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Discurso sobre a servidão voluntária

Servidão voluntária e tirania no poder – CAOS FILOSÓFICO

Palavras iniciais

Étienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade, em 1563. Deixou sonetos, traduções de Xenofonte e Plutarco e o Discurso Sobre a Servidão Voluntária, o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram.

Toda a sua obra ficou como legado ao filósofo Montaigne (1533 – 1592), seu amigo pessoal que, diante de uma primeira publicação — pirata — do Discurso em 1571, viu-se obrigado a se pronunciar a respeito da Obra, que procura minimizar em seus efeitos apodando-lhe o epíteto de “obra de infância” e “mero exercício intelectual”. Montaigne, com todo o seu inegável brilho intelectual, era um Homem do Estado e disso não escapava.

Entre muitos pontos importantes e relevantes do Discurso em si, ressalta-se:

  • O poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo.
  • A preferência pela república em detrimento da monarquia.
  • As crenças religiosas são frequentemente usadas pelas monarquias para manter o povo sob sujeição e jugo.
  • Étienne de La Boétie afirma no Discurso a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política.
  • Evidencia, pela primeira vez na história, a força da opinião pública.
  • Repele todas as formas de demagogia.
  • Incursionando pioneiramente pelo que mais tarde ficará conhecido como psicologia de massas, informa da irracionalidade da servidão, desde o título provocativo da Obra, indicada como uma espécie de vício, de doença coletiva.

O Discurso, que no século XVI Montaigne considerava difícil prefaciar, hoje em dia é ainda tristemente atual.

O ser humano encontra-se em amarras auto-infligidas por toda a parte. Como dizia Manuel J. Gomes, importante tradutor de La Boétie para o português:

“Se em 1600 era tarefa difícil escrever um prefácio a La Boétie, hoje não é mais fácil. Hoje como nos tempos de La Boétie e Montaigne, a alienação é demasiado doce (como um refrigerante) e a liberdade demasiado amarga, porque está demasiado próxima da solidão. E da loucura.”

LCC Publicações Eletrônicas– verão de 2004


Discurso sobre a servidão voluntária

Muita gente a mandar não me parece bem;
Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.

Assim proclamava publicamente Ulisses em Homero [Homero, Ilíada, cap. II]. Teria toda a razão se tivesse dito apenas:

Muita gente a mandar não me parece bem.

Deveria, para ser mais claro, ter explicado que o domínio de muitos nunca poderia ser boa coisa pela razão de o domínio de um só que usurpe o título de soberano ser já assaz duro e pouco razoável; em vez disso, porém, acrescentou:

Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.

Uma única desculpa terá Ulisses e é a necessidade que teve de recorrer a tais palavras para apaziguar as tropas amotinadas, adaptando (julgo) o discurso às circunstâncias mais do que à verdade.

Vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver.

Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado.

Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia. A minha intenção é antes interrogar-me sobre o lugar que à monarquia cabe, se algum lhe cabe, entre as mais formas de governar. Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública.

É melhor, todavia, que esse problema seja discutido separadamente, em tratado próprio, pois é daqueles que traz consigo toda a casta de disputas políticas.

Quero para já, se possível, esclarecer tão-somente o fato de tantos homens, tantas vilas, cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicá-los enquanto eles quiserem suportá-lo; que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem aguentá-lo a contrariá-lo.

Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.

Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes.

Se, portanto, uma nação é pela força da guerra obrigada a servir a um só, como a cidade de Atenas aos trinta tiranos, não nos espanta que ela se submeta; devemos antes lamentá-la; ou então, não nos espantarmos nem lamentarmos mas sofrermos com paciência e esperarmos que o futuro traga dias mais felizes.

Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida. É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem. Assim também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; é uma prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo da prática do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem.

Mas o que vem a ser isto, afinal?

Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um só indivíduo, que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação, acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios, menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres?

Chamaremos a isto covardia? Temos o direito de afirmar que todos os que assim servem são uns míseros covardes?

É estranho que dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é possível; poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo. Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiá-lo.

Como não é covardia, poderá ser desprezo, poderá ser desdém? Quando vemos não já cem, não já mil homens, mas cem países, mil cidades e um milhão de homens submeterem-se a um só, todos eles servos e escravos, mesmo os mais favorecidos, que nome é que isto merece? Covardia?

Ora, todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar. Dois podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles, se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia.

A covardia não vai tão longe, da mesma forma que a valentia também tem os seus limites: um só não escala uma fortaleza, não defronta um exército, não conquista um reino.

Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia? Que a natureza nega ter criado, a que a língua se recusa nomear?

Disponham-se de um lado cinquenta homens armados e outros tantos de outro lado; ponham-se em ordem de batalha, prontos para o combate, sendo uns livres e lutando pela liberdade, enquanto os outros tentam arrebatá-la dos primeiros: a quais deles, por conjectura, se atribui a vitória? Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo: os que, em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que, dos golpes que derem ou receberem, esperam tão-somente a servidão?

Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada, a esperança de no porvir a poderem conservar. Preocupa-os menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles, os filhos e toda a posteridade. Os outros nada têm que os anime, a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê-los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguir-se logo que derramem as primeiras gotas de sangue.

Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios?

É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez.

Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem!

Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias?

Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade?

Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura?

Ora, o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.

Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.

Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.

Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.

São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.

É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.

Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?

Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.

Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?

Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil?

Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar?

Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.

Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

Os audazes, para que obtenham o que procuram, não receiam perigo algum, os avisados não recusam passar por problemas e privações. Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem. Deixam de desejá-lo e a força para o conseguirem lhes é tirada pela covardia, mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem. Esse desejo, essa vontade, são comuns aos sábios e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes; todos eles, ao atingirem o desejado, ficam felizes e contentes.

Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.

A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter.

Gentes miserandas, povos insensatos, nações apegadas ao mal e cegas para o bem!

Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas, que devastem os vossos campos, roubem as vossas casas e vo-las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais!

A vida que levais é tal que (podeis afirmá-lo) nada tendes de vosso.

Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas.

Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.

Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?

Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas?

Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?

Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha?

Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?

Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?

Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés. Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueá-las, criais as vossas filhas para que ele tenha em quem cevar sua luxúria.

Criais filhos a fim de que ele, quando lhe apetecer, venha recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro, fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças.

Matai-vos a trabalhar para que ele possa regalar-se e refestelar-se em prazeres vis e imundos.

Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos.

E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo.

Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.

Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis; não é, pois, sensato que eu dê conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença, uma vez que ele já não sente dor, é evidentemente mortal. Temos, antes, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural.

Antes demais, eu creio firmemente que, se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos, seríamos naturalmente obedientes ao país, submissos à razão e de ninguém escravos.

Todos os homens, por si próprios, sem outro conselho que não seja o da natureza, guardam obediência ao pai e à mãe; quanto à razão, discutem muito os acadêmicos e todas as escolas filosóficas se ela nasce ou não conosco.

De momento penso não errar se crer que há na nossa alma uma semente natural de razão, a qual, se cultivada com bons conselhos e bons costumes, floresce em virtude; se, pelo contrário, é atacada pelos vícios, morre de asfixia e aborta.

Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos.

Ao fazer as partilhas dos dons que nos legou, deu, mais a uns do que a outros, certos dons corporais e espirituais; mas é igualmente certo que não pretendeu pôr-nos neste mundo como em campo fechado, nem deu aos mais fortes e aos mais avisados ordem para, quais salteadores emboscados no mato e armados, dizimarem os mais fracos.

É de crer, isso sim, que, favorecendo alguns e desfavorecendo outros, pretendia dar lugar à fraterna afeição, dar-lhes meios de se manifestar, pois se a uns assiste o poder de ajudar, os outros tinham necessidade de ser ajudados.

Esta boa mãe deu-nos a todos a terra para nela morarmos, albergou-nos a todos numa mesma casa, moldou-nos a todos numa mesma massa, para assim todos podermos mirar-nos e reconhecer-nos uns nos outros; a todos em comum outorgou o grande dom da voz e da palavra para sermos mais amigos e mais irmãos e, pela comum e mútua declaração dos nossos pensamentos, estabelecermos a comunhão de nossas vontades.

