum, mais precisamente o Asclepius, de que só nos resta a versão latina, e o Poimandres, em sua versão grega original, ambos relacionados ao Hermetismo; o livro De Iside et Osiride, de Plutarco, sobre os Mistérios Isíacos; o Manuscriptus Regius, do século XIV, das corporações de pedreiros; finalmente, The Anderson’s Constitution, do século XVIII, primeiro documento oficial da Grande Loja Maçônica da Inglaterra. Evidentemente os documentos históricos, todos de domínio público, mencionam o caráter secreto das ordens iniciáticas, não os seus segredos. Como diz Mircea Eliade (vide ELIADE, Mircea: A History of Religious Ideas, 1:294), “os ritos dos Grandes Mistérios, os verdadeiros segredos das iniciações (teletai) e a iluminação (epopteia) nunca foram divulgados” [the rites of the Greater Mysteries (…) the true secrets of the teletai (initiation proper) and the epopteia (the culminating vision) have never been divulged]. Lembre-se de que os Mistérios dividiam-se em Mysteria Minora e Mysteria Maiora.

No tratado hermético Asclepius, um dos tratados do Corpus Hermeticum, de Hermes Trimegisto [vide SCOT, Walter (ed.): Hermetica: The Ancient Greek and Latin Writings Which Contain Religious or Philosophical Teachings Ascribed to Hermes Trimegistus. Shambhala. Boston, 1993], a personagem Asclepius pede a Trimegistus que permita chamar Amon, para que este possa ouvir, junto com Asclepius, os ensinamentos que Trimegistus iria passar. Trimegistus termina seu prólogo pedindo que Asclepius chame Amon e ninguém mais e que, após receber os ensinamentos, mantenha silêncio sobre eles:

“Além de Amon, chama ninguém mais, para que um discurso tão religioso sobre tantas coisas não seja violado pela intervenção e presença de muitos. Com efeito, é de uma mente irreligiosa publicar, pela consciência de muitos, um tratado pleníssimo de divindade em toda majestade.”

Acredita-se que o Asclepius, pelo menos sua parte inicial à qual faço referência, foi escrito por volta do ano 100 a.C., o que indica que seu conteúdo é ainda mais antigo. Escrito originalmente em grego, provavelmente por algum professor de Alexandria, resta-nos apenas a sua versão latina, recolhida por Marsilio Ficino no século XV.

É comum encontrar a ideia de que o termo religiosum, isto é, “religioso”, deriva do verbo religare, que significa “religar”, dando-se a entender uma suposta “religação” do Homem com a Divindade. Essa ideia é falsa. Na verdade, a associação de religiosum a religare foi feita por Lactâncio e especialmente por Santo Agostinho em sua obra Retractationes, I, 13, no século IV de nossa Era. Santo Agostinho, já adepto do dogma da queda de Adão do Paraíso, encontrou nessa associação uma excelente justificativa para a imposição do dogma da queda e do consequente retorno do Homem a Deus pela óbvia intermediação da Igreja. Etimologicamente, porém, religiosum significa “aquele que cumpre sua obrigação”. Que esse é o significado verdadeiro é comprovado por Cícero, no século I a.C. e, portanto, mais de 400 anos antes de Santo Agostinho, em sua obra De Natura Deorum, II, 72, na qual se afirma que religiosum deriva do verbo relegere, que significa “reler”. Com efeito:

“Todos aqueles, porém, que pertencessem ao culto divino diligentemente repetissem como se relessem, são ditos religiosos por reler, assim como elegantes por eleger, cuidadosos de cuidar, inteligentes de inteligir; por tudo isso, efetivamente, em todas essas palavras jaz o mesmo valor de ler que em religioso.”

“Religioso” é, então, “aquele que cumpre os atos do culto divino” e que, por assim dizer, “relê atentamente o ritual” [vide ABBAGNANO, Nicola (1982): Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou, São Paulo, p. 814].

Portanto, quando Trimegistus diz que somente uma mente irreligiosa seria capaz de revelar ao público os segredos contidos em seu discurso, ele quer dizer que o verdadeiro iniciado, aquele que cumpre cuidadosamente seu dever ritualístico, jamais quebrará o voto de segredo. Sua explicação é que a mente profana é irreligiosa, ou seja, o profano é aquele que, não sendo um iniciado, não cumpre ritual algum e, por conseguinte, não está apto a compreender os ensinamentos herméticos.

Corpus Hermeticum possui outro tratado importante, o Poimandres [vide Scot (1993) supra], uma palavra grega que significa Pastor de Homens. No tratado, Asclepius, após mergulhar na reflexão profunda sobre as coisas divinas, tem uma visão na qual um ser gigante e luminoso, que se apresenta como Poimandres, lhe aparece e lhe transmite os ensinamentos herméticos. Já quase no final do tratado, no livro XIII (22b), Poimandres roga que Asclepius preserve silêncio sobre tudo que lhe foi transmitido acerca do renascimento, a quebra dessa promessa sendo vista como traição e geradora da desordem no mundo:

“Tendo aprendido isto de mim, promete o silêncio quanto à verdade, ó filho, e não revelar a qualquer outra criatura a instrução do renascimento, para que, desse modo, não sejamos considerados destruidores do universo.”

Traduzi παράδοσις (que no trecho está no acusativo singular) por “instrução” e não por “transmissão”. Isso porque o sentido é de transmissão oral ou escrita de uma doutrina ou de uma tradição religiosa [vide BAILLY, Anatole (2000): Dictionaire Grec-Français. Hachette, Paris, p. 1461]. Cri, assim, ser mais fiel ao sentido do texto e à doutrina da reencarnação professada pelos antigos hermetistas.

Plutarco, em seu tratado sobre os Mistérios de Ísis e Osíris (N.B.: clique AQUI para ler artigo sobre esse tema), mostra as similitudes entre os ritos de vários povos, argumentando que todos se referem a uma mesma Verdade universal. No final da seção 25, em particular, Plutarco compara o mito grego de Deméter ao mito egípcio de Osíris e Tífon (ou Seth) e mostra que têm o mesmo significado. Logo em seguida, ele menciona que o mesmo ocorre com todas as coisas que são vedadas aos olhos e ouvidos da multidão e que são veladas em ritos e cerimônias:

“Tanto as coisas que são encobertas pelos ritos místicos quanto as coisas que se preservam, pelos iniciados, não ditas e ocultas para a multidão têm uma explicação similar.”

Escrito por volta de 1390, o Manuscriptus Regius é a primeira versão do que se costumou designar as Old Charges, ou “Antigas Obrigações”. O Manuscriptus Regius é composto de quinze artigos. Nele existem ainda as chamadas constituições adicionais, compostas de quinze pontos ou dispositivos. Com relação à condição de se guardar segredo, é interessante reproduzir o terceiro ponto adicional (versos 275–286) do Manuscriptus Regius:

“Terceiro ponto: e com os aprendizes bem o saibas, ser o terceiro ponto o mais severo: A resolução de seu mestre ele mantenha e guarde e a de seus companheiros, por seu bom propósito; os segredos da câmara diga ele a homem nenhum nem qualquer coisa que na Logia façam; o que quer que ouças ou os vejas fazer, dize-os a homem nenhum aonde quer que vás; a resolução da assembleia e a da câmara, guarda bem, por magna honra, caso não queiras expor-te à reprovação e trazer à confraria grande vergonha.”

Constituição de Anderson (1723), no capítulo VI, que trata da conduta, aborda o tema do segredo particularmente no item 4º, que versa sobre a conduta que se deve observar diante daqueles que não pertencem à Ordem:

“4. Conduta em presença de estranhos não Maçons: Sereis cuidadosos em vossas palavras e obras, de modo que o mais perspicaz profano não seja capaz de descobrir ou de se aperceber do que não é próprio ser conhecido, e por vezes devereis mudar o rumo de uma conversação e administrá-la prudentemente, para a honra da venerável Fraternidade.”

Não foi, obviamente, minha intenção aqui escrever um ensaio completo e acadêmico sobre o caráter de secrecy das ordens de Mistério ao longo do tempo, mas apresentar algumas poucas, porém significativas, evidências literárias.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Fonte: Medium

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A Iniciação Real e a Morte do Ego – Parte I

Eu sou de Plutão, baby.. Tudo soa tragédia grega mas na real eu ...

