3. Villard de Honnecourt : os Cadernos da Geometria Prática
Da Antiguidade, na bacia do Mediterrâneo e na Idade Média no Ocidente europeu, herdamos dois monumentais trabalhos de caráter enciclopédico onde se uniam os conhecimentos da construção de estruturas, de máquinas e da natureza: o tratado de Vitrúvio (escrito aproximadamente em 27 AC) e o manuscrito de Villard de Honnecourt da Picardia (região do nordeste da França) escrito 1250 anos mais tarde.
O paralelo entre as obras de Villard de Honnecourt e a do arquiteto romano autor do De Architectura serve para destacar o grau de importância que também é atribuída à primeira, pela possibilidade de permitir acesso ao volume, tipo e qualidade do conhecimento geométrico entre os arquitetos mestres construtores no século XIII.
Este acesso não é muito amigável, pois enquanto o conteúdo da obra de Vitrúvio é relativamente mais fácil de compreender, porque é explicitado no texto, o manuscrito de Villard é de muito mais difícil compreensão, pois consiste de desenhos que permanecem obscuros para os não iniciados na tradição oral do século XIII.
No estudo de seus desenhos, defrontamo-nos com a Geometria Prática – a Geometria Fabrorum – que tinha de resolver problemas diários nos canteiros de obra e que revela uma fonte já pressentida: excertos de Os Elementos de Euclides.
Entender os cadernos de viagem de Villard de Honnecourt é realmente uma tarefa árdua que requer conhecimentos transdisciplinares. Entre questões de linguagem (dialeto da Picardia no século XIII) e vocabulário técnico, a análise dos desenhos de Villard também requer conhecimentos avançados em mecânica civil e militar, em arquitetura (materiais e técnicas), em gromática, a disciplina de medição da terra com a groma, assim como a medição de sólidos e objetos à distância e em estereotomia, a ciência do cálculo, desenho e corte de sólidos complexos, de pedra ou madeira para construção, conhecida na França como a art du trait ou a arte do traçado. (ZENNER,op.cit,2002).
Na bibliografia existente sobre os cadernos (segundo Carl F. Barnes Jr. a primeira menção é de 1666), aparecem ocasionalmente questões práticas de geometria da construção e bem raramente outras sobre as bases matemáticas da geometria vista como ciência.
O texto do geômetra Pappus (c.290 – c.350), também de Alexandria citado por Zenner (op. cit.,2003) e transcrito adiante, há muito havia advertido que era impossível adquirir competências em ambos os domínios e que se alguém precisasse trabalhar com geometria, o melhor caminho era através da experiência do que da teoria.
Diz Pappus:
“A Escola Mecânica de Heron dizia que a mecânica podia ser dividida entre Teoria e Parte Manual; a parte Teórica composta pela geometria, aritmética, astronomia e física, a Manual, por trabalho em metais, arquitetura, carpintaria e alguma coisa envolvendo habilidades com as mãos. O homem que tenha sido treinado desde sua juventude nas ciências anteriormente citadas, bem como praticado nas mesmas artes também citadas e que tenha uma mente versátil, poderia ser melhor arquiteto e inventor de aparelhos mecânicos. Mas como é impossível para a mesma pessoa familiarizar-se com os estudos matemáticos e ao mesmo tempo aprender sobre as artes mencionadas, instrui-se a pessoa a empreender tarefas práticas mecânicas, para usar os recursos dados a si pela atual experiência de sua arte especial.”
Neste contexto, Villard de Honnecourt foi sem dúvidas, um trabalhador geômetra (de acordo com o termo francês opératif) mais do que teórico.
Nas traduções latinas, os Livros de 1 a 4 de Os Elementos de Euclides, sobreviveram intactos, aparecendo no século VI, principalmente nos trabalhos de Boécio e Cassiodoro. Ao final do século VIII, estes textos são combinados com trabalhos dos agrimensores romanos – os gromáticos. Este interesse renovado pela geometria parece ter sido teórico e prático e o centro desta produção geométrico-gromático, localizou-se na Abadia de Corbie (cerca de 15 km a leste de Amiens).
Como não há documentação gráfica das ideias em projeto e construção durante o período românico, os historiadores confiaram em comparações entre os dois únicos documentos remanescentes de projeto arquitetônico: o plano de Saint-Gall (c.817 – 819) e os cadernos de Villard de Honnecourt (c. 1220 – 1235).
Como Corbie, a Abadia de Saint-Gall dedicava um profundo respeito ao aprendizado e ao conhecimento antigo. Além disso, o plano de Saint-Gall é contemporâneo ao reaparecimento dos textos geométricos-gromáticos de Corbie. A área compreendendo o nordeste da França, noroeste da Suíça e partes da Bélgica e Alemanha é considerada a principal zona influenciada por estes estudos da Abadia de Corbie. É também a maior concentração econômica, financeira e intelectual do norte da Europa no século XIII.
Fernand Braudel (op.cit.,1986) colocou a seguinte questão: “a geografia inventou Villard?” De fato, sua cidade natal localizava-se num cruzamento de caminhos comerciais, de saber e conhecimento que acompanhava muito de perto as mudanças econômicas daquela região europeia.
