A Lenda do Ofício – análise crítica: conclusão

Feita a viagem pelos caminhos da Lenda do Ofício, com paragens nos vários apeadeiros que o fluir do tempo foi proporcionando, é tempo de fazer o balanço do que se aprendeu com a jornada, recolhendo esses ensinamentos para uso no prosseguimento da exploração da vereda de nossa vida.

Já em vários dos específicos comentários aos diversos trechos da Lenda chamei a atenção para uma das suas caraterísticas: o aparecimento frequente de anacronismos históricos, no entanto explicáveis por refletirem concretizações de arquétipos, personificações de fatos praticados por anônimos, reflexos de evoluções coletivas.

Os anacronismos detectados constituem, evidentemente, entorses (ou quiçá mesmo valentes caneladas…) em relação à verdade histórica. É por isso que se trata da Lenda do Ofício, não da História do dito. Mas, se essas entorses existem e são visíveis, pudemos verificar que normalmente corresponderam, porém, a artifícios de narrativa condizentes com o plano de fundo da evolução histórica. Cobriu-se, várias vezes, a nudez forte da Verdade Histórica com o manto diáfano da Fantasia, embelezando, compondo, agrinaldando, imaginando o que mais seco, duro, quiçá desinteressante, ou até não perfeitamente conhecido, realmente terá ocorrido.

Enfim, a Lenda não é, seguramente História, mas reflete-a. A modos que um Romance Histórico. Todos, ao lê-lo, sabemos que não constitui a exata Verdade Histórica, mas com ela se aparenta, dela flui e com ela se relaciona. E, afinal, há horas para tudo: horas para ler e estudar a História pura e dura e horas para ler e apreciar Lendas, Narrativas e Romances, que bem sabemos não corresponderem inteiramente à verdade factual, mas que apreciamos pela acrescida graça e pelo estímulo da nossa fantasia e imaginação. Não sabemos exatamente como as coisas se passavam no lugar X, no tempo Y, com a pessoa Z, mas porventura terá sido assim, nas circunstâncias assado, com a atuação frito e os resultados cozido. Não sabemos se é exatamente correto, mas, pelo menos é mais nutritivo para a nossa Imaginação…

Outra caraterística a realçar na Lenda é a progressiva concretização e focalização que dela decorre. Adverti que, para os maçons operativos medievais, era comum utilizar-se Maçonaria como sinônimo de Geometria, pura ou aplicada em Arquitetura, por si ou concretizada em Construção.

Mas se verificarmos bem, não só o termo Maçonaria é, na Lenda, sucessivamente utilizado com esses significados, como evolui na sua utilização ao longo dela, das épocas mais distantes para as mais recentes e à medida que a narrativa se aproxima do lugar da sua criação, a Inglaterra.

É assim que, no início da narrativa, dedicado aos tempos antediluvianos, Maçonaria é sinônimo de Geometria, e assim continua até à narrativa de Euclides. Quando se chega à narrativa da edificação do Templo de Salomão, o termo Maçonaria começa a ser utilizado com o significado de Arquitetura e construção. E, com a entrada da narrativa pela Europa, cada vez mais o termo se refere a Construção, pura e dura e já nem sequer tanto a Arquitetura. Quando a narrativa desagua na Inglaterra, é já, claramente, este o uso do termo, detendo-se então a Lenda na descrição da criação da organização das regras da arte de construir, da organização do agrupamento profissional dos construtores “oficiais”, regras e deveres que deviam cumprir.

Lenda evoluiu da Antiguidade mais longínqua para os tempos mais recentes, com um similar movimento de evolução da utilização do termo Maçonaria do geral para o particular do ofício da construção propriamente dito.

Finalmente, ressalta de toda a narrativa o Orgulho que constituía para os construtores em pedra o estarem integrados num grupo profissional organizado, com regras, com princípios, com conhecimentos recebidos e acrescentados e aperfeiçoados desde tempos imemoriais.

Lenda do Ofício foi a narrativa de exaltação de uma associação de profissionais e da sua atividade. Com a evolução da Maçonaria Operativa para a Maçonaria Especulativa, deixando as Lojas de serem locais de trabalho, ou de regulação do trabalho ou das respetivas regras, e passando a ser locais de convívio fraterno e de trabalho, já não de construção de coisas, mas de construção e aperfeiçoamento dos autores das coisas, de Homens, esse legítimo Orgulho dos maçons operativos não é esquecido.

E a Lenda do Ofício continua a ser lembrada pelos Maçons modernos, especulativos, como narrativa respeitante a um ofício que foi, mas sobretudo como símbolo da evolução humana. Na Lenda fala-se de conhecimentos para construir palácios e templos, castelos e cidades, muralhas e torres. E com ela aprendemos que também similar evolução existiu, ao longo dos tempos, na ética dos Homens, que idênticos princípios de cooperação e organização podem inspirar o trabalho de aperfeiçoamento de cada Homem, que também a construção do Templo dentro de cada um de nós se faz, embora sem pedras nem ferramentas para as aparelhar e pousar, com regras, com o cumprimento dos deveres que aprendemos e apreendemos serem imanentes aos homens justos e leais e de bons costumes.

Ofício será porventura já de outra natureza; mas a Lenda, essa, permanece e continua a ser motivo de Orgulho para todos nós, maçons, como lembrança do que a Humanidade foi e do que cresceu, e do que evoluiu e esperança do que, melhorando cada um de nós a si próprio, a Humanidade melhorará e evoluirá.

A Cadeia de União entre os maçons é constituída pelos elos existentes em todo o globo, mas vem sendo forjada e aperfeiçoada desde tempos imemoriais – desde os tempos em que analfabetos trabalhadores construíam, por suas mãos, incríveis edifícios, que hoje nos espantam como puderam ser construídos sem os meios técnicos hoje conhecidos.

Nós, os maçons, orgulhamo-nos de descender desses construtores de antanho. De todos, desde os mais sabedores aos mais rudes e incultos.

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Santo Albano

No texto anterior, analisou-se a chegada da Maçonaria=Geometria=Arquitetura da construção em pedra à Europa segundo a Lenda do Ofício.

A partir do texto que hoje se destaca, a Lenda centra-se em Inglaterra, país onde foi criada.

A Inglaterra em todo este tempo manteve-se alheia, quanto a qualquer assunto de Maçonaria, até ao tempo de Santo Albano. E nos dias deste o rei da Inglaterra, que era pagão, edificou as muralhas da cidade que agora se chama Saint Alban. E Santo Albano era um valoroso cavaleiro e nobre da corte do Rei e tinha a direção dos assuntos do reino e da edificação das muralhas da cidade; e gostava dos Maçons e acarinhava-os muito. E fixou o seu salário bem, de acordo com os padrões do reino; pois deu-lhes dois xelins e seis dinheiros por semana e três dinheiros para as suas refeições. E antes desse tempo, por toda esta terra, um Maçom recebia apenas um dinheiro por dia e a sua refeição, até que Santo Albano emendou isso e deu-lhes uma carta-patente do Rei e do seu Conselho para reunirem em conselho geral e deu-lhe o nome de Assembleia; e, a partir daí, ele próprio ajudou a fazer Maçons e deu-lhes Deveres, tal como ouvirão mais tarde.