असतो मा सगमय
Asato ma sat gamaya
Do ilusório conduz-me ao real

तमसो मा योतगम य ।
Tamaso ma yiotir-gamaya
Das trevas à Luz

मृयोमाअमतृ ंगमय ।
Mritior-ma amritam gamaya.
Da morte à Imortalidade.

(Brhadaranyaka Upanishad — I.iii.28)
Mantra(Oração) Védico Milenar

A verdadeira Iniciação é aquela que obriga o homem a descobrir por si mesmo o que não pode, desde logo, ser desvendado diante de seus olhos, nublados pelos densos véus da matéria em que se acha envolvido. Daí o mantra: “Do ilusório conduz-me ao real, das trevas à luz, da morte à imortalidade” (Professor Henrique José de Souza)

Introdução

A Maçonaria foi descrita como uma continuação dos vários cultos de Mistério que floresceram na Roma antiga, Egito, Pérsia e especialmente na Grécia antes de serem indiscriminadamente suprimidos em favor da nova, crescente religião cristã. O ilustre irmão Albert Pike chegou ao ponto de declarar que “a Maçonaria é idêntica aos mistérios antigos”, embora mais tarde ele tenha acrescentado que isso é verdade apenas em uma extensão limitada. Pois, na estimativa de Pike, a Maçonaria é mas uma imagem imperfeita do brilho dos mistérios, as ruínas apenas de sua grandeza e um sistema que sofreu alterações progressivas, frutos de eventos sociais, circunstâncias políticas e a ambiciosa imbecilidade de seus melhoradores.

O ponto central desses mistérios, sejam eles de natureza solar ou agrária, era a doutrinação e revelação de seus participantes em relação à realidade da divindade e à imortalidade da alma. Como o ilustre irmão Albert Mackey explicou:

O objetivo da instrução em todos os mistérios era a Experiência Mística, e a intenção das cerimônias de iniciação, era por uma representação cênica da morte e subsequente restauração da vida, impressionar as grandes verdades da ressurreição dos mortos e a imortalidade da alma.

Na maioria dos casos, essas doutrinas parecem ter sido transmitidas por meio de uma dramatização ritualizada complexa dos mitos e lendas tradicionais que cercam a divindade central do culto, em que o próprio candidato era muitas vezes corporificado à divindade, sofrendo suas provações, morte e ressurreição, em alguns casos, até encenando os empreendimentos da divindade enquanto peregrinava pela Terra dos Mortos. Foram precisamente essas reconstituições ritualizadas que, na maioria das vezes, constituíram as várias cerimônias da Iniciação nos mistérios antigos, cuja conclusão o fez de verdade um membro do culto aos Mistérios.

Em algum momento em meio ao nevoeiro do tempo, perdemos um aspecto que provavelmente era definitivo na conformação intelectual e espiritual dessas culturas.

Onde os gregos obtiveram a substância de seu conhecimento? Aquilo que em seu aspecto mais profundo os revelam como mestres iniciados nos mistérios da alma e do cosmos?

A tradição afirma que, do Egito, beberam os mistérios órficos e os pitagóricos. Platão e Pitágoras teriam obtido os segredos filosóficos dos Mistérios Egípcios.

Essa visão da história nos faria acreditar que a filosofia, e em geral o pensamento crítico e o conhecimento validado objetivamente, nasceu na Grécia quase por geração espontânea, libertando-se da superstição religiosa de todas as outras culturas do passado. No entanto, a tradição daqueles mais próximos de Platão, seus contemporâneos e a escola místico-filosófica que desenvolveu seus ensinamentos nos dizem que Platão era primariamente um místico, um iniciado e um teólogo e que sua filosofia não é tão original quanto pense, mas é o refino intelectual de uma antiga tradição esotérica. Marsilio Ficino, o grande tradutor de Platão para o latim, nos diz que seu ensino pode ser chamado de “uma teologia”, uma vez que “qualquer assunto que ele aborda, seja ética, dialética, matemática, rapidamente o completa, em espírito de piedade, e o leva à contemplação e veneração de Deus”.

Em seu livro Os Mistérios Eleusinianos e Báquicos, Thomas Taylor nos diz que Platão considerou que

“o grande desígnio dos Mistérios … era nos levar de volta aos princípios dos quais descemos … uma experiência perfeita do bem espiritual.”

Cícero não podia dar maior estima aos mistérios:

“De todas as excelentes e verdadeiramente divinas instituições que Atenas trouxe e contribuiu para a vida humana, nenhuma, na minha opinião, é melhor que os mistérios. Isso ocorre porque através deles crescemos além do modo selvagem de existência em que fomos educados e refinados para um estado civilizado; e como os ritos são chamados de iniciações, aprendemos verdadeiramente sobre o início da vida e ganhamos força não apenas para viver feliz, mas para morrer com esperança.”

Os Mistérios Iniciáticos de Elêusis

Elêusis era uma pequena cidade da baía cerca de 15 milhas a noroeste de Atenas. Começando tão cedo quanto o século XV a.C., um culto agrícola da deusa Deméter está associada com a localização. É este culto da fertilidade provincial que cresceu em tempos
helenísticos para se tornar o mais importante dos grandes mistérios. O notável historiador Walter Burkert explica que esses mistérios não eram entidades religiosas para além do contexto mais amplo do paganismo antigo, mas sim eram tangencial e primordial para os que os desejavam.

“Os Mistérios eram rituais de iniciação de caráter voluntário, pessoal e secreto que visa uma mudança de mente através da experiência do sagrado.”

Por mais de mil anos os mistérios eleusinos fariam parte integrante da vida religiosa de Atenas. Anualmente, no outono, formava-se um novo grupo de mystai (candidatos a Iniciação, semelhante aos nossos recipiendários).

O que ocorria no interior do santuário era mantido em segredo, Nesses mistérios, criptografados pelo mais alto sigilo, foram realizados um tipo de drama psico-cósmico e psicodramático. Muito provavelmente, os mystai encenavam a estada de Deméter em Elêusis. Como em toda iniciação antiga, esses rituais eram assustadores. Os mystai sabiam que os ritos e o mito eram símbolos: se lhes perguntassem se havia suficientes evidências históricas da visita de Deméter a Elêusis, achariam a pergunta um tanto descabida. Mythos (uma narrativa tradicional cujo objetivo é explicar a origem e existência das coisas) e a Theología (o estudo da existência de Deus, das questões referentes ao conhecimento da divindade, assim como de sua relação com o mundo e com os homens.) e, como todo discurso religioso, só fazia sentido no contexto dos disciplinados exercícios que lhe davam vida. O fato de não ser interpretado literalmente tornava o mito mais eficaz. “O que é subentendido (mas não expresso abertamente) é mais assustador”, explica Demétrio, escritor helenístico.

“O claro e manifesto é facilmente desprezado, como o homem nu. Portanto, os mistérios também são expressos na forma de alegoria, a fim de provocar consternação e pavor, e por isso têm lugar na escuridão, à noite. Através dos ritos, os mystai partilhavam o sofrimento de Deméter. Seu culto mostrava que não existe vida sem morte. As sementes têm de ser lançadas nas profundezas da terra para poder produzir o alimento que dá vida, portanto, Deméter, deusa do trigo, era também senhora do mundo subterrâneo.”

Os mistérios obrigavam os iniciados a encarar a própria mortalidade, vivenciar o terror da morte e aprender a aceitá-la como parte integrante da vida.

O processo era duro e exaustivo. Começava em Atenas, onde os mystai jejuavam durante dois dias inteiros, sacrificavam um leitão em homenagem a Perséfone e, numa imensa multidão, davam início à longa caminhada até Elêusis. A essa altura, estavam fracos e apreensivos. Os epoptai (significa “aquele que vê as coisas tais quais são”), iniciados no ano anterior, os acompanhavam, insultando-os e ameaçando-os, enquanto hipnóticas evocações de Dioniso, o deus da transformação, levavam a multidão a um frenesi. A caminhada até Eleusis terminava ao anoitecer. Confusos, eufóricos, exaustos e assustados, os mystai eram conduzidos de um lado para outro pelas ruas da cidade, à luz trêmula das tochas, até que, completamente desorientados, mergulhavam por fim na escuridão absoluta da sala de iniciação. Então, dentro das paredes do complexo, os iniciados foram tomados através de um processo de iniciação que envolve, três elementos:

  • o Drómena ( “Drama”);
  • o Legómena ( “provérbios”); e
  • o Deiknýmena ( “Resultados”).