E pois ela buscou por todos os meios apertar e estreitar mais fortemente os nós da nossa aliança e sociedade, e por todas as formas mostrou mais desejar ver-nos unidos do que unos, não há dúvida de que somos todos companheiros e ninguém poderá jamais admitir que a natureza, integrando-nos a todos numa sociedade, tenha destinado uns para escravos.

Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural, provado que esteja ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza que em tudo quanto faz é razoável.

Não há dúvidas, pois, de que a liberdade é natural e que, pela mesma ordem e de ideias, todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com condições para a defendermos.

Se acaso pusermos isso em dúvida e descermos tão baixo que não sejamos capazes de reconhecer qual o nosso direito e as nossas qualidades naturais, vou ter de vos tratar como mereceis e por os próprios animais a dar-vos lições e a ensinar-vos qual é vossa verdadeira natureza e condição.

Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando os apanham. Como o peixe que, fora da água, perde a vida, também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural.

Se os animais estabelecessem entre si quaisquer grandezas e proeminências, fariam (creio firmemente) da liberdade a sua nobreza.

Alguns há que, dos maiores aos menores, ao serem presos, opõem resistência com as garras, os chifres, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida. E uma vez no cativeiro, dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos, continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão.

O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder, sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu?

Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade.

Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir.

Que dizer perante isto? Que

Até os bois sob o jugo andam gemendo
E na gaiola as aves vão chorando
.

como escrevi no tempo em que versejava à francesa (não receio, escrevendo-te em particular, citar versos meus, coisa que nunca faço; como tens mostrado gostar deles, não me acusarás de ser pretensioso).

Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade; as alimárias, feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários.

A que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar?

Há três espécies de tiranos. Refiro-me aos maus príncipes. Chegam uns ao poder por eleição do povo, outros por força das armas, outros sucedendo aos da sua raça.

Os que chegam ao poder pelo direito da guerra portam-se como quem pisa terra conquistada.

Os que nascem reis, as mais das vezes, não são melhores; nascidos e criados no sangue da tirania, tratam os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários; e, consoante a compleição a que são mais atreitos, avaros ou pródigos, assim fazem do reino o que fazem com outra herança qualquer.

Aquele a quem o povo deu o Estado deveria ser mais suportável; e sê-lo-ia a meu ver, se, desde o momento em que se vê colocado em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidisse ocupá-los para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. E, tão depressa tomam essa decisão, por estranho que pareça, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para conservarem a nova tirania, não acham melhor meio do que aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a ideia de liberdade que eles, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela.

Assim, para dizer toda a verdade, encontro entre eles alguma diferença, mas não vejo por onde escolher.

Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre idêntica.

Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com escravos naturais.

Se acaso hoje nascesse um povo completamente novo, que não estivesse acostumado à sujeição nem soubesse o que é a liberdade, que ignorasse tudo sobre uma e outra coisa, incluindo os nomes, e se lhe fosse dado a escolher entre o ser sujeito ou o viver a liberdade, qual seria a escolha desse povo?

Não custa a responder que prefeririam obedecer à razão em vez de servirem a um homem; a não ser que se tratasse dos israelitas, os quais, sem ninguém os obrigar e sem necessidade, elegeram um tirano [I Samuel, capítulo 8]; mas nunca leio a história de tal povo sem uma grande decepção e alguma fúria, tanta que quase me alegro por lhe terem acontecido tantas desgraças.

Uma coisa é certa, porém: os homens, enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se foram forçados ou enganados; enganados pelas armas estrangeiras, como Esparta e Atenas pelas forças de Alexandre, ou pelas facções, como aconteceu quando o governo de Atenas caiu nas mãos de Pisístrates. [Pisístrates (600 – 527) foi por três vezes tirano de Atenas. Da primeira vez foi derrubado por Licurgo. Da segunda por Hermódio e Aristogíton. Deve-se, contudo, a Pisístrates a compilação das obras de Homero, como a Ilíada e a Odisseia.]

Muitas vezes perdem a liberdade porque são levados ao engano, não são seduzidos por outrem mas sim enganados por si próprios. Assim, o povo de Siracusa, cidade capital da Sicília, denominada hoje Saragoça [aqui Boétie se equivoca…], apertado pelas guerras, sem olhar a nada a não ser o perigo, elevou ao poder Dionísio Primeiro e entregou-lhe o comando do exército. Tantos poderes lhe foi dando que o velhaco, uma vez vitorioso, como se tivesse triunfado não sobre os inimigos, mas sobre os cidadãos, subiu de capitão a rei e de rei a tirano.

Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão.

É verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força; mas os que vêm depois, como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja, servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação.

Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitam como natural o estado que acharam à nascença.

E todavia não há herdeiro tão pródigo e desleixado que uma vez não passe os olhos pelos livros de registros, para ver se goza de todos os direitos hereditários e se não foi esbulhado nos seus direitos, ele ou o seu predecessor.

Mas o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande orça de nos ensinar a servir e (tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber veneno) a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão.

Não pode negar-se que a natureza tem força para nos levar aonde ela queira e fazer a nós livres ou escravos; mas importa confessar que ela tem sobre nós menos poder do que o costume e que a natureza, por muito boa que seja, acaba por se perder se não for tratada com os cuidados necessários; e o alimento que comemos transmite-nos muito de seu, faça a natureza o que fizer.

As sementes do bem que a natureza em nós coloca são tão pequenas e inseguras que não aguentam o embate do alimento contrário. Não se mantêm facilmente, estragam-se, desfazem-se, reduzem-se a nada. Como acontece com as árvores de fruto, possuidoras de uma natureza própria que conservarão enquanto as deixarem; mas passarão a ter outra e a dar frutos estranhos, não os delas, a partir do momento em que sejam enxertadas.

As ervas têm cada uma a sua propriedade, a sua natureza e a sua singularidade próprias; mas o frio, o tempo, a terra ou a mão do jardineiro acrescentam-lhe ou tiram-lhe muitas das suas virtudes. Vê-se num sítio uma planta que outro sítio não reconhece.

Vejam-se os venezianos, um punhado de pessoas livres, tanto que até o pior de todos se recusaria a ser rei, nascidos e criados de tal modo que a grande ambição deles é defenderem ciosamente a liberdade de cada um; educados desde o berço nestes princípios, não aceitariam todas as outras felicidades da terra, se para isso tivessem de perder a menor de suas liberdades. Vejam-se os venezianos, repito, e repare-se depois nos que habitam as terras daquele a que chamamos Grão-Senhor, gente que nada mais faz do que servi-lo e que, para o manterem no poder, dão a própria vida.

Diria quem visse uns e outros que possuem todos a mesma natureza?

Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num curral de animais? Licurgo, reformador de Esparta, criara (diz-se) dois cães que eram irmãos, alimentados com o mesmo leite, um deles habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo campo, ao som da trompa e da corneta; querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um, colocou os dois cães no meio da praça e, no meio deles, uma sopa e uma lebre. Um correu para o prato e o outro para a lebre. Muito embora (disse ele) fossem irmãos.

Lembrarei com prazer um dito dos favoritos de Xerxes, senhor da Pérsia, a respeito dos espartanos.

Quando Xerxes se aparelhava para conquistar a Grécia, mandou embaixadores às cidades gregas, a pedir-lhes água e terra. A Esparta e Atenas não os enviou, porque os enviados de seu pai, Dario que lá tinha ido fazer igual pedido, tinham-nos os espartanos e atenienses lançado em covas e outros em poços, dizendo-lhes que tirassem terra e água à vontade e que fossem levá-la a seu príncipe.

Nenhum daqueles povos tolerava que, sequer por palavras, alguém lhes tocasse na liberdade.

Por assim terem feito, viram os espartanos que tinham incorrido no ódio dos próprios deuses, especialmente no de Taltíbio, deus dos arautos.

Para os apaziguarem, mandaram a Xerxes dois cidadãos, para que fossem à presença dele e ele os tratasse como lhe aprouvesse, tirando assim a desforra dos embaixadores que seu pai enviara e tinham sido mortos. Dois espartanos, um de nome Specto e outro Bulis, ofereceram-se voluntariamente para esta missão.