À primeira vista, depara-se-nos mais um dos frequentes anacronismos da Lenda, na medida em que, após falar de Carlos Martel, que viveu entre 688 e 741, refere Santo Albano, que viveu no século III. Mas aqui o anacronismo pode ser apenas aparente, por duas razões. A primeira, por esse anacronismo ter existido, sim, mas em relação a Carlos Martel, declarado, na Lenda contemporâneo de um dos que participaram na edificação do Templo de Salomão, Maymus Grecus, portanto “puxado” para uma época muito anterior à da sua real existência; a segunda, porque a Lenda, nesta passagem, não afirma que a Maçonaria foi introduzida em território inglês via França e, portanto, não declara a sequencialidade das duas passagens – pode muito bem interpretar-se que a Lenda relatou a introdução da Arte Real na França como episódio demonstrativo de que a sua aparição na Inglaterra não se tratou de um fato isolado, mas, de alguma forma, apenas como episódio marginal, sendo entendível e admissível a sua colocação entre o fim da Antiguidade e o ponto de interesse fulcral da Lenda, a Maçonaria na Inglaterra. Aliás, como referirei um pouco mais adiante, a passagem da Lenda ora em análise deve levar-nos a considerar um outro tipo de influência para a introdução da Arte de Construir na Inglaterra. Portanto, na dúvida, use-se aqui o princípio basilar do Direito Penal e… “absolva-se” a Lenda da suspeita do “crime” de anacronismo, nesta passagem.

Santo Albano foi o primeiro mártir cristão britânico. Segundo Mackey, nasceu, assim reza a tradição, no século III em Hertfordshire, Inglaterra, perto da cidade de Verulanium. Então, o território inglês fora conquistado pelas legiões de Roma e estava integrado no Império Romano. Albano foi para Roma, onde serviu sete anos como soldado sob o comando do Imperador Diocleciano. Regressou a Verulanium pouco antes de ter sido desencadeada uma perseguição de cristãos. Ter-se-á apresentado às autoridades como cristão e foi preso, torturado e morto. Quatro séculos depois do seu martírio, foi erigido um mosteiro em Holmeshurst, a colina onde foi enterrado e, pouco tempo depois, na vizinhança deste mosteiro nasceu e cresceu a cidade de St. Albans, substituindo a antiga Verulanium romana.

Lenda embeleza a vida e importância do primeiro mártir e santo britânico, de óbvia importância numa sociedade medieval em que ainda predominava o catolicismo (Henrique VIII só mais tarde viveria e iniciaria o cisma que originou a Igreja da Inglaterra). Declara-o nobre cavaleiro da corte do rei pagão da Inglaterra (seria Carausius, que se revoltou contra o Imperador Maximiliano e usurpou a soberania de Inglaterra) e teria sido sob sua direção que foram edificadas as muralhas de Verulanium, futura St. Albans – pelos vistos, havendo boas razões para tal edificação, em função da revolta de Carausius e da expectável reação imperial…

A introdução da Arte de Construir na Inglaterra é assim relacionada com a construção de equipamento militar de defesa. Os maçons – os construtores – foram, diz a Lenda, protegidos por Santo Albano e viram aumentado o seu salário, aumentada a sua importância social e estabelecida a forma de autorregulação da sua profissão.

Esta passagem da Lenda, a exemplo de outras passagens e de outros personagens e épocas e lugares, personifica em Santo Albano uma realidade histórica verificada: que a Arquitetura foi introduzida na Inglaterra pelos artífices romanos que, como era usual então, seguiam as suas legiões nos territórios por estas conquistados e ocupados. Esses artífices não só construíam nos territórios ocupados campos fortificados e fortificações como, uma vez restabelecida a paz – a Pax Romana – se dedicavam a edificar templos e edifícios privados. Ruínas e inscrições latinas ainda hoje encontradas por toda a Inglaterra testemunham esse labor dos artífices romanos e sustentam a ideia de que a Arquitetura, sinônimo na Lenda de Maçonaria, foi introduzida na Inglaterra no período da colonização romana.

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Carlos Martel

Finalmente, a Lenda do Ofício chega à introdução dele na Europa. Relembremos esta parte do texto:

Homens da Fraternidade curiosos viajaram por diversos países, uns para aprenderem mais da arte de construir e aparelhar, outros para ensinar aqueles que tinham poucos conhecimentos. E assim sucedeu que houve um curioso Maçom, chamado Maymus Grecus, que esteve na construção do Templo de Salomão e que veio para França e aí ensinou a ciência da Maçonaria aos homens de França. E houve um, da linhagem real de França, chamado Carlos Martel; e ele era um homem que gostava muito desta ciência e aproximou-se deste Maymus Grecus, acima referido, e aprendeu com ele a ciência e obteve através dele os Deveres e as Regras; e mais tarde, pela graça de Deus, foi escolhido para ser Rei de França. E quando ele estava nessa função, contratou Maçons e ajudou a fazer Maçons de homens que não eram nada; e pô-los a trabalhar e deu-lhes os Deveres e as Regras e bom salário, tal como tinha aprendido de outros Maçons; e confirmou-lhes uma determinação de se reunirem anualmente; e acarinhou-os muito; e assim chegou esta ciência a França.

Esta passagem confirma-nos uma já anteriormente verificada característica da Lenda: o anacronismo. Neste caso, particularmente evidente por indicar a convivência de um trabalhador que teria participado na construção do Templo de Salomão, Maymus Grecus, com Carlos Martel, coisa notável, se tivermos presente que o Templo de Salomão foi construído no século XI antes de Cristo e Carlos Martel viveu entre 688 e 741 depois de Cristo. Só dezessete séculos de diferença…

Mas, como já anteriormente tivemos oportunidade de ver, o anacronismo reincidente na Lenda funciona como elemento de ligação dos personagens da estória. No caso, avultam nesta passagem dois elementos: a crença na introdução na Europa da ciência da Geometria e da arte da construção em pedra aplicando os princípios descobertos por essa ciência através de França e a admiração que, manifestamente, existia por Carlos Martel na Idade Média.

Ao primeiro destes elementos não são, seguramente, alheios os fatos de ter sido em território francês que existiu grande atividade de construção de catedrais em tempos medievais e de, manifestamente, ter existido uma categoria de trabalhadores que muito beneficiou e se desenvolveu com essa construção, que ciosamente guardaria para os seus elementos os segredos da arte de construir. Basta notar a importância que tinha, para a construção de uma catedral com dezenas de metros de comprimento, a correta e exata determinação dos ângulos retos entre a sua fachada e as paredes laterais: um ínfimo erro na determinação dese ângulo e resultaria uma catedral com as paredes laterais alargando-se ou estreitando-se, formando um grotesco paralelogramo, tanto mais visível quanto maior fosse a extensão das paredes laterais…

Não se pode asseverar que a introdução da Arte Real na Europa se fez via França. Mas num ponto a Lenda indiscutivelmente acerta com a realidade histórica: a História da Arquitetura mostra-nos que, na Alta idade Média, circulavam pela Europa grupos de construtores, buscando emprego na construção de edifícios religiosos, palácios, torres, praças-fortes, etc.

