Maçonaria, religião e política no Brasil

Discute-se neste ensaio a relação entre Igreja Católica e Maçonaria. Para tanto, toma-se como objeto a chamada Questão Religiosa, quando houve um embate entre as duas instituições, ocorrido no final do século XIX. Utiliza-se como fontes documentos produzidos pela Igreja Católica e por maçons. Ademais, faz-se o uso de bibliografia acerca do tema produzida por historiadores.

O recente debate eleitoral trouxe à tona a relação entre alguns candidatos e a Maçonaria, ressaltando-se o caráter supostamente antirreligioso dos maçons. Os comentários acerca do assunto, de diferentes origens e de conteúdos diversos, expressam um certo preconceito em relação aos maçons (BERGAMO, 2022). Os exageros e preconceitos são variados e, ainda que eventualmente possam ter algum elemento de verdade, expressam um conjunto de ideias equivocadas atribuídas à Maçonaria, em grande medida produzidas nos últimos séculos pela Igreja Católica. Desde o século XVIII são difundidas narrativas antimaçônicas, procurando desqualificar a Ordem, “relacionando sua origem e seus objetivos com tudo o que há de mais obscuro e contrastante com os valores morais, principalmente, no que se refere àqueles advindas da cultura cristã” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 35).

Um dos acontecimentos de maior repercussão na história da Maçonaria no Brasil foi a chamada “Questão Religiosa”, cujo auge ocorreu nos anos 1872 e 1873, quando o padre José Luís de Almeida Martins, que era maçom, foi suspenso pelo bispo do Rio de Janeiro por ter participado como orador de uma festa comemorativa da promulgação da Lei do Ventre Livre organizada pelo Grande Oriente do Brasil (GOB). Em seu discurso, o padre “enalteceu a Maçonaria e o Grande Oriente do Brasil, pela obra realizada em prol da emancipação dos escravos no Brasil” (CASTELLANI, 2001, p. 107). O ato de suspensão do padre Martins contribuiu “para mobilizar toda a organização maçônica que, através do Parlamento e da imprensa, desencadeou uma verdadeira luta contra os adversários da liberdade de pensamento” (BARATA, 1999, p. 93).

O embate entre Igreja e Maçonaria envolveu inclusive o governo imperial, que, no auge da crise, ordenou a prisão dos bispos de Olinda, dom Vital Maria Oliveira, e do Pará, dom Antônio Macedo da Costa, pelo fato de exigirem “que as irmandades religiosas expulsassem os maçons de seus quadros e, como algumas destas se recusaram a tal medida, foram interditadas pelos bispos” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 159). Como resposta, as irmandades apelaram ao governo imperial, que acatou o recurso. Os bispos se negaram a reconhecer a supremacia do poder secular do governo e, “diante da atitude dos bispos, expediu-se o mandado de prisão. D. Vital foi preso em janeiro e D. Macedo, em abril de 1874” (BARATA, 1999, p. 94). Os bispos, submetidos a julgamento, “foram condenados a quatro anos de prisão com trabalho forçado”, mas “no ano seguinte foram anistiados pelo Gabinete presidido por Caxias” (BARATA, 1999, p. 94).

Nessa disputa, a Igreja e a Maçonaria mobilizaram templos, escolas, clubes literários e até mesmo festas públicas, buscando sobrepor-se ao adversário. Em meio a esses embates, observa-se que “o número de padres maçons foi diminuindo gradativamente, a ponto de tornar-se aberração aos olhos da sociedade aquele que ousasse combinar a batina católica e o aventa de pedreiro-livre” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 157). Os maçons entendiam que, quanto mais templos fossem fundados, mais conseguiriam “defender-se e contra-atacar a Igreja, fazendo seus discursos penetrarem no corpo social e na vida cotidiana” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 160). Paralelo a isso, a Igreja intensificou o discurso que associava os maçons ao satanismo ou a imagens negativas. Nesse processo, “a luta maçônica contra o conservadorismo católico acabou por ganhar a simpatia dos segmentos liberais da sociedade, o que atraiu muitos desses homens para a iniciação” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 160).

Esses embates se inserem num processo conhecido como romanização pelo qual passou a Igreja, nos séculos XIX e XX, constituindo-se em ações reformadoras de bispos, padres e congregações religiosas com objetivo de moldar o catolicismo conforme o modelo romano. No Brasil, nesse processo de “europeização” do catolicismo, “os sacramentos, a moralidade e a autoridade clerical suplantaram como principal eixo da vida da Igreja os rituais e organizações autônomos e de base laica” (SERBIN, 2008, p. 79). Para Kenneth Serbin (2008, p. 81), a romanização seria “modernização conservadora” do catolicismo, afinal,

ao mesmo tempo que representou a reação contra a modernidade foi também seu produto e sua promotora. Assim como socialismo e o nacionalismo, o catolicismo procurou construir novas formas de comunidade em face da destruição dos laços tradicionais pelo capitalismo internacional. No processo, o papado, acentuadamente fortalecido, procurou criar a unidade da comunidade católica no mundo todo.

A romanização, iniciada no pontificado de Pio IX (1846-1878), não é exclusiva ao catolicismo no Brasil, inserindo-se “num processo mais amplo de transformação do aparelho religioso católico em escala mundial” (OLIVEIRA, 1985, p. 292). Esse processo esteve marcado, entre outras coisas, pelo combate a “sociedades clandestinas que conspiravam contra a Igreja” (BENIMELI, 2013, p. 95). No pontificado de Pio IX levou-se a cabo uma política que condenava “o racionalismo, o socialismo, o comunismo, a Maçonaria, a separação entre a Igreja e o estado, o liberalismo, o programa e a civilização” (BARATA, 1999, p. 103).

Em palestra proferida em 1916, Everardo Dias analisou o Syllabus Errorum, promulgado em 1864 por Pio IX, que, entre outras coisas, afirmava que “os fiéis devem odiar os livres-pensadores, filósofos, naturalistas, racionalistas, revolucionários e reformistas”, que “estão possuídos do demônio e serão castigados com penas eternas os invasores e usurpadores dos direitos e das propriedades da Igreja”, que “são abortos do Inferno o Socialismo, o Comunismo, as sociedade secretas e bíblicas e as associações católico-liberais” e que, no caso “de oposição entre as leis das duas potências, civil e católica, deve prevalecer o direito eclesiástico” (DIAS, 1921, p. 72-3).

Everardo Dias discutiu o tema da relação entre igreja e Maçonaria em conferência realizada em uma loja maçônica em 1908. Dias (1921, p. 17) afirma que “a Maçonaria respeita todas as religiões e, no entanto, combate todos os fanatismos”. Segundo Everardo Dias, “o Maçom tem por fim essencial combater o fanatismo, o erro e a ignorância” (DIAS, 1921, p. 18). Para Dias (1921, p. 22), “o Catolicismo não aceita a igualdade nem entre os próprios sectários, nem neste nem no outro mundo (…) onde há lugares separados para os grandes e pequenos”, sendo que “para averiguar a diferença entre pequenos e grandes não é o grau de fé que regula, mas as posições sociais e a maior ou menor quantidade de esmolas para as confrarias”. Segundo Everardo Dias (1921, p. 23), o Catolicismo “ama a discórdia entre os povos, desde que lhe advenha proveito. Acima dos interesses sociais está o interesse da cúria ou do papa!”. Referindo-se ao enfrentamento entre os maçons e o clero, afirma:

A Maçonaria, que é o mais formidável adversário das tiranias, dos fanatismos, das intrujices, tem, forçosamente, que dar combate franco e decisivo ao Clericalismo que a insulta e difama desde os púlpitos das igrejas, pelos confessionários, pelos jornais, pelos livros e até na banca das escolas (DIAS, 1921, p. 24).

O papado de Leão XIII (1878-1903) deu seguimento às ações de Pio IX, em um “contexto marcado pelo fim dos Estados pontifícios e da Campanha pela Unificação Italiana, o que agravava ainda mais a situação da Maçonaria, que era identificada como uma das causadoras da usurpação dos Estados pontifícios” (BARATA, 1999, p. 104). Em 1884, na encíclica Humanum genus, Leão XIII constata que “a seita dos mações fez progressos incríveis. Empregando simultaneamente a audácia e a astúcia, invadiu ela todas as categorias da hierarquia social, e começa a assumir, no seio dos Estados modernos, um poder que equivale quase à soberania” (LEÃO XIII, 1955, p. 6). O documento associa a Maçonaria à “corrente naturalista”, pois esta defende que “em todas as coisas a natureza ou a razão devem ser soberanas”, fazendo pouco caso “dos deveres para com Deus” (LEÃO XIII, 1955, p. 10). Leão XIII afirma que aos maçons, “pela palavra, pela pena, pelo ensino, é permitido atacar os próprios fundamentos da religião católica” (LEÃO XIII, 1955, p. 11). No cenário político, o papa constata que os católicos estariam lidando

[…] com um inimigo astuto e fecundo em argumentos. Ele prima em fazer cócegas agradavelmente nos ouvidos dos príncipes e dos povos; tem sabido prender uns e outros pela doçura de suas máximas e pelo engodo das suas lisonjas (LEÃO XIII, 1955, p. 21).

Leão XIII parece estar se preparando para uma cruzada, associando a atuação da Maçonaria inclusive ao processo de revoluções ocorridas na Europa. Os críticos da ordem estabelecida, da qual fariam parte tanto socialistas como a Maçonaria e mesmo outros setores da sociedade, afirmariam que “foi a Igreja, foram os soberanos que sempre fizeram obstáculo a que as massas fossem arrancadas a uma servidão injusta, e libertadas da miséria” (LEÃO XIII, 1955, p. 21-2). Leão XIII defendia a necessidade de “fazer desaparecer o contágio impuro do veneno que circula nas veias da sociedade e a infeta toda”, promovendo “a glória de Deus e a salvação do próximo” (LEÃO XIII, 1955, p. 23).

Não havia no interior da Maçonaria uma forma única de encarar a Questão Religiosa ou mesmo a relação com a Igreja. Pode-se afirmar que esse conflito entre Igreja Católica e maçonaria “foi historicamente datado, não representava um antagonismo eterno. Não havia até então, apesar da animosidade do Vaticano e de setores eclesiásticos, incompatibilidade entre catolicismo e maçonaria no Brasil” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 155). José Maria da Silva Paranhos, mais conhecido como Visconde do Rio Branco, Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, afirmava haver uma especificidade da Maçonaria brasileira em relação aos seus congêneres europeus. Segundo ele, “se as lojas maçônicas europeias interferiam excessivamente nos aspectos ligados à religião e à política dos Estados, as lojas brasileiras se ocupavam precipuamente do aperfeiçoamento moral e intelectual do homem e de atos beneficentes” (BARATA 1999, p. 96-97). Essa concepção, que destacava o caráter apolítico e beneficente da Maçonaria, fortalecia as posições regalistas, que se estruturavam a partir da noção de subordinação da Igreja ao Estado. Essas posições se chocavam com os setores liberais da Maçonaria, liderados por Saldanha Marinho, para quem “a liberdade de consciência era incompatível com o regime de união entre Igreja e Estado” (BARATA 1999, p. 99).

Portanto, considerando o ocorrido na chamada Questão Religiosa, percebe-se que muitos dos elementos de crítica à Maçonaria por parte da Igreja permanecem na contemporaneidade. Contudo, como se percebe, são questões episódicas, considerando que, a despeito de não se associar a nenhuma religião diretamente, a Maçonaria, em teoria, não proíbe crenças dentro de suas lojas. Nas últimas décadas, ao desvelar o véu de mistério da Maçonaria, muitos pesquisadores acadêmicos foram capazes de mostrar a ordem como uma organização atuante política e socialmente no meio em que está inserida (SILVA, 2015). Esses elementos mostram a importância de se olhar os fenômenos sociais livre de preconceitos, procurando superar as representações quase ficcionais construídas nos dois últimos séculos, olhando os fenômenos em sua concretude e contradições.

Autor: Michel Goulart da Silva

Michel Goulart é técnico em assuntos educacionais do Instituto Federal Catarinense (IFC). Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail para contato: michelgsilva@yahoo.com.br

Fonte: SILVA, M. G. da . MAÇONARIA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 12, n. 36, p. 14–18, 2022. DOI: 10.5281/zenodo.7482446. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/772. Acesso em: 7 mar. 2023.

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Referências

BARATA, A. M. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

BENIMELI, J. F. La masonería. Madrid: Alianza, 2013.

BERGAMO, M. “Maçonaria repudia ‘produção imbecil’ de ‘informações falsas’ depois de vídeo de Bolsonaro”. Folha de São Paulo [2022]. Disponível em: <www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 23/09/2022.

CASTELLANI, J. Ação secreta da maçonaria na política mundial. São Paulo: Editora Landmark, 2001.

DIAS, E. Semeando: palestras e conferências. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Escola Profissional Maçônica José Bonifácio, 1921.

LEÃO XIII. Sobra a Maçonaria. Petrópolis: Editora Vozes, 1955.

MOREL, M.; SOUZA, F. J. O. O poder da maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008.

OLIVEIRA, P. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.

SERBIN, K. P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008.

SILVA, M. G. Entre a foice e o compasso: imprensa, socialismo e Maçonaria na trajetória de Everardo Dias na primeira república (Tese de Doutorado em História). Florianópolis: UFSC, 2016.

SILVA, M. G. “Maçonaria e anticlericalismo no jornal O Livre Pensador”. Revista de Estudios Historicos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña, n. 12, 2019. SILVA, M. G. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

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Maçonaria Virtual – ameaça ou oportunidade?

Relembremos o início de 2020, quando a Maçonaria se sentiu seriamente ameaçada pela pandemia do coronavírus, com a suspensão das reuniões presenciais, com impactos na economia global, de vidas que se foram e o isolamento a que quase todos foram submetidos.

Por que o choque na Maçonaria seria diferente quando comparada às demais atividades? O que parecia ser especulação para um futuro distante, a pandemia encurtou os caminhos.

De plano ganhou corpo o recurso dos encontros por videoconferência, com a utilização das várias plataformas disponíveis, que atenuou o impacto das restrições impostas a grande parte das atividades presenciais.

No que foi possível, setores da sociedade passaram a trabalhar com novos cenários. O mundo deu continuidade, no que foi possível, ao que poderia ser feito por trás de uma tela, como uma nova referência, um marco na história.

Na Maçonaria, diversas Lojas souberam aproveitar a tecnologia e muitos irmãos atualizaram seus computadores pessoais e aparelhos celulares para acompanhar a nova forma de manter aquecidos os laços de fraternidade que representam a efetiva garantia da continuidade da Ordem.

Não se pode olvidar que boa parte dos irmãos resistiu em participar das reuniões por videoconferência, devido a uma série de motivos ou mesmo credos pessoais. Alguns fizeram propaganda contra, outros sustentaram posição crítica e Potências chegaram a condenar o acesso dos obreiros a qualquer formato de evento maçônico virtual. O achismo se revelou como a principal fonte das argumentações contrárias.

Um grupo visionário percebeu a oportunidade de explorar nova forma de manter o aprendizado em Loja, sem descurar dos cuidados em preservar a ritualística e os arcanos da Ordem, estes somente praticados em sessões presenciais e, com isso, várias reuniões de estudos foram oportunizadas, contando com a participação de obreiros regulares de Potências reconhecidas e de diferentes Orientes.

Na segunda metade de 2020, ganhou realce a fundação das lojas virtuais “Lux In Tenebris – Nº 47”, em 25 de setembro, ligada à Grande Loja de Rondônia (GLOMARON); e “Luz e Conhecimento – Nº 103”, em 5 de novembro, da Grande Loja do Pará (GLEPA). Ambas com sucesso de participantes semanalmente e de temas cativantes e discussões acaloradas, mas que sofreram ácidas críticas por parte de seus detratores. Foram vitoriosas e hoje colhem os frutos daquela ousadia.

Marco nos anais da Maçonaria no Brasil aconteceu no dia 21 de abril de 2021 com a fundação da Academia Maçônica Virtual Brasileira de Letras (AMVBL), “com o propósito de integrar uma rede nacional de escritores maçons, voltada para o desenvolvimento da produção literária, tanto no campo maçônico, quanto na língua e literatura em geral”. Segundo seus idealizadores, como “fruto de uma concepção que busca acompanhar com responsabilidade as mudanças que estão ocorrendo em pleno século XXI, e que dialogam com as tendências de uma humanidade cujo uso de novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) são irreversíveis e se dinamizam em uma velocidade sem precedentes na história”. No 1º aniversário da AMVBL foi lançado o livro “Honra a quem Honra – Expoentes da Maçonaria Brasileira”, contendo a história sintetizada de grandes maçons que contribuíram cada um a seu modo para a elevação da cultura e fortalecimento da Ordem.

Iniciativa de grande repercussão foi a criação do “Grupo de Estudos Maçônicos” que teve seu primeiro calendário de atividades virtuais divulgado no primeiro semestre de 2021, com encontros semanais para discussão de conteúdo filosófico das instruções que compõem os três graus simbólicos do Rito Escocês Antigo e Aceito, porém, como ressaltado acima, preservando os arcanos que somente podem ser estudados e comentados em Loja. Do grupo, como instrutores, participam membros das três Potências Regulares, deixando um legado incomensurável.

Merece destaque o grupo “Lives Maçônicas”, lançado em 20 de março de 2020, que promove reuniões virtuais todos os domingos às 19h00, com trabalhos apresentados por irmãos regulares do Brasil e do exterior, com o objetivo de “levar conteúdo maçônico de qualidade, credibilidade e realizar a interação dos irmãos através da tecnologia”. Na mesma linha, criado em 5 de agosto de 2020, o “Grupo Epaminondas Online” de estudos e pesquisas promove encontros virtuais nas manhãs de domingo, sempre às 8h00.

Vários grupos, Lojas e Academias Maçônicas de Letras, como as de Rondônia (AMLRO), Piracicaba (SP) e Mineira (AMML) seguiram a mesma iniciativa dos encontros por videoconferência e novas lojas maçônicas virtuais estão em fase de organização. A AMML já lançou dois volumes do livro “A Verdade dos Inconfidentes”.

Para fins de pesquisa, o Blog “O Ponto Dentro do Círculo” (https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/), desde 2015 divulga artigos sobre Maçonaria, Filosofia, História, Sociedade e Cultura e ganhou ainda mais fôlego, tendo ultrapassado a marca de mais de dois milhões e cem mil visualizações. No seu acervo constam mais de 1.700 postagens de artigos e trabalhos selecionados, publicações do JB News, outros periódicos maçônicos, podcasts, além de sugestões de leitura na aba “Biblioteca”. Na mesma linha, o “Blog do Pedro Juk” (http://pedro-juk.blogspot.com/), fonte de referência para maçons de todos os Ritos. Dezenas de outros sites sobre Maçonaria ganharam projeção durante a pandemia da Covid-19 e agora estão consolidados e prestigiados.

Mundo afora, o formato virtual está bombando. Na prática, testemunhou-se a expansão dos Templos, fazendo acontecer uma revolução na direção da integração de maçons de todas as Potências, de uma forma impensável até há pouco tempo, envolvendo Oficinas de todos os rincões do Brasil, inclusive do exterior. Com isso, um novo “Landmark” temporal, um moderno ciclo foi instituído e parece improvável o retorno ao status quo ante, com as inquestionáveis vantagens da acessibilidade e da comodidade.

Tal experiência fez valer a assertiva de que o verdadeiro Templo Maçônico não se constitui de pedra e madeira, mas com os elementos morais erguidos no coração de cada Maçom, como destacado em momentos de introspecção na abertura de muitos trabalhos virtuais. Ademais, com a retomada das reuniões presenciais, o instrumento continua sendo utilizado como ferramenta complementar do tempo de estudos e compartilhamento de experiências e conhecimentos úteis.

Desnecessário tecer maiores reflexões já recorrentes sobre a importância de participar, marcar presença, ou daquela expressão “quem não é visto não é lembrado”, mesmo em reuniões virtuais, criando-se uma rede consolidada de irmãos regulares que atualmente torna mais próximos obreiros dos mais longínquos Orientes, promovendo novos vínculos e ajuda mútua em situações mais complexas, fazendo valer o sentido da fraternidade na sua acepção maior.

 Atualmente, muitas Lojas são questionadas sobre o que fizeram nessa travessia e já se comenta sobre a defasagem entre os que deram continuidade aos estudos e na integração proporcionada pelas reuniões virtuais e os que permaneceram acomodados ou resistiram às oportunidades oferecidas.

Segundo uma sábia expressão hermética, “quando tudo parece perdido é quando tudo será salvo”, portanto, não era o que todos queriam, mas era o que se oferecia naquele momento! Aqueles que souberam aproveitar, não se arrependeram. Fizeram do limão uma limonada, preservando as tradições e expandiram os saberes e as redes de relacionamentos.

A triste e verdadeira ameaça virtual ganhou destaque por intermédio das ciladas engendradas por um grupo de oportunistas que passaram a explorar os incautos, representada pela maçonaria espúria, irregular e clandestina, adotando uma espécie de “vale-tudo” para atrair os desavisados e tirar o sossego e dinheiro daqueles que não sabem separar o joio do trigo. Essas organizações gananciosas investem em propagandas, almoços e jantares, convites para “reuniões brancas” e homenagens. As Potências Regulares (CMSB, GOB e COMAB) precisam urgentemente criar mecanismos de integração e controle que orientem seus obreiros para sanar eventuais dúvidas que possam surgir no processo de esclarecimento aos novos candidatos e campanhas públicas carecem ser divulgadas nos meios de comunicação disponíveis.

Aos gestores cumpre, enfim, o dever de enfrentar os temas mais polêmicos que nossas Lojas presenciais ainda resistem em colocar na Ordem do dia. Para isso, nossas Potências precisam rever o arcabouço regulamentar e reescrever suas Constituições e Regulamentos de forma a retirar referências a documentos históricos ultrapassados, alguns verdadeiros entulhos que ensejam um descompasso evolutivo e criam barreiras à tentativa de irmãos que vislumbram novo protagonismo para a moderna Maçonaria, no sentido de que esta assuma postura mais executiva ao promover discussões internas de pautas de interesse da sociedade e promover debates públicos que favoreçam o direcionamento da inteligência dos obreiros para a solução e encaminhamento de questões políticas e sociais, mostrando a competência e a força moral da Maçonaria.

“Aprendi que as oportunidades nunca são perdidas; alguém vai aproveitar as que você perdeu” (Shakespeare).

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da Loja Maçônica Águia das Alterosas Nº 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte; Membro Academia Mineira Maçônica de Letras e da Academia Maçônica Virtual Brasileira de Letras; Membro da Loja Maçônica de Pesquisas “Quatuor Coronati” Pedro Campos de Miranda; Membro Correspondente Fundador da ARLS Virtual Luz e Conhecimento Nº 103 – GLEPA, Oriente de Belém; Membro Correspondente da ARLS Virtual Lux in Tenebris Nº 47 – GLOMARON, Oriente de Porto Velho; Membro Correspondente da Academia de Letras de Piracicaba; colaborador do Blog “O Ponto Dentro do Círculo”.

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Psicologia e Maçonaria – O ego

“Todos os homens são iguais perante o Grande Arquitecto do Universo. O trabalho de cada um é o que o distingue dos demais!”

Uma definição de ego (sob o ponto de vista maçónico)

Profunda é a diferença entre eu e ego, pois enquanto o ego significa a pessoa humana vivente, o “eu” é a parte divina dentro do homem.

Eu é o nome de Deus. O maçom não pode dizer: “eu sou maçom”, porque pretenderia tomar o lugar de Deus. O eu comanda o espírito; o ego, a consciência.

Da palavra ego origina-se de “egoísmo”, que é a forma negativa da personalidade humana.

Porém, em certas ocasiões, o homem necessita desse egoísmo; quando zela pelos seus interesses, pelo seu bem-estar, pela sua saúde, o egoísmo é salutar. Na máxima bíblica: “Ama o próximo como a ti mesmo”, encontramos a expressão egoísta de que, “antes de amar o próximo”, o homem deve aprender a amar a si mesmo, como exercício e como campo experimental, para depois poder com eficiência amar o próximo.

O maçom deve observar esses aspectos “lapidares”, tanto na sua vida maçónica como profana.

Não pronunciar o nome de Deus em vão; o “eu sou” que é o nome de Deus deve ser evitado, como por exemplo: “eu sou bom”; “eu faço isto ou aquilo”.

O maçom deve ser prudente no falar. Breviário Maçónico / Rizzardo da Camino.

A questão do ego e o simbolismo do Graal

Segundo a tradução cristã, o Graal é o vaso que José de Arimateia usou para recolher o sangue de Cristo, quando o centurião Longino o feriu mortalmente com uma lança. O seu nome origina-se no facto de ser o recipiente que armazenou o sangue real, ou, em francês, Sang Real, termo que se corrompeu em Saint Graal. Depois, José de Arimateia acompanhou Maria até à Gália, onde a santa levou o Evangelho, e José prosseguiu até à Inglaterra levando consigo o Graal. O cálice, lapidado da esmeralda que caíra da coroa de Lúcifer depois da Queda, acabou por se perder na dimensão das terras inglesas. O seu desaparecimento, segundo a lenda, motivou um período de devastação e guerras, a que só a sua descoberta motivaria num regresso à normalidade. Assim, o rei Artur (da Távola Redonda) ordenou aos seus cavaleiros que encetassem a sua procura e descoberta. Esta procura simboliza a procura humana pela sua evolução de consciência – o casamento sagrado entre o ego e a alma humana.

O Graal só poderia ser recuperado quando o cavaleiro perfeito entrasse no castelo do Rei Ferido – ou, de acordo com outras tradições, como na ópera Parcifal, de Wagner, o Rei Pescador, o guardião do Graal e ao mesmo tempo o próprio Rei Ferido, símbolo do ser humano e da sua fragilidade decorrente da separação entre o ego e o eu, encetasse a sua recuperação ou o resgate do ser humano integral. Depois de entrar no castelo o cavaleiro deveria fazer a seguinte pergunta: “A quem serve o Graal?”

O ego e a maçonaria

Na sua iniciação maçónica o candidato realiza três viagens simbólicas, antes de efectuar o seu juramento, e nessas viagens encontra uma série de obstáculos a ultrapassar. Contudo, essas caminhadas simbólicas não simbolizam os perigos físicos nelas invocadas, mas sim as ciladas do próprio ego. Os caminhos difíceis e plenos de obstáculos constituem uma séria advertência e preparam, enrijecem e temperam o indivíduo no sentido de não sucumbir à tentação de contornar os perigos. As dificuldades não devem ser contornadas, mas enfrentadas e superadas.

O egoísmo assume a defesa do próprio bem-estar e não se atém ás necessidades dos demais. Todas as tempestades pronunciam o bom tempo. As intempéries da vida significam a permanente luta entre o ego e o eu. O Iniciado contempla, no seu palco da Vida, a atuação do seu ego sem, contudo, se identificar com ele. O ego abala-se com a tempestade, sofre as rajadas do vento, receia o granizo e teme o raio; mas o eu contempla serenamente essas adversidades, porque sabe que se coloca acima de qualquer perigo. Não é importante aquilo que acontece ao redor do Iniciado, porque ele sabe que tudo o que vem de fora não lhe poderá fazer mal algum. Deverá temer, sim, o que possa sair do seu íntimo; uma palavra áspera, um pensamento inadequado, uma atitude insólita, são perigos reais a que o eu deve atentar. “O que de fora entra no homem não torna o homem impuro, mas tão só o que dentro dele sai.”