O primeiro, Drómena, era uma encenação do mitologema das deusas: de archotes em punho, os Iniciados encenavam a busca de Deméter por Perséfone . […]

O segundo aspecto diz respeito aos Legómena, a saber, determinadas fórmulas litúrgicas e palavras reservadas aos Iniciados, fórmulas e palavras que eles certamente repetiriam, daí a necessidade de saber grego. […]

O terceiro e último componente da iniciação são os Deiknýmena, vocábulo que só se pode traduzir por “ação de mostrar ou o que é mostrado, uma revelação”. Trata-se, segundo se crê, de uma contemplação por parte dos Iniciados. (BRANDÃO, 1986, p. 299-301).

George E. Mylonas, autor do livro Eleusis and the Eleusinian Mysteries, define o mistério Iniciático de Elêusis :

“Seja qual for a conteúdo e significado dos Mistérios, permanece o fato de que o culto de Elêusis satisfez os anseios mais sinceros e os desejos mais profundos do coração humano. Os iniciados retornam de suas peregrinações a Elêusis cheios de alegria e felicidade, o medo da morte diminuiu, e a esperança reforçada de uma vida melhor no mundo das sombras.”

E Píndaro cantou:

“Feliz aquele que viu isto antes de morrer. Conhece o término da vida, e conhece também o começo.”

E clama Sófocles:

“Oh três vezes felizes os mortais que, depois de contemplarem estes mistérios, partam a morada de Hades: somente eles poderão ali viver; para os demais, tudo será sofrimento.”

Não se ensinava nenhuma doutrina secreta na qual os mystai tivessem de “acreditar”. A “revelação” era importante somente como a culminância da intensa experiência ritualística Num esplêndido resumo do processo religioso e espiritual, Aristóteles escreveria posteriormente, que os mystai iam a Eleusis não para aprender (mathein) alguma coisa, mas para viver uma experiência (pathein) e uma mudança no estado mental (diatethenai). Parece que os ritos causavam uma profunda impressão.

Era impossível os mystes não ficarem atordoados com uma cerimônia tão “imponente pela beleza e pela magnitude”, escreveu o retórico grego Dion de Prusa, 117 d. C.), eles tinham

“muitas visões místicas e ouvia muitos sons do mesmo teor, enquanto escuridão e claridade se alternavam bruscamente e ocorria um sem-número de outras coisas”, era impossível “não sentir nada na alma, não imaginar que existe uma inteligência maior ou um plano mais sábio em tudo que acontece.”

Para o historiador Plutarco (c. 46-120 d.C.), a iniciação era uma amostra da morte:

“Começava com a dissolução dos processos mentais do indivíduo, com desorientação, caminhos assustadores, que aparentemente não levavam a lugar algum, e, pouco antes do final, pânico, tremor, suor e espanto. Mas, então, uma luz maravilhosa […] regiões e prados puros estão ali para nos receber com sons e danças, e palavras solenes e sagradas, e santas visões.”

O drama concebido meticulosamente conduzia os mystai a uma nova dimensão da vida e
os punha em contato com um nível inconsciente e mais profundo da psique. Assim, no final, muitos se sentiam totalmente mudados, “Deixei a sala do mistério, sentindo me um estranho para mim mesmo”, lembrou um mystes.

Eles já não temiam a morte: alcançaram o ekstasis, o “sair” de seu eu prosaico, e, por um breve tempo, experimentavam algo semelhante à beatitude dos deuses. Mas nem todos se saíam bem nesses jogos rituais.

O filósofo ateniense Proclo (c. 412-85 d.C.) relata que alguns mystai ficavam tomados de pânico na parte mais sombria do rito e permaneciam aprisionados em seu medo; não eram suficientemente hábeis nesse jogo ritual de faz de conta. Outros, porém, chegavam a uma sympatheia (sofrer ou sentir juntos), uma afinidade que os incorporava ao ritual, fazendo-os perder-se nele “de uma forma ininteligível para nós e divina”. Seu ekstasis era
uma kenosis, um esquecimento de si mesmo que lhes permitia “assimilar-se aos símbolos
sagrados, despojar-se da própria identidade, fundir-se com os deuses e experimentar a possessão divina”.

Interpretações como a de Thomas Taylor, o tradutor mais importante da filosofia platônica e neoplatônica na história, ou a do pesquisador místico, célebre pensador, conferencista, mundialmente reconhecido por centenas de trabalhos publicados dedicados à religião comparada, filosofia, e tradições esotéricas e iniciáticas, o Ir.’. 33° Manly P. Hall , também nos conta que

“os mistérios produziam uma experiência de quase morte no neófito, uma verdadeira iniciação, no o que o fez entender e experimentar de alguma maneira íntima e indescritível, a imortalidade ou a noção de que a alma continuava após a morte”.

Sabemos de outros estudiosos modernos, como Carl Ruck e Gordon Wasson, (que escreveram um livro em conjunto com o Dr. Albert Hofmann sobre Elêusis e o fato de que uma forma de substância psicoativa natural foi ingerida) que os rituais faziam parte de suas vidas e no drama iniciático visionário, eles usaram uma bebida psicodélica, o Kykeon.

Na verdade, isso não é tão surpreendente. O uso de compostos enteogênicos (a palavra “enteógeno”, significa literalmente, “manifestação interior do divino”, deriva duma palavra grega obsoleta da mesma raiz da palavra “entusiasmo”, e se refere à comunhão religiosa Espiritual sob efeito de substâncias visionárias.) em ambientes ritualísticos comumente empregado em sociedades indígenas, linhas xamânicas, e espirituais aqui no Brasil.

Na Bacia Amazônica, é a

    • Ayahuasca (também chamado de Santo Daime, o chá de ayahuasca – na linguagem quéchua, aya significa espírito ou ancestral, e huasca quer dizer vinho ou chá );

Entre os Mazatecas, no México, o

    • Teonanacatl (Significa “Carne dos Deuses”, Conhecidos como cogumelos mágicos, Psilocybe cubensis (anteriormente designada por Stropharia cubensis) é uma espécie de cogumelo enteógeno, mundialmente conhecido, que apresenta como principais princípios ativos a psilocibina e a psilocina);

Com os milenares vedantistas, era o

    • Soma, (Soma é uma bebida ritual da cultura védica e hindu. É também o nome da própria planta da qual se extrai a bebida, bem como a personificação do Deus dos deuses. Existem nos Vedas (Rigveda, Soma Mandala) 114 hinos exaltando suas qualidades. Alguns antropólogos acreditam que o cogumelo Amanita muscaria seja o soma, ou parte dele. Outros afirmam que poderia ser o cogumelo Psilocybe cubensis);

“Bebemos o soma, nos tornamos imortais, fomos para a luz, e encontramos os deuses.” (Rig Veda 8.48.1-15

Com os Parsis zoroastrianos, foi o

    • Haoma (era na mitologia persa ou iraniana a bebida dos deuses, feita de um planta com o mesmo nome. Esta bebida desempenha um papel fundamental nos rituais da religião ariana, sendo ela que dava a divindade aos deuses. Esta bebida psicoativa tinha um paralelo semelhante na Índia (do qual terá derivado), com o nome de soma, sendo deus e bebida num só).

Em todos esses casos, foi ou é um composto enteogênico que facilita (ou realiza) a experiência mística.

Iniciação simbólica x Iniciação real

Uma distinção importante precisa ser feita aqui. Na milenar pedagogia Iniciática, existem dois tipos diferentes de iniciação: a formal e a real.

A iniciação formal planta as sementes e fornece os meios pelos quais, com o tempo e a aplicação das lições inculcadas, essas sementes podem florescer para a verdadeira iniciação ou a iluminação. No entanto, nem todos os iniciados formais atingem a iniciação real, nem todos os iniciados reais foram formalmente iniciados. A única maneira, portanto, de garantir que tanto a iniciação formal quanto a iniciação real coincidam no mesmo momento é ter um meio à prova de falhas pelo qual a iniciação real possa ser induzida ao ser formalmente iniciada. É essa função que as substâncias psicodélicas serviam nos antigos mistérios e ainda servem até hoje em certas linhas religiosas, filosóficas e iniciáticas.