Personagem aparentemente misterioso é o mencionado Maymus Grecus. Nenhuma referência histórica existe a este nome. Mas não se afigura particularmente difícil estimar a origem deste nome, se estivermos atentos a que, numa passagem posterior da Lenda se refere que o Príncipe Edwin publicou uma proclamação no sentido de que que qualquer maçom que tivesse em seu poder quaisquer textos contendo Deveres ou práticas da Arte Real deveria apresentá-los e que, em resposta, reuniram-se textos, “alguns em francês e alguns em grego e alguns em inglês e alguns em outras línguas“.

Se alguma referência existia a um arquiteto grego num texto em alemão, seria algo como “ein Maurer Namens Grecus)” (um maçom=construtor de nome grego). Se tal texto fosse em francês conteria provavelmente a expressão “un maçon nommé Grecus” (um maçom chamado Grecus). É fácil entender que, na transcrição para inglês e com a corruptela propiciada pelo voar do tempo, qualquer destas referências conduzisse a que se designasse tal putativo arquiteto grego de Namus Grecus (versão do nome em vários antigos manuscritos maçônicos contendo versões da Lenda do Ofício) ou Maymus Grecus (versão do manuscrito Downland, que utilizei para traduzir e neste blogue publicar a dita Lenda).

É, pois, razoável inferir-se que, mais do que um nome, Maymus Grecus constitui a referência a um qualquer arquiteto ou artista grego, que tenha estado em Jerusalém e ou tenha aprendido os princípios da arquitetura bizantina e tenha viajado para França, no tempo de Carlos Martel. Esta inferência é confirmada pelo fato histórico de que, no século VIII (época em que viveu e reinou Carlos Martel), houve um afluxo de arquitetos e artífices gregos à Europa do Sul e Europa Ocidental, em consequência de perseguições infligidas pelos imperadores bizantinos.

O anacronismo denunciado resolve-se assim se considerarmos que a referência na Lenda é feita a um dos arquitetos gregos que, tendo contactado e aprendido os princípios da arquitetura bizantina, que na época eram aplicados em todo o Médio Oriente, chegou e trabalhou em França, aí aplicando e difundindo esses princípios. E assim se congraça a Lenda com a História…

Uma referência final a Carlos Martel. Embora usualmente referido como um importante rei merovíngio de França, não terá propriamente alguma vez usado esse título, antes os de prefeito do palácio e duque dos francos. Prefeito do palácio era o título utilizado pelo funcionário merovíngio que representava o rei franco no palácio. No século VII, na Austrásia, um dos reinos francos, os prefeitos do palácio passaram a deter de fato o poder político, em nome do rei, que se limitava a um papel cerimonial, tendo-se o cargo de prefeito tornado hereditário. O pai de Carlos Martel, Pepino de Herstal, foi prefeito do palácio da Austrásia. Após derrotar um exército da Nêustria (região que hoje corresponde ao Norte de França, onde está situada Paris) e da Borgonha, foi o primeiro prefeito a estender a sua autoridade sobre todo o domínio franco e assumiu o título de Duque (dux, chefe) dos Francos. Carlos Martel herdou os títulos e manteve e reforçou a sua autoridade sobre todos os reinos dos Francos (Austrásia, Nêustria e Borgonha).

Um ano antes da sua morte, dividiu os seus territórios por dois dos seus filhos adultos: a Carlomano (não confundir com Carlos Magno) entregou a Austrásia e a Alamânia (com a Baviera como vassala); a Pepino o Breve a Nêustria e a Borgonha (com a Aquitânia como vassala). Carlos Martel tinha deixado o trono de rei dos Francos vago desde a morte de Teodorico IV em 737. Os dois irmãos seus sucessores decidiram instalar rei dos Francos (teórico senhor de ambos os prefeitos, mas na realidade mero detentor de poder nominal, sem qualquer poder real, totalmente assumido pelos prefeitos) Childerico III, que veio a ser o último rei merovíngio. Em 747, Carlomano, um homem profundamente religioso, retirou-se para um mosteiro, renunciando ao cargo de prefeito da Austrásia, assumido também por Pepino o Breve. Este então entendeu que era tempo de fazer coincidir o título com o poder de fato e depôs o rei. Foi ele próprio coroado rei dos Francos em Soissons e inaugurou a dinastia carolíngia.

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: o Templo de Salomão

Do Egito, a Lenda salta para a Judeia e para a construção do Templo de Salomão. Recorde-se o texto da Lenda do Ofício, nesta parte:

Muito depois deste tempo, quando os filhos de Israel chegaram à Terra Prometida, que agora é chamada entre nós de Jerusalém, o rei David iniciou a construção do Templo que é chamado entre nós de Templo de Jerusalém. E o rei David apreciava os maçons e tratava-os bem e dava-lhes bom salário. E deu-lhes os Deveres pela forma que tinha aprendido no Egito, dada por Euclides, e outros deveres de conduta de que ouvirão falar mais tarde. E depois da morte do rei David, Salomão, que era filho de David, concluiu o Templo que o seu pai começara; e mandou vir maçons de diversos países e várias terras; e juntou-os, de forma a ter 40.000 trabalhadores em pedra e chamou-lhes maçons. E escolheu de entre eles 3.000 que determinou fossem Mestres e responsáveis pelo trabalho. E, para além disso, havia um rei de outra região que os homens chamavam Hiram, que era amigo de Salomão e que lhe deu madeira para a sua construção. E ele tinha um filho chamado Aynam (hoje designado por Hiram Abif) e ele era Mestre de Geometria e foi o Mestre Chefe de todos os maçons e foi o Mestre de todos os aparelhamentos e gravações das pedras e de toda a espécie de Maçonaria que dizia respeito ao Templo; e isto é testemunhado pela Bíblia, no Livro dos Reis, capítulo terceiro. E Salomão confirmou, quer os Deveres, quer as disposições que o seu pai tinha dado aos maçons. E assim foi a valiosa ciência da Maçonaria confirmada na terra de Jerusalém e em muitos outros países.

Em primeiro lugar, importa relembrar o anacronismo, já anteriormente denunciado, de na Lenda se datar a construção do Templo de Salomão de muitos anos depois do tempo de Euclides, quando é a inversa que é historicamente verdadeira.

Mas, excetuado este anacronismo, esta passagem da Lenda reproduz, com razoável exatidão, o texto bíblico constante do primeiro Livro dos Reis. Segundo este texto, o Templo de Salomão foi construído ao longo de sete anos (1 Reis 6:37, 38). Em troca de trigo, cevada, azeite e vinho, Hiram, rei de Tiro, forneceu madeira do Líbano e operários especializados em madeira e em pedra. Ao organizar o trabalho, Salomão convocou 30.000 homens de Israel, enviando-os ao Líbano em equipas de 10.000 em cada mês. Convocou 70.000 dos habitantes do país que não eram israelitas, para trabalharem como carregadores, e 80.000 como cortadores (1 Reis 5:15; 9:20, 21; 2 Crónicas 2:2). Como responsáveis pelo serviço, Salomão nomeou 550 homens e, ao que parece, 3.300 como ajudantes. (1 Reis 5:16; 9:22, 23). O templo tinha uma planta muito similar à tenda ou tabernáculo que anteriormente servia de centro da adoração ao Deus de Israel. A diferença residia nas dimensões internas do Santo e do Santo dos Santos, sendo estes, no Templo, maiores do que as do tabernáculo. O Santo tinha 40 côvados (17,8 m) de comprimento, 20 côvados (8,9 m) de largura e 30 côvados (13,4 m) de altura. (1 Reis 6:2) O Santo dos Santos era um cubo de 20 côvados de lado. (1 Reis 6:20; 2 Crónicas 3:8). Os materiais aplicados foram essencialmente a pedra e a madeira. Os pisos foram revestidos a madeira de junípero ou cipreste (conforme as traduções da Bíblia) e as paredes interiores eram de cedro entalhado com gravuras de querubins, palmeiras e flores. As paredes e o teto eram inteiramente revestidos de ouro. (1 Reis 6:15, 18, 21, 22, 29).