A Vida é uma tragicomédia. O profano faz parte da peça e actua como um “títere”, levando muito a sério o papel que desempenha. O Iniciado vê-se obrigado a tomar parte na representação, mas tem a consciência de que está a actuar num palco; sabe que é um “comediante”.

O homem-ego é um pecador (pecado no sentido físico-mental-emocional) e sua redenção jamais poderá surgir desse mesmo ego. Não será o ego que redimirá o próprio ego. É preciso um poder mais alto e esse poder é o Grande Arquiteto do Universo, identificado com o eu interno, que o Cristianismo denomina de Cristo. O apóstolo São Paulo, na carta que escreveu aos Romanos (7:19), assim se expressava: “Está em mim o querer o bem, mas não o poder; pois não faço o bem que quero, não sou eu que ajo (o meu Eu divino), mas sim o pecado em mim (o ego humano). Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo mortífero? (desse ego humano). A graça de Deus, por Jesus Cristo (o Eu divino)”. São os “dois eus” em conflito; é claro que para o homem resulta muito mais cómodo seguir o impulso do ego que escutar a orientação do eu. São Paulo compreendeu muito bem o mistério e como ego se entregou totalmente ao Eu redentor e então pôde dizer feliz: “Já não sou eu (ego humano) que vive. O Cristo (o Eu divino) é que vive em mim.”

O ego, segundo Jung

“Ego” é um termo técnico cuja origem é a palavra latina que significa “eu”.

Embora Jung estivesse mais interessado em descobrir o que havia abaixo da consciência, nas regiões interiores da psique, ele também assumiu a tarefa de descrever e explicar a consciência humana. Para Jung, estudar a consciência seria dirigir a atenção para o instrumento fundamental da própria investigação e exploração psicológicas. Por isso é tão importante em psicologia entender a natureza da consciência do ego. Disse Jung que toda a psicologia é uma confissão pessoal. Todo o psicólogo criativo está limitado pelas suas próprias preferências pessoais e pelos seus pressupostos não examinados. Muito do que possa ser o conhecimento entre os seres humanos é, na realidade, após inspecção mais rigorosa e mais crítica, mero preconceito ou crença baseada em distorções, especulações, boatos ou pura fantasia.

Jung define o “ego” nos seguintes termos: “Entendemos por ego aquele factor complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este factor que constitui, por assim dizer, o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a “personalidade empírica”, o ego é o sujeito de todos os actos conscientes da pessoa.” O termo ego refere-se à experiência que a pessoa tem de si mesma como um centro de vontade, de desejo, de reflexo e acção.

Jung dá sequência a este entendimento do ego no quadro psique, deste modo: “ A relação de qualquer conteúdo como ego funciona como critério para saber se este último é consciente, pois não há conteúdo que não se tenha apresentado antes ao sujeito”. O “ego” é um sujeito a quem os conteúdos psíquicos são “apresentados”. É como um espelho. Além disso, a ligação com o ego é a condição necessária para tornar qualquer coisa consciente – um sentimento, um pensamento, uma percepção ou fantasia. o ego é uma espécie de espelho no qual a psique pode ver-se a si mesma e pode tornar-se consciente. O grau em que um conteúdo psíquico é tomado e reflectido pelo ego é o grau em que se pode afirmar que ele pertence ao domínio da consciência. Quando um conteúdo psíquico só é vago ou marginalmente consciente, é porque não foi ainda captado e mantido no seu lugar da superfície reflectora do ego.

Nas passagens que se seguem a esta definição do ego, Jung estabelece uma distinção crucial entre as características conscientes e inconscientes da psique: consciência é o que conhecemos e inconsciência é tudo aquilo que ignoramos. Um outro estudo torna esta definição mais precisa: “O inconsciente não se identifica simplesmente com o desconhecido; é antes o psíquico desconhecido, ou seja, tudo aquilo que presumivelmente não se distinguiria dos conteúdos psíquicos conhecidos, quando chegasse à consciência.” O inconsciente inclui todos os conteúdos psíquicos que se encontram fora da consciência, por qualquer razão ou duração. Na realidade, essa é a grande massa constituinte do mundo psíquico.

O que é então a consciência, esse campo onde o ego está localizado e cujo centro é por este último ocupado e definido? A consciência é muito simplesmente, o estado de conhecimento e entendimento dos eventos externos e internos. É o estar desperto e atento, observando e registando o que acontece no mundo ao redor e dentro de cada um de nós. O oposto de consciência é o sono profundo e sem sonhos, a ausência total de reactividade e da capacidade de perceber e sentir.

O que o desenvolvimento faz à consciência é adicionar-lhe um conteúdo específico. Em teoria, a consciência humana pode ser separada do seu conteúdo – os pensamentos, lembranças, identidades, fantasias, emoções, imagens e palavras que afluem e se aglomeram no seu espaço. Mas na prática isso é quase impossível. Para a maioria das pessoas a consciência sem um objecto estável para lhe servir de âncora, de fundamento, parece ser uma coisa extremamente efémera e transitória. A substancialidade

da consciência e o sentimento de solidez são tipicamente fornecidos por objectos estáveis, tais como imagens, recordações e pensamentos. A consciência é como um quarto cujas quatro paredes cercam o conteúdo psíquico que temporariamente o ocupa. E a consciência precede o ego, o qual se converte, em última instância, no seu centro.

O ego, como a consciência, também transcende e sobrevive ao conteúdo específico que, em qualquer momento determinado, ocupa o quarto da consciência. O ego é o ponto focal no interior da consciência, a sua característica mais central e talvez mais permanente. Contra a opinião dos orientais, Jung argumenta que sem um ego, a própria consciência se torna discutível. Mas é verdade que certas funções do ego podem ser suspensas ou aparentemente obliteradas sem se destruir a consciência por completo e, assim, uma espécie de consciência sem ego, um tipo de consciência que apresenta muito poucas provas evidentes de um centro obstinado, de um “eu”, é uma possibilidade humana, pelo menos durante certos períodos.

Para Jung, o ego forma o centro crítico da consciência e, de facto, determina em grande medida que conteúdos permanecem no domínio da consciência e quais se retiram, pouco a pouco, para o inconsciente. O ego é responsável pela retenção de conteúdos na consciência, e pode eliminar conteúdo da consciência deixando de os reflectir. Também pode recuperar conteúdo da armazenagem do inconsciente (isto é, do banco de memória) desde que (a) não estejam bloqueados por mecanismos de defesa, como a repressão, os quais mantêm os conflitos intoleráveis fora do alcance e (b) tenham uma ligação associativa suficiente forte com o ego – isto é, foram “apreendidos” com suficiente solidez.

O ego não é fundamentalmente constituído e definido pelos conteúdos adquiridos da consciência, tais como as identificações momentâneas ou mesmo crónicas. É algo como um espelho ou um imã que segura um conteúdo num ponto focal da consciência. mas também quer e age. Como centro vital da consciência, precede a aquisição da linguagem, a identidade pessoal e até o conhecimento de um nome pessoal. As aquisições subsequentes, como o reconhecimento do próprio rosto e nome, são conteúdos que se aglomeram em torno desse centro de consciência e têm o efeito de definir o ego e ampliar a sua faixa de comando executivo e de autoconhecimento. Fundamentalmente o ego é um centro virtual de percepção consciente que existe, pelo menos, desde o nascimento, o olho que vê e sempre viu o mundo desde essa vantajosa posição, desde esse corpo, desde esse ponto de vista individual. Em si mesmo, não é nada, quer dizer, não é uma coisa. Portanto, é algo sumamente esquivo e impossível de imobilizar. Pode-se negar até que ele exista. E, no entanto, está sempre presente. Não é produto de criação, crescimento ou desenvolvimento. É inato. Embora possa ser mostrado que se desenvolve e adquire vigor desse ponto em diante, através de “colisões” com a realidade, o seu núcleo é “dado”. Chega com a criança recém-nascida.

Da forma como Jung descreve a psique, existe uma rede de associações, uma rede de associações entre os vários conteúdos da consciência. Todos eles estão ligados directa ou indirectamente à agência central, o ego. O ego é o centro da consciência, não só geográfica, mas também dinamicamente. É o centro de energia que movimenta os conteúdos da consciência e os organiza por ordem de prioridade. O ego é o locus da tomada de decisões e do livre-arbítrio. É o executivo que fixa as prioridades. Embora o ego possa ser visto como o centro de toda a conduta interesseira (ego-ísmo), ele também é o do altruísmo. Ele é, em si mesmo e como Jung o entendeu e descreveu, moralmente neutro, não é uma “coisa má”, e, portanto, subsiste como uma parte necessária à vida da consciência humana. O ego é o que separa os humanos de outras criaturas da natureza que também são dotadas de consciência; é também o que separa o ser humano individual de outros seres humanos. É o agente individualizante na consciência humana.

O ego focaliza a consciência humana e confere à nossa conduta consciente a sua determinação e direcção. Porque temos um ego, possuímos a liberdade para fazer escolhas que podem desafiar os nossos instintos de autopreservação, propagação e criatividade. O ego contém a nossa capacidade para dominar e manipular vastas somas de material da consciência. É um poderoso íman associativo e um agente organizacional. Uma vez que os humanos possuem tal força no centro da consciência, eles estão aptos a integrar e dirigir grandes quantidades de dados. Um ego forte é aquele que pode obter e movimentar de forma deliberada grandes somas de conteúdo consciente. Um ego fraco não pode executar esse género de trabalho e sucumbe mais facilmente aos impulsos e reações emocionais. Um ego fraco é facilmente distraído e, por consequência, carece de foco e motivação consistente.

É possível aos humanos manterem-se conscientes mesmo que suspendam uma boa parte do funcionamento normal do ego. Pelo exercício da vontade, podemos ser passivos e inativos, e observar simplesmente o mundo interior e exterior, como uma máquina fotográfica. Normalmente, porém, não é possível manter por muito tempo uma consciência observacional volitivamente restringida, porque o normal é o ego e a psique que o integra serem rapidamente envolvidos pelo que está sendo observado. Quando assistimos a um filme, por exemplo, podemos começar simplesmente a observar, recebendo passivamente as pessoas e os cenários. Mas não tardaremos a identificar-nos com este ou aquele personagem, e as nossas emoções são ativadas. O ego prepara-se para agir e se a pessoa tem dificuldade em distinguir entre o lado cinematográfico e a realidade (uma outra função do ego), ela pode ser tentada a enveredar por um comportamento físico. O corpo é então mobiliado e o ego visa um determinado curso de acção intentando concretizá-lo. Envolvido desse modo o ego é então activado como um centro de desejos, esperanças e intenções.

Como fica evidente, a liberdade do ego é limitada. O ego é facilmente influenciado por estímulos psíquicos internos e ambientais externos.

As origens do ego situam-se antes dos primeiros dias da infância. Até mesmo um bebé de meses nota a ocorrência de mudanças no seu meio ambiente, algumas das quais lhe parecem agradáveis e estende os braços para as agarrar. Estes sinais precoces de intencionalidade de um organismo são provas evidentes no que toca às raízes primordiais do ego, a “egoicidade” do indivíduo.

Jung diria que o ego é o centro da consciência. O “eu” sente, talvez ingenuamente, que a sua existência é eterna. É uma questão em aberto saber se o “eu” muda essencialmente ao longo de uma vida. Embora muitas características do ego se desenvolvam e mudem, sobretudo no que se refere à cognição, autoconhecimento, identidade psicossocial, competência, etc., uma pessoa também se apercebe de uma importante continuidade do núcleo do ego. Provavelmente o núcleo essencial do ego não mude ao longo da vida. Isso talvez possa explicar também a forte intuição e convicção de muitas pessoas em que esse núcleo do ego não desaparece com a morte física, mas ou vai para um lugar eterno de repouso (céu. nirvana) ou renasce numa outra vida no plano físico (reencarnação).

Ainda segundo Jung, poderíamos ser tentados a definir o ego como a consciência do si-mesmo e do corpo como unidade atuante, individual, limitada e ímpar. Se, por exemplo, a pessoa tivesse recebido um nome diferente, poder-se-ía argumentar que o seu “eu” fundamental não seria diferente do que é; mas se tivesse um corpo diferente, seria o seu ego essencialmente outro?

O ego está, assim, enraizado profundamente no corpo, até muito mais do que na sua cultura, mas até que ponto essa conexão é profunda, eis um possível ponto susceptível de debate. Não obstante, o ego teme profundamente a morte do corpo. É o medo que à extinção do corpo se siga o desaparecimento do ego. Segundo Jung, porém, o ego não está estritamente limitado à base somática. No Aion, ele declara que o ego “não é um factor simples ou elementar, mas um complexo que, como tal,

não pode ser exaustivamente descrito. A experiência mostra que ele assenta em duas bases aparentemente diferentes, a somática e a psíquica.”

No pensamento de Jung, a psique não pode ser reduzida a mera expressão do corpo, ao resultado da química do corpo ou de algum processo de natureza física. Pois a psique também tem participação da mente ou espírito (a palavra grega nous capta melhor o pensamento de Jung sobre este ponto) e, como tal, pode transcender e, ocasionalmente, transcende a sua localização física. Psique e corpo, para Jung, não são conceitos coincidentes nem um deriva do outro. Também o ego, que é predominantemente tratado por Jung como um objecto completamente psíquico, só em parte repousa numa base somática. O ego está baseado no corpo tão só no sentido em que experimenta a unidade com o corpo, mas o corpo que o ego experimenta é psíquico. É uma imagem do corpo e não o próprio corpo. O corpo é experimentado “a partir da totalidade de percepções endossomáticas”, ou seja, a partir do que a pessoa pode conscientemente sentir do corpo. Essas percepções do corpo “são produzidas por estímulos endossomáticos, dos quais somente alguns transpõem o limiar da consciência. Uma considerável proporção desses estímulos ocorre inconscientemte, isto é, subliminarmente… O facto de serem estímulos subliminares não significa necessariamente que o seu status seja de mera natureza fisiológica, como tampouco seria verdadeiro a propósito de um conteúdo psíquico.

Jung traça de uma linha de fronteira da psique para incluir a consciência do ego e o inconsciente, mas não a base somática como tal. Muito processos fisiológicos nunca transitam para a psique, nem mesmo para a psique inconsciente. Em princípio, são incapazes de se tornar alguma vez conscientes. É evidente que o sistema nervoso simpático, por exemplo, é em sua maior parte inacessível à consciência. Quando o coração pulsa, o sangue circula e os neurónios disparam, alguns processos somáticos, mas não todos, podem tornar-se conscientes. Não está claro em que medida a capacidade do ego em penetrar na base somática pode ser desenvolvida. Iogues treinados afirmam ser capazes de exercer considerável controle sobre os processos somáticos. Até que profundidade da subestrutura celular pode o ego penetrar? Pode um ego treinado reduzir um tumor canceroso, por exemplo, ou dominar eficazmente a hipertensão? Muitas indagações subsistem.

Cumpre ter em mente que existem dois limiares: o primeiro separa a consciência do inconsciente, o segundo separa a psique (consciente e inconsciente) da base somática. Não são, contudo, barreiras físicas e rígidas. Estas devem ser concebidas como barreiras fluidas. Para Jung, a psique abrange a consciência e o inconsciente, mas não inclui todo o corpo na sua dimensão puramente fisiológica. O ego, sustenta Jung, está baseado no soma psíquico, isto é, numa imagem do corpo, e não no corpo per se. Portanto, o ego é essencialmente um factor psíquico.

A localização do ego

Todo o território da psique é quase completamente coincidente com a extensão potencial do ego. A psique, conforme Jung a define nesta passagem, está restringida por, e limitada a, onde o ego pode, em princípio, chegar. Isto não significa, entretanto, que a psique e o ego sejam idênticos, uma vez que a psique inclui o inconsciente e o ego está mais ou menos limitado à consciência. Mas o inconsciente é, pelo menos, potencialmente acessível ao ego, mesmo se o ego, na realidade, não tenha muita experiência de contactos com ele. A questão aqui é que a própria psique tem um limite, e esse limite é o ponto em que

os estímulos ou conteúdos extrapsíquicos não podem, em princípio, já ser conscientemente experimentados.

Para Jung o ego apoia-se no campo total da consciência e, por outro lado, na soma total de alguns conteúdos inconscientes. Estes enquadram-se em três grupos: primeiro, os conteúdos temporariamente subliminares que podem ser reproduzidos voluntariamente (memória)… segundo os conteúdos inconscientes que não podem ser reproduzidos voluntariamente…terceiro, os conteúdos que são totalmente incapazes de se tornarem conscientes. Este último ponto Jung coloca-o no campo da psique, dentro do inconsciente, mas numa região não-psíquica, isto é, no “mundo” para além da psique. Esse mundo não-psíquico está situado dentro do inconsciente. Neste ponto, acercam-nos das fronteiras de grandes mistérios: a base para a recepção extra psíquica, a sincronicidade, as curas milagrosas dos corpos e outros.

O ego, declara Jung no Aion, assenta em duas bases: uma somática (corpórea) e uma psíquica. cada uma dessas bases é constituída de múltiplas camadas e existe parcialmente na consciência, mas sobretudo no inconsciente. Dizer que o ego assenta em ambas é dizer que as raízes do ego mergulham no inconsciente. Na sua estrutura superior, o ego é racional, cognitivo e orientado para a realidade, mas nas suas camadas mais profundas e escondidas está sujeito ao fluxo da emoção, fantasia e conflito, e às intrusões dos níveis físico e psíquico do inconsciente. O ego pode, portanto, ser facilmente perturbado por problemas somáticos e por conflitos psíquicos. Entidade puramente psíquica, centro vital da consciência, sede da identidade e da volição, o ego, nas suas camadas mais profundas, é vulnerável a perturbações oriundas de muitas fontes.

O ego deve ser distinguido do campo de consciência onde está alojado e para o qual constitui o ponto focal de referência. Tal como William James, que distingue o ego e o “a mim”, Jung descreve uma diferença entre o ego e o que James classificou como “a corrente da consciência”. O ego é um ponto que mergulha na corrente de consciência e poder separar-se desta ao dar-se conta de que ela é algo diferente de si mesmo. A consciência não está totalmente sob o controle do ego, mesmo que se coloque a uma distância suficiente dele para observar e estudar o seu fluxo. O ego movimenta-se no interior do campo da consciência, observando, selecionando, dirigindo a atividade motora até uma certa medida, mas ignorando uma considerável soma de material que a consciência está, por outro lado, levando em consideração. Se conduzirmos um automóvel por uma estrada que nos é familiar, a atenção do ego desviar-se-á frequentemente e ocupar-se-á de outros assuntos alheios à condução. Neste meio termo, entre a partida e chegada, chegámos sãos e salvos ao destino, e questionamo-nos sobre esse facto. O foco da atenção estava noutro lugar, o ego divagara e entregara a condução do carro à consciência não-egóica. Nesse meio tempo, a consciência, apartada do ego, está constantemente monitorando, captando, processando e reagindo à informação. Se ocorrer uma crise, o ego retoma e assume o comando. O ego concentra-se muitas vezes numa lembrança, num pensamento ou sentimento, ou em planos que extraiu da corrente da consciência. Deixa outras operações de rotina para uma consciência habituada e não- patológica de dissociação. O ego pode, em certa medida, dissociar-se da consciência.

Embora um ego rudimentar ou primitivo pareça estar presente desde os mais recuados momentos da consciência como uma espécie de centro virtual ou ponto focal, ele cresce e desenvolve-se em importantes aspectos durante a infância. Escreve Jung: “Embora as suas bases sejam relativamente desconhecidas e inconscientes, psíquicas e somáticas, o ego é um factor consciente por excelência. É um dado adquirido, empiricamente falando, ao longo de toda a vida do indivíduo. Parece surgir, em primeiro lugar, da colisão entre o factor somático e o meio ambiente e, uma vez estabelecido como um sujeito, continua a desenvolver-se em consequência de sucessivas colisões com os mundos exterior e interior.” O

que faz o ego crescer, segundo Jung, é o que ele designa por “colisão”. Por outras palavras, conflito, dificuldades, angústia, pena, sofrimento. São estes os factores que levam o ego a desenvolver-se. As condições exigidas a uma pessoa para adaptar-se a ambientes físicos e psíquicos apoiam-se num centro potencial na consciência e fortalecem a sua capacidade para funcionar, com o objectivo de fazer convergir a consciência e mobilizar o organismo numa direção específica. Como centro vital da consciência, o ego é inato, mas como centro real e efectivo deve a sua estatura àquelas colisões entre o corpo psicofísico e um meio ambiente que exige resposta e adaptação. Uma quantidade moderada de conflito com o meio ambiente e certa dose de frustração são, para Jung, as melhores condições para o crescimento do ego.

Tipos Psicológicos

As duas principais atitudes, ou disposições (introversão e extroversão) e as quatro funções (o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição) têm uma forte influência sobre a orientação do ego, quando este empreende a realização das suas tarefas e requisitos de adaptação. A disposição inata do ego nuclear para assumir uma dessas atitudes e funções forma a sua postura característica face ao mundo e no tocante á assimilação da experiência.

As colisões com a realidade despertam a nascente potencialidade do ego e desafiam-no a relacionar-se com o mundo. Tais colisões também interrompem a participation mystique da psique no mundo à sua volta. Uma vez desperto, o ego deve adaptar-se à realidade por quaisquer meios disponíveis. Jung elaborou a teoria segundo a qual quatro de tais meios ou funções do ego; cada uma das quais pode ser orientada por uma atitude introvertida (isto é, voltada para dentro) ou extrovertida (voltada para fora). Após a ocorrência de uma certa soma de desenvolvimento do ego, a tendência inata da pessoa para orientar-se para o mundo, interior e exterior, revelar-se-á de certos modos definidos. Argumentou Jung que o ego tem uma tendência inata, genética, para preferir um determinado tipo de combinação de atitude e função, e para confiar secundariamente numa outra combinação suplementar para equilíbrio, com uma terceira e quarta sendo menos usadas e, por conseguinte, menos acessíveis e desenvolvidas. As combinações constituem o que ele designou por “tipos psicológicos”.

Muito do que sabemos por experiência a respeito de outras pessoas e, na verdade, muito do que acabamos por reconhecer como sendo as nossas próprias personalidades, não pertence à consciência do ego. A vitalidade com que uma pessoa comunica, as reacções espontâneas e as respostas emocionais aos outros e à vida, a explosão do humor e as disposições de ânimo e acessos de tristeza, as enigmáticas e desconcertantes complicações da vida psicológica – todas estas qualidades e atributos podem ser imputados a outros aspectos da psique e não á consciência do ego como tal. Assim é incorrecto pensar no ego como sendo equivalente à pessoa toda. O ego é simplesmente um agente, um foco de consciência, um centro de percepção sensível. Podemos atribuir-lhe qualidades demais ou qualidades de menos.

Ego e liberdade pessoal

Uma vez que o ego tenha adquirido suficiente autonomia e uma certa medida de controlo sobre a consciência, o sentimento de liberdade pessoal torna-se numa forte característica da realidade subjectiva. Ao longo de toda a infância e adolescência, a gama de liberdade pessoal é testada, desafiada

e expandida. Tipicamente, uma pessoa jovem vive com a ilusão de possuir muito maior autodomínio e livre-arbítrio do que é psicologicamente verdadeiro. Todas as limitações à liberdade parecem ser impostas de fora, pela sociedade e por regulamentações externas, e percebe-se muito pouco até que ponto o ego é controlado em igual medida a partir de dentro. Uma reflexão mais atenta revela que somos tão escravos da nossa própria estrutura de carácter e demónios interiores quanto da autoridade externa. Com frequência, isso só vem a ser compreendido na segunda metade da vida, quando decorre uma consciência cada vez mais nítida de que somos os nossos piores inimigos, os nossos mais implacáveis críticos e os que mais exigimos de nós próprios. O destino é tecido de dentro, assim como ditado de fora.

Jung tem algumas reflexões provocatórias sobre a questão de se saber até que ponto a vontade é inteiramente livre. O ego, sendo apenas uma pequena parte do nosso mundo psicológico, gravita, como a Terra à volta do Sol, ao redor de uma realidade psíquica maior, o self, o si-mesmo. A liberdade do ego é, assim, limitada. “Dentro do campo da consciência (o ego) tem, como dizemos, livre-arbítrio”, escreve Jung. “Mas não atribuo a isso qualquer significado filosófico, apenas o bem conhecido factor psicológico da “livre escolha”, ou melhor dizendo, o sentimento subjectivo de liberdade. Centro do seu próprio domínio, a consciência do ego dispõe de uma certa e evidente liberdade. Mas qual é a sua extensão? Em que grau fazemos as nossas escolhas na base do condicionamento e hábito? Escolher uma Coca em vez de uma Pepsi reflecte uma medida de liberdade mas, de facto, essa escolha está limitada por um prévio condicionamento, como a publicidade, e pela existência ou ausência de alternativas. Uma criança pode ser encorajada a exercitar o seu livre-arbítrio e a efectuar descriminações oferecendo- se-lhe uma escolha entre três tipos de camisas, por exemplo. O ego da criança sente-se gratificado, pois está livre para escolher aquela que quer. Entretanto, a vontade da criança é limitada por muitos factores: o subtil desejo de agradar ao pai (ou mãe) ou, inversamente, o desejo de se rebelar contra ele (ou ela); pela gama de possibilidades oferecidas; pelas pressões e exigências dos seus iguais. A nossa real gama de livre-arbítrio é, como a criança, limitada pelo hábito, pela pressão, pela disponibilidade, pelo condicionamento e muitos outros factores. Nas palavras de Jung, “assim como nosso livre-arbítrio colide com as necessidades no mundo exterior, também o ego encontra os seus limites fora do campo da consciência, no subjectivo mundo interior, onde entra em conflito com os factores do si-mesmo”. O mundo exterior impõe limitações políticas e económicas, mas os factores subjectivos limitam igualmente o nosso exercício da livre-escolha.

Em termos gerais, é o conteúdo do inconsciente que reduz o livre-arbítrio do ego. O Apóstolo Paulo expressou isso claramente quando confessou: “Porque nem mesmo eu compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro e, sim, o que detesto…Pois o querer o bem está em mim; não, porém, o fazê-lo.” Os demónios da contradição conflituam com o ego. Jung concorda: “Assim como circunstâncias e eventos externos nos ‘acontecem’ e imitam a nossa liberdade, também o si-mesmo age sobre o ego como uma ocorrência objectiva, que o livre-arbítrio pode fazer muito pouco para alterar.” Quando a psique toma conta do ego como uma incontornável necessidade interna, o ego sente-se derrotado e tem que enfrentar a exigência de aceitar a sua incapacidade para controlar a realidade interna, assim como tem de chegar a essa conclusão a respeito dos mais amplos mundos sociais e físicos circundantes. A maioria das pessoas, no decorrer das suas vidas, acaba percebendo que não pode controlar o mundo exterior, mas são muito poucas as que adquirem consciência de que os processos psíquicos internos tampouco estão sujeitos ao controle do ego.