Compostos enteogênicos selecionados têm o efeito de expandir a consciência de tal maneira que noções previamente abstratas e inefáveis de divindade e espírito se tornam ao mesmo tempo tangíveis e concretas, na medida em que não se pode questionar a realidade do plano espiritual. As experiências relatadas por aqueles que experimentaram tais compostos consistentemente envolvem viagens astrais, experiências de quase morte, percepção da unidade de toda a criação e da imanência da divindade, contato com seres angélicos ou divinos, etc. Nas palavras orientais do nosso estimado irmão Swami Vivekananda,

“A matéria é representada pelo éter; quando a ação do Prana é mais sutil, esse mesmo éter, no mais fino estado de vibração, representará a mente, e ainda aí continua existindo uma massa uniforme. Se pudéssemos criar em nós mesmos essa vibração sutil, veríamos e sentiríamos que o universo inteiro é composto de vibrações sutis. Às vezes, certas substâncias têm o poder de nos levar, acima dos sentidos, onde podemos sentir tais vibrações.”

Assim como em Elêusis, o que antes era necessário aceitar com fé, Agora o iniciado recebeu o conhecimento direto da realidade ou irrealidade.

Continua…

Autor: Geovanne Pereira

Geovanne é professor de Filosofia, psicanalista, Mestre Maçom da ARLS Jacques DeMolay, n°22 – GLMMG e, para nossa alegria, também um colaborador do blog.

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Escola de Mistérios da Grécia Antiga

Ritos a Dionísio: Os Mistérios de Eleusis

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“…absorto em Deus, já não forma senão Um com Ele, como um centro que coincide com outro centro (…) tal modo de visão é difícil de descrever a outro (…) Isto é sem dúvida o significado da proibição que se faz nos Mistérios, vedando que se revele os segredos dos mesmos aos que não foram iniciados. Como se quer que o divino seja inefável, prescreve-se que não se fale disso ao que não haja tido a ventura de vê-lo”. (Plotino, Sexta Enneada)

Introdução

Os “mistérios” se apresentavam, na Antiguidade, como verdadeiros festivais, oportunidades de encontro e peregrinação, para os quais acorriam pessoas de lugares distantes em busca de auto-conhecimento. Encontravam-se consigo mesmos, com os demais, com o universo, a natureza, as divindades. Remontam às antigas Escolas de Mistérios do Egito, organizadas por Tutmós III, avô de Akenaton, há cerca de 3.300 anos. Tinham lugar em Luxor e Karnak, depois em Alexandria e dali expandiram-se para a Grécia, a Itália, Oriente Médio, o mundo da época.

A palavra “mistério” origina-se do grego Mysthes, plural Mysthai, reunindo um conjunto de significados a partir de objetos a simbolizar, em aproximação ao “insondável, indizível, inaudível, intocável”, portanto, “misterioso”. Essencialmente, o mysthes se refere à impossibilidade de abarcar a Vida e a Morte, a abrangência do que significa nascer e morrer, o que é, por que, para que e assim por diante.

Portanto, pessoas interessadas nas questões decisivas para a compreensão de si mesmas, das relações com os demais, o mundo, a natureza, o universo, acorriam a determinados lugares onde lhes era oferecida a oportunidade de adentrarem os Mysthai. Dependendo do lugar, portanto, da cultura do contexto, constelavam-se mitos, formas de apresentação mais ou menos dramáticas, crenças, situações, enfim, toda uma ambientação destinada a tocar fundo na emoção dos iniciandos. Pode-se, assim, afirmar, que a operacionalização global dos Mysthai delineava-se como verdadeiras Iniciações.

Ada D. Albrecht, pesquisadora dos Mistérios levados a efeito em Eleusis, na Grécia Antiga, afirma que “os Eleusinos sabiam da intransmissibilidade desse estado de consciência, e assim o chamado “voto de silêncio” era condição sine qua non para lograr a participação nos Mistérios” (1994,p.12). E mais adiante, relata o depoimento deixado por viajantes: …”viram uma luz gigantesca, que partia de Eleusis, e uma caravana de trinta mil homens aproximadamente, que cantavam em coro o nome sagrado de Iachos, o deus eleusino – Baco” (…) “Iachos, deus máximo de Eleusis, junto com a deusa Deméter e sua filha Koré – Perséfone” (Idem, 12-13): tal era a constelação mitológica envolvida na essência dos Mistérios de Eleusis.

Dionysos: a criança no peito

Na citada obra de Ada Albrecht, situamos a origem de Dionysos como fenícia: Iachos significaria “a criança no peito”. Se o alinhamos a Baco, o “deus da divina ebriedade”, situado na geografia de Eleusis, torna-se possível aproximar Iachos a Dionysos, pois a ebriedade eleusina tinha caráter de Sabedoria ou estado de EPOPTEIA, estado de consciência possível de contactar o Saber, o Divino.

Simbolicamente, “a criança no peito” poderia ser aproximada a Deméter. “Longínquas tradições orientais costumam falar-nos da sabedoria do olho e da sabedoria do coração, insistindo em chamar a esta última de verdadeira sabedoria, isto é, a que se torna experiência viva para a alma, além de mera especulação teorética, discursiva, não doadora de nenhuma vivência espiritual” (obra cit. P.14).

Desta forma, Iachos simboliza esta criança no peito da Grande Mãe Deméter; Dionysos seria a força de ser oculta no coração do ser humano e que pode despertar para a verdadeira sabedoria, se guiado por outros que já o conseguiram: os guias iniciáticos. Em Eleusis, duas famílias se destacaram: os Eumólpidas e os Kerikes. Os primeiros encarregavam-se dos cultos: Eumolpes teria recebido sua função da própria Deméter, que lhe confiara os segredos do culto. Diodoro de Sicília afirmou que os eumólpidas derivavam dos sacerdotes egípcios. Na verdade, encontram-se semelhanças entre os cultos a Ísis e os eleusinos, a Deméter.

Os Kerikes eram encarregados de apresentar os objetos sagrados, os “hieros“. O hierokeris, ou Heraldo, proclamava os Mistérios, devendo para isso ter uma voz potente. Parece que os kerikes derivam em última análise do Heraldo Divino: Hermes (Ibidem, p.72). Daí também serem chamados de Hierofantes, os que desvelam o sagrado. Portanto, muito mais que uma “bela voz” para dar início aos mysthai, estavam envolvidos no ofício sagrado de recitar “palavras de poder”, em sua correta inflexão, remontando aos “Sama Veda”, conhecimentos do canto, dos mantras, invocando a presença dos deuses. Os hierokeryx custodiavam os objetos sagrados.

Havia ainda sacerdotisas em grau bastante elevado, como as hierofantidas, dedicadas ao serviço das deusas mãe e filha; e as panageys, espécie de monjas, também chamadas de “abelhas”, cuja função nos mistérios é pouco conhecida – uma vez que pouco mencionadas, devido aos votos secretos. Finalmente, citam-se também os “iachogogos“, que acompanhavam a estátua de Dionysos, desde Atenas até Eleusis, nas peregrinações; os “hidranos“, encarregados da purificação dos fiéis e os “daduchos“, dos fiéis comuns.

A partir das escavações feitas em Eleusis, Picard pode demonstrar suas origens cretenses; baseado principalmente no hall de Iniciação do famoso Telesterion eleusino, análogo as construções cretenses. Afora tais especulações, nada se tem de concreto, nem objetos, nem outras provas dos ritos dionisíacos ali levados a efeito. Pergunta-se Ada Albrecht: “Como havemos de apreender o esoterismo do mito eleusino? Como culto agrário, tão somente? As sagradas epopteias de seus misthay, simples euforias subministradas por fungos alucinógenos? (…) Eleusis, de qualquer modo, parece significar “el lugar del arribo feliz”, vocábulo ao qual se lhe relaciona com outro de significado ainda mais preclaro: ELYSON, o “reino do sagrado, do bendito”. Neste lugar, o ser humano chegou a um cume de desvelação espiritual apenas pressentido por nós” (pp.18-19).

As origens de Eleusis são baseadas em conjeturas, porém não o seu final: reconstruída e ampliada nos tempos de Solon, depois de Pisístrato e Pericles; dizimada pelo Cristianismo, teve seu fim definitivo com Juliano o apóstata, no terceiro século de nossa era; Teodósio, em fins do séc. IV, proibiu os cultos aos mistérios. No séc. V, a área foi usada como cemitério. Tudo o que resta desses cultos e mitos está espalhado pela literatura greco-romana como depoimentos de viajantes que por ali passavam e o pouco que os iniciandos comunicaram boca a ouvido, daquilo que podiam afirmar, sem ferir seus votos.