Para a época, era indubitavelmente um Templo imponente, embora não particularmente grande nas suas dimensões. Aliás, a sua edificação não foi especialmente demorada – apenas sete anos.

Escusado é relembrar que, na época da criação da Lenda, o texto bíblico era aceite e considerado como fonte histórica.

Mais uma vez se assume o conceito de Maçonaria como Geometria, em particular Geometria aplicada à construção, isto é, Arquitetura. A referência na Lenda ao Templo de Salomão assume particular importância, em virtude de, pela primeira vez, se aludir expressa e especificamente à construção de um edifício de culto religioso, em ligação com a forma de organização dos construtores. A Maçonaria Operativa da Idade Média desenvolveu-se, não totalmente, mas significativamente, mediante a construção de catedrais, por essa Europa fora, pelos pedreiros livres, isto é, os profissionais da construção em pedra (canteiros, mas também escultores, cinzeladores, mestres projetistas, etc..) livres de amarras feudais, com autorização para trabalharem onde muito bem entendessem.

Neste sentido, compreende-se que os maçons operativos tenham dado lugar de destaque ao episódio da construção do Templo de Salomão na sua Lenda do Ofício. Afinal de contas, aí remonta o primeiro registro, comummente conhecido na sua época, de construção de um edifício de culto…

Embora este episódio tenha um lugar de destaque na Lenda, sendo o último episódio dedicado à Antiguidade, dele se prosseguindo para a introdução da Maçonaria=Geometria=Arquitetura na Europa, desconhece-se ainda hoje, mesmo entre os investigadores maçônicos, a relevância que este episódio da construção do Templo de Salomão efetivamente teve, em termos simbólicos, para a Maçonaria Operativa – se é que alguma de especial teve. Sabe-se apenas que no mais antigo manuscrito maçônico conhecido, o Manuscrito Halliwell, nenhuma referência lhe é feita. Só depois, no Manuscrito Cooke, deparamos com a primeira, e desenvolvida, referência ao Templo de Salomão e à sua inclusão na Lenda do Ofício – situação que se repete nos manuscritos posteriores.

Na Maçonaria Especulativa, desenvolvida e sistematizada a partir dos finais do século XVII, início do século XVIII, o episódio da edificação do Templo de Salomão e a interação de vários personagens nela envolvidos tem um papel simbólico central. Mas esta importância não decorreu necessariamente de desenvolvimento de igual tendência já prosseguida pela Maçonaria Operativa.

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Euclides

Chegados ao Egito, a Lenda do Ofício apresenta uma história tão desenvolvida e pormenorizada que bem merece uma autonomização como a Lenda de Euclides. Relembremo-la, tendo em consideração que imediatamente antes da passagem ora transcrita, se introduziu Euclides, que aprendeu bem e foi Mestre das sete ciências liberais:

E no seu tempo, sucedeu que o senhor e os nobres do reino tinham tido muitos filhos, alguns das suas mulheres, outros de outras senhoras do reino; porque aquela terra é uma terra quente e propícia a gerar. E eles não tinham encontrado modos de vida satisfatórios para os seus filhos, de que muito gostavam, e então o rei do país convocou um grande Conselho e Parlamento para decidir como poderiam encontrar um modo de vida honesto para os nobres seus filhos, e não conseguiram encontrar boa maneira. E então anunciaram por todo o reino que se houvesse algum homem que os informasse, então deveria comparecer perante eles e seria recompensado pelo seu trabalho, de forma a deixá-lo satisfeito.

Depois que este pregão foi feito, veio então o valoroso Euclides e disse para o rei e todos os seus nobres: “Se me entregarem os vossos filhos para que eu os governe e lhes ensine uma das sete ciências, de forma que eles possam viver honestamente como nobres, deverão dar-me a mim e a eles uma carta-patente, de que eu tenho o poder de lhes determinar o modo como essa ciência deve ser regulada.” E o rei e o seu Conselho concederam-lhe isso e selaram a sua carta-patente. Então o valoroso Doutor levou consigo os filhos dos nobres e ensinou-lhes a ciência da aplicação da Geometria ao trabalho de construção em pedra de igrejas, templos, castelos e palácios; e deu-lhes Deveres da seguinte forma.

O primeiro era que deviam ser verdadeiros para o Rei e para o Senhor de quem dependiam. E que deveriam gostar de estar juntos, ser verdadeiros uns com os outros. E que deviam chamar-se uns aos outros Companheiro ou Irmão, não por servo, ou escravo, ou outros nomes tolos. E que deveriam merecer o salário pago pelo Senhor ou pelo Mestre que servissem. E que deveriam designar o mais sábio deles para Mestre do trabalho e não deixar que essa designação fosse afetada por linhagem, riqueza ou favor, pois então o senhor seria mal servido e eles desonrados. E que deveriam tratar o responsável pelo trabalho por Mestre, durante o tempo em que trabalhassem com ele. E muitos mais deveres de conduta que seria longo contar. E a todos estes Deveres fez jurar um grande juramento que naquele tempo se usava; e determinou que deveriam receber salários razoáveis, com os quais pudessem viver honestamente. E que deveriam reunir-se anualmente, para discutir como poderiam trabalhar melhor e melhor servir o seu senhor, para ganho dele e deles próprios; e para corrigirem no seu próprio seio aquele que tivesse errado contra a ciência. E assim ali foi implantada a ciência; e o valoroso senhor Euclides deu-lhe o nome de Geometria. E agora é chamada em toda esta terra por Maçonaria.

Euclides viveu entre 360 e 295 antes de Cristo. Teria sido educado em Atenas e frequentado a Academia de Platão. Foi convidado por Ptolomeu para integrar o quadro de professores da recém-fundada Academia de Alexandria, a segunda maior cidade egípcia, tornou-se o mais importante autor de matemática da Antiguidade greco-romana e talvez de todos os tempos, com seu monumental Stoichia (Os elementos), uma obra em treze volumes, sendo cinco sobre geometria plana, três sobre números, um sobre a teoria das proporções, um sobre incomensuráveis e os três últimos sobre geometria no espaço. Escrita em grego, a obra cobria toda a aritmética, a álgebra e a geometria conhecidas até então no mundo grego e sistematizava todo o conhecimento geométrico dos antigos. Intercalava os teoremas já conhecidos então com a demonstração de muitos outros, que completavam lacunas e davam coerência e encadeamento lógico ao sistema por ele criado. Após sua primeira edição foi copiado e recopiado inúmeras vezes e, traduzido para o árabe, tornou-se um influente texto científico. Depois da queda do Império Romano, os seus livros foram recuperados para a sociedade europeia pelos estudiosos muçulmanos da Península Ibérica. Escreveu ainda sobre a ótica da visão e sobre astrologia, astronomia, música e mecânica, além de outros livros sobre matemática.