Conclusão

O mundo do ego, como se extrai das diferentes abordagens ao tema explanado nesta prancha, é abrangente e, muitas vezes, impreciso. Convergindo entre o aspecto somático e o psíquico ou entre o factor consciente e inconsciente, o ego permanece, contudo, como um ponto central e vital de toda a experiência humana. A identidade resulta, em grande parte, do ego. Ainda que não se confunda com ele, a individualidade humana expressa-se no mundo através do ego, nele de definindo, por expansão ou regressão. A psique, a totalidade da psique como conjunto do consciente e inconsciente (e para- psíquico?), extravasa o núcleo central do ego, mas, como decorre de Jung, nada é compreensível conscientemente sem o papel “racionalizante” do ego. Mesmo as mais subtis impressões somáticas, isto é, aquelas que são susceptíveis de virem à tona do consciente, precisam dessa “intermediação” egóica. O ego não se confunde com o self, o si-mesmo, mas este aparece como estrutura fundamental sobre o posicionamento do homem no mundo. Sem ego não há decisão (consciente, ao menos), não existe produto de reflexão, caracter de auto-definição. A maçonaria advoga que o Iniciado deve “combater” o ego. Esse combate, contudo, não é confrontativo, já que o homem não pode (a não ser homens muito especiais e por tempo limitado) viver sem o mesmo. O que a maçonaria ensina é que esse combate é uma luta pela redenção do homem no reencontro de si mesmo. Ainda que o homem não seja o ego, ele é, contudo, uma peça essencial na sua completude. Não há homem sem ego, como não há maçom verdadeiro, sem a compreensão que o ego é, ou pode ser, um produto de percepção limitado, muitas vezes enganador. Como registámos, o homem é o maior inimigo de si próprio. O seu mais fiel carrasco. Nisso, o ego tem um papel determinante no juízo de pretensa culpa, de si ou dos demais. O homem tanto pode decalcar os caminhos do egoísmo como os do altruísmo. Tanto num como noutro, como vimos, o ego tem um papel preponderante. É uma questão de escolha. Livre (tanto quanto possível) e consciente. O ego pode, muitas vezes, decidir contra os seus interesses directos, sejam de ganho ou de “simples” sobrevivência. E fá-lo numa decisão consciente de altruísmo! O ego não é, assim, uma coisa má per se. É neutro na sua função, e só o homem, no seu plano mais transcendente, pode dele fazer uso para se expressar na sua plenitude de ser. E Ser, ser-se humano é processar o reencontro depois da Queda, no encontro entre o eu e o ego, no resgate do ser humano integral!

Assim disse,

[Giordano Bruno], M∴M∴

Fonte: Academia.edu

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A Moderna Maçonaria e o ChatGPT

A Maçonaria é uma organização filosófica e fraterna que surgiu na Europa durante o século XVII. Desde então, tem evoluído e se expandido para o mundo inteiro, tornando-se uma das instituições mais influentes e controversas da história. Embora muitos aspectos da Maçonaria sejam envolvidos em mistérios e especulações, a verdade é que ela tem uma longa tradição de valores e princípios que ainda são relevantes e influentes na sociedade moderna.

A Maçonaria moderna é uma continuação da tradição que foi estabelecida há séculos. Como organização filosófica, a Maçonaria acredita na importância da razão, da tolerância, da ética e da moral. Além disso, ela promove a fraternidade, a camaradagem e a solidariedade entre seus membros. Isso é alcançado através de cerimônias simbólicas, estudos e discussões sobre questões filosóficas e éticas, bem como através de atividades sociais e de caridade.

A Maçonaria moderna tem um papel ativo na sociedade, participando de projetos e iniciativas que visam ajudar a comunidade. Alguns exemplos incluem campanhas de arrecadação de fundos para instituições de caridade, apoio a escolas e bibliotecas públicas, e a promoção de projetos de desenvolvimento comunitário. Além disso, a Maçonaria tem sido uma defensora dos direitos humanos, da igualdade e da justiça social, trabalhando para combater a discriminação e promover a inclusão.

A Maçonaria moderna também tem evoluído para se adaptar aos desafios da sociedade atual. Isso inclui a abertura de suas fileiras para mulheres, a diversificação de seus membros e a integração de tecnologia em suas atividades. Além disso, a Maçonaria tem trabalhado para clarificar sua imagem pública, promovendo transparência e abertura em suas atividades e respondendo a questões sobre seus valores e princípios.

Em resumo, a Maçonaria moderna é uma organização vibrante e influente que continua a promover valores importantes, como a razão, a ética e a fraternidade. Embora ainda envolva muitos aspectos que são cercados de mistério, a verdade é que a Maçonaria tem um papel ativo na sociedade.

Finalizando, todo o texto acima foi produzido por inteligência artificial e não por este escriba, obra do ChatGPT[1], o mais moderno experimento lançado pela empresa OpenAI, de São Francisco, que veio para revolucionar todas as áreas. Portanto, a pergunta que não quer calar é: como identificar, doravante, as pranchas de estudos elaboradas para fins de aumento de salário e correlatos? Divirtam-se!

Autor (do último parágrafo :o): Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da Loja Maçônica Águia das Alterosas Nº 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte; Membro Academia Mineira Maçônica de Letras e da Academia Maçônica Virtual Brasileira de Letras; Membro da Loja Maçônica de Pesquisas “Quatuor Coronati” Pedro Campos de Miranda; Membro Correspondente Fundador da ARLS Virtual Luz e Conhecimento Nº 103 – GLEPA, Oriente de Belém; Membro Correspondente da ARLS Virtual Lux in Tenebris Nº 47 – GLOMARON, Oriente de Porto Velho; colaborador do Blog “O Ponto Dentro do Círculo”.


Nota

[1] Acessar e abrir conta pelo endereço: chat.OpenAI.com

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Liberdade e Tirania – A Liberdade Maçónica

“Liberdade, que estais no céu… Rezava o padre-nosso que sabia, A pedir-te, humildemente,

O pio de cada dia. Mas a tua bondade omnipotente

Nem me ouvia.

Liberdade, que estais na terra…

E a minha voz crescia

De emoção. Mas um silêncio triste sepultava

A fé que ressumava

Da oração.

Até que um dia, corajosamente, Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,

Saborear, enfim, O pão da minha fome. Liberdade, que estais em mim, Santificado seja o vosso nome.”

Miguel Torga

“Em 1922, quando Mussolini toma o poder na Itália, de imediato condena a Maçonaria e os maçons. Como qualquer ditador, não podia tolerar a existência de uma sociedade secreta em que se defendia a “liberdade, igualdade e fraternidade”, a qual, na sua perspectiva, facilmente se tornaria numa organização conspirativa contra o regime que pretendia impor em Itália. Também em Espanha, os maçons foram sistematicamente perseguidos pela Igreja Católica e depois pela ditadura de Primo de Rivera, sendo, contudo, tolerados após a revolução de 1931, isto é, durante a Segunda República espanhola. Quando o general Franco instaura de novo uma ditadura, na sequência do levantamento militar de julho de 1936, afirma publicamente que estava a comandar uma revolução para “… combater o comunismo e a Maçonaria”. Em março de 1949, Franco emite um decreto contra os maçons, criando mesmo um tribunal especial para os julgar. Os exemplos de perseguição à Maçonaria multiplicam-se em inúmeros acontecimentos históricos e Portugal, neste contexto, não é exceção. Desde o acontecimento de outubro de 1817, onde o Grão-Mestre Gomes Freire é enforcado em São Julião da Barra, passando pelos inúmeros processos inquisitoriais à Maçonaria e aos seus membros, até à Lei n.º 1901, de 21 de maio de 1935, onde se decreta a ilegalidade e dissolução das sociedades secretas em Portugal, rapidamente se constata o incisivo clima de intolerância vivido pela Ordem desde a sua génese no país, entrecortado apenas por pequenos tempos de aceitação, fosse na órbita da vigência política do marquês de Pombal ou durante o período histórico da Primeira República.

E por que é a tirania tão avessa à Maçonaria? Porque a Liberdade é um dos três princípios estruturantes da Ordem, conjuntamente com os preceitos da Igualdade e Fraternidade. E o que é a Liberdade? Juridicamente a noção inicial de Liberdade, de ser-se livre, era a condição de não se ser escravo, de não se ser propriedade de outrem. A noção jurídica de Liberdade evoluiu de acordo com a evolução societária e hoje em dia a Liberdade comporta diversos patamares da sua acessão. Liberdade física, liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de Ação… Ser-se livre é agir em plena autonomia de meios e convicções, numa escolha de métodos e vontades que colidem, necessariamente, com os preceitos “filosóficos” da tirania. A tirania não aceita a crítica, a sua diversidade e a sua autonomia de pensamento. O tirano promove, acima de todos os preceitos, a sua vontade. Mesmo acima da própria Lei (se necessário) e da Justiça. Ora, sendo a Maçonaria uma associação de homens livres e iguais, em cuja essência organizacional prevalece o sentido democrático, fácil é concluir-se que os opressores da Liberdade não podem conviver facilmente com ela.

A semente do pensamento livre, para a Maçonaria, assenta no primado da razão. Sem o exercício da razão não pode existir um pensamento verdadeiramente livre, já que a Inteligência é, para a Maçonaria, a mais perfeita manifestação da vida, onde se pode ascender pelo trabalho individual do adepto. Por outro lado, a liberdade maçónica comporta outros três elementos fundamentais na sua caracterização: a responsabilidade, a virtude e moral. A liberdade do maçom não resulta de um ato indiscriminado e libertino da razão, como meio de exercício de uma ação que se auto justifica quaisquer sejam as suas consequências. Para o maçom a liberdade comporta limites de responsabilidade finalística, de saber ético e voluntarismo moral. A virtude, como fim da ação maçónica, é um exercício da razão mais pura a qual não se restringe à obediência strictu sensu às regras das leis civis. Supera-a. O homem verdadeiramente livre, na conceção maçónica, é aquele que sendo autónomo nas suas decisões, justifica-

as através de um exercício de reflexão e adequação a uma causa maior, a um princípio de autorregulação onde o bem comum vigora como princípio fundamental. O tirano tem como fim um princípio diferente, o seu bem próprio, e usa a sua vontade como fim “regulador” desses objetivos. Por outro lado, o tirano faz uso do irracionalismo como fonte justificativa da sua ação pela ação. A ação, para ser vigorosa, deve ser tomada sem qualquer reflexão prévia. Pensar é uma forma de emasculação. Nesse sentido, a cultura revela-se suspeita na medida em que é identificada com a atitude crítica. A desconfiança pelo mundo intelectual sempre foi um apanágio dos governos ditatoriais, como se extrai da declaração de Goering (“Quando ouço falar de cultura busco imediatamente a minha arma”). Nenhum espírito autoritário pode aceitar a crítica analítica, já que esta aceita o desacordo como forma de melhorar o conhecimento. E a tirania não busca o Conhecimento, porque conhecer é ser-se livre. E ser-se livre é aceitar a diferença, é combater o dogma, é procurar a Virtude.

Ao longo de toda a história sempre se registou o sonho perene do homem em ser livre. Esta, creio, é a maior aspiração do homem no seu quadro existencial. Primeiro existir, depois ser livre. Sartre dizia que a condição libertária do homem vinha antes até da sua condição existencial. A própria condição de existência era decidida nesse quadro de pura liberdade (da alma?) de escolha. Existir ou não existir. Nesse sentido, não é por acaso que a palavra “Liberdade” se coloca no primórdio face às outras duas, “Igualdade” e “Fraternidade”. Trata-se de um claro juízo de valor, e se atentarmos no que pensaram e escreveram os nossos Irmãos aquando da redação da Declaração de Independência dos EUA, vemos que a aspiração à liberdade se equivale à preservação da vida e à consecução da felicidade como “verdades sagradas e inalienáveis”. A liberdade maçónica é, contudo, uma liberdade pessoal e interna, não necessariamente política. Todos conhecemos heroicos casos de homens e mulheres que cortados na sua liberdade física nunca deixaram de ser livres. Daí a condição primordial da liberdade de pensamento como vetor fundamental do homem maçom. É certo que muitos maçons participaram em lutas políticas em prol da liberdade, fosse ela política, social ou laboral. Fizeram-no, com toda a certeza, imbuídos desse espírito maior expresso pelo pensamento livre e gizado pela razão, pela moral e pela virtude. E, sabendo que a liberdade de consciência é o cimento basilar que consolida as outras formas exteriores de liberdade: a civil, a religiosa, a política e a económica. Assim, todo o maçom tem a obrigação de lutar contra a ignorância moral e intelectual da humanidade e moldar, na estrutura psíquica do indivíduo e da coletividade, a compreensão que a liberdade de pensamento (e as demais liberdades) são diretos inalienáveis do Homem, mas que, para bem as exercer, é preciso instrução. A ignorância, por norma, anda associada à intolerância. E da intolerância sobressai, por certo, a violência e a perseguição. Está escrito nos anais da História. A ignorância humana “fundamentou” incontáveis vidas sacrificadas pela “omnipotência” de um pensamento único. Graças a esse imobilismo político, religioso, social e conceptual, a Humanidade forjou séculos de obscurantismo e decadência espiritual.

Mesmo após o triunfo do pensamento moderno, forjado por lutas sangrentas e demarcações teológicas sobre a conceção da relação do Homem com Deus, este consagrou-se, definitivamente, ao materialismo conceptual da sua existência. Aniquilando progressivamente o seu vínculo ao sagrado, o homem combateu a Religião instituída gerando uma sociedade laica e materialista, onde o primado da razão (como antítese da superstição) se consubstanciou no materialismo científico. A sua construção filosófica, edificada sobre o monismo, partiu de um extremo para atingir o outro. Numa tentativa de desconstruir a ignorância humana, confundiu a espiritualidade com a teologia, a Igreja com o Vício, a Religião com o obscurantismo.

Esquecendo a sua vivência mitológica e a ritualidade das suas passagens existenciais, o homem moderno perdeu a vivência do sagrado no seu combate exacerbado à religião instituída. Tomando a parte pelo todo o homem, crente (de novo crente) no primado absoluto da razão, confundiu conhecimento com Conhecimento. Negando as virtudes do espírito, passou a “contemplar” apenas as forças da matéria, fazendo delas o fim e a causa. Com efeito, o monismo filosófico nega a existência dos dois princípios, o espiritual e o material, o que denota efeitos perversos que contradizem os princípios maçónicos mais elementares. O primeiro desses efeitos é o materialismo científico, que nega ao Espírito o seu âmbito de reflexão racional. O segundo efeito dá-se no espectro político e social, onde a Religião passa a ser vista como o ópio do povo e não mais como uma estrutura de pensamento que permita ao Espírito estruturar a sua relação com Deus. A Religião passa a ser entendida como um instrumento de domínio, não como carácter de conhecimento ou ascese. A liberdade de consciência comporta a liberdade religiosa e, dentro dela, a liberdade de ser religioso ou não.

A liberdade de consciência não nega a Religião, dá-lhe sim uma fundamentação filosófica racional. Essa fundamentação é o dualismo, a separação entre Espírito e Matéria, e está construída de modo a comportar a consistência de que o Espírito é uma realidade e que a liberdade de consciência, no seu quadrante maçónico, tem a ver com a compreensão da primazia do Espírito sobre a Matéria. A aceitação de GADU como princípio criador e orientador do pensamento maçónico, comporta, necessariamente, a aceitação plena deste princípio. Não porque esta seja uma negação dogmática da nossa liberdade de pensamento, mas sim porque essa aceitação implica uma análise filosófico-racional da sua aprovação e lógica. A compreensão da existência do Espírito como elemento primordial à Matéria resulta de uma compreensão plena da nossa essência, como centelhas emanadas desse referencial primordial do Espírito: o Grande Construtor do Universo. E não se trata apenas de uma liberdade de pensamento tout court, mas de uma ampla liberdade de Pensamento que nos transporta ao grau maior do Conhecimento. Nessa amplitude Razão e Espírito congregam-se para se obter um grau maior de compreensão, visão e sentimento.

A liberdade maçónica opera nos vários quadrantes do Conhecimento e não “joga” apenas com os dados da razão. Vai mais longe, atua com as energias sinestésicas em Loja e oferece a GADU os propósitos das suas realizações no Templo. Intelectuais e Espirituais. A liberdade maçónica é mais exigente, já que sendo guiada pela Mente instruída traduz a libertação do Homem em relação às coisas materiais enquanto coisas e dá-lhe o rumo do autoconhecimento. Sem essa fundamentação filosófica que concede a espiritualidade ao Homem e que responsabiliza os seus atos, as liberdades civis perdem parte da sua substância. O exercício da liberdade de consciência também se dá na relação com os outros, no sentido da compreensão, pela Razão, de que os demais indivíduos são igualmente espíritos que se relacionam similarmente.”


Assim, se se negar esta realidade, a Liberdade perde toda a sua fundamentação, pois se tudo é matéria, se a consciência do Eu nada mais é que uma série de sinapses e atividades elétricas neuronais, se o estado social nada mais é que a síntese das estruturas económicas de produção e intercâmbio, então de que serve a Liberdade se tudo não passa apenas de uma tentativa frágil de equilibrar o sofrimento humano dentro de níveis toleráveis? Se se esvazia a relação corpo-alma e se entende que a única forma existente é a matéria, como aceitar a possibilidade de continuidade da Vida? Como se entende a equação de GADU nesse quadrante? Se a Liberdade é sentido de responsabilidade, veículo de moral e Virtude, como se pode entender uma Criação sem sentido de continuidade, sem uma relação evolutiva, sem um sentido final de Lógica? Pode a Existência existir por existir? Pode a Inteligência evoluir sem reflexão? Pode a Maçonaria existir sem Liberdade?

Assim disse,

[Giordano Bruno], M∴M∴

Fonte: Academia.edu

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A “Vigilância da Pátria” – A ação da maçonaria brasileira durante a década proibida (1822-1831) – Parte VIII

2.3 – A composição dos quadros e o início da abertura (1825-1828)

A composição dos quadros da Vigilância da Pátria pode ser compreendida dividindo os irmãos em dois grupos, aqueles que se filiaram à loja e já eram iniciados em outras localidades anteriormente e o grupo daqueles que foram iniciados na própria Vigilância. Essa divisão, apesar de aparentar um simples agrupamento entre antigos e novos maçons, traz em seu cerne uma divisão não apenas geracional, mas apresenta também em alguma medida as mudanças e, ao mesmo tempo, as continuidades de mentalidades no interior da fraternidade.

Como visto anteriormente, os primeiros quadros da loja eram compostos por maçons já iniciados em algum momento e que por isso, apenas se filiaram à loja. Uma vez iniciado, um maçom não necessariamente permanece vinculado a sua loja de origem, podendo migrar de loja por diversos motivos, tais como mudanças de endereço, de rito, para a fundação de outra loja, por disputas internas ou qualquer outra questão, podendo permanecer vinculado a alguma outra loja por meio de alguma distinção, como a de membro honorário253. No caso dos membros instaladores da Vigilância, não havia naquele momento outra loja de vinculação em funcionamento no país e assim os seus fundadores não possuíam vínculos com outras lojas ou mesmo as suas de origem.

Entretanto, não há nas atas da Vigilância nenhuma indicação dos locais de iniciação de seus fundadores, o que em um primeiro momento nos impede de localizar as tradições e ritos nos quais estes maçons foram iniciados254. Mas, quando analisamos o grupo instalador da loja, podemos fazer uma distinção entre aqueles que por formação profissional passaram pelas universidades europeias, como a faculdade de Direito em Coimbra, e aqueles cuja formação se deu no território brasileiro. Assim, àquele primeiro grupo pertencem Nicolau Vergueiro, Antonio Pedro da Costa Ferreira, Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, José Lino Coutinho, Antonio José do Amaral e Candido José de Araújo Vianna255. Os demais membros fundadores têm seu local de formação, e provavelmente de iniciação no próprio Brasil. Formado majoritariamente por militares e comerciantes, além de funcionários públicos e fazendeiros, este segundo grupo tem suas atividades profissionais de formação no Exército ou na Academia Militar, atividades de comércio, e no caso de Paula Souza era um autodidata256.

Embora exista uma distinção de locais de formação do quadro original, esta não é uma garantia acerca dos locais de iniciação destes homens. A própria ausência destes dados nas atas demonstra que esta é uma questão de menor preocupação, todos estes homens se afirmavam como maçons, e eram reconhecidos como tal pelos demais membros da loja.

No primeiro ano de existência da Vigilância todos os filiados à loja eram maçons já iniciados anteriormente. A ausência de novas iniciações entre 1825 e junho de 1826 não aparenta ser uma escolha deliberada dos membros da loja, mas uma imposição das circunstâncias da construção da própria oficina, uma vez que os debates das reuniões se voltaram para as formas de organização da loja, a questão dos grupos de rodízio e demais condições de proteção dos trabalhos. Por estas razões todas, os primeiros maçons filiados neste período eram todos já iniciados em fases anteriores, sempre convidados por algum membro da loja e aprovado pelos demais por meio de consulta.

Além dos locais de formação dos membros da loja, é possível compreender a distribuição dos quadros entre alguns grupos específicos. Militares, comerciantes, deputados, fazendeiros (políticos ou não), editores de jornais, clérigos, funcionários públicos, profissionais liberais e letrados em geral. Essa composição aparentemente heterodoxa de perfis profissionais e de formação dos membros da Vigilância pode ser compreendida não apenas pela unidade da loja, mas muito por serem o típico perfil dos maçons brasileiros desde as primeiras lojas iniciadas no país.

O primeiro grupo ampliado dentro da Vigilância da Pátria é constituído pelos militares. Parte significativa dos primeiros maçons filiados à Vigilância advinham dos quadros da Academia Militar, fossem eles professores ou oficiais de menor patente. Como três dos fundadores, Vieira Souto, José do Amaral e Joaquim de Lima e Silva que eram frequentadores da Academia (os dois primeiros como professores e o terceiro como oficial graduado), assim não é de todo estranho a rápida adesão destes militares à oficina. Além disso, existiam outros militares que compunham os quadros originais e não estavam ligados à academia militar, mas sim ao comando de tropas de terra, como João e Luiz Manoel de Lima e Silva, irmãos do primeiro vigilante e responsáveis pelas tropas no extremo sul, principalmente durante a Guerra da Cisplatina.

Nas atas entre 1825 e 1828 são listados trinta e sete militares, das mais variadas patentes. Se no primeiro ano de existência da loja localizamos sobretudo militares de alta e média patente, muitos comandantes de tropas próximas ao Rio de Janeiro como os irmãos Lima e Silva, ou professores da Academia Militar, ao longo dos anos não apenas oficiais de outras patentes foram integrados, como oficiais recém-saídos da própria academia257. Entretanto, nas atas poucos militares têm seus nomes registrados por completo, sendo esta uma das categorias, que em conjunto aos comerciantes, tiveram uma identificação mais restrita, por mais que houvesse a descrição das patentes destes militares, sobretudo capitães e tenentes, as iniciais destes muitas vezes se repetem em mais de duas pessoas entre as listas de militares.

Os militares compuseram uma força especial dentro dos quadros da Vigilância, pois suas possibilidades de deslocamento dentro do território facilitava a circulação de informações e avisos entre os círculos das províncias junto ao círculo central. Fossem andadores nomeados para o local ou eventuais, os militares da loja representavam a principal força de circulação da fraternidade, sendo os dois principais andadores militares. Pinto Coelho da Cunha, coronel, e Vieira Souto, capitão em 1825 e elevado a major em 1827, centralizaram as ações dos andadores e foram responsáveis pela indicação de vários militares. Além disso, é importante destacar que um dos círculos da cidade do Rio de Janeiro, aquele chefiado por Antonio José do Amaral, se reunia frequentemente dentro do prédio da Academia Militar258.

Assim como os militares, os comerciantes, alguns profissionais liberais e os funcionários públicos compõem outras categorias dentro da Vigilância da Pátria que representam grandes dificuldades no mapeamento de seus membros. Ainda que parte dos fundadores da loja fossem pertencentes a estas classes sociais, a grande maioria está identificada apenas por suas iniciais, sem constar qualquer informação sobre que tipo de comércio ou a localidade destes, principalmente nos grupos do Rio de Janeiro.

Sendo esta provavelmente a categoria social mais vulnerável, conjuntamente aos recém-formados da Academia Militar. A identificação dos irmãos comerciantes nas atas representava um risco grande, já que em caso do confisco das atas, estes seriam “os primeiros de nossos irmãos a serem presos pelas autoridades, acusados de qualquer descalabro que imaginarem os membros da intendência e deste governo, de forma que é dever de todo irmão desta loja a proteção de suas identidades”259.

Esta afirmação de Lima e Silva, no primeiro ano de funcionamento da loja, reforça a preocupação com a proteção dos irmãos politicamente mais desprotegidos, e também demonstra que os receios sobre a fiscalização e possíveis prisões dos membros da loja encontravam eco no passado recente, nos processos da Bonifácia e nos acontecimentos da Confederação do Equador.

Proteger as identidades de vários dos irmãos era uma necessidade tendo em vista um risco não desprezível ou longínquo, mas uma possibilidade real aos membros da Vigilância, daí a proteção dos membros da loja, assim como a escolha de apenas um livro de atas contendo os registros de atividades sob a tutela de um único secretário, que possivelmente seria o membro menos visado pela Intendência, já que era oficial de tal instituição260.

Entre os profissionais liberais e funcionários públicos, os membros identificados compõem mais da metade destas categorias, uma vez que gozavam de prestígio e proteção maiores que os comerciantes. Entre os profissionais liberais, as maiores distribuições de formação estão entre médicos, advogados e professores, alguns destes ligados à Academia Militar, como o caso de Joaquim José Rodrigues Torres, lente substituto de geometria na Academia. Estes profissionais, ainda que em sua admissão à loja não exercessem cargos políticos, como é o caso de Rodrigues Torres e outros, posteriormente seriam eleitos para diversos cargos261.

Dentre os irmãos listados, chama a atenção os casos de Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto e Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto, sendo o primeiro filho de um dos mais notórios maçons de 1822 e o segundo o fundador da loja Seis de Março em 1821.

Muniz Barreto é um dos membros fundadores da Vigilância, em 1825 recém-chegado de Portugal, onde se formou em direito em Coimbra. Iniciado em Coimbra durante seu período de estudos, embora não conste o nome de sua loja de iniciação, era filho de Domingos Alves Muniz Barreto, o “vovô maçom”, membro do Oriente de 1822. O seu caso desperta atenção, já que muito possivelmente este seria um membro visado por sua história familiar, ainda que essa preocupação não conste nas atas. O próprio Domingos aparece na sessão de 25 de outubro de 1827 identificado como visitante do círculo de Salvador, o que levantou debate entre os círculos da corte sobre a possibilidade de que maçons notórios, que tinham sua filiação à Vigilância proibidos em 1825 pudessem ou não frequentar reuniões de círculos fora do Rio de Janeiro, possibilidade esta que foi vetada naquela sessão262.

Mas, se Muniz Barreto era filho de um maçom notório, o que não impactava em sua filiação, uma vez que a restrição era apenas a seu pai, o caso de Guimarães Peixoto também é singular, uma vez que este figurava entre os fundadores da Seis de Março, loja bastante atuante em Pernambuco durante a Confederação, como visto no capítulo anterior. Entretanto, Peixoto não estaria em Recife durante os acontecimentos de 1824, posto que, segundo Mário Melo, teria sido preso em 1821 por ter liderado a conspiração e atentado contra o governador português Luiz do Rego, sendo enviado para Lisboa, onde foi inocentado em 1822. Entretanto, Guimarães Peixoto teria retornado para o Rio de Janeiro, o que pode explicar a ausência de seu nome entre os restritos de filiação263.