Hino a Deméter (fragmentos da Ilíada, de Homero)

A Deméter, de formosa cabeleira, veneranda deusa, começo a cantar; a ela e a sua filha raptada por Aidoneo(…) enquanto brincava com as filhas do Oceano, e colhia flores, rosas, açafrão, formosas violetas, jacintos e aquele narciso que a Terra produziu tão admiravelmente (…) pela vontade de Zeus para enganar a donzela e comprazer a Hades(…) Cem capuchos brotaram de sua raiz, e ao espargir-se o suavíssimo odor, sorriam o alto céu e a terra inteira, e a salobra água do mar. Ela estendeu admirada os braços para colher o formoso brinquedo; mas então a terra abriu-se…e surgiu o soberano Polidegmon, filho famoso de Cronos …arrebatando-a no seu carro de ouro levou-a chorando e gritando(…) mas nenhum dos mortais ouviu sua voz, somente a filha de Perseu, a de ternos pensamentos, desde sua caverna, Hécate, a de luzente diadema- e o Sol soberano, filho de Hiperion, quando a donzela invocava seu pai(…) Foi sua mãe que ouviu-lhe a voz, sentindo nesta aguda dor que transpassava o coração, jogou seu manto sobre os ombros e saiu pressurosa a indagar por terra e por mar; mas ninguém quis revelar-lhe a verdade. Durante nove dias vagou pela terra. Quando a décima Aurora resplandeceu, Hécate a encontrou, com a tocha na mão, para dar a notícia. Ambas dirigem-se com tochas acesas até o Sol, que saúda a filha de Rea e conta que Hades a raptou para torná-la sua esposa. Oferecendo sua carruagem, Deméter segue até a morada de Celeo, rei da perfumada Eleusis. Aflita, ela senta-se no poço Partenius, a sombra de uma oliveira, onde vem buscar água Calidici, Clisidice, Demo a amável e Calitoe, a maior delas, todas filhas de Celeo Eleusinida e se estabelece um diálogo entre elas (…) Encheram de água seus vasos e regressaram a casa, contaram a sua mãe o que ouviram e viram e ela mandou buscar Deméter, oferecendo-lhe imenso salário. Voltaram e encontrando Deméter, a conduziram a mansão de Celeo, aluno de Zeus e a deidade nada falou, não quis sentar nem descobriu sua cabeça com o manto que a cobria. Até que Yambe, a de castos pensamentos, apresentou-lhe uma grande cadeira, coberta de manto branco. Então a deusa senta e retira o véu consumida pela solidão da filha. Yambe falava e contava anedotas até fazer a deusa rir. Metanira lhe traz um copo de vinho, e Deméter diz não ter licença para beber. Preparam então uma mistura em beberagem, que a deusa aceita em conformidade aos ritos (aqui se perde um fragmento do texto de Homero)* e Metanira começou a dizer: Salve mulher, pois teus pais não são vis e sim nobres; o pudor e a graça brilham em teus olhos(…)cria minha criança que os imortais me deram tardiamente(…)Ao que Deméter responde: “Salve tu também, e que os deuses te cumulem de bens. Com gosto criarei teu filho e que o hipotamno (erva para beberagens mágicas) nunca lhe cause dano, pois sei um remédio contra o funesto sortilégio (hilótomo, antídoto formado por ervas do bosque)“.

O texto da Ilíada termina dizendo que Deméter criou o filho de Metanira com ambrosia, pois não o sustentavam os seios maternos. A criança cresceu sob os cuidados da deusa, porém um dia Metanira espia o leito da deusa e esta a amaldiçoa, exigindo para ela um templo, onde deverá ensinar os mistérios aos eleusinos. Assim, Deméter reina no templo onde se originam os Mistérios de Eleusis.

Segundo Mircea Eliade, em sua obra acerca das Iniciações Místicas (1986, 187 ss.), o mito de Deméter *** já era conhecido dos inúmeros peregrinos que acorriam a Eleusis para a Iniciação. Com tochas na mão, iniciava-se a primeira fase, quando reviviam o rapto de Perséfone e a buscavam pelos arredores. Então, ouviam a voz do Heraldo, anunciando os Mistérios e se aproximavam do Telesterion para serem preparados para a iniciação. Aristóteles já afirmava que o mysthes conhecia o mito, porém tinha que fazer alguns gestos e olhar os objetos a ele apresentados. O que se seguia ninguém sabe, afirma Eliade, pois no Hino a Deméter lemos que “um grande pavor aos deuses lhes contém a voz” e o coro de Edipo Rei afirma que os Eumolpidas chaveavam com ouro a língua dos mortais.

Clemente de Alexandria (Proteptico, II, 21, 2) legou-nos a fórmula falada pelo mysthes: “Jejuei, bebi o kykeon, recebi a cesta e manipulei os objetos devolvendo-os à cesta”. O kykeon era uma mescla de cevada, água e pólen, a mesma oferecida por Metanira a Deméter. Logo vinha a representação da descida aos infernos, em busca de Perséfone.**** Eliade mostra as raízes gregas para Iniciação (telesisthai=ser iniciado) e inferno (teleuthan=morrer), pois a descida ao Hades significava a morte e todo o grego sabia disto. “Morrer é ser iniciado”, já dizia Platão. Receber a cesta significava tornar-se um mysthes e destapar os objetos era descer aos infernos. Manipular os objetos era ser adotado pela deusa e poder seguir os epopteia, tornar-se um epoptes, “o que vê” (iluminar-se).

Segundo Walter Otto (The meaning of the eleusian mysteries) não cabe dúvida respeito à natureza milagrosa do acontecimento: tanto a espiga de trigo que amadurece sob as bênçãos de Deméter, quanto os vinhedos em honra a Dionysos representam em Eleusis a transformação iniciática. Diz Mircea Eliade que “pecaríamos em ingenuidade se quiséssemos oferecer em poucas linhas o que aconteceu durante mais de um século nos Mistérios Eleusinos. Pois eles são a herança, como o dionisianismo e o orfismo, de crenças e ritos enormemente arcaicos. Nenhum dos cultos iniciáticos pode ser considerado redutivamente como criação grega. Suas raízes fundam-se nas profundidades da proto-história.

Tradições cretenses, asiáticas, trácias foram recuperadas e integradas – Eleusis tornou-se o centro dessa tradição. Descende de rituais agrários de morte e ressurreição de deuses ligados a natureza e a sociedades matriarcais arcaicas. As experiências do iniciando têm natureza de transmutação, de transcender a condição humana e alcançar um modo transcendente de viver. Apuleio relata que ao iniciar-se nos Mistérios de Ísis acercou-se do reino da morte com o fim de renascer espiritualmente. Os rituais de Osíris e Ísis se fazem presentes em Eleusis, tanto quanto o da Grande Mãe frígia. Salustio refere que os iniciandos frígios eram alimentados com leite, como recém-nascidos. Os textos de Mitra estão impregnados da gnoses hermética; seus rituais incluíam a morte simbólica do iniciando, que deitava numa tumba “nascendo pela segunda vez, para a verdadeira vida”. Trata-se sempre de uma regeneração espiritual, essa palingenesia que envolve mudança radical do regime existencial do iniciando. Afirma Eliade: “A divinização do homem não era em absoluto uma fantasia extravagante para o mundo antigo tardio” (Op. Cit. P. 192). Cícero escreveu: “Sabe-te pois que és um deus” (De Republ. VI, 17).

Os Mistérios Menores

Adentrando um pouco mais na profundidade dos Mistérios Eleusinos, Ada Albrecht apresenta-os em dois blocos ritualísticos: os menores e os maiores. Os mistérios menores eram requisito para os maiores. Aconteciam uma vez por ano, no início da primavera, o anthesterion, em homenagem a Ártemis, a deusa virgem irmã de Apolo. Eram cerimônias de purificação, as margens do Ilisio. Katerine Kanta, na obra “Eleusis” afirma que havia no grande prédio dedicado a Ártemis, templos a Deméter e a Perséfone. A finalidade destes lugares era oferecer aos neófitos oportunidade para jejuar, como sinal de purificação – requisito para a vivência de sua união com a divindade. O Mahabarata hindu predica que arroz, leite, coalhada e mel são os alimentos que preparam o candidato ao moksha, equivalente a epopteia dos gregos.