Como se vê desta resenha, a Lenda do Ofício de novo se apropria de um personagem histórico comprovadamente existente, mas coloca-o em tempo e circunstâncias diferentes dos que efetivamente foram os seus. Embora residindo e ensinando no Egito, na academia de Alexandria, Euclides não foi propriamente um mestre da cultura egípcia, antes um produto da cultura helenística.

Também a sua introdução como personagem da Lenda sofre de um duplo anacronismo: por um lado, coloca-o como contemporâneo de Abraão, que o antecedeu em dois milénios; por outro, coloca-o em tempo anterior à edificação do Templo de Salomão, quando viveu em tempo bem posterior, cerca de seiscentos e cinquenta anos depois de tal edificação, e até cerca de dois séculos depois da destruição do dito Templo por Nabucodonosor, em 586 a. C.

Este enxerto da obviamente fantasiosa Lenda de Euclides na Lenda do Ofício ter-se-á devido essencialmente a dois fatores: por um lado, a óbvia importância enquanto Mestre de Geometria de Euclides, bem conhecida na Idade Média, época de criação da Lenda; por outro, o reconhecimento da existência de algumas semelhanças entre o método de ensino existente entre os maçons operativos e o método esotérico de ensino seguido pelos sacerdotes do Antigo Egito.

Assim, mais do que um relato factual historicamente consistente, devemos interpretar esta passagem da Lenda do Ofício como o repositório amalgamado de crenças realmente tidas pelos maçons operativos da Idade Média:

– Que a Geometria é a base da Maçonaria;

– Que Euclides foi o maior dos Mestres de Geometria;

– Que os sacerdotes do Antigo Egito utilizavam um método esotérico de transmissão de conhecimentos similar ao método utilizado pelos maçons operativos.

Neste aspeto, a Lenda simboliza o bem conhecido fato de que, no Antigo Egito, existia uma íntima conexão entre a ciência da Geometria e o sistema religioso daquela sociedade, que esse sistema religioso incluía também a transmissão de instrução científica, de forma secreta e apenas após uma iniciação.

Esta analogia entre o sistema religioso do Antigo Egito e a maçonaria operativa da Idade Média, mais do que esta enviesada referência na Lenda do Ofício, acabou por, já na fase da Maçonaria especulativa, dar origem a ritos de inspiração egípcia e teorias – a meu ver, fantásticas e inconsequentes – que colocam a origem da Maçonaria nos Antigos Mistérios Egípcios.

Como se vê, os rudes e menos incultos do que se poderia pensar trabalhadores da construção em pedra medievais não eram tão diferentes assim dos seus cultos e conhecedores de história e filosofia sucessores dos séculos XVIII, XIX e XX…

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Abraão

Depois de ter referido o estabelecimento da Maçonaria na Caldeia, a Lenda do Ofício efetua uma rápida transição para a sua introdução no Egito. Fá-lo através da invocação de um personagem que a Bíblia efetivamente regista ter estado no Egito, Abraão, mas, como se verá, com a exteriorização de mais um evidente anacronismo. Recorde-se o texto desta passagem da Lenda do Ofício:

Mais tarde, quando Abraão e Sara, sua mulher, foram para o Egito, ali ele ensinou as sete ciências aos egípcios; e teve um valioso discípulo, chamado Euclides, que aprendeu bem e foi Mestre das sete ciências liberais.

A Bíblia refere Abraão, designadamente no Gênesis, como pertencendo à nona geração de Sem, filho de Noé, e ser originário de Ur, cidade do Sul da Mesopotâmia. Relativamente à sua estada no Egito, a Bíblia refere que, tendo ocorrido seca e fome em Canaã, onde Abraão se havia estabelecido, este levantou o seu acampamento e rumou ao Egito. Aí, temendo ser morto, em virtude da grande beleza de sua esposa Sara, combinou com esta que ela se dissesse sua irmã, e não sua cônjuge. O Faraó apaixonou-se pela beleza de Sara e levou-a para o seu palácio. Porém, Deus castigou o Faraó e este, bem mais prudente do que viria a ser o seu sucessor, no tempo de Moisés, mandou chamar Abraão e devolveu-lhe Sara, ordenando que ambos deixassem o país, com todos os seus bens.

Abraão não é referenciado na Bíblia pela sua sabedoria, antes pela sua piedade, crença, obediência a Deus. Exemplo maior disso é o episódio do Sacrifício de Abraão (melhor seria dizer sacrifício de Isaac…), ilustrado pela pintura que acompanha este texto.

Os autores da Lenda foram beber essa reputação de sapiência em Josephus e nas suas Antiguidades. Ali, Josephus escreveu que Abraão foi considerado pelos egípcios um homem muito sábio e que, para além de ter reformado os seus costumes, lhes ensinou aritmética e astronomia.

Esta passagem da Lenda é interessante precisamente por ilustrar diretamente duas das fontes de que os autores medievais dela se socorreram, em relação à Antiguidade: A Bíblia e as Antiguidades de Josephus. Outras fontes dos autores da Lenda, em relação à Antiguidade, terão sido também as Etimologias, de Santo Isidoro e o Polychonichon, de Ranulph Higden. Aliás, provavelmente, quer as Antiguidades, quer as Etimologias, terão sido conhecidas em segunda mão, através precisamente das transcrições delas feitas no Polychonichon.

A passagem hoje analisada contém um evidente anacronismo: a alegada contemporaneidade de Abraão e Euclides. Este, na realidade, viveu dois mil anos depois de Abraão!

O anacronismo só se resolve se considerarmos que a relação de Mestre-discípulo invocada pela Lenda não foi uma relação física e contemporânea, mas antes uma relação de influência. Isto é, Euclides, que não foi contemporâneo de Abraão, inspirou-se, recolheu, os ensinamentos deste e desenvolveu, a partir daí, os seus grandes conhecimentos na Ciência da Geometria.

Por este processo, a Lenda transfere, assim, a sua atenção da Caldeia para o Egito e, partindo do personagem bíblico de Abraão, associa-lhe o grande geômetra que foi Euclides e passa seguidamente a narrar a introdução lendária da Geometria, sinônimo de Maçonaria, no Egito.

Mas essa é já matéria para o próximo texto.

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Nimrod

Depois da Torre de Babel, mas continuando por terras entre o Tigre e o Eufrates, prossegue a Lenda do Ofício:

E o rei da Babilônia, que se chamava Nimrod, era ele próprio um maçom; e amava bem a ciência, e isto é dito pelos mestres em História. E quando a cidade de Nínive e outras cidades do Oriente foram construídas, Nimrod, o rei da Babilônia, enviou para lá três mil maçons a pedido do rei de Nínive, seu primo. E, quando os enviou, deu-lhes um Dever do modo seguinte: Que deveriam ser verdadeiros uns com os outros e que deviam gostar de estar uns com os outros e que deviam servir lealmente o seu senhor em troca do seu salário (…). E outros deveres de conduta lhes deu. E esta foi a primeira vez que aos Maçons foram impostos Deveres da sua ciência.