Foram e, pelo caminho, entraram no palácio de um persa chamado Gidarno, lugar-tenente do rei em todas as cidades do litoral da Ásia. Este os recebeu com muita honraria. E como fossem conversando sobre vários assuntos, perguntou-lhes que motivos tinham para recusarem a amizade do rei.

“Podeis crer, espartanos (dizia-lhes), juro-vos que o rei sabe honrar quem o merece e, se vos tornardes seus súditos, vereis que assim é. Se aceitardes e ele vos conhecer, vereis como será cada um de vós nomeado imediatamente senhor de uma cidade da Grécia.”

Ao que lhe responderam os lacedemônios:

“Ruim conselho é o que nos dás, Gidarno. O bem que nos prometes, já o experimentaste, mas nada sabes do que nós já possuímos; gozas do favor do rei, mas nada sabes da liberdade, do gosto que ela tem, da sua doçura. Se a conhecesses, havias de nos aconselhar a defendê-la, não só com lança e escudo, mas até com unhas e dentes.”

O espartano é que tinha razão; mas um e outro falavam de acordo com o que tinham aprendido.

Não era possível ao persa avaliar a liberdade, pois nunca a tivera, nem ao lacedemônio aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da liberdade.

Catão de Útica, quando era ainda menino de escola, entrava muitas vezes na casa do ditador Sila cujas portas lhe estavam abertas, não só por pertencer a uma família nobre, como até por ser parente próximo de Sila.

Acompanhava-o sempre o preceptor, como era costume entre os filhos de boas famílias.

Deu ele então conta de que em casa de Sila, na presença deste ou por sua ordem, muitos cidadãos eram presos e condenados, eram uns banidos e outros estrangulados, decretava-se a confiscação dos bens e era perdida a cabeça de muitos.

Ou seja, mais parecia o paço do tirano do que a morada do governador da cidade, era menos um tribunal de justiça do que uma espelunca da tirania.

Perguntou o nobre infante ao preceptor:

“Dar-me-eis um punhal? Metê-lo-ei sob a toga e, como entro muitas vezes nos aposentos de Sila, antes de ele acordar, o meu braço há de ter força suficiente para libertar o povo.”

Este é um dito digno de Catão. Assim já se revelava digno da morte que teve.

Mas se porventura a história não referisse o nome dele nem o local, seria facílimo adivinhar que se trata de um romano e natural de Roma, da verdadeira Roma, quando ela era livre.

Mas para que dizer mais? Em boa verdade não creio que o país ou a terra importem muito. Em todos os países, em todos os climas, sabe mal a sujeição e é gostosa a liberdade.

Dignos de dó são os que nasceram com a canga no pescoço.

Devem ser desculpados e perdoados, pois, nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém lha tendo mostrado, não sabem como é mal serem escravos.

Há países em que o Sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados: depois de brilhar durante seis meses seguidos, deixa-os ficar mergulhados na escuridão, nunca os visitando no meio do ano; se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia, seria de espantar que eles se habituassem às trevas em que nasceram e nunca desejassem a luz?

Nunca se lastima o que não se conhece, só se tem desgosto depois de ter gozado o prazer, depois de se ter conhecido o bem e se recordar a alegria passada.

É natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá.

Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam.

Afirmam que sempre viveram na sujeição, que já os pais assim tinham vivido. Pensam que são obrigados a usar freio, provam-no com exemplos e com o fato de há muito serem propriedade daqueles que os tiranizam.

Mas a verdade é que os anos não dão o direito de se praticar o mal, antes agravam a injúria.

Sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras, que sentem o peso do jugo e não evitam sacudi-lo, almas que nunca se acostumam à sujeição e que, à imitação de Ulisses, o qual por mar e terra procurava avistar o fumo de sua casa, nunca se esquecem dos seus privilégios naturais, nem dos antepassados e de sua antiga condição.

São esses dotados de claro entendimento e espírito clarividente; não se limitam, como o vulgo, a olhar só para o que têm adiante dos pés, olham também para trás e para frente e, estudando bem as coisas passadas, conhecem melhor o futuro e o presente.

Além de terem um espírito bem formado, tudo fazem para aperfeiçoá-lo pelo estudo e pelo saber.

Esses, ainda quando a liberdade se perdesse por completo e desaparecesse para sempre do mundo, não deixariam de imaginá-la, de senti-la e saboreá-la; para eles, a servidão, por muito bem disfarçada que lhes aparecesse, nunca seria coisa boa.

O Grão-Turco teve perfeita consciência de que os livros e a doutrina, mais do que qualquer outra coisa, dão aos homens a capacidade de se conhecerem e de odiarem a tirania. Sabe-se que nas suas terras não há mais sábios do que os que lhe convém a ele.

Acontece que o zelo e a dedicação dos que, apesar de tudo, prezam a liberdade, não têm efeito algum, pois, mesmo que sejam em grande número, não se podem conhecer uns aos outros.

A tirania subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar.

Têm de guardar só para eles as suas fantasias. Razão tinha Momo para zombar, quando censurou o homem forjado por Vulcano, por não lhe ter feito no coração uma janela através da qual pudessem ser vistos os seus pensamentos.

É sabido que Brutus e Cássio, ao planejarem a libertação de Roma, ou antes, do mundo inteiro, não quiseram que Cícero, o maior zelador do bem público, entrasse na conspiração; julgaram que tinha um coração demasiado débil para tal façanha, confiavam na vontade dele, mas não estavam muito seguros da sua coragem. Quem estudar os efeitos da antiguidade e as velhas crônicas descobrirá que, vendo-se o país mal governado e maltratado, e tomando-se a decisão firme de libertá-lo, poucos ou nenhum deixaram de consegui-lo; tiveram nisso a ajuda da própria liberdade, ansiosa por renascer.

Harmódio, Aristogíton, Trasíbulo, Brutus-o-Velho, Valério e Díon executaram cabalmente o que valorosamente planejaram. Em casos assim, a sorte quase nunca falta a quem quer o bem. O jovem Brutus e Cássio derrubaram a servidão e repuseram a liberdade, tendo por isso morrido, mas não desonrosamente. Desonroso seria dizer que foi desonrosa a vida ou a morte desses jovens. Tristeza e desgraça foram a ruína da república que viria a ser enterrada com eles. As conjuras que depois houve contra os imperadores romanos foram todas atos de gente ambiciosa e não devemos lamentar as derrotas que sofreram; era evidente que não queriam derrubar mas arruinar a coroa, pretendiam expulsar o tirano e manter a tirania. Não é para mim desejável que eles tivessem triunfado e apraz-me que, pelo exemplo, tenham mostrado como não se deve abusar do sagrado nome da liberdade para levar a cabo ruins empreendimentos.

Mas, voltando ao assunto principal de que me afastei: a primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão.

A esta soma-se outra que é a de, sob a tirania, os homens se tornarem covardes e efeminados.

Nisso concordo com Hipócrates, pai da medicina, que assim afirmou e escreveu num de seus livros, intitulado Das Doenças.

Este homem tinha o coração no lugar e bem o demonstrou quando o rei quis atraí-lo para junto de si, com muitas dádivas e oferendas; respondeu-lhe francamente que teria muitos escrúpulos em tratar e curar os bárbaros que queriam matar os gregos e de pôr a sua arte a serviço de um rei que pretendia escravizar a Grécia.

A carta que lhe mandou pode ainda hoje ver-se entre as suas outras obras e constituirá para todo o sempre uma prova do seu bom coração e de sua natureza nobre.

Com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a valentia.

As pessoas escravizadas não mostram no combate qualquer ousadia ou intrepidez.

Vão para o castigo como que manietadas e entorpecidas, como quem vai cumprir uma obrigação.

E não sentem arder no coração o fogo da liberdade que faz desprezar o perigo e dá ganas de comprar com a morte, ao lado dos companheiros, a honra da glória.