Entre os funcionários públicos, aquele que recebe maior destaque nas atas é Epifânio José Maria Pedroso, 2º vigilante do círculo principal e exercendo a mesma função no “círculo jovem” da loja. Epifânio era oficial da Secretaria dos Negócios do Império, cargo que herdou do pai. Letrado, tradutor, é dele a maior parte das indicações de leitura aos membros da loja, muitas das quais foram traduzidas por ele e disponibilizadas aos membros por empréstimo, sempre a serem retiradas nas tipografias do jornal Astrea ou do jornal Aurora Fluminense, cujos editores pertenciam à Vigilância264.

Outros membros que eram funcionários públicos carecem dos problemas de anonimato nas atas, sendo estes grupos composto majoritariamente por estes anônimos ou não identificados em sua totalidade. Eles eram responsáveis pela manutenção dos trabalhos da loja durante o período de recesso parlamentar, quando os políticos retornavam às suas províncias. A manutenção das práticas de ocultar os nomes completos destes quadros gera uma dupla dinâmica dentro da loja, em que ao mesmo tempo em que apontam para os riscos das atividades da Vigilância no Rio de Janeiro, representam as dinâmicas plurais da loja, assim como a importância de tais “ilustres anônimos” na manutenção dos trabalhos da loja no Rio de Janeiro durante o período de recesso parlamentar, assim como dos trabalhos dos círculos locais durante o período legislativo.

A mais notória das categorias de membros da Vigilância da Pátria é sem dúvidas a dos deputados e demais políticos eleitos em diversos momentos da década de 1820. Ainda que nem todos os deputados de oposição ao governo pedrino tenham se filiado à loja ao longo dos anos, chama atenção o número de deputados filiados. Tal presença não é uma exclusividade da Vigilância, como visto no capítulo anterior, mas uma constante na história da própria maçonaria, lugar privilegiado de articulação e circulação de pessoas e ideias. Além disso, a Vigilância representava um local privilegiado ao escapar de qualquer influência ou controle dos grupos mais próximos ao governo.

Entre os fundadores da Vigilância encontramos ex-deputados da Assembleia Constituinte (e mesmo das Cortes de Lisboa), além de deputados eleitos em suas províncias para a Legislatura que se iniciava em 1826. Destes deputados, Nicolau Vergueiro, venerável da loja, é aquele que passou por todas estas representações, sendo indicado na lista tríplice ao Senado por São Paulo, mas não sendo escolhido.

Constam como membros da Vigilância da Pátria entre os anos de 1825 e 1826, entre instaladores da loja ou filiados a ela, os deputados da primeira legislatura João Candido de Deus e Silva (Pará); João Braulio Muniz (Maranhão); Pedro de Araújo Lima, Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti e Albuquerque, Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque, Caetano Maria Lopes Gama, Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque (Pernambuco); José Lino Coutinho, José Cardoso Pereira de Mello, Francisco Agostinho Gomes, João Ricardo da Costa Dormund (Bahia); Manoel José de Souza França, José da Cruz Ferreira, Luiz Pereira da Nobrega de Souza Coutinho (Rio de Janeiro); Candido José de Araújo Vianna, José Carlos Pereira de Almeida Torres, Manoel Rodrigues da Costa, Joaquim José Lopes Mendes Ribeiro, José de Rezende Costa, José Bento Leite Ferreira de Mello, José Custódio Dias, Custódio José Dias (Minas Gerais); Raymundo José da Cunha Mattos (Goiás); Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, José Ricardo da Costa Aguiar, José Arouche de Toledo Rendou, Francisco de Paula Souza e Mello, Diogo Antonio Feijó (São Paulo); José Joaquim Machado de Oliveira, Feliciano Nunes Pires, Francisco Xavier Ferreira (Rio Grande do Sul); Don Lucas José Obes e Don Francisco Llambi (Cisplatina).

Este primeiro grupo de deputados filiados à Vigilância, todos eles iniciados anteriormente em algum local não especificado, não formavam um bloco monolítico na Câmara, ainda que possam ser majoritariamente compreendidos como membros da oposição antipedrista, assim como não apresentaram projetos de forma sempre conjunta. Ainda que as atas não registrem discussões políticas no interior da loja, uma vez que esta não é uma prática das atas de sessão na maçonaria, não é de todo impossível acreditar que estas discussões acontecessem entre os irmãos, em espaços anteriores ou posteriores à sessão, não apenas pela composição dos membros da loja, mas sobretudo por ser a fraternidade um espaço importante de construção de sociabilidades entre homens muitas vezes de espaços e atuações distintas. Da mesma forma que em outras lojas maçônicas em décadas anteriores, a Vigilância congregou experiências políticas importantes, ainda que a política formal não fosse o fim da loja ou mesmo de seus fundadores.

Dado tal caráter de congregação de múltiplos projetos, assim como de experiências políticas, não é estranho observar a ampliação significativa de membros da loja eleitos em anos posteriores, sobretudo nas eleições de 1828, para os mais diversos cargos políticos. Esta ampliação de membros da Vigilância eleitos é observada em diversas localidades, seja nos conselhos de província, câmaras municipais ou mesmo para juízes de paz, sendo significativa a eleição para a segunda legislatura da Câmara dos Deputados, onde a presença de maçons, sobretudo anti-pedristas é ampliada. Se em 1826 os membros da Vigilância eram 34 deputados, portanto, mais de um terço dos representantes eleitos para a legislatura, na 2ª legislatura o número de maçons eleitos cresce significativamente, chegando a 54 deputados, sendo estes mais da metade da Câmara.

Para além dos deputados de 1826, reeleitos, foram eleitos para a segunda legislatura da Câmara Antonio Pedro da Costa Ferreira (Maranhão); José Martiniano de Alencar (Ceará); Ernesto Ferreira França, Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, Francisco de Carvalho Paes de Andrade (Pernambuco); Antonio Ferreira França, Manoel Alves Branco, Miguel Calmon du Pin e Almeida, José Carlos Pereira de Almeida Torres, Antonio Pereira Rebouças, José da Costa Carvalho, Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto (Bahia); Antonio José do Amaral, José Joaquim Vieira Souto (Rio de Janeiro); Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, José Cesário de Miranda Ribeiro, Antonio Pinto Chichorro da Gama, Honório Hermeto Carneiro Leão, Evaristo Ferreira da Veiga, João Antonio de Lemos (Minas Gerais); Rafael Tobias de Aguiar, Antonio Paes de Barros (São Paulo). Além deles, outros maçons tomariam posse como suplentes ao longo da legislatura, como Manoel de Carvalho Paes de Andrade (Pernambuco) e José Feliciano Pinto Coelho da Cunha (Minas Gerias).

O grande número de deputados, mas sobretudo a distribuição destes pelas províncias acompanha a própria expansão dos círculos da Vigilância da Pátria, alargando significativamente o número de maçons vinculados à loja, o que acabou por resultar também na presença de seus membros no legislativo. Se os deputados de 1826 eram filiados à loja, entre os deputados eleitos em 1828 constam filiados, em sua maioria, mas também alguns dos primeiros iniciados na loja, como Ernesto Ferreira França e Honório Hermeto Carneiro Leão, membros dos corpos mais jovens da Vigilância265.

O último grupo de destaque entre os membros da Vigilância da Pátria era composto pelos editores dos principais jornais do Brasil no período. Este é talvez o grupo mais peculiar entre os membros da loja, uma vez que estes editores podem ser majoritariamente encontrados como sendo membros de outros grupos já elencados, exercendo outras ocupações profissionais.

Os dois principais jornais da cidade do Rio de Janeiro, possuíam como editores membros de destaque da loja. A Ástrea, editado por Antonio José do Amaral e José Joaquim Vieira Souto, e A Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, figuram não apenas como os principais jornais de oposição na corte, mas também como referencial para outros jornais nas províncias.

Além da linha editorial, a tipografia da Ástrea era também um ponto de encontro importante para os membros da Vigilância, utilizado pelo andador Vieira Souto, além de local de empréstimo dos livros fornecidos por Epifânio Pedroso. A redação da Ástrea funcionava para os membros da loja como local de encontro político e vinculação de ideias no jornal266. A Aurora Fluminense, por sua vez, funcionou como ponto de encontro sobretudo do círculo mais jovem da Vigilância, do qual Evaristo era membro267.

Entre os membros da Vigilância havia, ademais, editores de muitos dos jornais de oposição em outras províncias, sobretudo São Paulo e Minas, onde editores como José da Costa Carvalho, João Bráulio Muniz (O Pharol Paulistano), Antonio Joaquim Pereira de Magalhães (Astro de Minas), além de outros membros da loja atuando como contribuidores desses jornais de oposição, fornecendo artigos ou publicações para jornais e panfletos. Os jornais provinciais, de menor duração ou alcance que aqueles do Rio de Janeiro, muitas vezes replicavam partes de artigos do Ástrea ou do Aurora, numa rede de circulação de ideias.

Os membros da Vigilância compunham, portanto, uma espécie de padrão típico das filiações de maçons brasileiros de períodos anteriores, ainda que o ineditismo da Vigilância em concentrar a maior parte dos maçons identificados no Brasil do período e sua prerrogativa em filiar à loja apenas maçons não vinculados à antiga potência fluminense, assim como podemos encontrar uma espécie de padrão político entre seus membros, os quais partilham de um incômodo com o governo pedrino ou uma atuação de clara oposição ao mesmo.

No discurso inaugural da loja proferido por Vergueiro, este reforçava uma espécie de missão para a loja como “vigilantes da pátria, para construir a nação”268. Conforme as atas da loja, esta não se constituiu como um espaço de formulações políticas em específico, mas representava um espaço de circulação de pessoas e ideias, o que não significa que estivessem ausentes articulações políticas para eleições ou atuações na Câmara e na imprensa. A própria composição da loja permitia essas articulações, visto que não apenas a constituía um espaço comum, esta não seria uma experiência inédita, como visto no capítulo anterior sobre a atuação das primeiras lojas brasileiras.

Em suma, a Vigilância era um espaço de construção de sociabilidades e experiências comuns a um grupo que partilhava de ideias comuns, ampliadas pelas particularidades da própria vinculação maçônica e de suas redes de amizade e relações sociais, ao mesmo tempo em que se valiam da própria rede de apoio e proteção fornecidas pela irmandade. Estas redes de apoio, que foram fundamentais para a existência da loja ao longo dos anos, se tornaram ainda mais importantes a partir de 1828, quando a mudança da situação política permitiu também a lenta estabilização da Vigilância e o princípio do processo de saída da clandestinidade.

O início das transformações cotidianas

O ano de 1828 marcou, antes de tudo, o início de grandes transformações dentro da Vigilância da Pátria. A loja, que durante os anos anteriores seguiu rigorosas regras para o funcionamento de suas sessões, experimentou durante este ano duas realidades quase distintas se compararmos o início e o fim desse mesmo ano. Nos primeiros meses, os membros da Vigilância, sobretudo aqueles pertencentes ao círculo principal, passaram pela fase de maior pressão por parte da Intendência Geral de Polícia, o que obrigou o círculo a levar suas reuniões majoritariamente para cidades diferentes, como visto anteriormente neste capítulo, o que contribuiu para um espalhamento de reuniões pela província do Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo em que as pressões da Intendência se fizeram maiores entre os membros da loja, outro grave problema acompanhou o primeiro semestre daquele ano, a “grave enfermidade” que acometeu Nicolau Vergueiro entre os meses de maio e julho, quando as notícias veiculadas pelo Ástrea e pelo Aurora afirmaram que o deputado esteve em estado grave, ainda que nenhum dos jornais, e nem mesmo as atas da Vigilância, jamais tenham detalhado a doença que o acometeu269.

A combinação destes dois fatores afetaram profundamente o cotidiano da loja, pois não apenas mudanças de locais, dias e horários de reunião se fizeram mais presentes, como a ameaça da morte do venerável da loja significaram uma mudança nas posturas das principais lideranças, como também resultaram numa maior liberdade de atuação dos círculos, uma vez que o crescente de dificuldades de organização das sessões acabaram por permitir maior autonomia aos segundos vigilantes dos círculos, a quem competiam as responsabilidades sobre alterações das sessões270.

Esta crescente autonomia dos segundos vigilantes propondo mudanças em datas e horários de reuniões sem mais necessitar da autorização prévia do venerável ou do primeiro vigilante, não apenas indica uma crescente transformação na organização da Vigilância da Pátria, mas também um certo grau de instabilidade da formatação tradicional existente até então na loja, cujo centro era a figura de Nicolau Vergueiro. O afastamento do venerável desde o final do ano de 1827 e sua ausência em grande parte das reuniões do ano de 1828 acabaram por reformular esse centro da própria loja, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, onde a maior parte dos membros da Vigilância acabavam por passar.

Dado o afastamento de Vergueiro do cotidiano da loja, ainda que ele tenha se mantido informado sobre os assuntos da fraternidade, outras lideranças acabaram por assumir a centralidade da loja, o que não apenas significou uma maior pluralidade de centros, visto que o primeiro vigilante foi favorável a maior autonomia das decisões por parte dos círculos, mesmo que esta autonomia não fosse sinônimo de liberdade plena dos círculos em vista das ações da polícia.

A partir de 1828, os círculos passaram a seguir um rodízio mais livre de irmãos por grupo. Se nos anos anteriores a presença de membros de outros círculos só era permitida em casos excepcionais, em 1828 membros de outros círculos foram permitidos a frequentar um círculo distinto do seu grupo de origem, seja por convite ou trocando de círculo. Esta permissão, concedida a partir de julho de 1828 acabou por proporcionar um rearranjo dos grupos de reunião, resultando no agrupamento de membros por círculo mais próximos em termos de profissão ou posicionamento político.

Assim, a partir deste ano os quatro círculos da cidade do Rio de Janeiro acabaram por assumir um perfil mais específico. O primeiro círculo, o chamado principal, era comandado por Joaquim de Lima e Silva, concentrou em seus rodízios os membros fundadores e deputados, seguindo o rodízio em três grupos como no esquema original. A este círculo, o maior de todos, passaram a serem admitidos como visitantes não apenas maçons de passagem pela cidade e membros de círculos provinciais, como também membros de outros círculos da cidade e que exercessem algum papel de liderança dentro deste.

O segundo círculo, comandado por Antonio José do Amaral, acabou por concentrar os militares (de qualquer patente) filiados à loja, sobretudo aqueles ligados à Academia Militar, onde muitas vezes o círculo se reuniu. Ainda que anteriormente já contasse com uma presença significativa de militares e profissionais liberais, o círculo de José do Amaral a partir desse momento acabou por se constituir majoritariamente de militares e professores da própria academia, sendo o círculo mais “fechado” dentre todos.

O terceiro círculo, chefiado por Manoel de Souza França acabou por se tornar uma fusão do antigo círculo chefiado pelo deputado e pelo capitão Custódio José Dias. A este círculo, além de deputados, pertenciam principalmente os comerciantes, funcionários públicos e demais professionais liberais, sendo este, junto ao círculo principal, o círculo mais plural em termos de origens profissionais da Vigilância.

O último círculo da cidade permaneceu sendo chefiado por Epifânio Pedroso e acabou não apenas por concentrar os membros mais jovens da loja, como também acabou por se tornar uma espécie de concentração dos ditos mais “radicais” em termos políticos, o que sempre despertou mais atenção do círculo principal. O grupo de Epifânio, além de colecionar reprimendas sobre a conduta de seus membros nas atas, era também o círculo mais visitado pelos demais, visto que suas reuniões eram “por vezes muito mais interessantes e seu grupo deveras dinâmico em suas condutas, ainda que profundamente ciosos de suas obrigações maçônicas” 271.

Esta conformação dos círculos, de maneira muito mais estável em termos de funcionamento, só se torna de fato possível a partir do final de agosto de 1828, quando não apenas as diligências da Intendência parecem ter diminuído272, o que permite um respiro maior às atividades dos irmãos, como também o círculo principal entende que a experiência de estabilidades dos círculos da cidade acabaram por conformar formulações e dinâmicas próprias a cada um deles, fornecendo não apenas maior adesão entre os irmãos de cada um dos círculos, como também acabaram por fornecer identidade a cada um deles, os aproximando em termos de cotidiano às práticas tradicionais de uma loja maçônica própria.

Em conjunto às transformações internas da loja, as mudanças no ambiente político do país também ecoaram nos interiores dos círculos, sobretudo pelas eleições gerais daquele ano. As eleições de 1828 podem ser facilmente identificadas como o maior processo eleitoral brasileiro do século XIX, dado o número de pessoas eleitas para os mais diferentes cargos pelo país, uma vez que não apenas elegeram-se os deputados para a segunda legislatura a ser iniciada em 1830, mas também para algumas cadeiras no Senado, além de câmaras municipais, juízes de paz e conselhos provinciais.

O primeiro impactado por estas eleições é o próprio Nicolau Vergueiro, eleito senador pela província de Minas Gerais. Vergueiro, que já havia constado na primeira lista para o Senado em 1825 pela província de São Paulo, acabou sendo escolhido em lista tríplice em maio de 1828, tomando posse em junho do mesmo ano, sendo o primeiro dos opositores de Pedro I a tomar acento na câmara alta, o que foi celebrado pelos membros da Vigilância como força de Vergueiro e da própria oposição.

A segunda eleição a impactar diretamente nos cotidianos da Vigilância envolveu as escolhas para juízes de paz, sobretudo nas freguesias da cidade do Rio de Janeiro, em especial a do Santíssimo Sacramento. Uma vez que o major da guarda desta freguesia era o andador da corte, José Joaquim Vieira Souto, a eleição de um juiz de paz ligado à loja era essencial para a proteção dos irmãos. A eleição de Saturnino de Souza e Oliveira, tenente coronel do mesmo batalhão para o cargo é fundamental para os anos subsequentes da loja, pois ao contar com a proteção do juiz de paz da freguesia e do chefe da guarda, os círculos da Vigilância na cidade do Rio de Janeiro passam, a partir de 1828, a fixar seus locais de reunião na mencionada freguesia, o que viria a acelerar o processo de estabilização das atividades maçônicas na corte.

Se as eleições de juízes de paz e do Senado tiveram impacto direto na vida da loja, as demais eleições do mesmo ano foram responsáveis por aumentar a presença de membros da Vigilância nas muitas instâncias políticas pelo país, sobretudo na ampliação do número de deputados eleitos ligados à fraternidade. Como visto anteriormente, o número de deputados filiados à Vigilância da Pátria para a segunda legislatura, eleita em 1828 e iniciada em 1830, era significativamente superior ao número de deputados da legislatura de 1826.

Além disso, os deputados de 1826 ainda que filiados à loja entre junho de 1825 e abril de 1826, foram eleitos em sua ampla maioria antes da fundação da loja, o que implica em uma identificação maçônica posterior ao processo eleitoral. Diferente desta primeira legislatura, os deputados eleitos em 1828 já eram membros da loja, filiados ou mesmo iniciados nesta, o que torna a identificação de um elemento a mais no processo de eleição destes parlamentares. As atas da loja não informam sobre alguma atuação direta dos membros da loja para as eleições, ainda que na ata de 14 de agosto de 1828 Nicolau Vergueiro tenha saudado os deputados eleitos presentes na sessão da loja e estendendo seus cumprimentos aos demais, exortando os respectivos deputados a continuarem o trabalho dos irmãos da primeira legislatura e se prepararem para “a missão que se impõem aos trabalhos do parlamento para o fortalecimento do país”.

Portanto, ainda que os membros da Vigilância não tenham elaborado uma “campanha” para as eleições, há uma presença significativa nas listas de eleitos para os muitos cargos políticos, numa confluência entre perfis de eleitos e membros da loja, uma vez que tais perfis possam ser entendidos como uma formação comum de uma elite política no país.

O fim do ano de 1828, ou ao menos em outubro do mesmo ano, data em que se encerra o livro de atas da Vigilância, podemos observar o início de uma mudança de cenário político no país e no próprio comportamento da loja273.

Além das eleições do ano de 1828, também é significativo uma mudança do cenário político do país com o encerramento da Guerra da Cisplatina, representando um golpe para o governo pedrino. A perda da província e o reconhecimento do Uruguai como país independente, além da morte da imperatriz Leopoldina, contribuíram para o agravamento da crise política, que passou a ser questionado de forma mais dura pelos opositores, sobretudo pelo grupo ligado ao senador Vergueiro, que embora transferido de casa legislativa, permaneceu como um articulador político entre os opositores.

Por fim, o ano de 1828 é o início do processo de estabilização e publicização das atividades maçônicas na cidade do Rio de Janeiro. Se no princípio do ano foi importante para a estabilização do perfil dos círculos da Vigilância, que passaram a se organizar de forma mais semelhante às lojas tradicionais da maçonaria, a eleição do meio do ano, sobretudo a dos juízes de paz, contribuíram para que os círculos deixassem paulatinamente um modelo de loja volante, sem localidade fixa, e adotassem um modelo mais estável de locais de reunião, graças ao funcionamento de uma rede de proteção destes círculos na Freguesia do Santíssimo Sacramento274.

Esta freguesia, a mais populosa da cidade, como vimos elegeu um juiz de paz militar ligado à Vigilância, que numa combinação de fatores com o comando da guarda da freguesia por um outro membro da loja, acabou por criar um ambiente favorável para as atividades dos irmãos, uma vez que as denúncias sobre as ações maçônicas seriam ignoradas pelo juiz ou ações mais efetivas de repressão para flagrantes ou fechamentos de reuniões275.

Assim, esse ano pode ser compreendido como um ponto de virada dos trabalhos da Vigilância da Pátria. Entre sua fundação em junho de 1825 até a metade de 1828, a Vigilância seguiu uma organização restritiva em suas reuniões, elaborando, com base nas tradições maçônicas de várias localidades, uma formatação muito particular para o funcionamento das reuniões da loja, ampliando significativamente seus quadros ao longo deste período. A partir da metade de 1828, com as mudanças na situação política nacional e no próprio entendimento da loja sobre sua organização, a Vigilância da Pátria passou por mudanças paulatinas, até que a situação política de 1829 acabou por dar uma nova forma aos trabalhos maçônicos, iniciando uma nova fase para a fraternidade, originando as bases da organização da maçonaria brasileira das décadas posteriores.

Continua…

Autora: Pilar Ferrer Gomez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em História – 2022.

Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06102022-120353/en.php

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Notas

253 Sobre as vinculações dos maçons em suas lojas de iniciação ou filiação ver JONES, op. cit., pp. 262- 265.

254 Não há indicação do secretário sobre esta omissão é proposital ou não, mas não há nenhuma indicação dos locais originais de iniciação de qualquer um dos filiados da Vigilância ao longo dos anos da loja.

255 Os locais de formação profissionais de todos os membros da Vigilância da Pátria identificados nas atas estão indicados no Anexo II desta dissertação, onde estão as biografias destes membros da loja e as informações da vida destes homens e suas atividades dentro da loja, assim como informações posteriores conhecidas dentro da maçonaria brasileira.

256 BARATA, op. cit., p. 159.

257 Entre os militares recém-formados na Academia iniciados na Vigilância da Pátria, merecem destaque os irmãos Cristiano e Teófilo Ottoni, que alcançaram destaque em seu círculo.

258 LAVG, Sessão de 17 de fevereiro de 1827 (17/12/5826).

259 LAGV, Sessão de 12 de abril de 1826 (12/2/5826).

260 O livro de atas da Vigilância ficou durante todo seu período de clandestinidade em posse de seu único secretário, João Machado Nunes, oficial da contadoria da Intendência geral de Polícia. Essa informação consta na sessão de 23 de agosto de 1828, quando o secretário foi elogiado pelo resguardo das atas da loja. LAVG, Sessão de 23 de agosto de 1828 (23/6/5828).

261 José Rodrigues Torres provavelmente foi iniciado durante seus estudos em Portugal, onde se formou em matemática. Após sua filiação, Rodrigues Torres retornou por mais um período para Portugal, retornando por fim ao Brasil em 1827, quando novamente voltou a frequentar a loja.

262 A presença de Domingos Muniz Barreto em sessão do círculo de Salvador levantou questionamentos, já que ao menos no Rio de Janeiro maçons notórios como ele não poderiam frequentar os círculos. Sua presença em Salvador foi discutida e o círculo advertido sobre a não presença de outros maçons notórios na cidade, pois isso poderia facilitar a identificação de seus membros. LAVG, Sessão de 25 de outubro de 1827 (25/8/5827).

263 MELO, op. cit., p. 17.

264 Em várias sessões ao longo dos anos há registros de indicações de leituras disponibilizadas por Epifânio, com destaque para obras de filosofia como Hobbes, Voltaire, Smith, Rousseau e outros. Ver Livro de Atas da loja Vigilância da Pátria.

265 As datas de iniciação dos deputados e seus “padrinhos” na apresentação das candidaturas constam nas biografias dos mesmos no Anexo II.

266 A Tipografia da Ástrea era ponto de encontro fácil de Vieira Souto para a transmissão de informações como andador, assim como o quartel da cavalaria da freguesia do Santíssimo Sacramento, onde Vieira Souto atuava como capitão e depois major. LAVG, Sessões de 23 de maio de 1826 e 12 de setembro de 1827 (23/3/5826 e 12/7/5827)

267 Evaristo frequentava o círculo jovem, atuando algumas vezes como secretário do círculo. LAVG, Sessão de 14 de abril de 1827 (14/2/5827).

268 Sessão inaugural da Loja Vigilância da Pátria. LAVG, Sessão de 24 de junho de 1825 (24/4/5825).

269 Entre março e junho de 1828, tanto a Ástrea quanto a Aurora repassaram informações sobre o estado de saúde de Nicolau Vergueiro, ainda que nenhum deles informe qual a doença de Vergueiro, chegando a noticiar que no dia 18 de maio daquele ano Vergueiro chegou a ser desenganado pelos médicos, mas se recuperando ao longo do tempo.

270 Na sessão de 12 de agosto de 1828, o secretário informa que dadas as dificuldades encontradas para a manutenção das atividades dos círculos, as regras para transferência de sessão pelos vigilantes dos círculos haviam sido relaxadas desde abril do mesmo ano, o que acabou facilitando a organização dos mesmos, por isso a regra seria mantida dali em diante. LAVG, Sessão de 12 de agosto de 1828 (12/6/5828).

271 LAVG, Sessão de 06 de maio de 1828 (06/3/5828).

272 LAVG, Sessão de 30 de outubro de 1828 (30/8/5828).

273 A última sessão registrada no livro de atas da Vigilância da Pátria tem data de 30 de outubro de 1828, sendo esta uma sessão do círculo principal, como todos os fundadores presentes na sessão. As demais sessões provavelmente estão registradas em outro volume, não localizado nos arquivos até a elaboração deste trabalho. LAVG, Sessão de 30 de outubro de 1828 (20/8/5828).

274 LAVG, Sessão de 17 de setembro de 1828 (17/7/5828)

275 CHAN, Isa. op. cit., p. 75.

A “Vigilância da Pátria” – A ação da maçonaria brasileira durante a década proibida (1822-1831) – Parte VII

2.2 – O cotidiano da expansão da loja (1825 – 1828)

A Vigilância da Pátria experimentou uma rápida expansão de seus quadros, sobretudo em seus dois primeiros anos de existência, o que levou os irmãos a ampliarem os sistemas de rodízios estabelecidos anteriormente.

A forma desse rodízio e a composição dos círculos permaneceu semelhante as normas definidas em 1825 pelos membros do círculo principal, embora a medida em que o número de irmãos se ampliava, a necessidade da criação de novos círculos também se fazia presente. Aos andadores e aos segundos vigilantes, cabiam a organização destes novos círculos de forma mais organizada, além de garantir a integração desses com o círculo principal.