Nimrod é referido na Bíblia (Gênesis, 10:8 e 1 Crónicas, 1:10) como o primeiro poderoso na Terra. É identificado como filho de Cush, neto de Cam, bisneto de Noé. O seu reino incluía as cidades de Babel, Arac, Acad e Calene, na Babilônia. Dominou também a Assíria e aí construiu Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resem.

O historiador da Antiguidade Josephus não o descreve de forma agradável. Declara-o um tirano e imputa-lhe a decisão da construção da Torre de Babel, como um desafio a Javeh, pois seria tão alta que nenhum novo Dilúvio a poderia inundar. O plano correu-lhe mal…

Seja como seja, o desafiador e rebelde Nimrod (escritos rabínicos defendem que o nome Nimrod deriva do verbo hebraico ma-rádh, que significa “rebelar”; Nimrod seria então aquele que se rebelou contra o Deus de Noé… e sobreviveu, mesmo derrotado no seu projeto) criou o primeiro império referenciado na Bíblia, unificando sob o seu domínio as terras da Babilônia e da Assíria.

Lenda não lhe assaca, porém, a faceta de conquistador. Pelo contrário, declara-o cooperante com o seu primo, rei de Nínive, na Assíria, enviando-lhe três mil trabalhadores (maçons) para o auxiliarem na construção desta e de outras cidades. Afasta-se a Lenda da fonte bíblica de que é tão manifestamente tributária? Nem por isso. A Bíblia não apoda Nimrod de conquistador, apenas refere que ele estendeu o seu domínio à Assíria e aí construiu Nínive e as outras cidades. Se aquele território foi conquistado ou povoado, é matéria omissa. Se o rei de Nínive era seu vassalo ou aliado, também nada nos esclarece.

Curiosamente, a Lenda acaba por ser mais esclarecedora – mantendo-se na esteira do que se registou na Bíblia.

A denominação de Assíria deriva de Assur. E quem foi Assur? Foi filho de Sem. E Sem foi filho de Noé, irmão de Cam. Assur e Nimrod foram então primos (Assur foi primo direito de Cush, pai de Nimrod e, logo, segundo primo deste).

Eis como o relato da Lenda confere com o ensinamento bíblico!

Que Nimrod terá sido um grande construtor (de várias cidades), confirma-o a Bíblia e o historiador da Antiguidade. Claro que não foi pessoalmente um trabalhador da construção. Foi quem ordenou, financiou, organizou, a construção das cidades. A referência da Lenda de que foi ele próprio um maçom não quer dizer que tivesse sido um construtor ou arquiteto, antes que tenha sido o patrono, o patrão das construções. Teremos oportunidade de ver que mais vezes a Lenda atribui ao patrono de construções a designação de maçom. No fundo, maçom aceito, como, séculos mais tarde, veio a realmente suceder, originando a transição da Maçonaria Operativa para a Especulativa…

Mas a Lenda vai bem mais longe. Nimrod não foi apenas quem decidiu construir, não foi apenas um maçom aceito. Foi efetivamente o primeiro Grão-Mestre! É que a Lenda expressamente refere que foi por ele que aos maçons foram pela primeira vez impostos Deveres da sua ciência. Ora, quem tem o Poder de impor deveres aos maçons é unicamente o Grão-Mestre…

Lenda prossegue na sua senda de encarar – como era usual na época medieval da sua criação – a Bíblia como fonte histórica. E realça algo que só a Ciência Histórica moderna veio a apurar: que a Ciência, enquanto tal, nasceu na Caldeia – a região que venho designando por Babilônia.

Continua a confirmar-se que a Lenda é lenda – mas tem mais pontos de contato com a História do que se pensaria…

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: a Torre de Babel

No último texto, vimos como a Lenda do Ofício relata o achado por Hermes Trismegisto de um dos pilares contendo os ensinamentos de todas as ciências registados antes do Dilúvio e que este divulgou esses ensinamentos. Mas ainda estamos no domínio da teoria, da “ciência pura”. Só subsequentemente a Lenda nos confronta pela primeira vez com a aplicação prática desses ensinamentos. E fá-lo em grande estilo: nada mais, nada menos do que trazendo à colação a Torre de Babel.

O fragmento da Lenda a que hoje me dedico é singularmente pequeno, uma singela frase:

E na construção da Torre de Babel se fez o primeiro uso da Maçonaria.

No entanto, esta frase de catorze palavras apela a um dos mitos mais arreigados da Bíblia: a fantástica construção do primeiro “arranha-céus”, da Torre destinada a unir a Terra dos Homens ao domínio de Deus (ou dos deuses), a passagem do conhecido para o imaginado, a ligação entre o terreno material e o domínio do divino.

O mito bíblico da Torre de Babel culmina com o desagrado divino pela prosápia humana e com um castigo “exemplar”: para além da destruição da construção, a quebra do entendimento universal entre os humanos, mediante a sua separação em várias línguas.

O mito é interessante, na medida em que mostra a busca de uma explicação para algo que, manifestamente, intrigou os nossos longínquos antepassados: como coadunar a sua similitude essencial (e a pretensa origem única, no casal do Éden) com a variegada confusão de línguas e dialetos que os nossos antepassados distantes verificaram existir? Da unidade primitiva à multifacetada diferença, o caminho terá parecido óbvio: os estouvados humanos já então davam mostras do gênio criativo da espécie e, quais crianças insensatas, mais uma vez (a lição do Dilúvio foi rapidamente esquecida…) deram um passo maior que a perna e aspiraram para além do que deviam… E o Poder Divino, simultaneamente desagradado e temeroso (!), não se limitou a destruir o instrumento do atrevimento: tratou de minar o que, pelos vistos, seria uma ameaçadora força dos ex-símios, a sua capacidade de se entenderem e de cooperarem, condenando-os ao perpétuo desentendimento através de uma multitude de línguas. No fundo, dividir para reinar…

Esta percepção da relação do humano com o divino, embora reiterando o Poder do Inentendível, sofre do mesmo pecado que alegadamente teria sido punido e resolvido com a introdução da algaraviada de muitas línguas (sim, algaraviada, pois, embora os povos bíblicos desconhecessem ainda o Algarve, o seu Sol e praia e a mistura de línguas que por ali campeia no Verão, o Criador, omnisciente, dizem, já antecipava que lá por alturas dos séculos XX e XXI, a confusão multilingue, associada ao dialeto autóctone da região, originaria um substantivo que na perfeição ilustrava o resultado da sua punição pelo atrevimento do alçamento da Torre de Babel). Com efeito, o mito bíblico reduz o alegadamente Omnipotente ao (humilhante?) papel de se sentir ameaçado pela união humana e… ter necessidade de tomar providências!