Os encarregados desses jejuns eram os mistagogos, sob a supervisão do hierofante. Também eram prescritos banhos ritualísticos, provavelmente no próprio Ilisio, assim como o Ganges e o Jordão servem até hoje como purificação para hindus e cristãos. Havia a entoação de hinos sagrados, sacrifícios as deusas e cerimônias em recordação ao deus Dionysos. Ainda que determinados estudiosos neguem a presença de Dionysos nos Mistérios eleusinos, Ada Albrecht considera de capital importância a inclusão desse deus em tais mistérios. “Sua presença metafísica dá sentido ao conjunto das peças ritualísticas dos mistérios eleusinos”. Veremos mais adiante como a invocação a Iachos era de fundamental importância para dar início aos Mistérios Maiores.

Os Graus Iniciáticos e os Mistérios Maiores

Segundo Teon de Smirna, os Mistérios Eleusinos compreendiam cinco graus: purificação, comunhão mística, Epopteia, coroação, comunhão divina. Plutarco narra a iniciação de Demetrio Polioirketes desde a purificação até os epopteia, mas isso não fundamenta a possibilidade de que houvessem somente três graus. De fato, os assim chamados Triptolemos, baseados nas teoria s gregas dos números, mostram sempre agrupamentos de três blocos ritualísticos. Ada Albrecht, após acurado estudo, agrupou em nove (três vezes o três) as cerimônias dos Mistérios Maiores, inclusive com as datas: iniciavam no dia 15 do mês boedromion até o dia 23, assim distribuídas:

  • dia 15 do boedromion: Agyrmos, reunião. Proclamação;
  • dia 16: Elasis ou Helade Mysthai: “Ao mar, ó iniciados!”;
  • dia 17: Hiereia Deuro: Sacrifício das vítimas;
  • dia 18: Epidauria ou Asclepia;
  • dia 19: Iachos ou Pampa, procissão;
  • dia 20: Telete (mysteriodites Nychtes);
  • dia 21: Epopteia;
  • dia 22: Plemochoai;
  • dia 23: Epistrofe.

Primeiro dia: Agyrmos, proclamação

Aqueles purificados de toda contaminação (moral) cujas almas se acham conscientes de não haver cometido atos diabólicos, que tem vivido moral e justamente, cujas mãos se encontram limpas (de pecado)…podem participar dos mistérios eleusinos e participar da epopteia.

Tal era a proclamação. Os espandódoros, descendentes dos clãs dos Eumólpidas e dos Kerikes, disseminavam-se pelas cercanias, fazendo a proclamação, não excluindo ninguém, nem mulheres, nem escravos nem sequer crianças: era a trégua divina, em que todos eram cidadãos com a possibilidade de vira abrigar a Criança no Peito, Dionysos em seus corações. O divino Iachos, a alma ressurrecta, habitaria a alma dos mortais, divinizando-a.

Segundo dia: Helade, Mysthai! Ao Mar, ó Iniciados!

Filósofos e homens do povo, mulheres, crianças, músicos, imperadores e imperatrizes, todos se igualavam nas fileiras, guiados pelos mistagogos, carregando um cordeiro nos braços, enquanto o hierofante os instava: Helade, Mysthai! O sacrifício dos animais deveria se dar sob adequados rituais e palavras, arrastando em seu sangue as impurezas que porventura pudessem macular os sagrados mistérios. Ensinamentos eram passados pelos mistagogos aos iniciandos pois, assim como o sangue dos cordeiros possuíam o dom da purificação, também a água do mar purificaria os pecados dos neófitos e era esta a primeira das transformações para a grande transmutação dos mistérios. Durante nove dias fariam estas abluções na água do mar, nove dias como Deméter peregrinou pela terra em busca da verdade sobre o rapto de Koré. Nos hinos órficos, o Theon Agnesma Megiston, o Oceano, é o Grande Purificador dos Deuses, uma gigantesca pia batismal onde o profano se torna sagrado.

Terceiro dia: Hiereia Deuro, sacrifício da vítima

Não é certo se neste grau o iniciando apresentava as deusas seu cordeiro sacrificado no dia anterior, ou se ele mesmo se apresentava como vítima a ser transformada em sagrado ofício. Parece ser, contudo, este o simbolismo de terceiro dia, uma vez que o número três é o da manifestação, o fruto da união do Céu (Koré) com a Terra (Hades). Há depoimentos, também, de que nestes ritos terceiros, agradeciam os iniciandos pelos bens que possuíam e imploravam proteção aos habitantes da terra.

Quarto dia: Epidauria

Fica difícil o entendimento da introdução das festas a Epidauro em meio a rituais destinados as deusas Mãe e Filha. Talvez a explicação resida no fato de que , quando o próprio Epidauro apresentou-se como neófito aos grandes mistérios, ele tenha chegado com um retardo, justamente neste quarto dia, agora, então, a ele dedicado. De algum modo, ele foi inserido entre os deuses transmutadores, que intercedem pela transformação dos neófitos, através de sua ressurreição, ou renascimento. Supõe-se, também, que este tenha sido um dia de descanso, pois encontra-se justamente no meio dos Mistérios maiores, necessitando os iniciandos de uma pausa em seus jejuns e abstinências.

Quinto dia: Pompa, procissão

Este era o dia que marcava o regresso dos Hiera de Atenas de volta a Eleusis. A caravana era formada por incontáveis peregrinos, coroados de mirto e já com as vestes ritualísticas. O centro da procissão era a figura do deus Iachos, ladeado pelos Iachogogos, os Hieras e as sacerdotisas da Deusa Mãe. Depois iam os oficias de estado, os mystai e as carroças com tudo o que seria necessário ser utilizado em Eleusis. Havia gestos e cantos a serem manifestos durante a procissão, onde o nome de Iachos era repetidamente pronunciado. Determinadas paradas, como junto a fonte de Kalikoro, onde Deméter havia também se refrescado em seus nove dias de busca. Tudo era simbolizado, significado e reverenciado. O preparo às epopteias havia já iniciado e era mister levar a bom termo.

Sexto dia: Telete

Para a maioria dos antigos filósofos, a união do ser humano com Deus era o cume da sabedoria. A célebre noite do dia 20 do boedromion era dedicada às virtudes purificativas da alma que contempla a Inteligência. Era, pois, uma concentração em estados superiores de consciência, frutos dos jejuns e cerimoniais que precederam . Nesta noite, algo se mostrava aos neófitos, algo era dito e algo se consagrava. A bebida de cevada, mel e pólen estava preparada e, através dela, se revivia o sofrimento de Deméter, se chorava pela deusa e a catarse era purificadora. Teria havido alguma representação, alguma dramatização, mas tudo isso é hipotético. Os depoimentos de quem teria de longe visto alguma figura se movendo, algum tipo de “aparição milagrosa”, como que apresentando Perséfone de volta ao seio da Grande Mãe. Contudo, não foi dado a nenhum historiador, nenhum arqueólogo, nenhum narrador, desvendar o que, quem, como se dava a dramatização. Sabe-se, porém, que se dava.

Os Hiera

Os hiera eram os objetos sagrados, guardados em cestas especiais atadas com fitas vermelhas, que na noite do dia 20 seriam levadas custodiadas pelos hierofantidas até o Eleusinon de Atenas. Porém, Ada Albrecht discorda que os Hiera fossem apenas objetos, chamando a atenção para o simbolismo aí implicado: os ovos, como gênese da vida; a serpente e o lingam ou falo, pai da fecundidade e os grãos, da mesma forma, frutos da comunhão. Contudo, deve ter havido algo mais além do que o olho do misthes podia ver, como objeto cotidiano. “A metamorfose espiritual dos mysthai se operava em planos supraconscientes, onde os elementos materiais apenas se figuravam“, afirma a autora (op.cit., p. 107). Dependeria das capacidades perceptivas do iniciando ir além dos cinco elementos apresentados no fundo quer dos kalathos (canastas pequenas) quer dos cistes (canastas grandes).