Entre homens livres, todos disputam invejosamente quem há de ser o primeiro a servir o bem comum; todos desejam ter o seu quinhão no mal da derrota ou no bem da vitória. Mas as pessoas escravizadas, além desta falta de valor na guerra, perdem também a energia em todo o resto, têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações.

Os tiranos o sabem e, à vista deste vício, tudo fazem para piorá-lo.

Xenofonte, historiador grave e da melhor cepa entre os gregos, em um livro fez Simônides falar com Hierão, rei de Siracusa, sobre as misérias dos tiranos.

É um livro eivado de bons costumes e graves argumentos e, a meu ver, escrito com muita graça. Bom seria que todos os tiranos que já houve pusessem diante dos olhos e dele se servissem como de um espelho.

Não creio que deixassem de ver nele todas as suas verrugas e não se envergonhassem de todas as suas manchas.

Conta no referido tratado o tormento por que passam os tiranos que, por fazerem mal a todos, a todos devem temer.

Diz entre outras coisas que os maus reis recorrem a estrangeiros para fazerem a guerra, subornam-nos e não se atrevem a meter armas nas mãos dos próprios súditos a quem ofenderam.

Reis houve, alguns até franceses, mais outrora do que nos dias de hoje, que contrataram para a guerra mais de uma nação estrangeira, com intenção de preservarem os seus, por acharem que não era perdido o dinheiro gasto em defesa das pessoas.

Era o que dizia Cipião (o grande Africano, julgo) para quem valia mais defender a vida de um cidadão do que desbaratar cem inimigos.

Mas não há dúvida alguma de que o tirano se julga absolutamente seguro e só se preocupa quando percebe que já não tem a seu serviço um único homem de valor.

Com razão se lhe poderá dizer nessa altura o que Trasão, em Terêncio, se glorific

a de ter dito ao domador de elefantes:

Tão bravo vos hei mostrado
Que sois das bestas criado.

Mas esse estratagema com que os tiranos humilham os súditos está, mais do que em qualquer outro lado, explicitado no que Ciro fez aos lídios, depois de se ter apoderado de Sardes, capital da Lídia, quando aprisionou o riquíssimo rei Creso e o levou cativo. Trouxeram-lhe a notícia de que os de Sardes se tinham revoltado. Ter-lhe-ia sido fácil dominá-los.

Não desejando saquear uma tão bela cidade nem querendo destacar para lá um exército que a vigiasse, recorreu a um outro expediente. Fundou nela bordéis, tabernas e jogos públicos e publicou um decreto que obrigava os habitantes a frequentá-los.

Tão bons resultados teve esta guarnição que foi desnecessário daí em diante levantar a espada contra os lídios. Os desgraçados divertiram-se a inventar toda a casta de jogos, de tal forma que a palavra latina usada para significar “passatempos” é a palavra “ludi”, que vem de “Lydi”, lídios.

Nem todos os tiranos foram tão explícitos no seu desejo de efeminarem os homens, mas o que este ordenou formalmente foi, em grande parte, realizado de forma velada.

É muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de quem o estima e ser ingênuo para com aqueles que o enganam.

Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante.

É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas.

Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, preço da liberdade, instrumentos da tirania.

Deste meio, desta prática, destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súditos sob o jugo. Os povos, assim ludibriados, achavam bonitos estes passatempos, divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade igual, se bem que mais nociva, à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras coloridas dos livros iluminados.

Os tiranos romanos decretaram também na celebração frequente das decenárias públicas, para as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca.

Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão.

Os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio. E os vivas ao rei eram então coisa triste de ouvir.

Não davam conta, os néscios, de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano dar-lhes coisa que não lhes tivesse furtado antes.

O que hoje ganhava o sestércio, o que se fartava de comer no festim público, louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero, era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avareza, os filhos da luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores, e fazia-o sem dizer palavra, mudo como uma pedra, quedo como um cepo.

O povo sempre foi assim.

É perante o prazer que honestamente não pode atingir, aberto e dissoluto e, face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer, insensível.

Não sei hoje em dia de pessoa alguma que, ao ouvir falar de Nero, não trema só com o nome de tão vil monstro, de tão hedionda e imunda besta. Pode, porém, dizer-se que após a sua morte, vil tanto quanto foi a sua vida, o povo romano ficou com tanta pena (por se lembrar dos seus jogos e festins) que pouco faltou para vestir luto. Assim o escreveu Cornélio Tácito, autor dos melhores e mais graves, e só pode estranhar o fato quem não conheça bem o que o povo fez após a morte de Júlio César, que tinha abolido as leis e a liberdade.

Achavam que era um homem sem valor (creio), mas louvaram muito a sua humanidade que afinal foi tão nociva como a crueldade mais selvagem de todos os tiranos.

Em boa verdade, a sua peçonhenta doçura serviu só para adoçar a servidão que impôs ao povo romano.

Mas, depois de morto, o dito povo, que tinha ainda na boca o sabor dos banquetes e a recordação das suas prodigalidades, queimou, para honrá-lo e incinerá-lo, todos os bancos da praça, edificou-lhe uma coluna, como a um verdadeiro pai do povo (assim rezava a inscrição no capitel), e prestou-lhe mais honrarias, após a morte, do que a qualquer outro homem, à exceção talvez dos que o mataram.

Os imperadores romanos não deixavam de tomar sempre o título de tribuno do povo, seja porque seu cargo era tido na conta de santo e sagrado, seja porque havia sido estabelecido para se defenderem do povo e estarem sob o favor do estado.

Deste modo tinham por certo que o povo lhes daria toda a confiança, tendo em maior consideração o título do que os atos deles.

Não procedem melhor hoje em dia os que sempre que cometem aleivosias, incluindo as mais graves, fazem-nas acompanhar de discursos sobre o bem comum e a utilidade pública.

Não ignoras, Longa, os considerandos de que habilmente eles costumam lançar mão. Mas na maioria das vezes não há habilidade que chegue para cobrir tanto despudor.

Os reis assírios, e depois deles os medos, só apareciam em público o mais tarde possível, ao anoitecer, para a populaça julgar que eles tinham algo de sobre-humano, assim iludindo as gentes propensas ao devaneio e amigas de imaginar aquilo que não vêem claramente visto.

Foi assim que as nações que durante longos anos pertenceram ao império sírio se habituaram, com tal mistério, a servir e serviam tanto mais quanto não sabiam quem era o soberano; e todos o respeitavam e temiam, sem nenhum deles o ter visto.

Os primeiros reis do Egito, esses nunca se mostravam em público sem levarem um ramo ou uma luz na cabeça e mascaravam-se como saltimbancos, coisa tão estranha de ver que os súditos se enchiam de respeito e veneração por eles; e havia gente tão doida e tão submissa que se prestava a tal comédia em vez de com ela se rir. Faz pena ouvir comentar as artimanhas a que os tiranos de antigamente recorriam para consolidarem as suas tiranias e o modo como de coisas somenos tiravam grande partido.

Tinham compreendido ser possível fazerem o que quisessem de um povo que se deixava apanhar na rede, por muito frágil que ela fosse, um povo tão fácil de enganar e submeter que quanto mais dele zombavam mais se rebaixava.

E que direi daquela outra patranha a que os povos antigos sempre deram grande crédito? Acreditaram, de fato, que o dedo grande do pé de Pirro, rei dos epirotas, fazia milagres e curava as doenças do baço.

Acreditavam na lenda de que o dito dedo, após a cremação do corpo de Pirro, ficaria inteiro no meio das cinzas.

Era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava. Muitos assim o escreveram e, pelo modo como o fizeram, é patente que se limitaram a reunir o que ouviam dizer nas cidades entre o povo miúdo.

Vespasiano, no regresso da Assíria, passando por Alexandria a caminho de Roma, para tomar o governo do Império, teria realizado muitos milagres.

Punha os coxos a andar, dava vista aos cegos e obrava muitas outras façanhas em que só podia acreditar quem fosse mais cego do que aqueles a quem pretensamente curava.

Até os mesmos tiranos se espantavam com a forma como os homens podem suportar um homem que lhes faz mal; utilizavam por isso o disfarce da religião e, se possível, tomavam o aspecto de certas divindades, disso se servindo para protegerem a má vida que levavam.