Esta espécie de pulverização dos trabalhos da loja em círculos menores é talvez a maior de todas as particularidades da Vigilância da Pátria. A partir da criação do primeiro círculo, fora o corpo do principal, por mais que este grupo se portasse como uma loja específica com seus cargos e ritos definidos, o círculo era ao mesmo tempo uma parte da loja Vigilância, constituindo-se em uma loja composta de muitas outras lojas.

Em sua primeira sessão oficial, em 24 de junho de 1825, Nicolau Vergueiro em seu discurso inaugural alertava aos membros ali reunidos das particularidades e, muitas vezes, restrições e pressões a que esses maçons estariam sujeitos, pois desafiavam uma lei para proteger a maçonaria. Tal situação requeria “um exercício de silencio e discrição por parte daqueles que desejavam a preservação da maçonaria no Brasil e sua atuação, para que se tornem os vigilantes que a pátria exige.”229

Em suma, com a ampliação do número de membros durante os dois primeiros anos de existência da loja, os dirigentes distribuíram os membros em grupos de ao menos vinte membros, que não necessariamente deveriam frequentar sempre as mesmas reuniões. A decisão sobre quais as reuniões que cada irmão deveria frequentar deveria levar em consideração o local de reunião, a disponibilidade do maçom naquele período e quais outros membros da loja estariam na reunião em específico.

Todas essas restrições estavam relacionadas aos problemas enfrentados pelos maçons em encontrar um local cujas reuniões não despertassem maiores atenções, já que a composição dos membros poderia servir de indicativo das atividades. Isso significou que nos dois primeiros anos da loja, as reuniões aconteciam principalmente nas casas de algum membro daquele círculo específico. Estas eram disfarçadas de reuniões sociais ou de alguma outra associação a que pertencesse algum membro, incluindo irmandades religiosas.

Com o passar do tempo, os grupos de reunião se tornaram mais ou menos fixos, com alguma variação entre si, mas mantendo um núcleo central único, que deveria preparar o local de reunião em conjunto com o primeiro vigilante. Tais locais não precisavam seguir rigidamente os padrões dos salões cerimoniais dos ritos maçônicos, ainda que contivesse algum elemento improvisado pelos irmãos.

As reuniões do círculo principal variavam em dias da semana, de forma a não estabelecer um padrão identificável pelas autoridades, algumas vezes até mesmo não havendo qualquer padrão de alternância entre as sessões registradas. Apesar de variar os dias da semana, estas que aconteciam quinzenalmente no início, após a expansão do quadro de membros passaram a ser realizadas semanalmente, revezando os locais e o círculo de membros em cada sessão230. Os membros de cada núcleo desenvolveram formas diferentes de despistar as autoridades ou de suspensão dos trabalhos caso necessário231.

Da mesma forma, cada um dos círculos estabeleceu a mesma frequência de reuniões quinzenais, se assim o fosse possível. Mas ainda que formalmente as reuniões fossem estabelecidas desta forma, muitas vezes os círculos não conseguiam seguir esta rotina, sendo raras as vezes em que estabeleceram reuniões semanais para todos os círculos, sendo mais comum realizá-las quando as oportunidades fossem propícias.

Entre junho de 1825 e agosto de 1826 as reuniões seguiram uma frequência mais organizada, na qual os núcleos conseguiram se reunir ao menos quinzenalmente, muitas vezes até semanalmente. Entretanto, a medida em que a loja começou a ampliar seus membros, a regularidade das reuniões se tornou mais frequente.

Caso fossem detectados, os círculos alteravam as sequências das reuniões, de forma a evitar nova ocorrência. Tal situação muitas vezes fez com que determinados grupos de maçons ficassem longos períodos sem frequentar alguma sessão, uma vez que sua presença despertava desconfiança. O próprio Vergueiro não pode participar por um longo período das sessões da loja232, uma vez que sua presença gerava a desconfiança da Intendência, levando as sessões a serem presididas pelo primeiro vigilante, o tenente-coronel José Joaquim de Lima e Silva. O próprio revezamento entre Vergueiro e Lima e Silva na presidência das sessões necessitava estar em acordo às mudanças das sessões, assim como os andadores deveriam estar em alerta sobre tais situações.

Conforme dito anteriormente, havia uma espécie de núcleo central da loja, formado pelo círculo original, chamado de círculo principal ou círculo diretor. Esta sessão era composta majoritariamente por membros fundadores e por deputados, além dos andadores. Esta era, sem dúvidas, a sessão mais visada pelos membros da Intendência, e que necessitava de maior cuidado para acontecer. Normalmente ocorriam na residência do próprio Vergueiro ou de algum outro membro em caso de necessidade e aconteciam ao menos uma vez ao mês, ainda que houvesse períodos de maior intervalo.

É este núcleo duro do círculo principal que necessitava migrar em caso de perseguição. Nos períodos em que este se ausentou da cidade do Rio de Janeiro, as sessões dos demais núcleos foram suspensas como forma de proteção a todo o quadro de membros da loja. Tais migrações ocorreram principalmente entre os anos de 1827 e 1828, quando diversas sessões aparentavam terem sido detectadas, levando o núcleo principal a se refugiar em diversas outras localidades. O reduto mais comum era Niterói, cidade próxima ao Rio de Janeiro, onde diversos membros da Vigilância residiam, como o próprio Lima e Silva233.

Em alguns casos, o núcleo principal deslocou-se para outros núcleos, onde havia atividades maçônicas, como as vilas de Campos e Ilha Grande, além de Paraty, onde a loja se refugiou ao final de 1828, quando a repressão da Intendência se acentuou drasticamente, cercando grande parte das reuniões, levando a suspenção dos trabalhos maçônicos no Rio de Janeiro a partir de outubro daquele ano.

Esta pressão sobre as oficinas pode ser compreendida não apenas em termos da aplicação da lei das Sociedades Secretas, mas principalmente pela preocupação do governo em ver constituída uma rede associativa que escapasse ao controle régio, sendo assim um local de destaque para a articulação de grupos opositores, mesmo que estes não necessariamente estivessem articulados fora da rede de sociabilidade maçônica. Esta rede, que integrava membros de diversos pontos do país criava condições para circulação de ideias, influências e pessoas, além de possibilitar um local de integração destes grupos políticos que poucas vezes teriam oportunidade de coexistência fora dos espaços da Vigilância.

Os laços de fidelidade maçônicos eram importantes para estes homens, uma vez que garantiam auxílio e proteção entre os irmãos. Esta proteção muitas vezes significou apoios em tempos de perseguição, como em 1822 na defesa dos presos na Bonifácia e mesmo na defesa de soluções mais brandas na formulação da lei das Sociedades Secretas. Tais laços foram utilizados pelos membros da Vigilância a medida em que os processos de fiscalização se acentuaram, pois se faziam necessárias formas de camuflar reuniões e se valer dos auxílios de proteção entre os irmãos.

os membros da Vigilância nem sempre conseguiram manter uma regularidade nas reuniões, o que não os impediu de se articularem de outras formas que não fossem pela reunião oficial, mas mantendo contato entre os irmãos identificados de cada círculo, cujos laços de proteção eram mais significativos. Isso significou o desenvolvimento de uma série de sinais de reconhecimentos e avisos entre os membros, adaptando muitas vezes sinais já existentes na maçonaria.

Os sinais de identificação234 necessitavam ser diferentes em alguns momentos, já que grande parte deles era de conhecimento público, como antigos maçons não admitidos a nova loja por serem vistos como riscos à identificação de novos membros ou por serem identificados como maçons, ou figuras próximas ao governo. Como vimos, a admissão de tais membros era vista como riscos desnecessários aos irmãos, uma vez que antigos membros do Oriente de 1822 seriam mais passíveis de identificação pelas autoridades.

Outro caminho de proteção significativo era do uso de festas e outras reuniões sociais em que se pudesse utilizar dos espaços sem levantar suspeita para que pudessem “ludibriar as autoridades policiais, visto que reunidos às festas ou nas praças públicas não se há como acusar qualquer ação ilegal de nossa parte”235.

Apesar de tais cuidados, os espias da Intendência Geral de polícia por vezes identificaram alguns pontos de reunião, como as da casa de Vergueiro e depois do deputado Holanda Cavalcanti236, o que levava os membros da Vigilância a ampliarem os espaços entre as reuniões, evitando reuniões nos meses de recesso parlamentar, uma vez que a presença de deputados poderiam significar uma maior proteção para a loja, pois muitos dos irmãos viam a presença destes como uma salvaguarda contra as ações da Intendência237.

Os desafios para a manutenção das atividades da loja eram significativos, o que muitas vezes representou até mesmo a desistência de vários iniciados na participação das atividades da loja. Assim, nos anos de maior pressão, havia uma maior inconstância no número de membros, tornando um desafio o mapeamento dos membros ativos da Vigilância da Pátria, cuja variação de presença nos registros é significativa. Tal flutuação é notória a cada ano, uma vez que o secretário, João Machado Nunes apresentava na sessão de 24 de junho de cada ano um balanço sobre a loja, identificando o número de membros da Vigilância, assim como os respectivos 2os vigilante de cada círculo, andadores e demais autoridades da Vigilância.

Assim, segundo os informes do secretário, a Vigilância teria em seu grupo fundador 23 membros, ampliados ao longo dos anos, constando 72 membros em 1826, 140 em 1827 e 132 membros em 1828. Estes números, entretanto, só se referem aos membros da Vigilância dos círculos das cidades do Rio de Janeiro e Niterói, o que nos impossibilita conhecer os dados de todos os círculos, já que as informações sobre estes são mais esparsas ou até mesmo incompletas.

A Vigilância da Pátria mantinha atividades em outras províncias, além de outros locais da própria província do Rio de Janeiro, mas de localização mais distante do centro. Para estes locais, as redes de fiscalização nem sempre eram tão efetivas como na corte, mesmo para aqueles locais cujas lojas anexas funcionavam nas capitais das províncias.

Para estes locais, a frequência das atividades era incerta e muitas vezes esporádicas, assim como para o próprio Rio de Janeiro, embora por motivos diversos do que da fiscalização e repressão da Intendência Geral de Polícia, mas antes por seus quadros de liderança e articulação serem deputados gerais das províncias ou ainda seus respectivos andadores, cuja presença naquela localidade não era contínua. Para estes locais, os períodos de recesso parlamentar correspondiam aos períodos de maior frequência e continuidade das sessões da loja, ainda que estas se dessem a cada 15 dias ou mais, dependendo do local e da época238.

Apesar da aparente normalidade dos trabalhos da Vigilância da Pátria nos mais diversos locais em que esta se encontrava, ocorriam choques ocasionais entre os diversos grupos que compunham a loja. Sobretudo a partir de 1828 e os debates sobre a publicização ou não das atividades dos irmãos da loja, desafiando assim a lei de proibição das Sociedades Secretas e a repressão do próprio governo.

No que se refere a dinâmica interna da loja, a figura do andador era essencial e passou por algumas transformações a partir da expansão dos quadros da Vigilância. No primeiro ano de atividade a loja contava com apenas um andador, quando as atividades ainda estavam localizadas apenas no Rio de Janeiro, não apenas pela pouca amplitude do raio de atuação dos andadores, como também pelo pequeno número dos quadros da loja. A partir de 1826, com a ampliação do número de membros e a diversificação de seus locais de residência, o número de andadores necessitou ser ampliado, sendo estabelecido dois andadores, um para a Corte e outro para as demais localidades.

Esta separação buscava uma forma mais eficiente de divisão do trabalho dos andadores, sobretudo ao andador geral, devido a ampliação de sua área de atuação com o aumento do número de locais cuja presença maçônica se articulava, estendendo as redes maçônicas por todo o país a partir não apenas da retomada das atividades de antigos quadros em vários locais, mas da ampliação do número de iniciados para além da capital.

Se num primeiro momento era necessário poucos andadores, à medida que a loja expandia seus quadros, ampliou-se também a complexidade do trabalho destes andadores, sendo estes não apenas encarregados da transmissão dos comunicados entre os irmãos e a loja, mas também sendo responsáveis, a partir de 1827, por organizar os trabalhos em cada localidade, como uma extensão da loja central em lojas auxiliares, ainda que não fossem organizadas e reconhecidas como lojas separadas. Tal ampliação das atribuições dos andadores se deu pelo aumento significativo do número de irmãos a partir de 1827, levando a presença da loja para todas as regiões do país.

O aumento da complexidade da articulação dos irmãos transformou o número e a organização dos andadores da Vigilância da Pátria.239, resultou na reorganização destes, surgindo no início de 1827 a figura do Grande Andador, uma espécie de “chefe” dos andadores, encarregado da distribuição destes pelas províncias e pela distribuição das ordens240.

Esta ampliação estabeleceu a divisão destes em Grande Andador, Andador da Corte e andadores provinciais. Pinto Colho e Vieira Souto permaneceram em suas funções, sendo nomeados andadores para as províncias Lino Coutinho (Bahia), Candido José de Araújo Vianna (Minas), Francisco de Paula Souza e Mello (São Paulo), João Manoel de Lima e Silva (Rio Grande do Sul), Luiz Manoel de Lima e Silva (Cisplatina), Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque (Pernambuco), Antonio Pedro da Costa Ferreira (Maranhão e Pará), Caetano Maria Lopes Gama (Goiás e Mato Grosso). Além destes, muitas vezes outros membros, como militares de baixa patente apenas identificados por suas iniciais foram enviados como andadores pontuais, isto é, apenas portadores de correspondências aos vigilantes dos círculos locais, sem outras designações dos cargos241. Cabia aos andadores provinciais a manutenção dos contatos entre os círculos locais e o centro, além de alguma forma de organização nos círculos provinciais242.

A eleição do Grande Andador passou por diversas discussões dentro da loja. Embora tenha sido eleito o coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, eleito Andador Geral ainda em 1825, este não era o favorito entre grande parte dos irmãos, que preferiam o capitão José Joaquim Vieira Souto243. Apesar dessa preferência, uma vez que Vieira Souto exercia o cargo de Andador da Corte desde meados de 1826, a nomeação deste como Grande Andador encontrou obstáculos a partir de sua nomeação como capitão do Corpo de Engenheiros e posteriormente como capitão e major da Cavalaria de Guarda da Freguesia do Santíssimo Sacramento, no Rio de Janeiro, visto que ambos os cargos exigiam um maior tempo de permanência na cidade. Por esta razão, Vieira Souto permaneceu como Andador da Corte.

Entretanto, mesmo exercendo uma função primordial para o funcionamento prático da ordem, os andadores não possuíam autonomia de decisão, já que estas eram atribuição apenas de veneráveis e vigilantes. Cabia aos andadores apenas o repasse das informações. Como dito anteriormente, eram fundamentais para a integração dos membros da loja, uma vez que em conjunto com os dirigentes centrais, conheciam a totalidade dos trabalhos e a composição completa dos quadros da loja. Sendo responsáveis pela coesão da Vigilância da Pátria e a representação da unidade dos irmãos como corpo maçônico onde quer que se encontrassem.

Tornando-se uma referência central para parte dos membros, era aos andadores que grande parte dos irmãos recorria em caso de necessidade de proteção ou para transmitir preocupações com os demais. É neste contexto que a escolha de Vieira Souto como andador da corte chama a atenção pela estratégia de comunicação. Como Vieira Souto era editor do jornal “Ástrea”, era comum encontrá-lo na sede do jornal ou na sede do batalhão de cavalaria, ambos localizados na Rua do Sacramento, o que facilitava encontros e comunicações, sem que despertasse suspeita a circulação de diversas pessoas nestes locais.

Da mesma forma que os trabalhos “profanos” de Viera Souto facilitaram as condições para o exercício de sua função de andador, o mesmo ocorre com Coelho da Cunha como Andador Geral e posteriormente para os demais andadores, pois o deslocamento de militares pelo território para diversas funções não causava estranheza ou qualquer questionamento, sobretudo porque os andadores geralmente eram distribuídos conforme sua alocação feita pelo próprio governo.

Para além dos andadores, em casos específicos, como a reorganização dos trabalhos nas províncias, estas eram em grande parte realizadas por grupos de comerciantes ou, muitas vezes, por deputados em retorno as suas províncias de origem durante o período de recesso parlamentar, responsáveis por integrar as práticas dos locais ao centro, unificando os trabalhos em conjunto aos andadores.

Apesar da garantia de integração desta rede de contatos e da busca de construção de uma unidade da maçonaria brasileira para o período, ainda assim há relatos dos andadores de tentativas de formação de novas lojas de forma efêmera em alguns locais do próprio Rio de Janeiro e de algumas províncias como Minas Gerais e Pernambuco que não passassem pela centralidade da Vigilância da Pátria. Tais lojas eram muitas vezes ligadas a grupos governistas, como a tentativa de formação de uma nova loja por José Clemente Pereira no Rio de Janeiro no início de 1827244.

Para além da restrição de comunicação dos membros da loja apenas com os andadores publicamente, ou em caso de urgência com os demais dirigentes se estes estivessem mais próximos, isso não significou um distanciamento entre os irmãos, ao contrário, era entendido pelos maçons da loja como um mecanismo de proteção às suas atividades, uma vez que a comunicação explícita em locais públicos significaria riscos desnecessários. Entretanto, estas recomendações nem sempre eram cumpridas à risca por todos os membros da loja. É comum encontrar alertas aos membros em reunião para que se lembrassem de cumprir tais normas.

Estas condições excepcionais ao momento específico em que a fraternidade vivia, onde o risco de localização das atividades significava não apenas punições pela lei, mas também a supressão total dos trabalhos maçônicos significaria uma perda de espaço de circulação e sociabilidade para estes homens, cientes dos riscos de suas atividades, mas de alguma forma acostumados ao processo de discrição a que a maçonaria se submeteu em boa parte das primeiras décadas do século XIX no Brasil.

Os círculos da Vigilância

Conforme relatado anteriormente, os círculos da Vigilância da Pátria foram expandidos à medida em que os quadros da loja eram ampliados. Se em 1825 o círculo original podia se organizar em dois grandes núcleos de rodízio, conforme a loja ampliava a articulação dos maçons presentes na cidade do Rio de Janeiro, um único círculo se tornou pequeno demais para abrigar os novos membros, já que em 1826 a loja já havia triplicado o número de irmãos.

Por esta razão, ainda no início de 1826 estabelece-se um limite sobre o tamanho de um círculo, que poderia comportar ao máximo 40 membros, a serem divididos no núcleo de rodízio como definido anteriormente pelo círculo principal. A cada vez em que se ampliasse o número de membros no limite, devia-se iniciar um novo círculo, que deveria seguir a uma norma de nucleação por tipo de atividade ou proximidade de atividades políticas, no caso dos deputados245.

Tal condição de nucleação por atividade próxima levava em consideração a ideia de que grupos similares em atividades e afinidades teriam menores problemas em levantar suspeitas para si por parte das autoridades, sobretudo da Intendência de Polícia, já que não seria de todo estranho que grupos de homens com profissões ou atuações semelhantes se reunissem de tempos em tempos.

Sendo assim, os círculos da Vigilância deveriam seguir as regras de circulação de membros e locais de reunião conforme definidas em 1825 para o núcleo central, ao mesmo tempo em que se organizavam de forma distinta do círculo principal. Os círculos gerais não possuíam venerável ou 1º vigilante próprios, sendo ambos os cargos existentes apenas para a loja como um todo. Cada círculo era chefiado por um 2º vigilante, designado pelo venerável geral, assim como um secretário. As demais funções da loja eram exercidas conforme os membros presentes, seguindo apenas critérios de antiguidade entre os membros do círculo.

Tais características dos novos círculos acabaram por tornar suas informações nas atas da Vigilância muito mais esparsas em comparação com os detalhes referentes às reuniões do círculo principal. Uma vez que aos novos círculos não era permitido manterem um livro de atas próprio, dados os riscos. Assim, os irmãos que exercessem a função de secretário em determinada sessão deveriam repassar ao secretário geral por meio do andador, as informações sobre as reuniões ocorridas, o que acabou resultando geralmente em apenas registros sobre as datas de reunião e alguma intercorrência específica em um círculo, provavelmente pelas próprias dificuldades do repasse de informações para as atas246.

As estratégias de circulação e de funcionamento dos muitos círculos, embora trouxessem suas raízes nas tradições maçônicas de diversas localidades, receberam traços particulares resultantes das peculiaridades da situação em que a Vigilância da Pátria se encontrava, frente aos desafios de manter em funcionamento suas atividades. Dentre as particularidades resultantes desta realidade específica está a não alternância dos quadros de liderança da loja durante os anos de clandestinidade, sobretudo os postos de venerável mestre e de primeiro vigilante.

Essas particularidades das composições da Vigilância estabeleceram características próprias da articulação dos membros da loja, cuja busca por formas de manutenção do funcionamento dos trabalhos maçônicos pelo país formou um quadro de membros, que embora disperso, com diferentes padrões de frequência nas sessões e pelo não conhecimento pleno de todos os irmãos, ainda assim construiu uma coesão entre os membros da loja. Utilizando-se inclusive de códigos de identificação maçônica, que permitia a coesão de ações a partir da articulação de seus membros na vida pública à partir das ações de seu quadro central.

Para se tornar membro da loja, qualquer homem deveria seguir a uma ordem de vinculação. Todo candidato a membro da Vigilância, fosse maçom iniciado anteriormente ou candidato à iniciação deveria ter sua vinculação apresentada por algum membro da loja, qualquer que fosse o círculo. Se fosse aprovada sua filiação, este novo membro era apenas informado ao círculo principal e designado a um círculo específico, normalmente o mesmo da candidatura. Diferente da vinculação dos membros à loja, a adesão de outros locais fora da cidade do Rio de Janeiro passaria pela solicitação do núcleo candidato em pertencer à loja. Para tal, um representante local já membro da Vigilância deveria se apresentar à reunião do núcleo central, transmitindo as vontades expressas por todos os membros do determinado local que solicitava tal filiação.

Esta preocupação atendia a dois pressupostos, o de controle efetivo sobre cada filiação, com as garantias da manutenção da discrição e segredo necessários ao momento de clandestinidade total da loja, assim como a da ampliação dos quadros por todo o território pela vontade da localidade e não de uma imposição a partir do centro. Por esta razão, a Vigilância não enviava representantes antes do contato com os quadros locais, mas antes estes faziam a solicitação por meio de um representante já vinculado à loja. Estes emissários eram principalmente os militares com fluxo entre o Rio de Janeiro e determinada província ou mesmo deputados representantes da mesma província.

Ademias, tal preocupação pode ser entendida não apenas como visando a garantir o segredo necessário às atividades da maçonaria, mas principalmente pela busca da construção de uma centralidade maçônica que de fato fosse nacional. Ou seja, não mais uma unidade construída pelo próprio centro, como ocorrera nas tentativas anteriores de formação de orientes nacionais, mas pela adesão dos diversos locais a uma nucleação central, que não necessariamente deveria se restringir ao Rio de Janeiro.

A ampliação das atividades da Vigilância da Pátria seguia uma pretensão federativa, que garantia as autonomias locais ainda que vinculadas a um centro. Esta autonomia se devia muito mais as necessidades do momento do que a um projeto específico de federação. A necessidade de discrição dos quadros das diversas localidades onde a presença maçônica se efetivasse impunha um forte grau de autonomia para as localidades mais distantes do centro, que enviavam informes ao núcleo central por meio de seus andadores, responsáveis pela articulação entre centro e local.

Diferente das tentativas anteriores de construção de uma potência geral que se articulou a partir das vontades de um núcleo específico e das tentativas de imposição de filiação das demais localidades por tentativas de atração dessas localidades por meio de emissários, a Vigilância da Pátria buscou se articular por outros meios aos locais mais distantes do Rio de Janeiro.

A própria construção de um núcleo central que congregasse membros oriundos de diversas localidades e tradições maçônicas diversas, reunindo assim uma maior representatividade das expressões da própria fraternidade. Ao se constituir desta maneira, a Vigilância pareceu menos hostil às particularidades regionais, as quais poderiam ser congregadas de forma mais representativa em seus interesses e de formações distintas, ainda que o centro especificasse regulamentos gerais para o funcionamento de ritos e reuniões como forma de manutenção da discrição necessária.

Ao se articular desta forma, a Vigilância da Pátria se constituiu como a primeira representação nacional da maçonaria no Brasil com maior longevidade, congregando em seus quadros não apenas membros dos mais diversos locais do Império, mas principalmente foi formada por grupos políticos diversos, ainda que unidos pela conjuntura de oposição ao governo pedrino. Ao se organizar de forma realmente nacional, a Vigilância pode construir uma maçonaria nacional, ainda que de forma limitada dada a conjuntura política da época. Ao expandir seus quadros de andadores, que atuavam em conjunto aos deputados de cada província, a loja, sobretudo em seu núcleo central, construiu um quadro de pertença mais amplo que qualquer tentativa anterior de nucleação da maçonaria brasileira, fosse esta organização a partir do modelo de Grande Oriente quanto do modelo de Grande Loja.

A formação da Vigilância como uma representação efetivamente nacional, respeitando as particularidades de cada local ao mesmo tempo em que articulou estas localidades a um centro comum, era não apenas uma novidade para a maçonaria brasileira, mas sobretudo resultado dos esforços de seus quadros em congregar as pluralidades das realidades da ordem pelos mais diversos locais onde a fraternidade se encontrasse. Assim, ao articular antigas tradições, em conjunto a novas respostas nascidas à época, resultando em uma formação inédita para a maçonaria brasileira, que garantiu sua sobrevivência na clandestinidade até a publicização de suas ações a partir do rompimento institucional dos grupos oposicionistas ao governo central do Império.

A própria Vigilância passou por metamorfoses em sua construção. Se em 1825 ela se preocupava em reunir os maçons da cidade do Rio de Janeiro ligados aos grupos oposicionistas ao Imperador, a partir de 1826 com a ampliação de seus quadros iniciais para outros locais distintos, a loja precisou se adequar e se redesenhar segundo esta nova realidade. Tal ampliação de quadros resultou em uma formação muito específica à Vigilância dentro da própria história da maçonaria brasileira, a de, a despeito de sua própria existência em diversos locais dispersos, ainda sim todas essas oficinas se configuravam como uma única loja nacional, obedecendo as mesmas regras e tendo as mesmas lideranças.

Desta forma, podemos entender a organização da Vigilância em dois grandes centros, o Rio de Janeiro e arredores, onde se concentravam os principais círculos da loja e os círculos provinciais.

A medida em que os círculos se deslocavam dento da cidade ou pelas províncias, a Vigilância ampliava paulatinamente seu raio de atuação, o que pode ser notado pelo próprio grau de ampliação dos quadros da loja. Em 1825 a loja pouco circulou pela própria cidade, uma vez que ainda se discutiam as próprias formas de organização e as formas de rodízio de seus membros. Por isso, no balanço do primeiro ano de existência da Vigilância há apenas dois círculos na cidade, o principal e o chefiado por Antonio do Amaral.

A partir de 1826, com o início do funcionamento da primeira legislatura da Câmara, o número de membros da loja é rapidamente ampliado, dada a presença dos deputados na cidade e de uma maior circulação na capital. É a partir deste ano que pouco a pouco o número de círculos é ampliado, até o início de 1827, quando não apenas surgem mais dois círculos na capital, mas começam os primeiros círculos provinciais, conforme o fim do ano legislativo e o retorno dos deputados às suas localidades, atraindo os maçons iniciados em suas províncias, conforme as notícias se espalhavam, segundo o relato do deputado Lino Coutinho247.