Sétimo dia: Epopteia

Diz-se que a Filosofia é filha do assombro diante de questões como: de onde venho, quem sou, para onde vou…Um em um milhão consegue encontrar o caminho e a saída, como raros são os individuados, que atingiram o Mistério da união com o Si-Mesmo. Este sétimo dia era a oportunidade para que o mysthes encontrasse a si mesmo, fosse um com a Criança Divina. Em outras palavras, Epopteia era a vitória sobre o Ego, a total entrega ao contato com os deuses, Iachos, Deméter, Koré. Alguns fazem a elucubração de que Deméter adentrava o Telesterion onde copularia com Iachos. Outros fazem aproximações entre a trina divindade; Iachos, Deméter e Perséfone fariam seu encontro no Telesterion, frente aos iniciados. A simbologia é clara: os deuses se manifestam aos Mysthai, sendo Epopteia realmente a vinculação com as divindades, o reconhecimento de sagrado em si mesmo. Finalizava-se a cerimônia com as palavras “Pax, Konkx” (Basta, finalizado), ao que todos responderiam “amen“, uma espécie de reafirmação espiritual de que houvera participação.

Oitavo dia: Plemochoai

Grande significado encerravam os vasos (plemochoai) que continham certo líquido que era “derramado abundantemente” em direção a Leste e a Oeste – simbolizando nascimento e morte. Ao mesmo tempo, segundo Hipólito, era pronunciada a palavra hay-kie, (flui, derrama-te). Segundo Proclo, a primeira palavra era pronunciada em direção ao céu e a segunda em direção á terra, não se sabe ao certo se com isso simbolizavam a união pai-mãe, deuses-homens… Isto é tudo o que se sabe a respeito do oitavo dia.

Nono dia: Epistrofe

Não existem referências seguras sobre o retorno do deus Iachos a Atenas. Em grupos pequenos, regressavam os peregrinos a cidade mais central, encerrando assim o mês do boedromion, tão pleno de significação para o mundo grego da época. Eleusis voltava a velar-se em seus mistérios, enquanto despedia os visitantes, agora renascidos, levando consigo as experiências de vinculação com as divindades.

Marcel Detienne, em seu livro “Dionysos a céu aberto”, nos fala de um deus que é viajante, em sua barca amarela ou no dorso dos golfinhos, e por ser viajante, é um deus estranho aos lugares onde chega, estrangeiro que chega e parte, como em Eleusis, para onde é conduzida sua figura em procissão e de onde deverá partir ao décimo dia, após presidir os Mistérios. O autor fala também das homologias entre Dionysos e Deméter, referentes aos mistérios de Eleusis. Dionysos ***** como um deus “orthos” (correto), e que promove correção, transforma as bebidas ácidas anteriores aos seus cultos em vinho de sabor agradável e efeitos transcendentes; Deméter, que auxilia a correção da postura, pois preside aos que andam para baixo (deprimidos) a ficarem eretos e a olharem a vida de frente. Tais eram as devidas transformações e correções que ocorriam nos diferentes rituais, tanto a Iachos-Dionysos, quanto a Demeter-Perséfone, durante os nove dias iniciáticos do mês boedromion.

Ensaio de Conclusão

Obviamente, este é um tema que não se conclui. Servimo-nos de Robert Graves, em sua obra “Os dois nascimentos de Dionysos“, na qual ele ensaia uma aproximação do deus duas vezes nascido, único deus masculino a tomar parte nos mistérios de Eleusis – à deusa das colheitas Deméter, que espalhou ao mundo os segredos de plantar e colher trigo. O autor defende a hipótese de que o “soma” bebido pelos neófitos, nas iniciações eleusinas, era feito do mesmo fungo do original soma védico, afirmando, finalmente que “os deuses alimentam-se de fungos”. Da mesma forma como o grão de trigo desce as profundezas, num processo de transformação de morte-renascimento (simbolizando a mitologia da descida de Koré ao Hades e a sua volta aos braços da Grande Mãe) – assim também Dionysos preside aos ritos de morte e renascimento dos mysthai de Eleusis, sendo o ápice destes ritos a Epopteia devida a ingestão da mesma bebida que Deméter tomara num dos nove dias de busca da verdade sobre o desaparecimento de Perséfone.

Poder-se-ia estabelecer uma analogia com o processo de individuação, em suas etapas de separação (análise) e reunião (síntese), pelo encontro com o Si Mesmo. Jung estabeleceu relações com o processo alquímico “solve et coagula“, completando-se a obra pela Coniunctio, o hieros gamos, a mesma união com a divindade, fruto da Epopteia eleusina.

Finalmente, voltamos a citar Mircea Eliade, que afirma que “a transmutação ontológica do iniciado se verifica sobretudo na existência após a morte” (op. Cit. P. 192. (…) A Iniciação era, pois, a maneira de obter um status ontológico sobre-humano, mais ou menos divino e de assegurar-se a sobrevivência post-mortem, senão já a imortalidade” (idem ibidem).

Reza o Hino a Deméter: “Ditoso o homem que, vivendo na terra, viu tais coisas! Quem não conheceu as sagradas orgias e quem nelas tomou parte, não terão sobre a morte igual destino”. E Píndaro cantou: “Ditoso aquele que viu isto antes de baixar à terra. Conhece o termino da vida, conhece também o começo”. E Sófocles encerra: “Oh três vezes ditosos os mortais que, depois de contemplarem estes mistérios, partam a morada de Hades: somente eles poderão ali viver; para os demais, tudo será sofrimento”.

Questões Finais

* Seria apenas uma infeliz coincidência que, na Ilíada de Homero, um dos fragmentos do Hino a Deméter, justamente o que se refere aos ritos eleusinos, tenha sido perdido?

** Deméter deveria constelar os saberes da Grande Mãe das sociedades agrárias matriarcais no que se refere ao “hilótomo” (antídoto formado por ervas do bosque) – usado contra os funestos sortilégios do “hipotamno” (erva para beberagens mágicas)?

*** Deméter tem o mérito de haver legado ao Ocidente os saberes construídos pelas sociedades arcaicas. Não seria um reducionismo ingênuo considerar a deusa como vulnerável, motivada por uma necessidade de participar do mundo dos homens e por isso mesmo criando os Mistérios? A sua verdadeira motivação não teria sido justamente legar ao Ocidente Mistérios já conhecidos muito anteriormente? Sua necessidade básica não teria sido, então, recuperar o verdadeiro Dionysos?

**** Da mesma forma, Perséfone adquire status como peça chave no simbolismo dos “hiera” (objetos sagrados) contidos nas canastas e manipulados pelos iniciandos. A deusa filha representa os grãos que descem ao Hades (Morte) e renascem no tempo da colheita (Vida).

***** Finalmente, Dionysos, um deus redutivamente ligado a bacanais desenfreadas, a beberagens e desvarios; surge na constelação mitológica de Eleusis como o deus que promove correção no modo de vida do iniciando, transformando a acidez das bebidas em vinho suave, promotor também da Epopteia (iluminação). Analogamente, poderíamos citar o Cristo, quando diz: “O meu jugo é manso e o meu peso é leve”. E, para terminar, o Mistério da “trans-substanciação” da água em vinho (sangue do Cristo) e do trigo em pão (corpo de Cristo), na missa – um ritual legado pelos rituais mitraicos…

Autora: Terezinha M. Vargas Flores

Fonte: Revista Pensamento Biocênntrico

Referências Bibliográficas

ALBRECHT, Ada Dolores, Los Misterios de Eleusis. Buenos Aires: Editorial Hastinapura, 1994.DETIENNE, Marcel, Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.ELIADE, Mircea, Iniciaciones Misticas. Espanha: Taurus Ediciones S/A, 1986. GRAVES, Robert, Los Dos Nacimientos de Dioniso. Barcelona: Biblioteca Breve, 1984. JUNG, C. Gustav, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 2000.RUBY, Paulo, As Faces do Humano: estudos de tipologia junguiana e psicossomática, S.Paulo: Oficina de Textos, 1998.TORO, Rolando, Biodanza, S.Paulo: Ed. Olavobrás/EPB, 2002.

* Apresentado no Congresso da Associação Junguiana do Brasil, Belo Horizonte, 6~9 de setembro de 2000.