Se dermos credo à Sibila de Virgílio e à sua descrição do inferno, Salmoneu, por ter zombado dos deuses e vestido a indumentária de Júpiter, está agora no fundo do inferno a receber o castigo que merece:

… As penas vi cruéis e penetrantes
De Salmoneu soberbo, que tanto erra,
De Júpiter Tonante o raio horrendo
E do Olimpo os trovões contrafazendo.

De quatro frisões este conduzido
Uma tocha acendida meneando,
Pelos povos de Grécia ia atrevido,
E pelo meio de Elides triunfando.
O culto aos altos deuses só devido
Pedia: mentecapto, que rodando
Pela ponte no coche miserável,
Fingia a chuva e o raio imitável.

Mas de uma nuvem densa um raio horrendo,
Vibrando irado, o padre onipotente
O derrubou com ímpeto tremendo,
Não com fumoso raio ou tocha ardente…
[Eneida, Virgílio, Cap. VI]

Se este, cujo crime foi fazer de tolo, padece hoje tais tormentos no inferno, é de crer que merecem muito pior os que abusaram da religião para fins ruins.

Os nossos semearam pela França sapos, flores de lis, a ampola e a oriflama. Pela parte que mais me cabe, não ponho em dúvida que os nossos foram maiores e nós não temos razão de queixa, pois sempre tivemos reis bons em tempo de paz, valorosos na guerra, reis que, embora sendo-o de nascença, parecem ter sido não criados pela natureza, como os outros, mas eleitos por Deus Todo-poderoso, antes de tomarem nas mãos as rédeas do governo e a guarda do reino.

Ainda que assim não fosse, não poria em dúvida a verdade contada pelas nossas histórias, nem as discutiria com vistas a rebaixar a nossa bela nação e deslustrar a nossa poesia francesa, a qual, mais do que remoçada, está hoje completamente renovada graças aos nossos Ronsard, Baïf e Du Bellay, que fizeram evoluir a nossa língua a pontos (ouso esperá-lo) de os gregos e latinos não serem em nada superiores, a não ser quiçá no direito de antiguidade.

E seria da minha parte grande ofensa à nossa métrica (uso de boa mente a palavra e não me desagrada) que, tornada embora por muitos mecânica, tem muita gente capaz de enobrecê-la e de restituí-la à sua honra primitiva, seria, digo, grande ofensa, subtrair-lhe os belos contos do rei Clóvis, nos quais julgo ver despontar fácil e elegantemente a veia do nosso Ronsard e da sua Francíada. Pressinto o seu alcance, reconheço-lhe a graça e finura de espírito. Tem arte para fazer da oriflama o que os romanos fizeram das ancilas, como diz Virgílio: “E os escudos do céu jazendo em terra”. Erguerá a nossa ampola tanto quanto os atenienses o cesto de Eríctono; e as nossas armas serão faladas tanto quanto o foi a oliveira que ainda hoje se encontra na torre de Minerva. Seria de fato ultrajante renegar os nossos livros e desdizer os nossos poetas.

Mas voltando ao assunto de que sem querer me afastei, quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança, habituar o povo não só à obediência e à servidão, mas até à devoção? Tudo, pois, o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplica-se apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida.

Passarei agora a um ponto que, a meu ver, constitui o segredo e a mola da dominação: o apoio e o alicerce da tirania.

Quem pensar que as alabardas dos guardas e das sentinelas protegem o tirano, está, na minha opinião, muito enganado; usam-nos, creio, mais por formalidade e como espantalho do que por lhes merecerem a confiança.

Os arqueiros vedam a entrada no paço aos pouco hábeis, aos que não têm meios, não aos bem armados e aos façanhudos.

Dos imperadores romanos se pode dizer que foram menos os que escaparam de qualquer perigo por intervenção dos arqueiros do que os que pelos próprios guardas foram mortos.

Não são as hordas de soldados a cavalo, não são as companhias de soldados peões, não são as armas que defendem o tirano.

Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão.

Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros.

Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano; tal como em Homero, Júpiter se gloria de que, puxando a corda, todos os deuses virão atrás.

Tal cadeia está na origem do crescimento do Senado no tempo de Júlio, do estabelecimento de novos cargos e das eleições de ofícios, que não são de modo algum uma reforma na justiça, mas novo apoio à tirania.

E, pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem chega-se a isto: são quase tantas pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade.

Dizem os médicos que, havendo no nosso corpo uma parte afetada, é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos; da mesma forma, quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum), os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para apoiarem-no, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano.

É o caso dos grandes ladrões e corsários famosos. Há uns que exploram o país e assaltam os viajantes; estão uns de emboscada e outros à espreita; uns chacinam, outros saqueiam e, havendo muito embora alguns mais proeminentes, uns que são criados e outros chefes de bando, todos afinal se sentem donos, senão do espólio principal, pelo menos de parte dele.

Conta-se que os piratas sicilianos não só se juntaram em tão grande número que foi mister enviar contra eles Pompeu Magno, como também conseguiram estabelecer alianças com algumas belas cidades e grandes praças fortes em cujos portos ancoravam com toda a segurança, no regresso do corso, dando-lhes em recompensa uma parte dos bens que rapinavam.

O tirano submete a uns por intermédio dos outros.

É assim protegido por aqueles que, se algo valessem, antes devia recear, e dá razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha.

Vejam-se os arqueiros, os guardas e porta-estandartes que do tirano recebem não poucos agravos.

Mas os desgraçados, banidos por Deus e pelos homens, suportam de boa mente o mal e descarregam depois esse mal não naquele que os maltrata, mas nos que são como ele maltratados e não têm defesa.

À vista dos que servilmente giram em redor do tirano, a executar as suas tiranias e a oprimir o povo, fico muitas vezes espantado com a maldade deles e sinto igualmente pena de tanta estupidez.

Porque, em boa verdade, o que fazem eles, ao acercarem-se do tirano, senão afastarem-se da liberdade, darem (por assim dizer) ambas as mãos à servidão e abraçarem a escravatura?

Ponham eles algum freio à ambição, renunciem um pouco à avareza, olhem depois para si próprios, vejam-se bem e perceberão claramente que os camponeses, os servos que eles espezinham e tratam como escravos são em comparação com eles, livres e felizes.

O camponês e o artesão, embora servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam quites.

Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos.

Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu.

Têm de se acautelar com o que dizem, com as mínimas palavras, os mínimos gestos, com o modo como olham; não têm olhos, nem pés, nem mãos, têm de consagrar tudo ao trabalho de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano.

Será isto viver feliz? Será isto vida? Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto? Não me refiro sequer a homens bem nascidos, mas sim a quem tenha o sentido do bem comum ou, para mais não dizer, cara de homem. Haverá condição mais miserável do que viver assim, sem ter nada de seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida?

Fazem tudo o que fazem para ganharem fortuna…

Como se pudessem ganhar alguma coisa de seu, quando da sua própria pessoa não podem dizer que seja sua.

Como se fosse possível, na presença do tirano, alguém possuir o que quer que seja, eles fazem tudo para acumularem riquezas e não se lembram de que são eles que lhe dão a força para roubar tudo a todos, não deixando a ninguém nada de seu.

Vêem que é o ter que mais sujeita os homens à crueldade, que não há para o tirano crime mais digno de morte do que a posse de quaisquer bens; que ele só quer possuir riquezas, que rouba aos ricos que se apresentam diante dele como num matadouro, para que ele os veja bem recheados e ornados e deles tenha inveja.

Estes favoritos deveriam lembrar-se menos dos poucos que no convívio com o tirano ganharam fortunas do que dos muitos que, tendo acumulado assim alguns haveres, acabaram por perder os bens e a vida.

Bom será pensar que, se alguns poucos ganharam riquezas, pouquíssimos foram os que as conservaram.

Percorreram-se as histórias antigas, pense-se nas de fresca data e se verá claramente quão grande é o número dos que, ganhando as boas graças dos príncipes com falsidades e tendo recorrido à maldade ou abusado da simplicidade deles, acabaram por ser aniquilados pelos mesmos príncipes, os quais, tão facilmente quanto os tinham elevado, viram que não podiam conservá-los.