O mito bíblico é, claramente, o resultado de uma tradição oral em que a Divindade é criada e descrita à luz da capacidade de entendimento humana, em que Deus, mais que Criador, é criatura criada pelas criaturas que terá criado, com as limitações e defeitos que a limitada inteligência das criaturas não pôde evitar…

Este mito porventura ter-se-á baseado numa difusa, desconhecida e limitada realidade, a construção de uma torre de tamanho nunca visto e o fracasso do projeto, por incapacidade técnica de o levar até à pretendida conclusão, quiçá com o recurso a mão-de-obra de diferentes paragens, tornando visível e aparente a diversidade de linguagens e o potencial de desentendimento que daí advinha, que impressionou um povo que, unilíngue, manifestamente não teria sido ainda seriamente confrontado com a diversidade linguística e os problemas daí decorrentes.

Note-se que o mito bíblico não é único, em termos de narrativa com contornos similares. Conforme se lê na Wikipédia em português, e cito, com pequenas alterações, na mitologia suméria, a rivalidade entre dois deuses, Enki e Elil, acaba por resultar, como que em subproduto das suas lutas, na confusão da Humanidade em diversas línguas. Também o Alcorão descreve uma história similar, mas alegadamente ocorrida no Egito de Moisés, em que o Faraó pede a Haman para lhe construir uma torre de barro para que ele possa subir até ao céu e confrontar o Deus de Moisés. Outra história, em Sura 2:96, menciona o nome de Babil, mas dá poucos detalhes adicionais sobre isso. Contudo, o conto aparece mais completo em escritos Islâmicos de Yaqut e de Lisan el-Arab , mas sem a torre: os povos foram varridos por ventos até à planície que foi depois chamada “Babil”, onde lhes foram designadas as suas línguas separadas por Alá, e foram depois espalhados da mesma forma. Na História dos Profetas e Reis, do historiador muçulmano Tabari, do século XIX, é dada uma versão mais completa: Nimrod faz a torre ser construída em Babil, Alá destrói-a, e a língua da humanidade, previamente o siríaco, é então confundida em 72 linguagens. Abu Al-Fida, outro historiador Muçulmano do século XIII, relata a mesma história, adicionando que o patriarca Éber (um antepassado de Abraão) tinha sido autorizado a manter a língua original, neste caso o Hebraico, porque ele não participava na construção.

Lê-se ainda no mesmo artigo da Wikipédia – e continuo a citar com pequenas alterações – que várias tradições similares à da Torre de Babel são encontradas na América Central. Uma diz que Xelhua, um dos sete gigantes salvos do dilúvio, construiu a Grande Pirâmide de Cholula para desafiar o Céu. Os deuses destruíram-no com fogo e confundiram a linguagem dos construtores. Outra lenda, atribuída pelo historiador nativo Don Ferdinand d’Alva aos antigos toltecas, diz que depois dos homens se terem multiplicado após um grande dilúvio, eles erigiram um alto zacuali ou torre, para se preservarem no caso de um segundo dilúvio. Contudo, as suas línguas foram confundidas e eles foram para diferentes partes da terra. Outra lenda ainda, atribuída aos Índios Tohono O’odham ou Papago, afirma que Montezuma escapou a uma grande inundação, depois tornou-se mau e tentou construir uma casa que chegasse ao céu, mas o Grande Espírito destruiu-a com relâmpagos. Rastos de uma história um pouco parecida também têm sido citados entre os Tarus do Nepal e do Norte da Índia; e, de acordo com David Livingstone, os africanos que ele conhecera e que viviam junto ao Lago Gnami, em 1879 tinham uma tradição assim, mas com as cabeças dos construtores a serem partidas pela queda da construção. Finalmente, o mito estônio do “Cozinhado das Línguas” também tem sido comparado com o mito bíblico, assim como a lenda australiana da origem da diversidade das falas.

Enfim, como referi na introdução a esta análise crítica,

“sucessos existem que estão marcados nas culturas de vários povos de muitos lugares. Os mitos primitivos, com algumas variantes, mais ou menos acentuadas, são comuns, na sua essência às culturas ocidentais como orientais, mediterrânicas como nórdicas, africanas, asiáticas ou europeias. Mesmo em alguns mitos dos povos primitivos do continente americano podemos reconhecer traços comuns com mitos do resto do globo.”

Mas este mito, do ponto de vista dos construtores, tinha ainda uma insuspeitada virtualidade: era a primeira referência “histórica” (recordemos que, para a mentalidade da Idade Média, a Bíblia era um documento histórico) a algo de grandioso construído em pedra. Empreendimento que não podia deixar de ter apelado ao uso dos conhecimentos da Geometria aplicados à Arquitetura e à Construção. Isto é: era a visível primeira aplicação da Maçonaria!

Não poderia, obviamente, a corporação medieval de construtores em pedra deixar de sublinhar tão insigne fato, referenciando-o na sua Lenda do Ofício!

Que a referência se tenha limitado a uma singela linha e menos de duas dezenas de palavras, não é, apesar de tudo, de admirar. Tenhamos em mente que a Torre de Babel, apesar de projeto ambicioso, revelou-se um fracasso… E, por outro lado, os mais auspiciosos inícios merecem ser recordados com a singeleza da simplicidade!

Mas importa reter que, nas insondáveis voltas do espírito medieval, duas certezas avultam: o episódio da Torre de Babel era considerado realidade histórica – e, mais uma vez, a Lenda do Ofício, continua, segundo a mentalidade e conhecimentos da época da sua criação, a basear-se em fatos históricos; e exprime-se a difusa, mas acertada, noção medieval de que a ciência aplicada nasce em terras de Babilônia (Babel), no berço de civilização que, entre os rios Tigre e Eufrates, foi denominada por Mesopotâmia – e hoje denominadas por Iraque. Voltas que a História dá!

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: Hermes

Prosseguindo a análise crítica da Lenda do Ofício e da sua compatibilidade com a História, deparamos, após a referência aos filhos de Lamech e aos pilares por eles construídos, com a seguinte passagem:

O nosso propósito é contar-vos com verdade como e de que maneira foram encontradas as pedras em que estas ciências estavam escritas. O grande Hermarynes, que foi filho de Cuby, o qual foi filho de Sem, que foi filho de Noé, mais tarde chamado de Hermes, o patrono dos homens sábios, encontrou um dos dois pilares de pedra e encontrou a ciência nele escrita e ensinou-a a outros homens.

O Hermes aqui referido não é o deus da mitologia grega com o mesmo nome, correspondente ao Mercúrio da mitologia romana. Trata-se aqui de uma divindade de segunda ordem egípcia, também referido por Hermes Trismegisto, o nome dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus Thot que, tal como o Hermes grego, era o deus da escrita e da magia. Thot simbolizava a lógica do universo, era o deus da palavra e da sabedoria. Os egípcios atribuíam-lhe a autoria de um conjunto de livros sagrados (provavelmente na realidade escritos por diversos autores, ao longo de muitas gerações…), contendo ensinamentos sobre artes, ciências, religião e filosofia. Era, na cultura egípcia da antiguidade, considerado o depositário do Conhecimento.

Albert Mackey refere que, nos tempos medievais, Hermes Trismegisto era considerado generalizadamente o inventor de todas as ciências e, de entre elas, evidentemente, a Geometria e a sua aplicação prática na construção, a Arquitetura.

Mais uma vez, a corporação de construtores em pedra constrói a Lenda do seu ofício com base num mito, mas um mito histórico, isto é, aquilo que era, na época, considerado verdade histórica.