Assim, esta ampliação de membros e círculos da Vigilância se iniciou pela adesão de antigos maçons espalhados pelas várias localidades, ainda que limitadas as vinculações daqueles que poderiam ser identificados como maçons pela Intendência, atingindo assim o grupo de membros conhecidos por serem integrantes do Oriente de 1822.

Em 1828, quando o Secretário apresentava seu balanço anual, Machado Nunes enumerou a composição da Vigilância da Pátria em cinco círculos na corte, três na província do Rio de Janeiro, além de círculos nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Cisplatina, Bahia, Goiás, Maranhão e Pará. Todos estes círculos eram ao mesmo tempo organizações próprias e uma única loja, o que conferia uma característica singular da Vigilância da Pátria.

Os cinco círculos da cidade do Rio de Janeiro, eram chefiados por seus respectivos vigilantes. O primeiro deles era o círculo central, cujo vigilante era José Joaquim de Lima e Silva, o 1º vigilante geral da loja, podendo ser auxiliado ou não pelos respectivos 2os vigilantes do círculo, Epifânio José Pedroso e Antonio Pedro da Costa Ferreira. Os outros quatro círculos da cidade eram chefiados por Antonio José do Amaral, Custódio José Dias, Manoel José de Souza França e Epifânio Maria Pedroso. Esses quatro primeiros círculos eram chamados de círculos velhos, não apenas pelo tempo de formação, mas também pela média de idades de seus membros, entre 36 e 40 anos de idade, enquanto o chefiado por Epifânio tinha uma média de idade de 26 anos.

O círculo de Epifânio além de jovem, era também o recordista de anotações sobre os alertas de comportamento de seus membros. Aparecem alertas sobre reuniões em praias, repreensões sobre comportamento público e até mesmo, em 23 de setembro de 1828, uma anotação sobre uma reunião em alguma praça pública, o que gerou uma advertência que poderia levar a suspensão dos trabalhos do círculo248. Este círculo, considerado por Vergueiro como o mais volátil, e até mesmo um pouco radical, era o círculo que mais vezes recebeu visitas dos membros do núcleo central, mesmo que seu vigilante fosse um dos fundadores da loja249.

Diferente dos círculos da corte, os círculos das demais localidades possuem poucas anotações no livro de atas. Dadas as dificuldades de circulação dos informes, os poucos registros são aqueles informados pelos andadores sobre processos de filiação ou nos balanços anuais do secretário. Mesmo que formalmente as filiações devessem ser informadas ao círculo principal, quando referentes aos círculos principais, dificilmente trazem os nomes dos filiados, normalmente apenas os números de filiados em determinado espaço de tempo e o informe de anuência dos membros dos círculos provinciais.

A maioria das vigilâncias dos círculos eram exercidas ou por seus andadores ou por algum residente local. Como uma grande parte das informações não eram registradas nas atas, sua ausência não pode ser entendida como uma falta de interesse por parte do círculo central ou uma falta de controle sobre os fatos das províncias, mas um reflexo das imensas dificuldades de circulação destas informações.

Em diversas oportunidades Vergueiro ou Lima e Silva apontaram as dificuldades de registro das informações sobre os irmãos que estivessem fora da cidade do Rio de Janeiro, dados os riscos destas informações serem interceptadas. Informações como a circulação do círculo paulista entre as cidades de Sorocaba e Itu, além de um possível novo círculo em São Paulo em 1827 só são registradas em abril de 1827 por relato do próprio Vergueiro, que havia visitado o círculo dias antes e nomeado o novo vigilante do círculo, Raphael Tobias de Aguiar250.

Em maio de 1828, no balanço anual da loja, constam como círculos atuantes nas províncias: São Paulo, chefiado por Tobias de Aguiar e Pernambuco, chefiado por Francisco Cavalcanti e Albuquerque e seu irmão Pedro, enquanto Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pará, Maranhão, Cisplatina, Mato Grosso e Bahia são identificadas como chefiados por seus respectivos andadores e um vigilante local, mas nenhum deles estava identificado251. Os três círculos da província do Rio de Janeiro se localizavam na vila de Campos, na Ilha Grande e em Paraty, cuja chefia pertencia ao Grande Andador, José Feliciano Pinto Coelho da Cunha e outros dirigentes locais.

São estas particularidades da Vigilância da Pátria que a tornam não apenas uma experiência singular para a maçonaria brasileira, como a garantia da sobrevida da fraternidade durante todo o período da clandestinidade. Isso permitiu não apenas a continuidade dos trabalhos maçônicos e a sobrevivência das tradições destes no Brasil, como criou novas condições para a ampliação dos membros da ordem no território, expandindo significativamente sua atuação pelo país e mantendo sua coesão até a ruptura definitiva do processo de saída da clandestinidade e a ascensão da maçonaria como instituição pública nacional.

Mas, ainda que todas as circulações e normas de rodízios fossem cumpridas, é notória a pressão sofrida por parte de alguns círculos do Rio de Janeiro em relação à possíveis fiscalizações por parte da Intendência Geral de Polícia. O alerta mais comum durante os anos de clandestinidade é referente à presença de “spias”, ou mesmo normas de conduta para chegar às reuniões, como forma de proteção, uma vez que por mais que as lideranças da loja pressionassem sobre estas medidas de segurança, os irmãos nem sempre eram tão discretos como desejavam seus dirigentes, como no caso anteriormente mencionado sobre o círculo jovem.

Estes alertas sobre os espias em grande parte eram dados por João Machado Nunes, que possivelmente possuía alguma informação mais efetiva sobre as ações da Intendência, uma vez que Nunes era o oficial da Contadoria da Intendência. Seu posto permitiu muitas vezes a suspensão de uma reunião visada em determinado período ou mudanças de local no próprio dia da reunião. Vieira Souto e Pinto Coelho reconhecem a atuação de Machado Nunes em prevenir ações da intendência entre 1827 e 1828 nos Relatórios de circulação da Vigilância, documento avulso localizado no interior do livro de atas da loja252.

Niterói era um ponto frequente das reuniões, chegando até mesmo a sediar reuniões mesmo quando o círculo principal não estava em seu deslocamento de perseguição, uma vez que alguns de seus membros residiam na cidade. O deslocamento para Niterói representava um local de fácil acesso aos membros da loja, ao mesmo tempo que embora próxima a corte, escapava de um controle mais significativo dos organismos fiscalizadores como a própria Intendência, uma vez que a cidade já estava fora de seu raio de atuação principal.

O crescimento da Vigilância da Pátria entre 1825 e 1828 pode ser acompanhado como uma ampliação da própria articulação dos maçons pelo país, construindo não apenas formas inéditas de construção da própria sociabilidade da fraternidade pelo país, mas criando as bases para a consolidação da maçonaria brasileiro nos anos subsequentes.

Continua…

Autora: Pilar Ferrer Gomez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em História – 2022.

Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06102022-120353/en.php

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Notas

229 Sessão inaugural da loja Vigilância da Pátria em 24 de junho de 1825. LAVG, Sessão de 24 de junho de 1825 (24/4/5825).

230 Ver sessões de julho a outubro de 1825 e março de 1826. Livro de Atas da Loja Vigilância da Pátria.

231 Cada núcleo de reunião desenvolveu seus próprios códigos, apenas informados, mas não detalhados nas atas da loja. Ver Livro de Atas da Loja Vigilância da Pátria.

232 Nicolau Vergueiro se ausenta com maior frequência nas reuniões do ano de 1827, ainda que apresente lacunas em outras fases, como o ano de 1828, quando Vergueiro esteve doente.

233 Parte significativa das reuniões de 1828 aconteceram na residência de Lima e Silva ou de seus irmãos quando se encontravam no Rio de Janeiro e arredores. Ver Livro de Atas da Loja Vigilância da Pátria.

234 Faz parte da tradição maçônica a identificação dos irmãos por gestos, que variam conforme o grau maçônico ao qual pertença o iniciado. A Vigilância muitas vezes modificou ou simplificou os gestos, sendo recomendados pelos Andadores apenas os apertos de mão. LAVG, Sessão de 13 de agosto de 1826 (13/6/5826).

235 LAVG, Sessão de 14 de abril de 1826 (14/2/5826).

236 Ao menos 5 sessões constam nas atas como suspensas por possível identificação, sendo estas em 21 de setembro, 30 de outubro (na casa de Vergueiro) e 19 de dezembro de 1826, além de 14 de março e 23 de abril de 1827 (na casa de Holanda Cavalcanti).

237 Declaração de Joaquim José Vieira Souto em sessão de 12 de fevereiro de 1827 (12/12/5826).

238 Informe do 2º Vigilante da cidade de Salvador e província da Bahia, Deputado Lino Coutinho, em sessão de 20 de maio de 1827. LAVG, Sessão de 20 de maio de 1827 (20/3/5827).

239 José Joaquim foi eleito andador da corte, enquanto José Feliciano Pinto Coelho da Cunha permaneceu como andador para as demais localidades. LAVG, Sessão de 14 de agosto de 1826 (14/6/5826).

240 LAVG, Sessão de 09 de abril de 1827 (09/2/5827).

241Relatório de circulação dos anos de 1827-1828 e prestação de contas aos irmãos da Loja “Vigilância da Pátria”, documento avulso.

242 Orientação aos irmãos andadores, sem data, documento avulso.

243 Na sessão inicial, Pinto Coelho foi eleito com 14 votos, contra 9 de Vieira Souto.

244 A criação de uma loja pelo próprio imperador Pedro I ou pela liderança de José Clemente Pedreira é uma constante na memória maçônica, ainda que seu referencial original se encontre apenas em MENEZES, op. cit., p. 59. Os irmãos da Vigilância da Pátria desconfiavam, ainda que não pudessem afirmar a existência desta loja, identificada por alguns deles como o núcleo primordial da Sociedade das Colunas do Trono e do Altar. Tal aceno sobre a loja de Clemente Pereira aparece na Sessão de 20 de outubro de 1827. LAVG, Sessão de 20 de outubro de 1827 (20/8/5827).

245 As normas para criação de novos círculos foram definidas na sessão de 27 de maio de 1826, ocorrida na casa de Lima e Silva, reunindo os membros do círculo original. LAVG, Sessão de 27 de maio de 1826 (27/3/5826).

246 As atas de reunião dos círculos eram queimadas após as reuniões, o que explica a ausência de maiores registros dos círculos. A resolução de queima segue as regras estabelecidas para o funcionamento dos círculos. LAVG, Sessão de 27 de maio de 1826 (27/3/5826).

247 LAVG, Sessão de 23 de abril de 1827 (23/02/5827).

248 A advertência foi dada por Joaquim de Lima e Silva, que presidia a sessão do dia. LAVG, Sessão de 23 de setembro de 1828 (25/7/5828).

249 Segundo Joaquim Manoel de Menezes no Anno Biográphico, Epifânio era identificado por muitos como radical, sendo identificado pelos irmãos Ottoni como iniciador dos irmãos em ideias revolucionárias. O próprio Teófilo era o secretário do círculo liderado por Epifânio. MENEZES, Joaquim Manoel de. Suplemento do Anno Biographico. Rio de Janeiro, Tipographia Perseverança. 1880, p. 267.

250 LAVG, Sessão de 12 de abril de 1827 (12/02/5827).

251 Parte da falta das informações sobre os vigilantes locais pode ser identificada por nenhum dos andadores das respectivas províncias estarem presentes na sessão. LAVG. Sessão de 24 de junho de 1828 (24/4/5828).

252 Relatório de circulação dos anos de 1827-1828 e prestação de contas aos irmãos da Loja “Vigilância da Pátria”.

A “Vigilância da Pátria” – A ação da maçonaria brasileira durante a década proibida (1822-1831) – Parte VI

As tradições maçônicas e a Vigilância

A própria existência da Vigilância dependia sobretudo da capacidade de seus membros de passarem longe das suspeitas daqueles encarregados de aplicar a lei de proibição das Sociedades Secretas. No Rio de Janeiro, essa era uma das atribuições da Intendência Geral de Polícia, que, como destaca Nathália Lemos203, possuía espias pela cidade. Ainda assim, chama atenção que o secretário da Vigilância, fosse um oficial da contadoria da própria Intendência, em cuja posse permaneceu o livro de atas até a fixação da loja em um único endereço em 1830. A própria escolha o secretário nos parece uma manobra de proteção, já que grosso modo o livro de atas da maior loja maçônica do país esteve, de alguma forma, ao alcance da polícia.

Assim, para tentar solucionar esses óbices, os primeiros membros da Vigilância, principalmente seus dois nomes principais, Nicolau Vergueiro e José Joaquim de Lima e Silva, apresentaram como solução a combinação de muitas tradições, aparentemente aprendidas em seus locais de iniciação204, oferecendo respostas para conciliar um funcionamento tradicional e as novas realidades205. Estas estratégias vieram não apenas da tradição francesa na qual grande parte dos irmãos foi iniciada, mas também da tradição anglo-saxônica.

Tradicionalmente, uma loja era composta pela congregação de irmãos em um espaço físico determinado, fosse uma taverna (como nas origens da ordem na Grã- Bretanha), a casa de um dos membros ou um espaço específico para esse fim. Tal exigência, contudo, já nas primeiras décadas do século XVIII, impunha restrições àqueles que, por sua ocupação, estavam sempre em movimento, como é o caso dos batalhões do exército ou das tripulações dos navios de guerra.

Segundo Jessica Harland-Jacobs, em 1731, para solucionar tal problema e permitir aos irmãos em trânsito a manutenção dos trabalhos, a Grande Loja da Irlanda emitiu a primeira patente para uma loja volante, um “Travelling Warrant”206. Tal patente permitia que os irmãos se congregassem fora de um templo maçônico, ou seja, bastava que os irmãos se reunissem, onde quer que fosse, para que ocorresse uma sessão. Patentes volantes foram concedidas especialmente para as Lojas Regimentais, isto é, oficinas maçônicas que funcionavam dentro dos regimentos e batalhões de militares.

A concessão desse tipo de patente, que nasceu nos regimentos do exército irlandês, se expandiu rapidamente, não só passou a ser concedida por outras Grandes Lojas e Grandes Orientes, como para outros irmãos em trânsito, não somente pertencente aos quadros dos exércitos. Volantes se formaram na marinha de guerra e depois na marinha mercante, assim como em tropas de milícias e outras composições militares. Na França, a prática foi ainda mais expandida, dado que patentes de volantes passaram a ser emitidas de forma a permitir, em períodos de maior repressão à maçonaria, o funcionamento das lojas fora dos templos, isto é, mais uma vez pela simples reunião dos irmãos ou de espaços.207 Como coloca Harland-Jacobs, a criação das lojas volantes foi fundamental, nos séculos XVIII e XIX, para a expansão das atividades maçônicas por diferentes países e continentes.208

Tal como uma loja com endereço fixo, às volantes era permitido iniciar novos irmãos, bem como conceder os graus de companheiro e mestre. Mas não só, parte das patentes de volantes permitia a fundação de novas lojas ou a regularização das oficinas que encontrassem e manifestassem desejo por se associar à potência originária da volante209. A própria filiação de boa parte das lojas brasileiras do início do século XIX foi possibilitada por lojas volantes militares, como as que provavelmente figuravam nas corvetas de guerra Hydre e La Preneuse, fundadoras das lojas União do Rio de Janeiro e Cavaleiros da Luz de Salvador, tal como visto no capítulo anterior.

Ao fazer a opção de passar de um quadro fixo, mais facilmente identificável pelas autoridades, para uma loja volante, os quadros da Vigilância da Pátria precisaram traçar estratégias para a circulação da loja pela cidade, garantindo, por exemplo, que os espaços escolhidos comportassem o número de irmãos que iria se reunir. Mas tal circulação não pareceu suficiente para garantir a segurança dos membros. Optou-se, também, pela variação dos irmãos em cada sessão. Isto é, foi implementado um rodízio, de maneira que, de uma sessão para outra mudassem os presentes, dificultando, assim, a identificação dos seus membros.210

Se a circulação da loja entre diversos locais, dispensando os padrões fixos do templo, tinha suas origens nas tradições anglo-saxônicas da maçonaria, o rodízio dos membros tinha sua origem na França, mais especificamente no período pré- revolucionário, com as chamadas “Licenças de liberdade”, prática que se espalhou pela Europa durante as guerras napoleônicas.

As tais “licenças” permitiam um sistema de rodízio interno dos irmãos como forma de dificultar sua identificação pelas autoridades. Assim, era facultado aos irmãos das lojas francesas – e depois onde mais a prática foi adotada – não frequentar todas as reuniões, obrigação imposta aos maçons em lojas e situações normais. Certo grupo participava de uma reunião, sendo substituído por outro na sessão seguinte. Isto é, havia intervalos na participação de um mesmo irmão nos trabalhos da loja de forma a eludir as autoridades, assim como a filiação em lojas que contemplassem grupos sociais próximos, de forma a não gerar estranhamentos das mesmas autoridades211. Este sistema de circulação, ainda que utilizado pelas lojas de origem francesa, não era, portanto, estranho aos maçons brasileiros, muitos deles iniciados em lojas vinculadas ao próprio Grande Oriente da França.

Ao adotar ambas as tradições, tanto das lojas volantes, como do rodízio entre seus membros, a Vigilância procurou se cercar de todas as proteções possíveis, utilizando as tradições maçônicas, para garantir a continuidade dos trabalhos e a segurança dos irmãos. Entretanto, tais práticas pressupunham uma sofisticada logística para que fossem funcionais e, ao mesmo tempo, se preservasse a coesão dos irmãos.

Diferentes questões deveriam ser pensadas para determinar quem compareceria a tal ou qual sessão. Na reunião de 20 de agosto de 1825, o vigilante José Joaquim de Lima e Silva, destacou que, a fim de não despertar a atenção das autoridades, era importante que se reunissem membros que, em sua vida profana, tivessem motivos para se congregar. Colocar em uma mesma reunião homens que não necessariamente apresentavam alguma ligação social externa à loja aumentava o risco de identificação da reunião como pertencente a algum tipo de sociedade secreta. Ademais, tampouco era recomendável juntar um número muito grande de notórios opositores do governo, sempre sob os olhos atentos da Intendência de Polícia. Finalmente, como grande parte das reuniões muitas vezes aconteciam nas residências de irmãos da loja ou imóveis ligados a algum deles, a estratégia de circulação necessitava considerar a quantidade de membros que poderiam ser comportados nos locais de reunião.212

Entre 24 de junho e 18 de outubro de 1825, a Vigilância se reuniu apenas oito vezes, número pequeno de reuniões para os padrões de lojas regulares, mas um número significativo para uma loja clandestina. As duas primeiras reuniões ocorreram em semanas seguidas (24 de junho e 01 de julho), mas as seguintes foram bem mais espaçadas (17 de julho, 07 e 20 de agosto, 12 de setembro, 02 e 18 de outubro). É possível que tal se devesse à conjuntura da época, mas também da dificuldade de reunir os membros da loja tomando-se todas as precauções necessárias para sua segurança. Nota-se que a partir de 27 de julho de 1825, o rodízio já estava em funcionamento.

Todas estas questões necessitavam não apenas de uma coordenação de logística por parte dos responsáveis pela loja, mas de uma sistematização das ações necessárias. Essas eram as atribuições do primeiro vigilante e do secretário da loja, encarregados da condução do cotidiano da oficina, assim como de sua manutenção. Ambos deveriam ser auxiliados pelo andador, cuja atribuição passava pela integração entre os irmãos, facilitando e garantindo a comunicação entre eles e com a própria loja.

Tradicionalmente na maçonaria brasileira, cabia ao andador transmitir aos irmãos as datas de reuniões e avisos sobre o funcionamento da loja em geral.213 Este não era o caso do andador da Vigilância, uma vez que ele, possivelmente com exceção do venerável e do vigilante da loja, era o único que conhecia a totalidade dos membros da Vigilância214. Sua função era essencial para a sobrevivência loja, já que dele dependia a dinâmica de funcionamento das reuniões. Portanto, para ocupar tal cargo era preciso que o irmão tivesse ampla circulação pela cidade e, posteriormente, por diferentes províncias do país. Tal pré-requisito fez com que a maior parte dos andadores da Vigilância fossem militares ou comerciantes, cujo deslocamento não levantava maiores desconfianças por parte das autoridades.

Os Andadores do período proibido eram os únicos encarregados, diretamente pelo Venerável ou pelos Vigilantes da loja, de comunicar aos irmãos cuja presença seria admitida em cada sessão, assim como local e horário do encontro. O comunicado só poderia ser repassado ao maçom específico, não podendo este mesmo membro repassar o comunicado a outros membros de seu grupo. Estas especificações sobre como comunicar os quadros sobre sessões e cotidianos da loja era essencial no período, uma vez que as pressões sobre a clandestinidade exigiam sigilo sobre as atividades. Entretanto, apenas a circulação não garantia o sigilo e o controle pleno dos quadros da loja. Com este fim, os irmãos optaram pelo uso do Rito Francês. Embora fosse o rito de iniciação de grande parte dos maçons brasileiros, a escolha atenderia principalmente ao nível de coesão e controle estabelecido por este rito, dado o menor número de graus215.

Com poucos graus filosóficos, a ascensão dos irmãos era dada de forma muito mais parcimoniosa, o que permitia um maior controle hierárquico dos membros. Mas, em tempos de clandestinidade, tal restrição também garantiu para a Vigilância uma menor alternância entre os quadros principais da loja, fundamental para a proteção dos trabalhos e dos próprios irmãos, uma vez que apenas as lideranças conheciam efetivamente a totalidade do quadro de membros, garantindo maior sigilo sobre a extensão da maçonaria no período.

Tal controle não era uma mera formalidade, mas uma condição de sobrevivência, especialmente a partir de 1826, quando a Vigilância passou a contar não só com um número maior de membros, mas também estendeu sua atuação para além do Rio de Janeiro. Pouco a pouco a loja alcançou outras províncias, ainda que, num primeiro momento, os trabalhos tenham se dado de forma esporádica e com poucas pretensões de criação de oficinas distantes do corpo central. Afinal ante à situação política, tornava-se mais complexo iniciar quadros numerosos, como a presença de maiores atividades maçônicas em outras províncias poderia facilitar a identificação pelo governo.

Além dessas estratégias, a Vigilância também pode contar com outra proteção adicional, qual seja a da posse de duas cartas patentes autorizando o funcionamento da maçonaria.216 Ainda que não fique claro se esta foi uma estratégia utilizada pelos irmãos em algum momento, a posse dessas cartas de fundação e, portanto, de seu reconhecimento por potências estrangeiras tinha o potencial de proteger os irmãos de maiores perseguições caso fossem descobertos pelo governo.

A primeira das duas cartas patentes foi emitida em 1822 pelo Grande Oriente da França, em nome de João Paulo dos Santos Barreto, que retornou daquele país no final de 1822 como delegado do Grande Oriente de França no Brasil, com carta delegada para fundação de lojas no país recém independente.217 Essa carta, ainda que provavelmente emitida para reconhecimento e regularização do oriente de 1822, nunca chegou a ser apresentada aos irmãos do extinto Oriente, dado o encerramento dos trabalhos.

A segunda patente, e talvez a mais importante para a loja, foi emitida em 1826, em nome do Commodore David Jewett, oficial da marinha brasileira218, concedida pelo Sovereing Gran Consistory of the United States (Nova York, Estados Unidos), um conselho de graus superiores da maçonaria estado-unidense. A patente do comodoro Jewett possuía um grau de proteção mais significativo para a Vigilância, uma vez que esta era mais ampla em suas atribuições do que a patente francesa, como por exemplo autorizava a concessão de graus219. Entretanto, apesar da Vigilância ter, em sua posse, ambas as cartas, não consta nas atas informação sobre filiação a alguma potência, o que fazia dela uma loja irregular.220 Não era incomum, no início do século XIX no Brasil, encontrar uma loja não vinculada a uma potência, como no caso, por exemplo, da loja Comércio e Artes em 1821, em razão do desejo dos irmãos de fundar uma obediência própria. Mas, em se tratando da Vigilância, chama a atenção o longo tempo que a loja permaneceu irregular.

Considerando o exposto, a Vigilância da Pátria representou uma inovação na curta história da maçonaria brasileira, ainda que suas novidades fossem influenciadas pelas tradições da própria fraternidade. Desta mistura de tradições e inovações nasceram as primeiras articulações dessa loja e que permitiram a ampliação de seus quadros para além da cidade do Rio de Janeiro.

Os primeiros passos da loja

Todas as tentativas de nucleação da maçonaria no Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, padeceram do mesmo problema fundamental, isto é, da dificuldade de congregar os maçons dispersos pelo território brasileiro em uma única obediência, mas não apenas isso. Segundo um dos próprios irmãos da Vigilância, outro fator desagregador era a “não representação do pensamento e dos interesses dos membros da ordem como um todo, mas antes apenas a representação de projetos de núcleos específicos, principalmente aqueles pertencentes ao Rio de Janeiro”.221 A Vigilância precisava, então, não apenas congregar os diversos núcleos dispersos pelo país após os acontecimentos de 1822 a 1824, mas também solucionar a questão da representatividade dos diversos grupos que a ela se vincularam ao longo do tempo, num equilíbrio entre a proteção dos trabalhos da loja e a liberdade de ação e pensamento de seus membros.

Assim, a Vigilância da Pátria não atendeu às formas de nucleação tradicionais das lojas brasileiras, mas antes foi formada em menor número por membros pertencentes aos grupos políticos da cidade do Rio de Janeiro. Suas principais lideranças não eram oriundas da cidade e nem mesmo pertenciam aos grupos instaladores ou membros conhecidos da maçonaria fluminense anteriores, mas sim eram ou membros de outras lojas cujos pertencimentos não foram agregados as anteriores tentativas de formação de uma obediência nacional ou mesmo eram recém iniciados na fraternidade.

Esta não vinculação das lideranças a um local específico de antigas filiações ou até mesmo a imposição de restrição de filiação de antigos membros do Oriente Brasílico não apenas atendiam à preocupação em passar longe dos radares das instituições responsáveis pela repressão às atividades da maçonaria, mas também atendiam a uma preocupação de que a nova obediência não fosse identificada como herdeira de algum modelo de imposição de autoridade central advindo das antigas tentativas de formação de uma potência nacional.

Para isto, as lideranças da Vigilância da Pátria se utilizavam de uma espécie de duplo filtro para as filiações. Primeiramente, havia uma investigação sobre a vida e as atividades políticas do candidato, a sindicância era algo comum na maçonaria em qualquer tempo. Mas, a intenção era saber se o candidato manteria em segredo sua condição de maçom e o que se passava nas sessões. Apenas depois de tais procedimentos é que um irmão era autorizado a convidar o futuro iniciando222. Não à toa, apenas em 24 de maio de 1826, foi iniciado um novo irmão, no caso Francisco da Silva França223, identificado como negociante de 38 anos, natural de Santa Catarina.

Desde sua fundação a Vigilância se tornou uma congregação de maçons brasileiros de passagem na cidade do Rio de Janeiro ou residentes nas imediações, ainda que limitada a participação pela necessidade de filiação e seguindo os critérios apresentados anteriormente.

A despeito de todas as tradições recuperadas e reinventadas, a Vigilância em seu primeiro ano foi pensada como uma loja de funcionamento quase tradicional, respeitando o rodízio entre seus membros, de forma que não comparecesse um número maior do que 20 irmãos por reunião. Para tanto, estabeleceu-se uma forma de revezamento por meio de um sorteio entre 3 grupos. Os dois primeiros grupos compareceriam às suas respectivas reuniões a cada semana, enquanto na terceira semana de rodízio compareceriam metade de cada um dos dois grupos prévios, misturando-se assim os grupos. Em cada reunião haveria a presença do venerável ou do 1º vigilante, acompanhados de um dos dois segundos vigilantes, responsáveis pela organização do local da reunião. Já as demais funções da loja não eram fixas, mas exercidas por sorteio entre os presentes em cada reunião224.