Entre o grande número de pessoas que algum dia viveram nas cortes dos maus reis, poucos ou nenhum escaparam de sentir em si a crueldade do tirano a quem tinham acirrado contra os outros.

Tendo o mais das vezes enriquecido, à custa da proteção deles, com os despojos dos outros, foram eles que depois enriqueceram os outros com seus próprios despojos.

As próprias pessoas de bem, se acaso as há ao redor do tirano e gozam das suas graças, enquanto nelas brilha a virtude e a integridade, que, vistas de perto, até aos maus inspiram respeito, essas pessoas de bem não ficarão muito tempo sem perceber o mal que os outros sofrem e aprenderão às suas custas os malefícios da tirania.

Sêneca, Burro, Trázeas, esse trio de pessoas de bem que tiveram a pouca sorte de viver perto do tirano e a missão de tratar dos seus negócios, foram todos por ele estimados e benquistos; um deles fora seu preceptor e tinha como penhor da amizade e educação que lhe dera; ora todos eles testemunharam pela sua morte cruel quão pouca confiança merecem os tiranos.

Que amizade, afinal, pode esperar-se daquele cujo coração é tão duro que odeia o próprio reino que em tudo lhe obedece? Que, por não conseguir fazer-se amar, se empobrece e destrói seu império?

Poderá dizer-se que todos os que referi, incorreram em grandes desgraças, por terem sido virtuosos; mas olhemos também para o resto do séquito do tirano e veremos que todos quantos obtiveram os seus favores e os mantiveram por maldade acabaram por não durar muito.

Onde se ouviu falar de amor mais dedicado, de afeto mais duradouro, onde é que já se viu homem mais obstinadamente preso a uma mulher do que ele estava a Pompéia, a quem afinal envenenou?

Agripina, mãe de Nero, matara o marido Cláudio para por o filho no trono. Fez-lhe todas as vontades, não se poupou a trabalhos para lhe agradar. Ora foi esse mesmo filho por ela gerado e feito imperador, foi ele que, depois de muitas vezes, debalde, o tentar, acabou por lhe tirar a vida; e ninguém depois diria que ela não mereceu esse castigo, mas a opinião geral é que devia tê-lo recebido das mãos de outrem e não daquele que lho infligiu.

Onde houve já homem mais fácil de manobrar, mais simples, digamos até mais ingênuo do que o Imperador Cláudio? Quem se apaixonou algum dia por uma mulher mais do que ele por Messalina? Nem por isso deixou de entregá-la ao carrasco. A simplicidade é uma crueldade de todos os tiranos: tanto que todos ignoram o que seja praticar o bem. Mas, não sei como, chega sempre o dia em que usam de crueldade para com os que os rodeiam e a pouca inteligência que possuem desperta de imediato.

É bem conhecida a palavra daquele que, vendo a descoberto o colo da mulher amada, sem a qual parecia não poder viver, a acariciou, dizendo: este belo pescoço, logo que eu o ordene, pode ser cortado.

Por isso é que a maior parte dos antigos tiranos eram geralmente mortos pelos seus favoritos, os quais, uma vez conhecida a natureza da tirania, perdiam toda a fé na vontade do tirano e desconfiavam do seu poder.

Assim foi que Domiciano morreu às mãos de Estevão, Cômodo assassinado por uma das suas amantes, Antonino por Macrino, e o mesmo aconteceu com quase todos os outros.

A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama.

A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade.

O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância.

Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apoiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.

Ainda que assim não fosse, havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme. É que, estando ele acima de todos e não tendo companheiros, situa-se para lá de todas as raias da amizade, a qual tem seu alvo na equidade, não aceita a superioridade, antes quer que todos sejam iguais.

Por isso é que entre os ladrões reina a maior confiança, no dividir do que roubaram; todos são pares e companheiros e, se não se amam, temem-se pelo menos uns aos outros e não querem, desunindo-se, tornar-se mais fracos.

Quanto ao tirano, nem os próprios favoritos podem ter confiança nele, pois aprenderam por si que ele pode tudo, que não há direitos nem deveres a que esteja obrigado, a sua única lei é a sua vontade, não é companheiro de ninguém, antes é senhor de todos. Quão dignos de piedade, portanto, são aqueles que, perante exemplos tão evidentes, face a um perigo tão iminente, não aprendem com o que outros já sofreram!

Como pode haver tanta gente que gosta de conviver com os tiranos e que nem um só tenha inteligência e ousadia que bastem para lhes dizer o que (no dizer do conto) a raposa respondeu ao leão que se fingia doente:

“De boa mente entraria no teu covil; mas só vejo pegadas de bichos que entram e nenhuma dos que dele tenham saído.”

Esses desgraçados só vêem o brilho dos tesouros do tirano e ficam olhando espantados para o fulgor das suas suntuosidades, deslumbrados com tanto esplendor; aproximam-se e não vêem que estão a atirar-se para o meio de uma fogueira que não tardará a consumi-los. O Sátiro indiscreto (reza a fábula), ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu, achou-o tão belo que foi beijá-lo e se queimou.

A borboleta que, esperando encontrar algum prazer, se atira ao fogo, vendo-o luzir, acaba por ser vítima de uma outra qualidade que o fogo tem: a de tudo queimar (diz o poeta lucano).

Vamos admitir que os favoritos consigam escapar às mãos daqueles a quem servem. Não escaparão do rei que vier depois. Se for bom, tudo fará para pedir contas e repor a justiça. Se for mau e semelhante ao que eles serviram, há de ter os seus favoritos que, evidentemente, além de pretenderem ocupar o lugar dos outros, hão de querer também os bens e as vidas deles.

Assim sendo, como pode haver alguém que, no meio de tantos perigos, de tanta insegurança, queira ocupar tão desgraçada posição e servir com tal risco tão perigoso amo?

Que tormento, que martírio este, Deus meu: viver dia e noite a pensar em ser agradável a alguém e, ao mesmo tempo, temê-lo mais do que a qualquer homem!

Que tormento estar sempre de olho à espreita, de ouvido a escuta, a espiar de onde virá o golpe, para descobrir embustes, examinando sempre as feições dos companheiros, a ver se descobre quem o trai, rindo-se para todos, receando-os a todos, não tendo inimigo declarado nem amigo certo!

Que tormento fazer sempre rosto risonho, tendo o coração transido, não poder mostrar-se contente e não se atrever a ser triste!

Aprazível é considerar o que eles ganham com tanto tormento, o que podem esperar dos trabalhos que passam e da mísera vida que levam.

O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano, mas os que o aconselham: os povos, as nações, toda a gente, incluindo os camponeses e os lavradores, todos sabem os nomes deles e os respectivos vícios; sobre eles lançam mil ultrajes, mil vilanias, mil maldições. Todas as suas orações e votos são contra eles. Todas as desgraças, todas as pestes, todas as fomes lhes são atribuídas e, se às vezes, exteriormente, lhes tributam algum respeito, não deixam de amaldiçoá-lo no mais fundo do coração, têm por eles um horror maior do que têm aos animais ferozes.

Tal é a honra, tal é a glória que recebem em paga dos serviços que prestam aos povos, os quais nunca se darão por saciados e compensados do que sofreram, ainda que por eles repartissem o corpo em pedaços.

Mesmo depois de morrerem, os que ficam tudo farão para que o nome de Come-Gente lhes seja atribuído e manchado pela tinta de mil penas, e a sua reputação desfeita em milhares de livros, e os próprios ossos, a bem dizer, pisados pelos vindouros que assim castigam depois de mortos os que tiveram vida ruim.

Aprendamos com estes exemplos, aprendamos a fazer o bem.

Ergamos os olhos para o Céu, seja por amor da nossa honra, seja pelo amor da própria virtude, olhemos para Deus Todo-poderoso, testemunha certa de nossos atos e justo juiz de nossas faltas.

De minha parte, penso, e não me engano, que nada há de mais contrário a um Deus liberal e bondoso, do que a tirania e que ele reserva aos tiranos e seus cúmplices um castigo especial.