Nesta passagem da Lenda do Ofício perpassa também o que são algumas das suas características mais evidentes, o anacronismo e o sincretismo. É assim que Hermes é dado como bisneto de Noé e enxerta-se no mito do Dilúvio um personagem advindo da cultura egípcia, obviamente diversa e muito posterior.

Na Lenda, o papel atribuído a Hermes é apenas o de transmissor. Encontrou um dos pilares – não refere a Lenda qual – e os ensinamentos nele gravados e transmitiu-os a outros homens.

Obviamente que o que transmitiu foi a Geometria, conjuntamente com as outras ciências.

Não deixa de ser de alguma forma irónico que esta medieval apropriação de um reumanizado deus de segunda ordem egípcio por parte dos maçons operativos venha, muito mais tarde, nos séculos XVIII e XIX a ter uma nova versão nos delírios dos ocultistas, neoalquimistas e demais esotérico-birutas que pululavam por essa época.

A variante da ligação da Maçonaria ao Ocultismo, Hermetismo, Alquimia e quejandas correntes foi uma moda com alguma expressão no século XIX, que deixou alguns resquícios, aqui e ali, em segmentos rituais de alguns dos Altos Graus, mas que sobretudo deixou uma nefasta herança de um não negligenciável conjunto de escritos do Mago disto e do Cavaleiro daquilo, espuriamente ligados a uma determinada conceção, que então floresceu, da Maçonaria como integrante do Conhecimento dito Hermético e Oculto. Herança nefasta, na medida em que, quer o profano, quer mesmo aquele que ainda pouco progrediu no seu trabalho de aperfeiçoamento pessoal pelo método maçônico, têm os seus esforços de obtenção de material publicado de consulta e estudo sobre Maçonaria dificultados por um poluidor acervo de escritos e publicações esotérico-birutas, que só complicam a vida de quem busca conhecer e entender o que é a Maçonaria e o seu método de aprendizagem e evolução.

Os maçons operativos medievais “desgraduaram” um deus menor egípcio em homem. Os intelectuais românticos, embalados nas suas ilusões e crendices, “elevaram” homens a “magos”… Ironias da vida…

Por mim, confesso que, entre uns e outros, prefiro os simples construtores medievais. Ao menos esses construíram a sua Lenda do Ofício com base no que na época se pensava ser verdade histórica, enquanto os “magos”, ocultistas e outros cultores de esotérico-birutices pretenderam elevar os meros produtos da sua imaginação à categoria de verdade…

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A Lenda do Ofício – análise crítica: antes do Dilúvio

Tendo presente os limites e condicionalismos que apontei no texto anterior, vamos então tentar proceder a uma análise crítica do início da Lenda do Ofício.

Para que estejamos identificados, recordemos, então, o que nessa Lenda reza quanto aos tempos antediluvianos:

Vou contar-vos como estas valiosas ciências apareceram. Antes do Dilúvio de Noé, havia um homem, chamado Lamech, tal como está escrito na Bíblia, no quarto capítulo do Gênesis; e este Lamech tinha duas mulheres, uma chamada Ada e outra chamada Sella; da sua primeira mulher, Ada, teve dois filhos, Jabell e Tuball e da sua outra mulher, Sella, teve um filho e uma filha. E estes seus quatro filhos criaram o princípio de todas as ciências no mundo. O seu filho mais velho, Jabell, fundou a ciência da Geometria. (…) E o seu irmão Tuball fundou a ciência da música (…). E o terceiro irmão, Tuball Cain, fundou a ciência de trabalhar ouro, prata, cobre, ferro e aço (…). Esses filhos sabiam bem que Deus iria tirar vingança dos pecados, ou pelo fogo, ou pela água; portanto, escreveram as suas ciências em dois pilares de pedra, que pudessem ser encontrados após o Dilúvio de Noé. E uma das pedras era mármore, pois essa não arderia com o fogo; e a outra pedra era argila cozida em tijolos e não afundaria na água de Noé.

Obviamente que nenhum documento histórico suporta esta parte da Lenda. O único elemento em que se baseia é a Bíblia, no Livro do Gênesis.

No Gênesis, existe a referência a dois personagens com o nome de Lamech. Um era descendente em sexta geração de Caim, filho de Methusael e a primeira referência a um polígamo na Bíblia, com duas mulheres, Ada e Tselah (na Lenda, Sella). O outro era descendente de oitava geração de Seth (Abel), filho de Methuselah, e foi o pai de Noé.

Alguns estudiosos consideram que estes dois personagens corresponderão a um único ser, apontando a semelhança dos nomes dos respetivos progenitores e, sobretudo notando que, na coletânea rabínica Genesis Rabba, refere-se que Na’amah, a filha de Tselah e Lamech, filho de Methushael (Methusael), foi a mulher de Noé, alegadamente o filho do outro Lamech, filho de Methuselah.

Seja como seja, a Lenda do Ofício não se perde em rabínicas subtilezas e toma como personagem Lamech, o primeiro polígamo referenciado na Bíblia, descendente em sexta geração de Caim.

Lenda do Ofício parte, portanto, do mito bíblico, acrescentando-lhe os elementos da fundação das ciências pelos filhos de Lamech e a premonição de que o castigador e vingativo Jehovah do Antigo Testamento iria punir duramente os pecados humanos, fosse pela água, fosse pelo fogo – os dois grandes elementos com capacidade destruidora da Antiguidade Primitiva. E, anacronicamente – pois a escrita ainda não tinha sido inventada – relata a escrita do registo de todas as ciências em dois pilares, concebidos para resistir à água, um, e ao fogo, o outro.

Mito, evidentemente! Lenda, obviamente! No entanto, que deduções ou ilações de natureza histórica (melhor dito: proto-histórica) podemos tirar desta parte da Lenda?

Albert Mackey, na sua História da Maçonaria, informa-nos que esta história, na parte não bíblica, deriva de um registo de Josephus (historiador romano do Povo Judeu da Antiguidade, autor das Antiguidades dos Judeus), que conta a história do fabrico dos dois pilares como tendo ocorrido com descendentes de Seth (Abel).

Não sendo de presumir que os autores medievais da Lenda estivessem familiarizados com os textos rabínicos e fossem dados às subtilezas dos estudiosos que defendem serem os “dois” Lamech um único personagem, verifica-se que a Lenda parte da história relatada por Josephus, mas alterando os personagens.

Segundo Mackey, tal ter-se-á devido a uma adulteração do texto de Josephus ocorrida numa obra intitulada Polychronicon, da autoria de um monge beneditino, Ranulph Higden, que viveu no século XIV.

Portanto – e não esqueçamos que a Lenda do Ofício se estruturou na época medieval – esta parte da Lenda do Ofício radica num relato de um historiador, adulterado por outro. Mas resulta do que, na época da sua construção, era tido como um fato histórico. Esta parte da Lenda do Ofício terá, assim, sido incluída na mesma não antes do século XIV – altura da adulteração, no Polychronicon, do que Josephus escrevera. E corresponde ao que, na época, era tido como um fato histórico.

Continua…

Autor: Rui Bandeira

Fonte: Blog A Partir Pedra

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