Esta região contava com a maior concentração de centros monásticos tradicionais, literários, Escolas Episcopais Urbanas, Escolas Urbanas e a nascente universidade de Paris.
3.1 – A estrutura e o conteúdo dos Cadernos
Os cadernos de Villard de Honnecourt, um documento do século XIII, infelizmente incompleto, está atualmente depositado na Biblioteca Nacional de Paris, com o número de tombo Ms Fr 19093.
Seu pequeno formato (160 mm x 240 mm) denota que sua natureza é mais de um caderno de anotações do que de um “tratado”, onde a sequência de pergaminhos recolheu as observações de um artista itinerante e curioso.
Os cadernos contêm croquis rápidos e outros mais elaborados, ideias, invenções e receitas para uso do próprio autor, mas que também foram dedicados aos seus sucessores no metier, como nos demonstra o texto de abertura da obra:
“Villard de Honnecourt vos saúda e pede a todos os que usarem os esquemas encontrados neste livro rezem por sua alma e lembrem-se dele. Neste livro você encontrará conselhos sobre alvenaria e carpintaria. Você também encontrará importante ajuda para desenhar figuras de acordo com as lições ensinadas pela arte da geometria.” ( Folha F1 v).
Villard emprega em seu manuscrito, uma tendência que se afirmava rapidamente em sua época: o uso da língua nacional (vulgar) nos documentos públicos, na literatura e nos escritos científicos, abandonando assim o latim de norma culta, que era o usual para estes casos. Foi precisamente na Champagne e na Picardia que apareceram as primeiras manifestações deste novo proceder.
Seu trabalho demonstra ainda um conhecimento de documentos herdados da Antiguidade, cuja fonte deve ter sido a Abadia de Corbie, testemunhando erudição segura e uma inspiração em monumentos que lhe eram contemporâneos.
Os cadernos de Villard de Honnecourt contêm numa parte, numerosos desenhos de figuras, homens, animais, motivos decorativos imaginados ou reproduzidos e noutra, projetos e levantamentos de máquinas e engenhos de canteiro de obras ou guerra, automação primitiva e acessórios móveis, figuras de geometria elementar e por fim plantas, elevações, cortes de edifícios e esquemas de construção ou detalhes técnicos.
Certos desenhos e textos são contribuições tardias de outros autores, como o Mestre II (c. 1250 – 1260), assim como alguns comentários são devidos aos sucessores – a Folha F1 r indica a posse do manuscrito por um herdeiro (BOWIE,op.cit.,1959) – responsáveis também por transcrições equivocadas dos comentários originais.
Os desenhos técnicos dos cadernos de Villard estão em duas grandes categorias: uma refere-se a procedimentos práticos do canteiro, dos processos de traçado ou corte de pedras e que parecem ser da experiência própria do autor e a outra aos mecanismos, que são desenhados ao natural ou de memória.
Dentre todos os desenhos dos cadernos, encontram-se alguns que os especialistas denominam de recursos mneumônicos ou de visualização e recordação de propriedades geométricas conhecidas pelo Ofício a que pertence o trabalhador e que devem permanecer ocultas ou como segredo profissional por imposição da Corporação.
Sua mais notável contribuição é mostrar-nos o quanto da geometria Euclidiana era conhecida e dominada praticamente, posto que seu ensino teórico ocorria unicamente nas Escolas Episcopais e Universidades, através dos textos de Boécio (c. 480 – 525) para a pequena parcela letrada da população que estudava o Quadrivium.
O manuscrito apresenta-se atualmente na forma de cadernos recobertos por uma capa marrom em couro, contendo uma série de folhas de pergaminho, de espessuras variáveis, com desenhos nas duas faces e que apresentam interferências pela transparência do próprio suporte. Supõe-se que oito folhas foram perdidas, pois uma anotação do século XV feita em sua última folha indicava que o original tinha quarenta e uma folhas (frente e verso).
A obra foi encadernada e costurada, porque Villard queria que seus desenhos e notas constituíssem um volume de fácil manuseio, o que só enfatiza sua destinação prática.
As folhas que subsistiram foram numeradas de 1 a 33 e estão reunidas em “cadernos” costurados. A denominação dessas trinta e três folhas de pergaminho de pele do porco aparece com um numeral seguido das letras r ou v.
Segundo o Dicionário Websters New Universal – Unabridged Dictionary, a letra r indica o lado direito de um livro ou manuscrito aberto – é a página da direita (recto folio) e a letra v indica o lado esquerdo de um livro ou manuscrito aberto – é a página da esquerda (verso folio).
A ordem em que os originais se encontram atualmente pode não ser necessariamente a original, pois se sabe que algumas folhas desapareceram. Além disso, como o manuscrito pertenceu a vários proprietários, estes podem ter mudado sua primeira organização.
Continua…
Autor: Francisco Borges Filho
Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Estruturas Ambientais Urbanas.
Fonte: Digital Library USP – Theses and Dissertations
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