Autor: Étienne de La Boétie

Fonte: eBooksBrasil

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Sorteio literário

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Sorteio literário do blog O Ponto Dentro do Círculo

Estimados apoiadores,

Finalizada a enquete para a seleção dos livros de nosso sorteio literário, foram escolhidos os dois títulos abaixo:

No dia 31 de julho faremos, em uma live em nossa página no Instagram (@opontodentrodocirculo), o sorteio do livro A Viagem Iniciática ou 33 graus da sabedoria entre os apoiadores Apaixonados pelo blogEntre os Fanáticos pelo blog, o ganhador levará os dois títulos.

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Fraternalmente,

Luiz Marcelo Viegas

Sorteio de livros entre os apoiadores do blog

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Estimados leitores,

No próximo dia 31 realizaremos o sorteio literário entre nossos colaboradores no Apoia.se. Dê seu voto na enquete abaixo e ajude a escolher quais os livros serão sorteados. Leia a sinopse de cada título para ajudar na sua escolha.

Estarão elegíveis a participar do sorteio os colaboradores que, até o dia 31/07, tiverem alcançado o valor mínimo que consta na descrição das recompensas de cada categoria. O livro que receber mais votos será sorteado entre os apoiadores Apaixonados pelo blog. Já entre os Fanáticos pelo blog serão sorteados os dois mais votados.

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Joab, filho órfão de um soldado fenício, sem compreender por que é guindado por seu tio Jubal, o coxo, a uma posição invejável entre os comerciantes de Tiro. Buscando um deus que possa chamar de seu, se vê enredado na armadilha de um destino artificialmente criado, e acaba por encontrar como único refúgio a cidade de Jerusalém, onde trabalha como operário na construção do Templo de Salomão. Johaben: Diário de um construtor do Templo, livro de estreia de Zé Rodrix, é um romance histórico que tem por foco central o Templo de Yahweh em Jerusalém, cuja construção se tornou símbolo essencial de todo o esoterismo ocidental. Os personagens históricos e bíblicos se sucedem, à medida em que a história avança, em uma narrativa tão aventuresca quanto densa, mergulhando profundamente nas paisagens e nas almas desse pedaço de Humanidade ainda sem rumo definido. A busca de Joab por um sentido para sua vida se mistura com a estruturação original do povo israelita, durante a qual podemos privar da intimidade do Rei Salomão e conhecer o segredo da Pedra, semente das irmandades de pedreiros-livres que se sucederam no mundo deste momento em diante. Uma nova e rica visão de um dos mais importantes momentos da história da Humanidade dá ao mesmo tempo uma nova importância, seguimos a trilha de Joab na descoberta de tudo que o fará ser, além de conhecedor do segredo da Pedra, um verdadeiro homem.

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A sabedoria através de um passeio pela Catedral de Metz. As esculturas romanas trazem ao homem uma mensagem espiritual. As da catedral de Metz ilustram os 33 graus da Sabedoria que levam ao conhecimento. Da semente ao fruto, da árvore seca à árvore florida, o caminho é longo e, muitas vezes, perigoso. Contudo, passando por provas e desafios, ele conduz ao autoconhecimento e à realização. Neste livro em forma de depoimento, ao relatar uma iniciação vivida nos dias de hoje no Ocidente, Christian Jacq nos convida para um encontro mágico – num belo e frio dia de inverno, com um autêntico Mestre de Obras do século XX – e nos mostra a espiritualidade eterna na sua forma medieval. Além da transmissão de um ritual e de seus valores iniciáticos, o objetivo final é a sensatez, a plenitude e a harmonia que todos buscamos em nós mesmos e ao nosso redor.

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Em Notre-Dame, Ken Follett reflete sobre o papel que a catedral desempenhou ao longo do tempo e revela a influência que ela exerceu tanto em outras catedrais ao redor do mundo quanto em um de seus mais conhecidos e adorados romances, Os Pilares da Terra. Ele descreve, também, as emoções que sentiu ao saber do incêndio que quase destruiu uma das maiores catedrais do mundo: “A magnífica Catedral de Notre-Dame de Paris, uma das maiores realizações da civilização europeia, estava em chamas. Aquela visão nos deixou estupefatos e profundamente perturbados. Fiquei à beira das lágrimas. Algo inestimável estava morrendo diante dos nossos olhos. Era uma sensação desconcertante, como se a terra estivesse tremendo.”

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Nesta obra, o autor pretende trazer os elementos místicos e suas origens que contribuíram para a fundamentação das bases da Maçonaria Moderna. Através de uma leitura das civilizações da Antiguidade, procura apresentar os fundamentos místicos dos povos e culturas que influenciariam a formação das bases filosóficas da Maçonaria mundial.

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Esta obra é composta de 25 ensaios sobre filosofia e cultura maçônica. Procura tratar de temas como filosofia, a procura de um Ser Superior, os valores e a cultura maçônica, direitos e rituais maçônicos, fraternidade e beneficência, ética, o Rito Brasileiro e o Rito Britânico, chamado no Brasil de Rito de York, e as três vertentes da Maçonaria.

 

Uma abordagem ao percurso inicial da Maçonaria especulativa

Notícias Filhos do Arquiteto ✡: MAÇONARIA - OS 33 GRAUS DO RITO ...

Preâmbulo

As notas que vos apresento tiveram a sua gênese nas dúvidas que nos foram surgindo no que respeita quer à eventual “passagem de testemunho” da maçonaria operativa para a especulativa, quer aos reais motivos que terão estado por trás da constituição da Grande Loja de Londres em 1717, considerada como o marco fundacional da moderna maçonaria especulativa.

À medida que ia consultando diferente documentação, uma leitura mais atenta de alguns estudos e livros referidos na Bibliografia, foi importante para obter uma nova perspectiva de um dos capítulos mais interessantes da historiografia maçônica, alvo de diversas interpretações históricas de consistência variável, consoante os círculos maçônicos e os objetivos e tendências que perseguem.

Ficou mais claro para nós que a moderna maçonaria tem inequívocas raízes escocesas, que a partir do Norte influenciaram a Inglaterra e a Irlanda, sendo que os ingleses, através da criação da Grande Loja de Londres, vieram a recolher os louros da sua gênese. No entanto, a constituição da GLL traduziu também a intensa luta entre os blocos católico/stuartista e protestante/hanoveriano, que no fundo apoiavam duas concepções distintas da Maçonaria. As Lojas maçônicas foram utilizadas durante essa época para veículo dessa disputa, que se estendeu às terras francesas, iniciando a difusão da Maçonaria especulativa pelo continente europeu, com o exílio dos Stuarts.

Introdução

O fato de se questionar a eventual ausência de ligação direta entre a Maçonaria operativa e a especulativa, sendo uma “heresia” face às fontes tradicionais, não deixa de ser simultaneamente desafiador e estimulante. No entanto e independentemente da teoria seguida, restam poucas dúvidas de que a Maçonaria Especulativa se constituiu na Grã-Bretanha, no decurso do século XVII, em condições ainda incertas e historicamente muito pouco documentadas. No entanto quando procuramos evidências relativamente ao seu desenvolvimento, verificamos que são abundantes na Escócia e quase totalmente ausentes em Inglaterra.

Uma das primeiras abordagens diferenciadas das correntes tradicionalistas de grande parte dos historiadores ingleses do final do século XIX (Gould, Hughan e outros), é dada pelo trabalho de dois grandes historiadores ingleses da Maçonaria, Douglas Knoop (professor de Economia na Universidade de Sheffield e maçom) G. P. Jones (professor de História Econômica também em Sheffield, mas não maçom) nos finais dos anos trinta do século passado.

Contudo somente a partir de meados dos anos 70 começou a ser dada a devida atenção aos seus estudos e pesquisas. No prólogo da primeira edição da sua obra principal “The Genesis of Freemasonry”, salientam que:

“Embora tenha sido até agora habitual pensar a história da Maçonaria como uma questão totalmente à parte da história, justificando um tratamento especial, pensamos que se trata dum ramo da história social, do estudo de uma instituição social particular e das ideias que estruturam esta instituição, que se deve abordar e escrever exatamente da mesma forma que a história das outras instituições sociais.”