O grupo original da Vigilância, dividido entre os grupos de rodízio, é considerado o primeiro círculo da loja. À medida em que esta se expandiu, foram criados novos círculos, seguindo os mesmos critérios de rodízio do círculo principal, cada um deles confiado a um maçom específico, que exercia a função de segundo vigilante225. Assim, as reuniões contariam sempre com a presença de, ao menos, um segundo vigilante e outras autoridades.

Essas são diferenças importantes em comparação com as lojas maçônicas em geral. Em uma oficina qualquer, havia um quadro específico de funções, para as quais os irmãos eram eleitos para um exercício de dois anos. Compunham o quadro de uma loja maçônica no período: um venerável mestre, um 1º vigilante, um 2º vigilante, um orador, um tesoureiro, um secretário, um chanceler, um mestre de cerimônia, um cobridor, um andador e um experto. Tais funções podem ser divididas em funções de chefia e organização da loja (venerável, vigilantes, tesoureiro, chanceler, andador e secretário) ou cerimoniais (vigilantes, orador, mestre de cerimônia, cobridor e experto).

Às funções de chefia cabia a organização da loja, tanto dos membros e registros de reuniões, quanto das finanças. O venerável ou presidente da loja preside a sessão e é responsável pela existência dela como um todo. Ao 1o vigilante cabia substituir o venerável em sua ausência e administrar conjuntamente a loja. O 2o vigilante, por sua vez, substitui o primeiro vigilante, além da função cerimonial. O tesoureiro é responsável pelas finanças da loja, recolhendo os pagamentos devidos por cada irmão, além de pagamentos diversos de manutenção da própria loja e auxílio aos irmãos se necessário. O chanceler é responsável pelo registro dos irmãos da loja, anotações diversas acerca de graus e funções, além do contato com outras lojas. O secretário é responsável pelos registros de reuniões, além de controle de presença e da articulação daqueles que exercem as demais funções. E o andador é responsável por comunicar os membros da loja sobre dias, horários e locais de reunião, além de repassar recados226.

Já àqueles que ocupavam funções cerimoniais cabia cuidar das sessões da loja, como os cargos de mestre de cerimônias, cobridor e outros, cujas funções são responsáveis pelo andamento da cerimônia e organização dos ritos específicos que possam ocorrer na sessão, tais como a organização do cerimonial e o controle de acesso dos membros227.

As funções dentro da Vigilância também seguiam a um ordenamento específico. O venerável e o 1º vigilante dividiam entre si a liderança da loja, revezando-se nas reuniões, às quais, como mencionado, deveria comparecer sempre um dos segundos vigilantes228. Ademais, os segundos vigilantes acumulavam a função de chanceler e cobridor do círculo sob sua responsabilidade.

Já o secretário da loja, ainda que nominalmente fosse eleito apenas um dos irmãos, não frequentava todas as reuniões. Assim, caso o secretário não estivesse presente, um irmão era escolhido para anotar os pontos principais da reunião e repassá-los ao secretário, a quem ficava confiado o único livro de atas da loja, como mencionado anteriormente. Por esta razão, as atas das reuniões em que o secretário estava presente são muito mais detalhadas que as demais, com anotações sobre trechos de discursos ou outros detalhes específicos. Além da função de secretariar a loja, o secretário também acumulava a função de tesoureiro e de chanceler geral.

As demais funções cerimoniais eram distribuídas conforme o círculo, por sorteio e respeitando a antiguidade do maçom, por data de filiação ou de iniciação, visto que eles deveriam conhecer em maior profundidade os ritos e cerimoniais. Por esta razão, à medida em que os círculos da Vigilância foram se expandindo, os membros originais ou os maçons com maior tempo de iniciação foram se vinculando a esses novos grupos, criando assim laços entre cada círculo maçônico da loja e o círculo original.

Continua…

Autora: Pilar Ferrer Gomez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em História – 2022.

Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06102022-120353/en.php

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Notas

203 LEMOS, Nathália Gama. Um Império nos trópicos: A atuação do Intendente Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana, no Império Luso-brasileiro (1808-1821). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2012.

204 Lima e Silva apresentou as propostas na sessão de 01 de julho de 1825. Entretanto o secretário não anotou em que local o coronel teria sido iniciado, o que nos impede por hora identificar sua loja de origem. LAVG, Sessão de 01 de julho de 1825 (01/4/5825).

205 LAVG, Sessão de 01 de julho de 1825 (01/5/5825).

206 HARLAND-JACOBS, Jessica. “Global Brotherhood. Freemasonry, Empires and Globalizations”. REHMLAC, Special Issue UCLA, 2013, pp. 77-78.

207 QUÉRUEL, Alain. La franc-maconnerie. Paris: Éditions Eyrolles, 2011, p. 40.

208 HARLAND-JACOBS, Jessica, Builders of Empire. Freemansory and British Imperialism, 1717-1927, Chapel Hill (NC): The University of North Carolina Press, 2007, p. 35.

209 HARLAND-JACOBS, op. cit., p. 37.

210 LAVG, Sessão de 17 de julho de 1825 (17/5/5825).

211 O sistema de circulação por rodízios é descrito como originado por volta de 1760 entre as lojas de Bordeaux e Paris, localidades estas onde também se originaram os ritos de origem francesa. Ver BAUER & MOLLIER, op. cit., p. 139.

212 LAVG, Sessão de 20 de agosto de 1825 (20/6/5825).

213 O Grande Oriente Brasílico, por exemplo, contava com um Andador, cuja atribuição era apenas o de comunicar horários e locais de reuniões aos membros das lojas. MENEZES, op. cit., p. 14.

214 Ainda que a figura dos andadores não seja estranha às lojas brasileiras, chama atenção que não se localiza nas discussões da bibliografia internacional qualquer referência a esta figura. Entretanto, não nos parece que esta função fosse exclusiva das lojas brasileiras, mas talvez que esta tenha resistido por mais tempo dadas as dificuldades brasileiras, dada a proibição das sociedades secretas.

215 O rito francês, ainda que tenha passado de 7 a 9 graus em sua totalidade durante o século XX, ainda é considerado o “menos democrático” dos ritos praticados pela maçonaria, dada a menor ascensão aos graus superiores. Sobre o funcionamento do rito francês ou moderno ver JONES, op. cit., pp. 117-122.

216 Machado Nunes anota a informação das posses das duas cartas em 24 de junho de 1827, ainda que não informe como e quando as respectivas patentes chegaram à loja. LAVG, Sessão de 24 de junho de 1827 (24/4/5827).

217 João Paulo Barreto, militar brasileiro, permaneceu na Europa entre 1819 e 1822, estudou engenharia e hidráulica na França, onde foi iniciado na irmandade. Retornou ao Brasil no final de 1822. A Carta Patente emitida em nome de João Paulo Barreto encontra-se nos arquivos da Biblioteca do Supremo Conselho do grau 33º do Rito Escocês Antigo e Aceito, na cidade do Rio de Janeiro. Sua reprodução pode ser encontrada em ASTREA 33: Órgão Official do Supremo Conselho do Brasil. Rio de Janeiro, ano 2, vols. 9 e 10, set. e out., 1923, pp. 333-334.

218 David Jewett era membro da marinha brasileira desde 1822, quando participou da Guerra de independência da Bahia, tendo tomado de parte de outras batalhas da marinha imperial, como, por exemplo, a repressão à Confederação do Equador, permanecendo como alto oficial por mais de uma década. Ao longo dos anos retornou esporadicamente aos Estados Unidos, de onde trouxe a patente, em 1826. DANTAS, Monica Duarte. Corsários, militares, diplomatas, comerciantes: David Jewett e a maçonaria nas Américas (1800-1842). Projeto para Bolsa produtividade CNPq, 2021 (texto inédito cedido pela autora).

219 Na cidade de Nova York, à época, funcionavam dois conselhos para os graus superiores, o Grand Consistory e o Supreme Councilof the Schottisch Rite, Northern Masonic Jurisdiction, este vinculado ao Supreme Council, criado em 1801 na Carolina do Sul, intitulado Mother of the World por ter sido o primeiro do mundo. Agradeço à Professora Monica Duarte Dantas pelas informações sobre os conselhos superiores dos Estados Unidos. A Carta Patente de Jewett consta, transcrita, na ASTREA 33: Órgão Official do Supremo Conselho do Brasil, p. 336-339. Conforme pesquisa realizada por Monica Duarte Dantas junto ao arquivo do Supreme Council of the Schottisch Rite, Northern Masonic Jurisdiction, em Lexington (Massachusetts), lá se encontra exemplar manuscrito da referida patente.

220 Uma loja maçônica só é considerada regular a partir do momento que recebe a carta de filiação de uma obediência. No caso da Vigilância, ao menos no livro de atas que encontramos, não há nenhuma informação sobre esse vínculo, ainda que o secretário tenha anotado as posses das patentes pela loja.

221 O maior crítico desta “centralização”, principalmente quanto Oriente de 1822 é Lino Coutinho, assim como os irmãos da Bahia. LAVG, Sessão de 12 de junho de 1826 (12/4/5826).

222 Ainda que grande parte dos maçons fossem iniciados apenas aos 21 anos, filhos de maçons poderiam ser iniciados aos 18 anos, conforme constam nas regras usadas pela Vigilância. Ao limitar a iniciação de qualquer candidato aos 21 anos, a loja restringia seus quadros em idade ao critério de cidadania da constituição. As decisões sobre as idades para candidatos se encontram nos debates do círculo principal em 27 de abril de 1826. LAGV, Sessão de 27 de abril de 1826 (27/2/5826).

223 Francisco da Silva França é provavelmente um dos irmãos de Manoel José De Souza França, deputado pela província do Rio de Janeiro, também membro da loja, responsável pela apresentação da candidatura de Francisco.

224 O estabelecimento final dos critérios para os revezamentos ocorreu na sessão de 20 de julho de 1825. LAVG, Sessão de 20 de julho de 1825 (20/5/5825).

225 A função com mais membros na Vigilância da Pátria eram os segundos vigilantes, dada a organização dos círculos. Em 1825 foram eleitos dois segundos vigilantes, como visto anteriormente, mas dada a expansão da loja, em 1828 constam nas atas 12 segundos vigilantes, elencados mais à frente no capítulo.

226 JONES, op. cit., pp. 123-132.

227 JONES, op. cit., pp. 131-133.

228 Dada as características da loja, a Vigilância elegeu em um primeiro momento, dois 2º vigilantes ao invés de um. À medida em que a loja se expandiu, foram eleitos outros segundos vigilantes, como detalhados mais a frente neste capítulo.

A “Vigilância da Pátria” – A ação da maçonaria brasileira durante a década proibida (1822-1831) – Parte V

Capítulo 2

Uma nova clandestinidade e a Vigilância da Pátria

No ano de 1825 alguns maçons mais intrépidos reuniram-se em um quadro errante, que denominaram Vigilância da Pátria. A prudência dos operários soube iludir o Argos perseguidor, recatando de suas pesquisas os trabalhos maçônicos, que mesmo em retiro tomaram força e vigor191.

O fechamento da loja 6 de março de 1817, após a derrota da Confederação do Equador, aliado aos eventos do biênio de 1822/24, impôs à maçonaria brasileira uma nova realidade em que a articulação dos irmãos seria diferente das antigas fórmulas da fraternidade, mas contaria com estratégias diversas e únicas para sua sobrevivência. Influenciados pelas próprias tradições da ordem pelo mundo, articularam-se a partir de quadros de menor destaque, excluindo dos círculos aqueles irmãos pertencentes ao Oriente de 1822.

Como abordado no primeiro capítulo, o término da Confederação do Equador significou não apenas a desarticulação dos quadros da maçonaria de Pernambuco e demais províncias envolvidas no processo, com a morte ou exílio das principais lideranças da ordem envolvidas no movimento, mas também impactaram na capacidade de articulação dos irmãos, uma vez que as oficinas que ainda resistiam no país, ou bem perderam membros ou simplesmente desapareceram em razão da fiscalização do governo. Assim, a solução encontrada para garantir a manutenção das atividades da fraternidade, resultou na fundação de uma loja de caráter singular (considerando a breve história da maçonaria em terras brasileiras), cuja ação garantiu sua sobrevivência no país. Criada no Rio de Janeiro em junho de 1825, recebeu o significativo nome de “Vigilância da Pátria”.

Se o Rio de Janeiro representava uma opção arriscada, concomitantemente era ali que se encontrava um número significativo de maçons, cuja capacidade de articulação permitiu não só a continuidade dos trabalhos, mas seu espraiamento pelo território nos anos subsequentes.

A situação política do período impunha a necessidade de existir na clandestinidade, de maneira a eludir a ação do governo. Sem dúvida, lojas de funcionamento clandestino, ou de maior segredo, não eram uma novidade para os maçons do mundo luso-brasileiro. Como visto no capítulo anterior, parte das oficinas da primeira década do século XIX funcionaram burlando grande parte da fiscalização do poder régio. Ainda assim, as formas de organização e funcionamento da Vigilância trouxeram novidades em relação ao período anterior, tanto em relação às estratégias escolhidas para garantir a proteção dos membros, como no tangente às articulações que permitiram a construção de uma rede de sociabilidade que ligava a Corte a tantas outras cidades do país.

2.1 – A Vigilância se organiza

Aos 24 dias do 4º mez do anno da V⸫ L⸫ de 5825, nesta festa do dia de São João, reunidos em local seguro e coberto nesta cidade do Rio de Janeiro, iniciou-se os trabalhos desta augusta e respeitável loja, a qual o povo maçônico atribuiu o honrado título de Vigilância da Pátria.192

Em 24 de junho de 1825, em um local não identificado no Rio de Janeiro, reuniu- se um pequeno grupo de vinte e três maçons para tentar reorganizar os trabalhos da fraternidade na cidade, ainda profundamente impactada pela lei de proibição das Sociedades Secretas, pelos acontecimentos de 1824 e pelo controle imposto aos maçons pela Intendência Geral de Polícia. Para o período entre 1823 e 1825, quando da fundação da Vigilância, não foram encontrados registros, nem mesmo na memória maçônica, sendo assim é muito pouco provável que tenha existido alguma organização mais formal dos trabalhos maçônicos na cidade, embora a ausência de documentos não signifique o total adormecimento da ordem.

Os instaladores da loja Vigilância da Pátria são listados pelo secretário em dois grupos, sendo o primeiro formado por aqueles cujos nomes completos constam nas atas e um segundo grupo, listados apenas por parte de suas iniciais, como forma de proteção. Dentre os nomes de maçons existentes nesta primeira sessão, chama atenção o fato de que nenhum deles figurassem em qualquer das listas de membros das lojas existentes no país anteriormente.

O primeiro dos membros instaladores da Vigilância da Pátria identificado nas atas da sessão inaugural é o deputado eleito pela província de São Paulo, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Figura central da loja durante todo seu funcionamento, Vergueiro, nasceu em Portugal em 20 de dezembro de 1778, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1801, mudando-se para o Brasil logo em seguida.

Vergueiro era um político proeminente na província, foi advogado, juiz de sesmarias (1816), vereador em São Paulo (1813), membro do governo provisório da mesma província em 1821, deputado nas Cortes de Lisboa, onde exerceu importante papel junto à “bancada brasileira”. Retornando ao Brasil, foi eleito deputado pela província de São Paulo para a Assembleia Constituinte e depois como deputado geral em 1824, constando entre os nomes da lista tríplice para o Senado, não escolhido para a função. Além disso, Vergueiro era proprietário de várias fazendas nas cidades de Piracicaba, Sorocaba, Araraquara e Itu, algumas delas em sociedade com o sogro. Em 1828, foi eleito novamente para o Senado, ao qual foi empossado pela província de Minas Gerais. Exerceu diversas outras funções, em ministérios diversos, assim como foi um dos membros da Regência Provisória, em 1831193.

O segundo membro da Vigilância é o coronel José Joaquim de Lima e Silva, nascido no Rio de Janeiro em 26 de julho de 1787. Membro de uma tradicional família de militares, formou-se como militar no exército pelo Regimento de Infantaria da mesma cidade. Lima e Silva exerceu carreira dentro da infantaria do exército, sendo enviado como comandante de terra para as lutas da independência da Bahia em 1822, província da qual foi membro da junta de governo provisória e presidente de província em 1823. No mesmo ano foi escolhido como ajudante de armas do imperador e depois comandante de armas em 1831.

Também pertenciam à lista de membros originais identificados da loja Vigilância da Pátria dois de seus irmãos mais novos, os capitães João Manoel de Lima e Silva e Luiz Manuel, nascidos no Rio de Janeiro, respectivamente, em 2 de março de 1805 e 29 de agosto de 1806. Ambos formaram-se na Academia Real Militar do Rio de Janeiro e participaram das lutas na Guerra de Independência da Bahia sob o comando do irmão, ainda como soldados.

Após a independência, João Manoel foi designado para comandar o 28º Batalhão de Caçadores Alemães no Rio Grande do Sul, envolvendo-se em diversas atividades políticas ainda no Primeiro Reinado. Luiz Manuel, por sua vez, foi enviado como comandante para a Guerra da Cisplatina e posteriormente foi comandante da Guarda Nacional no Rio Grande do Sul, onde terminou a sua carreira.

Entre os fundadores da Vigilância também figuram “ilustres desconhecidos” como Epifânio Maria José Pedroso, nascido em Portugal por volta de 1797. Veio para o Brasil com sua família em 1808, durante a transferência da corte, pois seu pai era oficial da Secretaria do Reino, cargo ao qual Epifânio o substituiu por volta de 1816. Epifânio era, nas palavras de Joaquim Manuel de Macedo, um dos maiores agitadores políticos de seu tempo, sempre presente em qualquer associação política do Primeiro Reinado. Epifânio permaneceu como oficial da Secretaria dos negócios do Império até a sua aposentadoria em 1842, quando teria sofrido um derrame que o deixou incapacitado para tal função194.

Outro “anônimo” listado nas atas é João Machado Nunes, do qual apenas sabemos que durante o período de existência da Vigilância da Pátria foi oficial da contadoria da Intendência geral de Polícia na cidade do Rio de Janeiro, não constando qualquer outra informação.

Antonio Pedro da Costa Ferreira, nascido em Alcantara, no Maranhão, em 1778, formou-se em direito pela Universidade de Coimbra em 1803, sendo nomeado em 1805 como fiscal da junta da vila de Alcantara e depois superintendente da mesma, cargo em que permaneceu até 1821. Foi membro do Conselho da presidência da província entre 1826 e 1829, sendo eleito deputado pelo Maranhão na segunda legislatura.

José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, nascido em Minas Gerais em 1792, foi aluno da Academia Real Militar no Rio de Janeiro, tendo seguido carreira no exército até a patente de tenente-coronel. Foi membro da junta de governo da província de Minas Gerais em 1822 e eleito deputado pela mesma província em 1830. Foi professor visitante da Academia Militar no ensino de mineração, atividade a qual exercia em suas terras em parceria com companhias inglesas na exploração de ferro.

Francisco de Paula Souza e Mello, nascido em Itu, São Paulo, em 1791, rábula em direito e proprietário de terras, foi deputado na Assembleia constituinte de Portugal em 1823 pela província de São Paulo. Retornando ao Brasil, foi eleito deputado pela mesma província como deputado na Assembleia Constituinte de 1823 e depois como deputado geral em 1824, cargo que exerceu por mais duas legislaturas até 1833. Como deputado, foi presidente da Câmara entre maio e junho de 1827, além de membro do conselho de província por São Paulo. Em 1833, foi eleito senador pela província de São Paulo.

José Joaquim Vieira Souto, nascido no Rio de Janeiro por volta de 1797, foi militar formado na Academia Real Militar e professor na mesma instituição no curso de mineração, tendo o coronel Pinto Coelho como auxiliar em algumas aulas. Foi chefe da guarda e da cavalaria da freguesia do Santíssimo Sacramento, na cidade do Rio de Janeiro, entre 1827 e 1832, liderando parte das tropas na madrugada da Abdicação de dom Pedro I. Foi editor do jornal Ástrea do Rio de Janeiro e deputado pela província do Rio de Janeiro em 1830.

Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, nascido em Salvador, Bahia, em 1800, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1820, e depois foi juiz na Bahia por volta de 1824. Foi eleito deputado pela província da Bahia em 1830. Outras informações sobre sua carreira são de difícil acesso, pois muitas delas se confundem com as de seus irmãos, cujos nomes são sempre muito semelhantes. Era filho do brigadeiro Domingos Alves Muniz Barreto, o vovô maçom de 1825 abordado no primeiro capítulo.

José Lino dos Santos Coutinho, nascido em Salvador, Bahia, em 1784, formou-se em medicina pela Universidade de Coimbra em 1813, passando por um período de estudos na França e na Inglaterra. Foi membro da junta de governo da Bahia em 1821, onde atuou como secretário e depois deputado na Assembleia Constituinte de Portugal em 1822. Em 1824 foi eleito deputado geral pela Bahia, cargo em que permaneceu por mais uma legislatura. Foi professor do Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia na cátedra de patologia e, em 1832, com a elevação do Colégio à Faculdade de Medicina, foi o primeiro diretor da instituição.

Por fim, o último dos membros instaladores identificado nas atas da vigilância é Antonio José do Amaral, nascido no Rio de Janeiro por volta de 1782. Formou-se em matemática pela Universidade de Coimbra em 1807 e militar do corpo de engenheiros, sendo nomeado professor de aritmética, geometria e trigonometria na Academia Real Militar em 1811. Foi lente de geometria da mesma instituição. Foi eleito deputado em 1830 pela província do Rio de Janeiro.

Além dos referidos maçons identificados como instaladores da Vigilância da Pátria, existem outros nove membros presentes na sessão inicial designados apenas pelas suas iniciais: A.J.M.S., J.F.R.S., S.S.N, A.R.M. e F.J.S. (comerciantes), J.O.R, A.J.M.R, F.A.S e A.F.P.R (militares)195. Conforme informado pelo próprio secretário em 27 de maio de 1826, optava-se pelo uso de iniciais sempre que o irmão tivesse menor “proteção política”, uma vez que esses irmãos seriam muito mais vulneráveis às punições da lei das Sociedades Secretas caso fossem identificados pelas autoridades196. Tal postura fazia-se necessária uma vez que havia sempre o risco de um possível confisco do livro de atas da loja por parte da Intendência. Assim, o uso das iniciais dificultaria a identificação dos membros. Tal prática foi utilizada em quase todas as iniciações de maçons na Vigilância, com exceção das iniciações cujos indicados já possuíam tal proteção.

O objetivo principal desse grupo era o de em alguma medida, reinstalar os trabalhos maçônicos na cidade do Rio de Janeiro, sendo o núcleo responsável pela criação da maior loja maçônica do Brasil da década de 1820, ainda que suas atividades fossem proibidas por lei e os percalços para a manutenção dos trabalhos ao longo dos anos tenham sido os mais variados.

Analisando o quadro inicial da Vigilância, nota-se a pluralidade de origens e ocupações, mas mantendo-se a composição tradicional das oficinas, como visto no capítulo anterior. Porém, duas questões merecem destaque. Primeiramente, nenhum destes 23 homens faziam parte de qualquer das listas conhecidas de membros das lojas brasileiras anteriormente. Ainda assim, todos os fundadores da Vigilância já eram maçons iniciados, muitos deles já haviam alcançado o grau de Cavaleiros Rosa Cruz, o último grau do rito francês, o que indica que seu pertencimento à fraternidade não era recente197.

Em segundo lugar, como se pode constatar pelos nomes citados, não havia qualquer membro do antigo Grande Oriente Brasílico. Foram proibidas as filiações de “maçons notórios por sua atividade em lojas anteriores, sobretudo aqueles que tomaram participação nos acontecimentos do Oriente de 1822, pois estes irmãos são conhecidos por aqueles que nos combatem”, ainda que alguns deles, como Mendes Viana e Cipriano Barata sejam algumas vezes referidos nas atas, sem que participem de reuniões198. Tal proibição não possuía relação com os contextos políticos da época, mas pela identificação destes maçons em vários processos públicos, como a Bonifácia, e que por isso, estes seriam “os principais alvos de monitoramento das atividades por parte das autoridades”199.

Diferentemente do Oriente Brasílico, a Vigilância nunca se arrogou como representação única da maçonaria no país, ainda que a loja tenha congregado maçons dispersos por parte significativa do território. Não haveria como, nas palavras de Lino Coutinho, “possuir qualquer pretensão de unanimidade dos irmãos ou dos trabalhos de possíveis lojas”, ainda que mais protegidos dentro dos círculos da Vigilância200. Nota-se uma espécie de oposição às lideranças do antigo Grande Oriente e sua tentativa de uma centralização absoluta da condução dos trabalhos da maçonaria brasileira201.

A primeira sessão da Vigilância, seguindo a tradição, começou com a escolha dos principais cargos da loja, sendo aclamados pelos presentes como venerável mestre Nicolau Vergueiro, como 1º vigilante José Joaquim de Lima e Silva, Epifanio José Maria Pedroso e Antonio Pedro da Costa Ferreira para os cargos de 2º vigilantes, José Feliciano Pinto Coelho da Cunha como andador e João Machado Nunes para o cargo de secretário.

Após o consenso dos presentes, ficou decidido que a loja trabalharia segundo o rito moderno, dada a familiaridade dos irmãos com tal rito, mas também em razão da recusa dos presentes em usar nomes simbólicos. Considerando como uma tradição ultrapassada, embora fosse comum entre as lojas que adotavam o rito francês ou o adonhiramita. O recém-eleito venerável pronunciou seu primeiro discurso, conclamando os irmãos a

[…] zelarem pelos trabalhos maçônicos com o mesmo ardor com que zelam por suas famílias, assim como devem sempre serem vigilantes da pátria, para que um dia possamos, como devem os homens de valor, construir a nação que almejamos202.

Nas primeiras sessões, a Vigilância pareceu se organizar como qualquer outra loja maçônica que teria funcionado no Brasil – contando com os mesmos cargos e seguindo o ritual comum às oficinas da época –, senão fosse pela adoção de algumas práticas que a tornariam única no país. Em várias das suas primeiras reuniões, seus membros debateram sobre quais seriam os mecanismos que seriam adotados para a proteção dos trabalhos e de seus membros. A primeira opção foi por não ser uma loja de local fixo, mas antes uma loja volante, itinerante, que se reuniria em variados locais e que não precisava obedecer às determinações sobre as características do salão ritual, mas apenas a necessidade de seus membros se reunirem para assim compor uma sessão da loja.

Continua…

Autora: Pilar Ferrer Gomez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em História – 2022.

Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06102022-120353/en.php

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Notas

191 MANIFESTO que a todos os Sapientíssimos Grandes Orientes, Augustas Lojas e Responsáveis Maçons dirige o Grande Oriente Brasileiro situado ao Valle do Passeio, p. 5.

192 Por uma facilidade ao leitor, dada a datação própria do calendário maçônico, as datas das sessões da Vigilância serão aqui apresentadas sempre em sua data comum ou profana, seguida pela identificação nas notas da respectiva data maçônica. LAVG, Sessão inaugural da loja Vigilância da Pátria em 24 de junho de 1825 (24/4/5825).