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Os Mistérios de Elêusis

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Tudo que sabemos sobre os Mistérios de Ísis e Osíris nos foi legado pelos gregos, pois os sacerdotes egípcios jamais os desenvolveram na forma escrita, fazendo apenas raras referências em alguns papiros e na complicada simbologia dos rituais e hinos funerários que compõem o chamado Livro dos Mortos. Plutarco, que traduziu para o grego o drama de Osíris, helenizou o mito, comparando Ísis á Plutão e Osíris á Perséfone, os deuses gregos que representavam os poderes interiores da terra. Dessa forma, identificou os Mistérios Egípcios com as realidades da vida e da morte, dando-nos a ideia de que eles significavam realmente uma recapitulação simbólica desse processo. Os gregos, todavia, já praticavam, desde tempos imemoriais, algo semelhante aos Mistérios Egípcios. Esse ritual era praticado no santuário de Elêusis, próximo á cidade de Atenas.

Os Mistérios de Elêusis tinham como ponto central o psicodrama de Deméter, como era chamada entre os gregos a deusa da agricultura. Irmã de Zeus, Deméter tinha uma filha chamada Perséfone . Um dia Perséfone foi raptada por Hades, o deus dos infernos, que habitava no centro da terra. Deméter, então, amaldiçoou a terra, que tornou-se estéril e não produziu mais nada. Depois de muita luta ela finalmente conseguiu, com a intervenção de Zeus, que o soturno deus Hades libertasse Perséfone, mas com a condição de que esta passasse seis meses no céu e seis meses no inferno. Daí o porquê Perséfone simbolizar a semente que passa um tempo no seio da terra até frutificar.

Com base nesse mito, os gregos desenvolveram os Mistérios de Elêusis, que eram cerimônias iniciáticas nas quais se praticavam rituais destinados a despertar Perséfone, ou seja, a semente que foi enterrada e renascia, dando nova vida à terra. Esse mito tinha representações entre todos os povos de cultura grega. Entre os romanos, as festas dedicadas a Deméter, eram realizadas no mês de abril e se prolongavam durante uma semana. Nessas ocasiões os romanos de origem nobre e aqueles que se destacavam nas artes e nas ciências eram iniciados.

O culto a Deméter, embora de origem grega, tem clara inspiração nos Mistérios Egípcios. Deméter, no mito egípcio, é Ísis e Perséfone, no caso, é Osíris. Ambos os cultos tinham idêntica finalidade: despertar o poder regenerador da terra, para que ele executasse sobre a semente nela lançada, a mesma operação que os poderes de Ísis realizara sobre o corpo de Osíris.

E se isso podia ocorrer em relação á semente do cereal, também poderia ser aplicado ao ser humano, enquanto semente da vida espiritual cósmica. Porque o mesmo processo não poderia ser utilizado para promover a regeneração psíquica do homem? Dessa forma, o mito evoluiu da religião para a metafísica e acabou se tornando um dos mais representativos arquétipos da espiritualidade humana. Nem os cristãos, embora seus líderes condenassem violentamente essas práticas, não foram infensos à influência desses. Mistérios. Há quem sustente que a Paixão e Morte de Jesus Cristo nada mais é que uma encenação desses Mistérios.

Eis porque tanto os Antigos Mistérios egípcios quanto os Mistérios de Elêusis são constantemente invocados nos ritos maçônicos, pois ambos evocam a necessidade de uma morte e uma regeneração do iniciado, como condição essencial á sua passagem de um estado de consciência profana para uma consciência superior de iniciado.

Da mesma forma que seu congênere egípcio, os Mistérios de Elêusis eram divididos em duas etapas. Havia os Grandes e os Pequenos Mistérios. O primeiro era representado em março, correspondente ao equinócio de primavera, o segundo em setembro, correspondente ao equinócio de inverno. Representavam, conjuntamente, os ciclos da terra, em seus processos de morte e ressurreição, expressos nas estações do ano.

Nos Pequenos Mistérios o iniciando se preparava para receber os Grandes Mistérios. Nessa primeira parte do cerimonial ele era purificado, interrogado, fazia diversas promessas e juramentos, aprendia os sinais e passos do iniciado. Após jurar guardar estrito segredo sobre o que viu e ouviu, ele recebia o titulo de Mystos, que significava ser ele um “ iniciado”, porém ainda incapaz de contemplar a Grande Luz. Somente após o interstício de um ano estaria pronto para penetrar nos Grandes Mistérios.

Estes últimos perduravam nove dias e comportavam rituais que eram desenvolvidos dentro e fora do templo. Na última fase da cerimônia o iniciado se vestia com uma pele de carneiro, significando que ele seria o sacrificado, a “semente” sobre a qual a terra executaria o seu trabalho de regeneração.

A cerimônia de elevação do iniciado aos Grandes Mistérios é comparável a cerimônia de elevação ao grau de mestre na Maçonaria Simbólica, e muitos autores acreditam que a Lenda de Hiram foi diretamente adaptada dessa fonte. De qualquer forma, a instituição que existia por trás dessas práticas iniciáticas se assemelha bastante à Maçonaria. Não era qualquer pessoa que podia ser iniciada nos Mistérios de Elêusis. Somente homens de reconhecida idoneidade e excelente reputação eram cooptados para fazer parte do fechado círculo de iniciados.

A escolha e o processo de cooptação de recipiendários eram rigorosos, sendo patrocinada pelo próprio estado ateniense, tanto que a legislação que Sólon redigiu para Atenas continha punições para aqueles que transgredissem as regras de silêncio exigidas em relação aos rituais. Plutarco conta que até Alcebíades foi punido por ter violado tais regras. Fulcanelli diz que a revelação dos segredos dos Mistérios de Elêusis aos profanos era punida com a morte, e mesmo aqueles que os ouviam eram considerados criminosos.

A prática dos Mistérios de Elêusis era o que unia as grandes personalidades do povo grego. Alcebíades, o famoso general ateniense, bem como Sólon, o grande legislador, Demóstenes, o magnifico orador e a grande maioria dos filósofos eram iniciados. Sócrates, Pitágoras e Aristóteles confessaram a influência que receberam dessas práticas iniciáticas. Sófocles, o laureado poeta, dizia que “somente aqueles que contemplaram os Mistérios entrarão na posse da verdadeira vida”.

Nos Mistérios de Elêusis os iniciados aprendiam o verdadeiro significado dos mitos helênicos. Descobriam, finalmente, que tais mitos não eram apenas explicações fantásticas das origens e dos acontecimentos históricos relativos ao povo grego, mas sim alegorias que continham ensinamentos morais, históricos e psicológicos da mais profunda relevância. Era nesses mitos e lendas que estava hospedada a verdadeira sabedoria iniciática e somente “os eleitos” podiam adquiri-la. O próprio Platão, nos diálogos de Fédon, reconhece que “os homens que estabeleceram os Mistérios, eram iluminados” e “somente aqueles que fossem iniciados, morariam com os deuses”.

Não é, portanto, sem razão, a analogia que se faz entre a maçonaria, enquanto instituição, e os Mistérios de Elêusis. Não só em relação ao domínio do esotérico, presente em ambas as instituições, mas também pelo seu objetivo disciplinador, por assim dizer, elas podem ser consideradas como “escolas de treinamento espiritual”, onde a mente do homem é preparada para o exercício de uma consciência superior, que o capacite a exercer na sociedade um papel diferenciado. Graças a esses ‘treinamentos espirituais”, os gregos superaram as limitações geográficas de um território tão pobre em recursos naturais como era a Grécia, fundando um império comercial e cultural que inaugurou uma nova era na civilização humana.

Se a maçonaria, enquanto filosofia e prática de vida, fosse devidamente entendida pelos que nela se iniciam, e realmente levada á sério, certamente se poderia obter um resultado semelhante aos que os gregos conseguiram com a prática dos Mistérios de Elêusis, ou seja, uma plêiade de homens realmente virtuosos.

Note-se que o declínio da cultura grega, bem como da cultura egípcia, coincide com a popularização dessas cerimônias. Nesse sentido, é bom observar que nem sempre um aumento de quadros significa uma melhoria de qualidade. Aliás, no caso, o resultado é exatamente o contrário. A quantidade, geralmente faz declinar a qualidade. Se a Maçonaria quiser sobreviver como verdadeiro “centro de treinamento de conscientização superior”, seria interessante não esquecer o conselho de Jâmblico, o filósofo grego que deu características de ciência experimental à alquimia: ele disse que a popularização do conhecimento iniciático, ao invés de democratizá-lo, o abastarda. E que só verdadeiramente aptos para recebê-los devem ser iniciados. Não nos custa reconhecer que ele tinha razão.

Autor: João Anatalino

Texto extraído do livro Conhecendo a Arte Real

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