193 Todas as informações das pessoas citadas nesta dissertação foram retiradas de BLAKE, Augusto Victorio Alves Sacramento. Diccionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1883-1902, 7 volumes; MACEDO, Manoel Joaquim. Anno biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1876, 4 volumes. As demais informações, como locais de nascimento e falecimento dos citados encontram-se no anexo deste documento.

194 As informações sobre Epifânio encontram-se citadas apenas no verbete de seu nome no 4º volume do Dicionário Biográfico de Joaquim Manoel de Macedo. Tais informações resistiram pela aparente ligação pessoal do autor com Epifânio, uma vez que Macedo era maçom, se encontrando filiado à loja Integridade Maçônica II, na cidade do Rio de Janeiro, em 1844.

195 LAVG, Sessão inaugural da loja Vigilância da Pátria em 24 de junho de 1825 (24/4/5828)

196 “Dado o não uso de nomes simbólicos, alguns membros da loja serão identificados apenas por suas iniciais pelo secretário da loja, para a proteção dos mesmos”. LAVG, Sessão de 27 de maio de 1826 (27/3/5826).

197 A Vigilância só iniciou seu primeiro membro em 24 de junho de 1826, quando foi iniciado Francisco da Silva França (negociante). LAVG, Sessão de 24 de junho de 1826 (24/4/5826).

198 A regra de não filiação dos maçons de 1822 foi colocada na sessão de 01 de julho de 1825, ainda que alguns destes maçons, como Cipriano Barata, Domingos Alves Muniz Barreto e João Mendes Viana permanecessem próximos aos membros da Vigilância. LAVG, Sessão de 01 de julho de 1825 (01/5/1825). 199 LAVG, Sessão de 01 de julho de 1825 (01/5/1825).

200 LAVG, Sessão de 14 de outubro de 1827 (14/8/5827).

201 Fala de José Joaquim de Lima e Silva, na sessão de 09/11/1825. LAVG, Sessão de 09 de novembro de 1825 (09/9/5825).

202 LAVG, Sessão inaugural da loja Vigilância da Pátria em 24 de junho de 1825 (24/4/5828).

A “Vigilância da Pátria” – A ação da maçonaria brasileira durante a década proibida (1822-1831) – Parte IV

1.3 – A “clandestinidade” da maçonaria brasileira

Após a proibição das sociedades secretas, a resistência maçônica no Brasil da década de 1820 passou por ao menos dois momentos distintos, com mudanças nas formas de resistência e nos locais de centralidade dos irmãos, influenciadas pelas diferentes realidades políticas e pela capacidade de articulação dos membros frente às perseguições que sofriam.

O fechamento das lojas da cidade do Rio de Janeiro após a devassa instaurada contra as principais lideranças da corte, levaram a centralidade da organização maçônica de volta ao seu centro dispersor original, as províncias do Norte, que haviam perdido seu protagonismo após os desdobramentos da Revolução Pernambucana.

Ainda que o projeto do Grande Oriente Brasílico representasse uma tentativa de unificação, de articulação e de controle que garantisse a sua centralidade, tal projeto de funcionamento e de poder pouco atendiam à realidade da vida maçônica no Brasil, que se constituía de forma muito mais dinâmica e abrangente do que pretendia o projeto fluminense de centralização.

A pluralidade da maçonaria brasileira e as diferentes realidades e projetos políticos não se restringiam à forma de organização pretendida pelo Oriente fluminense. As lojas possuíam origens e tradições diversas daquelas do grupo fundador do Oriente Brasílico, e grande parte das lideranças das lojas fora do círculo da cidade do Rio de Janeiro tendiam a posições diversas daquelas lideranças do oriente fluminense.

No contexto entre o final de 1822 e 1824, as lojas de Pernambuco, em especial a loja 6 de Março de 1817, se tornaram o centro da articulação maçônica brasileira, impactada pelas prisões de parte significativa de suas lideranças e pelo fechamento da Assembleia Constituinte em novembro de 1823.

A maçonaria para além do Rio de Janeiro

Como vimos anteriormente, o Grande Oriente Brasílico, em suas primeiras sessões, enviou uma série de representantes às províncias de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Cisplatina com o objetivo de obter a adesão das lojas existentes nestas províncias ao novo oriente fluminense.

Entretanto, tal projeto enfrentou uma série de obstáculos, não apenas pelo encerramento das atividades da potência ao final de outubro de 1822, mas sobretudo pela não adesão das lojas das demais províncias ao projeto político representado pelo Rio de Janeiro e suas lideranças. Entre as províncias mencionadas, a única a solicitar filiação ao oriente fluminense foi a loja Mineiros Reunidos, de Ouro Preto170.

O emissário que visitou essa loja foi o Cônego Januário da Cunha, Grande Orador da obediência fluminense. O envio de Januário a Minas tinha não apenas o propósito de regular a loja mineira e mesmo de organizar as atividades maçônicas na província, mas principalmente conquistar o apoio dos principais grupos políticos da província. Algumas preocupações ficaram registradas no interrogatório de filiação do brigadeiro José Maria Pinto Peixoto, em que este expressou as desconfianças das lideranças da província sobre “as intenções do príncipe e qual o sistema de governo que adotaria”171. Assim, Januário tinha não apenas a missão de vincular as lojas ao oriente fluminense, mas principalmente atrair as lideranças mineiras ao projeto fluminense.

Diferente de Minas Gerais, de que se tem notícias sobre a chegada do representante e a regulamentação de sua filiação, as demais localidades ao não se manifestarem sobre os emissários, representam não apenas uma negativa ao projeto fluminense, mas principalmente as dificuldades encontradas pelos emissários fluminenses frente às diversas realidades locais.

Da Bahia esperava-se uma importante resposta positiva, não apenas pela longevidade das atividades maçônicas na província, mas buscava-se o apoio do local primordial de atuação da fraternidade, além da reconfiguração das alianças do proto-oriente de 1817. A reconfiguração da antiga aliança poderia ser vista como um facilitador nas negociações com Pernambuco e Ceará para obter a adesão destes à nova potência.

Um ponto favorável para a relação com os irmãos baianos era a presença do brigadeiro Moniz Barreto entre os quadros do oriente fluminense, uma vez que o brigadeiro, natural da Bahia, possuía laços com os maçons da província, sobretudo em Salvador. Além da presença de Moniz Barreto, foram enviados como representantes do Grande Oriente os brigadeiros Rodrigo DeLamare e Pierre Labatut, ambos pertencentes à loja Comércio e Artes, sendo o primeiro considerado o emissário oficial172.

O envio de DeLamare como emissário demonstra os usos políticos da ordem na demonstração de proximidade e respeito aos irmãos da Bahia. Filiado e enviado pelo Grande Oriente na sessão de 2 de julho como delegado para a Bahia, viajava naquela mesma data como comandante-em-chefe de armas para a Bahia, para liderar as forças locais na resistência às tropas de apoio a Portugal na guerra de independência.

Não há informação se o brigadeiro foi recebido por alguma loja ou mesmo uma autoridade maçônica na Bahia, que se encontrava em meio ao conflito que perdurou até julho de 1823. Mesmo que as lojas da província tenham permanecido em atividade durante a guerra de independência, estas não enviaram qualquer comunicação ao Oriente fluminense antes do encerramento das atividades deste.

Assim, o projeto de vinculação dos maçons da Bahia como forma de fortalecer o oriente fluminense, angariando apoio dos demais centros maçônicos, não pôde ser efetivado. Não apenas pelos acontecimentos vinculados à guerra na Bahia, mas ao não enviar qualquer missiva ao oriente do Rio de Janeiro, os maçons da Bahia demonstram que não apenas os momentos políticos e as necessidades locais estão em desalinho ao que pretendia o oriente fluminense, mas explicitam que os quadros baianos não possuíam interesse de vinculação a uma potência maçônica fundada apenas por quadros vinculados ao Rio de Janeiro, ainda que se afirmasse como nacional.

Da mesma forma que a Bahia recebeu como emissário um membro também enviado pelo governo central para a organização do novo governo pós-independência, Ceará, Cisplatina e Pernambuco receberam emissários nestes mesmos moldes. E por sua vez, não enviaram qualquer missiva de retorno ao oriente fluminense. Assim como no caso baiano, o silêncio destas lojas pode significar não apenas a falta de tempo hábil para uma resposta antes do fechamento do oriente fluminense, mas sobretudo implicam na não adesão a este projeto, não reconhecendo essa obediência.

A não aceitação do oriente fluminense como potência geral não apenas pode demonstrar uma não adesão ao seu projeto político, explicitado até mesmo pelas escolhas de seus quadros de liderança, como seu Grão Mestre e o 1º Vigilante, mas remetem a diversidade de tradições maçônicas nas diferentes localidades do Brasil, considerando inclusive a ideia de não ser necessária uma obediência geral para todo o território, em conformidade com o modelo adotado nos Estados Unidos, pressupondo a existência de diversos centros que se reconhecessem e se auxiliassem.

Ainda que parte da maçonaria brasileira aderisse a um projeto de Oriente geral para todo o país, este ainda assim presumiria uma certa autonomia de cada centro provincial, semelhante a um modelo federativo para a organização maçônica nacional, o que não atendia as pretensões do oriente fluminense de centralização de todas as atividades. Assim, os diversos modelos de organização maçônica encontravam-se em choque na pretensão da criação de uma obediência nacional.

O projeto de um oriente nacional encontrou obstáculos de diversas naturezas, sejam elas maçônicas ou da própria conjuntura política do processo de emancipação nacional. O encerramento das atividades do oriente fluminense impossibilitou a centralização maçônica por parte do Rio de Janeiro naquele momento.

Pernambuco e a 6 de março

Pernambuco era sem dúvidas uma das províncias, em conjunto à Bahia e ao próprio Rio de Janeiro, com a mais longeva atividade maçônica no Brasil. Ainda que suas principais lideranças tenham sido mortas ou exiladas após os acontecimentos da Revolução Pernambucana de 1817, após a anistia dos antigos revoltosos pernambucanos em 1821 pelas Cortes de Lisboa, houve uma rápida retomada das atividades maçônicas na província, sobretudo a partir da fundação da loja 6 de março de 1817.

A referida loja teve sua existência garantida pela sua vinculação a alguma potência dos Estados Unidos. Filiar-se à uma potência maçônica internacional não era uma experiência exclusiva dessa loja pernambucana, mas antes uma opção política, uma vez que as obediências estadunidenses, principalmente a Grande Loja de Nova Iorque, foram durante todo o século XIX um dos mais importantes centros difusores da maçonaria nas Américas, sendo também uma das mais antigas potencias maçônicas do continente. Com lojas filiadas em várias partes da América, a Grande Loja de Nova Iorque garantiu a construção de redes de articulação e circularidade de seus membros por todo o continente, para além das fronteiras nacionais173.

A maçonaria pernambucana era, diferentemente da tradição das demais formações luso-brasileiras da irmandade, profundamente ligada aos quadros maçônicos anglo-saxões. Porém, se a formação anterior a 1817 era vinculada aos quadros ingleses, desde a Revolução Pernambucana se vinculou aos quadros estadunidenses, com seus laços estreitados pela permanência do Cabugá e de outros revolucionários nos Estados Unidos, mesmo após a anistia aos revolucionários em 1821174.

O quadro de membros da 6 de Março era composto em sua maior parte por irmãos remanescentes de 1817, anistiados após 1821. Seu próprio fundador, Guimarães Peixoto, pertencia a esta lista de irmãos. Este optou por não utilizar o nome anterior da loja, Guatimozim, renomeando-a em homenagem ao levante pernambucano. Parte de seus membros tomaram parte nas juntas provisórias de Pernambuco, colocando-se em oposição ao governador Luis do Rego, enviado pela coroa portuguesa para sufocar os revolucionários pernambucanos, sendo expulso da província em 1821175.

Os quadros pernambucanos, ampliados após a independência, eram compostos sobretudo por brasileiros, seguindo a tradição das lojas pernambucanas de não permitir a filiação de portugueses. Além de brasileiros, as lojas, principalmente a 6 de março tinham entre os irmãos alguns americanos ligados ao grupo do cônsul Joseph Ray176. Dentre os membros brasileiros, recebeu destaque Frei Caneca177, maçom de 1817 e que em seu retorno à província teria composto os quadros da loja.do primeiro quarto do XIX, mas também por sua não identificação pública com a fraternidade, como em “Sobre as Sociedades Secretas em Pernambuco” de 1825178. A 6 de março estava vinculada às elites pernambucanas, cuja adesão era importante ao oriente fluminense, uma vez que para o grupo do Rio de Janeiro o apoio da principal loja pernambucana não apenas consolidaria seu projeto de potência nacional, mas representaria maior possibilidade de vinculação de outros locais ao pretenso oriente, soaria como uma espécie de aval para outras filiações.

Mas a filiação a uma potência dos Estados Unidos garantia uma proteção e respaldo muito maior a suas atividades do que a adesão ao oriente fluminense. Além disso, não pertencia as tradições das lideranças da loja, naquele momento, a preocupação com a construção de uma obediência nacional, mas sim a garantia das autonomias das maçonarias locais, em uma organização muito mais próxima ao modelo de Grandes Lojas estaduais dos Estados Unidos.

A escolha do emissário do Grande Oriente Brasílico para Pernambuco também resultou em outro obstáculo. O emissário era Felipe Nery Ferreira, então enviado pelo governo pernambucano como representante nas negociações entre o governo do Rio de Janeiro e a junta de governo liderada por Gervásio Pires. Ao enviar Nery como emissário, José Bonifácio teria o instruído não apenas como representante maçom, mas principalmente como encarregado de atrair os membros do governo pernambucano ao modelo de governo imperial defendido por ele179.

Nery encontraria dificuldades em suas atribuições como representante maçom, uma vez que as atividades do oriente fluminense foram encerradas antes de qualquer possibilidade de construção de simpatia por parte dos maçons pernambucanos, que viam com desconfianças o aceno de Bonifácio aos grupos políticos da província, sobretudo aos membros da junta de Gervásio.

As desconfianças mútuas entre Bonifácio e os pernambucanos se acirrou após a suspensão dos trabalhos do Grande Oriente Brasílico e da instauração da devassa contra as lideranças da maçonaria fluminense, principalmente pelo acolhimento em Pernambuco de João Soares Lisboa. Lisboa era um dos principais membros arrolados na devassa contra os maçons fluminenses e o único julgado culpado, à revelia, durante o processo180.

Mesmo com a adesão de Pernambuco à independência e o envio de seus representantes para a Assembleia Constituinte, as relações entre o centro e província não eram pacíficas. A deputação pernambucana entrou em choque por diversas vezes com as pretensões do grupo de Bonifácio nas discussões na assembleia, além de serem opositores ao projeto de lei sobre a proibição das sociedades secretas181.

A despeito da aprovação da lei das sociedades secretas, a loja pernambucana manteve-se ativa apesar das pressões da corte, congregando os irmãos do Norte. Esta articulação, todavia, não era de todo confortável aos irmãos da porção centro sul do país, tendo em vista os conflitos entre os quadros durante 1817, quando alguns irmãos ligados ao Rio de Janeiro foram excluídos dos planos do levante. Esta exclusão manteve a maçonaria pernambucana em permanente tensão com irmãos de outras províncias, principalmente do centro sul182.

Pernambuco, depois de uma fase de indecisão, acabou por aderir ao processo de independência brasileira183, assim como à convocação de eleições para a assembleia constituinte. Entretanto, após o fechamento da Assembleia, as críticas em Pernambuco aos desdobramentos políticos do final de 1823, além da outorga da Constituição em março de 1824 se fizeram mais violentas, perceptíveis nos textos escritos por Caneca184.

Os acontecimentos de fins de 1823 e princípios de 1824 acirraram os ânimos dos maçons da província, levando a loja, segundo a bibliografia maçônica, a opor-se ao governo: “a Seis de Março, uma das poucas lojas que funcionavam no Brasil, verificou que era preciso reencetar a propaganda das congêneres que a antecederam em 1817. Bateu-se pela forma republicana e abraçou a ideia de uma confederação do Equador”185. Nas formulações sobre os rumos do levante e da própria Confederação do Equador, diferentemente da revolução anterior, as lojas maçônicas, contudo, não teriam tido a mesma centralidade, embora grande parte dos seus membros tenha não apenas apoiado o movimento, mas composto os quadros centrais do governo instalado, sendo que os principais líderes eram membros da maçonaria pernambucana.

Não há uma referência completa sobre o número de maçons existentes em Pernambuco e nem mesmo no Ceará durante o período da Confederação do Equador. Ao não aderir ao antigo oriente fluminense as memórias sobre o funcionamento e extensão do papel das lojas não passou ao “cânone” da instituição, uma vez que esta foi elaborada e escrita pelos maçons fluminenses, preocupados desde a década de 1830 em construir uma memória institucional que reforçasse a importância e mesmo uma centralidade da maçonaria pelo Rio de Janeiro. Fabricando uma memória que homogeneizasse os discursos e ações em torno dos ideais fluminenses sobre a própria ordem maçônica.

Da mesma forma, pouco se conhece sobre os vínculos mantidos entre os maçons pernambucanos e os membros da fraternidade na Bahia, ainda que algumas indicações sobre estas apareçam como passagem de referência popular sobre os desdobramentos da Revolta dos Periquitos em Salvador, cuja adesão ao projeto da Confederação do Equador teria sido facilitada pelas relações maçônicas entre as duas províncias, ainda que a revolta tenha sido logo sufocada186.

O governo da Confederação do Equador contava, entre seus membros, com os irmãos Manoel de Carvalho Paes de Andrade, José da Natividade Saldanha, João Soares Lisboa e o próprio Frei Caneca. A composição da cúpula do governo por membros da maçonaria implicava menos um projeto de nação para Pernambuco moldado entre as colunas das lojas do que o papel da irmandade como local de circulação das elites pernambucanas e da construção de sociabilidades187.

Não apenas do lado dos Confederados estavam os maçons, dentre os quadros enviados por d. Pedro para a província, já em 1821, e depois para debelar o movimento havia senão iniciados, ao menos simpatizantes ou com laços próximos a estes. Exemplo disto é a nomeação para o governo da província de José Carlos Mayrink da Silva Ferrão, homem próximo aos maçons pernambucanos por sua participação indireta na revolução de 1817. Além disso, o Imperador enviou tropas chefiadas pelo Almirante Cochrane, também maçom, iniciado na Inglaterra e membro da loja Bouclier D´Honnuer do Rio de Janeiro. As tropas também foram lideradas pelo Brigadeiro Francisco de Lima e Silva, que embora não fosse membro da irmandade, era próximo a estes, sendo um de seus irmãos membro da extinta loja Comércio e Artes.

O desmonte do processo revolucionário de 1824 passou pela prisão e condenação por pena capital de boa parte de suas lideranças. Alguns de seus líderes acabaram fugindo para o exílio antes do confronto final, dentre eles o próprio Paes de Andrade e seu grupo. Aqueles cercados em Olinda, dentre eles Frei Caneca, foram executados após julgamento pela Comissão Militar para tal instituída.

Ao lado de Caneca, foi executado um cidadão estadunidense de nome James Heide Rodgers, de quem os dados e as motivações sobre sua presença em Pernambuco são quase inexistentes. Entretanto, sua execução representou um contratempo diplomático, uma vez que o Chargé d´Affaires brasileiro nos Estados Unidos, José Silvestre Rebello, foi chamado a dar explicações a um congressista americano sobre o ocorrido. Rebello, entretanto, teria alertado o governo estadunidense sobre a prisão de Rodgers, não sendo atendido sobre o fato188.

Ao final da Confederação do Equador, a maçonaria brasileira perdeu seu maior núcleo centralizador, o que resultou em novas articulações e formulações às ações da irmandade para não apenas garantir a existência dos maçons, mas também dar continuidade a articulações políticas de resistência ao governo imperial.

Para além do desmonte da maçonaria pernambucana, a supressão da Confederação do Equador significou um duro golpe a resistência da manutenção das atividades maçônicas no Brasil, uma vez que a desagregação da loja 6 de março significou não apenas o fim de um centro catalizador das ações da fraternidade, mas também a perda da proteção oferecida pelo pertencimento da loja aos Estados Unidos, inaugurando assim a real efetividade da aplicação da lei das Sociedades Secretas.

Após as vinculações entre o processo revolucionário no Norte e a maçonaria, a repressão a qualquer atividade da ordem se tornou mais efetiva, uma vez que a Confederação do Equador demonstrava, segundo o governo central, a necessidade da lei para coibir as ações de grupos contrários ao governo pedrino com base na atuação de sociedades secretas, cujo único fim seria o uso político para ameaça da unidade nacional.

Entre o fim da Confederação do Equador e o início de novas atividades maçônicas algum tempo depois, poucas vozes se pronunciaram sobre a defesa da fraternidade no Brasil. Assim como não há registros sobre atividades de lojas, ainda que estas possam ter funcionado à revelia da memória institucional ou de forma muito desordenada, dadas as dificuldades de vinculação dos irmãos e da própria organização de reuniões com o crescimento da fiscalização sobre estas atividades.

Durante o ano de 1825, porém, houve uma retomada da defesa da existência e da importância da maçonaria para a vida pública brasileira a partir da publicação de Moniz Barreto, antigo membro do antigo oriente fluminense, no Despertador Constitucional extraordinário número 3, em um artigo intitulado “Reflexões sobre a Maçonaria em geral, em particular do Oriente Brasílico”. Moniz Barreto tece uma longa defesa sobre a atuação da maçonaria no Brasil, buscando convencer o leitor de que a ordem não era um local de construção de conspirações contra o governo, relembrando a importância da maçonaria nas lutas pela independência e da defesa ao imperador189.

Moniz Barreto, ainda em 1823190 havia publicado um manifesto em sua defesa contra o processo arrolado da devassa de 1822. Sua estratégia, tanto na publicação de 1823 quanto na de 1825 era o reforço do argumento de que a maçonaria não era contrária ao governo ou ao próprio país, tendo ela exercido um papel fundamental como fiadora do processo de independência e na defesa do próprio imperador em 1822, desde a articulação do Dia do Fico até a consolidação da coroação e aclamação de dom Pedro.

O manifesto de Moniz Barreto suscitou uma forte resposta por parte dos grupos governistas, saindo da pena do Padre Luiz Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, o qual se referiu a Moniz Barreto em seu O Vovô Maçom, ou o golpe de vista do Despertador Constitucional Extraordinário; referindo-se à idade de Moniz Barreto, então com 77 anos. Essa publicação tinha como objetivo não apenas desacreditar Moniz Barreto, mas principalmente manter o ataque dos grupos pedrinos a uma possível rearticulação das atividades maçônicas, principalmente no Rio de Janeiro. Dado que a fraternidade para estes grupos era propícia para a reunião e articulação de grupos contrários aos interesses do governo, sobretudo dos grupos oposicionistas que poderiam ganhar maior poder de voz a partir da inauguração do poder legislativo nacional em 1826.

Os ataques a Moniz Barreto e as respostas deste às publicações e a própria maçonaria ocupariam parte dos debates políticos na metade de 1825. Para os grupos governistas, era fundamental uma propaganda sobre a maçonaria como inimiga do Brasil, local de fomento de rebeliões e conspirações contra diversas instituições e contra o próprio imperador, imagem essa construída para a opinião pública à revelia das defesas de Moniz Barreto sobre as ações da maçonaria do Brasil durante a independência e sobre a necessidade da existência de instituições que congregassem grupos diversos para a construção dos debates nacionais.

Ao mesmo tempo em que os ataques a maçonaria cresciam no Rio de Janeiro, e mesmo em outros locais a partir da circulação de panfletos e jornais, a ordem buscava uma nova forma de articulação que passasse despercebida ou pouco detectável aos radares do governo central, fossem nas províncias ou na cidade do Rio de Janeiro, palco fundamental dos acontecimentos e debates políticos após a independência.

A forma encontrada para tal construção seria a de articulação de diversos núcleos, aliados à diversas tradições da fraternidade pelo mundo, formando a partir de 1825 uma nova forma de funcionamento da maçonaria no Brasil, cujo ineditismo estava relacionado à realidade política e institucional do período. O nome escolhido para tal novo núcleo é profundamente sugestivo quanto ao projeto político de seus membros: A Vigilância da Pátria.

Continua…

Autora: Pilar Ferrer Gomez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em História – 2022.

Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06102022-120353/en.php

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Notas

170 MENEZES, op. cit., p 28.

171 MENEZES, op. cit., p 41.

172 MENEZES, op. cit., p. 44.

173 DANTAS, Monica Duarte, “Uma irmandade entre hemisférios: Brasil e Estados Unidos e a expansão da maçonaria nas primeiras décadas do século XIX (de ideias, sujeitos e obediências)”, Projeto para Bolsa Produtividade do CNPq, 2018, inédito, gentilmente cedido pela autora.

174 CASTELLANI & CARVALHO, op. cit., pp. 69-71.

175 A composição completa dos membros da loja se localiza em MELO, Mário, op. cit., pp. 19-20.

176 Sobre a atuação de Joseph Ray no Brasil, cf. RABELO, op. cit., pp. 102-186.

177 Discute-se muito dentro da própria memória maçônica se de fato Caneca seria um maçom iniciado ou não. Ainda que para muitos Caneca demonstre um profundo conhecimento sobre a fraternidade, como demonstrados na série de cartas “De Pítia para Damião”, sobretudo na Carta V, outros duvidam de sua filiação não apenas pelo desconhecimento de seu local de iniciação, o que não é uma exclusividade de Caneca, mas quase uma constante dos maçons brasileiros.

178 Ver MELLO, Antonio Joaquim de. Obras políticas e Litterarias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Recife: Typografia Mercantil, 1875.

179 MELO, op. cit., p. 126.

180 Sobre as ações de Silva Lisboa na maçonaria e posteriormente em Pernambuco ver FERREIRA, P. B. C. Negócios, impressos e política: a trajetória pública de João Soares Lisboa (1800-1824). Campinas, Tese de Doutorado, Unicamp, 2017.

181 Na sessão de 02 de setembro, durante a votação final da lei das Sociedades Secretas, Andrada Machado manda buscar os deputados fora do plenário para constituir quórum de votação dizendo que estes “devem estar todos reunidos em Pernambuco”. Sessão de 02 de setembro de 1823. Diários da Assembleia Geral Constituinte.

182 A opção pernambucana de isolar a maçonaria fluminense dos planos do levante de 1817 provocou um longo processo de desconfiança dos irmãos após o episódio. MELO, Evaldo, op. cit., p. 42.

183 Sobre a fase de indecisão pernambucana e sua adesão à independência ver BERNARDES, Denis, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, São Paulo, Hucitec/ FAPESP; Recife, UFPE, 2006.

184 Os escritos de Frei Caneca sobre o governo se concentram sobretudo em seu Typhis Pernambucano. Para uma biografia e análise das ações de Frei Caneca cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001.

185 MELO, Mário, A maçonaria no Brasil. In: Livro maçônico do centenário. Rio de Janeiro: Grande Oriente do Brasil, 1922, pág.21.

186 Sobre a Revolta dos Periquitos e suas relações com a maçonaria ver TAVARES, Luis Henrique Dias. Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia. São Paulo: Unesp, 2003, pp. 187-196.

187 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.

188 CRUZ, Abner Neemias da, As práticas políticas de Silvestre Rebello: um diplomata brasileiro nos Estados Unidos Da América (1824-1829). Franca, Dissertação de Mestrado, UNESP, 2015, pp 114-115.

189 BARATA, op. cit., p. 301.

190 BARATA, op. cit., p. 303.

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