Esta abordagem tem vindo a ser seguida por alguns dos atuais historiadores e estudiosos maçônicos, como por exemplo R. Dachez e David Steveson, entre outros, que salientam que esta escolha incontornável está longe de ser unanimemente partilhada por numerosos autores que se “adaptam” às ocasiões da história maçônica, da mesma forma que a história de certas religiões e igrejas, tratada com objetividade, implica a contestação de alguns fiéis, que se recusam a olhar a sua história. Do mesmo modo, o que designa por “história laica da maçonaria” não alcança o espírito de todos os maçons, sendo um escolho que todo o historiador maçônico deverá estar consciente.

Esta corrente preconiza o caminho da aproximação “científica” (ou “autêntica”), segundo a qual uma teoria deve ser fundada a partir de fatos ou de documentos que a sustentem, por contraponto à aproximação “não autêntica” que se esforça por colocar a Maçonaria na tradição do Mistério, procurando, por um lado ligações entre os ensinamentos, as alegorias e o simbolismo e, por outro, as diversas tradições esotéricas (vide John Hamill – bibliotecário da Grande Loja Unida de Inglaterra, durante vários anos, na sua obra “The Craft. A history of English Freemasonry”).

Relativamente à gênese da maçonaria especulativa, a tese mais vulgarizada e partilhada quer pela esmagadora maioria da documentação maçônica, quer entre os Maçons, é a chamada teoria da “transição“, que preconiza a passagem gradual das Lojas operativas a especulativas, devido às transformações econômicas que levaram ao declínio das grandes construções, a partir dos finais do Renascimento.

Deste modo, indivíduos estranhos ao ofício, provenientes da nobreza ou com importantes cargos civis ou intelectuais de prestígio, movidos por interesses especulativos de base neo-platônica, alquimista ou Rosa-Cruz, teriam efetuado uma entrada progressiva nas lojas operativas em estado pré-moribundo, aproveitando as estruturas criadas e os rituais praticados, para desenvolverem os seus objetivos e tomarem o respectivo controle.

Quanto à constituição da Grande Loja de Londres, aprovada numa assembleia constituinte por 4 lojas existentes na cidade, em 24 de Junho (dia de S. João) de 1717, não terá sido provavelmente um ato criativo “espontâneo”, mas justificado por perspectivas politicas e sociais específicas, já que sempre nos pareceu de difícil sustentação histórica e social a teoria da espontaneidade, de per si.

As Lojas “antigas” da Escócia

Na sua obra principal The-Origins-of-Freemasonry-Scotland-s-Century-1590-1710, David Steveson, conclui que a contribuição medieval e renascentista, para a organização e história da Ordem, propiciou alguns dos ingredientes essenciais à formação da Maçonaria, mas o processo de combinação desses com outros ingredientes só ocorreu por volta de 1600 e teve lugar na Escócia .

É geralmente aceito pelos historiadores que os “Estatutos de Shaw”, no reino da Escócia, são o primeiro documento conhecido onde são lançadas as bases organizativas do sistema de Lojas da Maçonaria operativa, que veio posteriormente a servir de modelo à estrutura das Lojas especulativas.

Este documento resultou da reunião realizada em Edimburgo, em 28 dezembro de 1598, convocada e dirigida por William Shaw, Supervisor Geral dos Maçons e intendente das edificações do rei da Escócia, durante o reinado de James VI (James I da Inglaterra). Foi completado em 1599 por uma segunda série de regulamentos para dar solução à reivindicação da presença da Loja de Kilwinning. Estes estatutos consagravam a organização territorial das lojas por cidades e por regiões, impondo a eleição anual dos Oficiais.

São essencialmente regras práticas estabelecidas pelos mestres da corporação sediados em Edimburgo, tornadas mandatórias para todos os membros. Os dois primeiros artigos instruem e regulam a obediência, antecipando a iniciação maçônica, relativamente à qual não são dados detalhes, mencionando unicamente o juramento (“taking of the oath”) e a transmissão da “palavra de maçom” (“mason word”). O manuscrito conhecido como “Edinburgh Register House”, datado de 1695 explicita que o juramento é efetuado sobre a Bíblia e o candidato “jura por Deus”, S. João, o esquadro e o compasso.

Segundo P. Naudon, os estatutos de 1599, definem também a jurisdição da Loja e estabelecem as taxas mandatórias. O Mestre, aqui entendido como grau sobretudo honorífico, ou guardião (“Warden”) tem o poder de verificar as qualidades e aptidões dos companheiros, bem como a capacidade de expulsar os não cumpridores do juramento, podendo também nomear um secretário. Estes estatutos utilizam os termos, aprendiz ( “journey man” / mais tarde “entered apprentice”) e Companheiro (“Fellow-Craft”), o que prova a existência de pelo menos dois graus na Maçonaria operativa escocesa da época (século XVII).

A Maçonaria emergiu pois na Escócia no século XVII baseada em Lojas, organizações secretas ou semi-secretas/discretas de iniciados, combinando sociabilidade e fraternidade com segredos elaborados e esforçando-se genericamente em trabalhar para regular a entrada de artífices da pedra (“stonemasons“) e regulamentar as respectivas práticas de trabalho. Efetuavam rituais de iniciação e identificação descritos nos catecismos.

No decurso desse século XVII, alguns homens de níveis sociais distintos, começaram a ficar intrigados e simultaneamente curiosos com os segredos dos “stonemasons” e o reconhecimento de que a sua Ordem tinha um estatuto intelectual único, tendo alguns desses “outsiders” sido iniciados em lojas. Existem evidências de que certas personalidades próximas das correntes iluministas e Rosa-Cruzes da época, entre os quais Robert Moray, passaram e/ou debruçaram-se sobre estas organizações. A organização discreta/secreta e a existência de certos ritos despertaram-lhes interesse, mesmo que a sua passagem por elas, durante todo o século, tenha sido extremamente rara, esporádica ou efêmera.

Entre os fatos que evidenciam fortemente que tenha sido a Escócia preponderante no aparecimento da moderna Maçonaria, desde o final do século XVI e sobretudo no século XVII, apontam-se a existência dos registos mais antigos de:

  • utilização do termo “Loja” no sentido moderno do termo e evidência de que estas instituições existiam permanentemente;
  • Organização de lojas em âmbito nacional;
  • Registos oficiais e atas de reuniões efetivas;
  • Exemplos de “não-operativos” (“no working stonemasons”) que se juntaram às lojas;
  • referências à “palavra do Maçom” / “mason word“;
  • catecismos maçônicos expondo a “palavra do Maçom” e descrevendo iniciações maçônicas;
  • Evidências ligando o que era realizado pela loja com ideais éticos específicos, expostos pela utilização de símbolos;
  • Utilização de dois graus ou níveis na maçonaria;
  • Utilização dos termos “entered apprentice” e “fellow-craft” nesses graus;
  • Evidência da emergência dum terceiro grau (loja de Edimburgo), pela utilização de “masted’ como estatuto no mínimo diferente de “fellow-craft
  • Começo da percepção, por alguns, da maçonaria como “sinistra” ou “conspirativa”.

Ainda segundo Steveson, as reuniões nas Lojas ocorriam em média uma a duas vezes por ano, tendo a de Edimburgo, entre 1601 e 1710, reunido em média duas a três vezes por ano, o que representa um excelente registro, visto tratar-se duma importante loja urbana.

Percorrendo os registos do século XVII, imediatamente anteriores ao da criação da Grande Loja de Londres, Steveson e Naudon, comprovaram que a maçonaria escocesa possuía já um grau de organização e expansão nacional muito mais consistente do que acontecia em Inglaterra na mesma época.

Existe evidência de que em 1710 estavam ativas 25 lojas na Escócia, tendo mais algumas sido referenciadas ao longo do século, mas estando inativas ou extintas nessa data. Destas 25, 20 continuaram ativas e destas últimas, atualmente 80% ainda existem, o que constitui um registo assinalável.

Há contudo dois aspectos fundamentais, face à moderna maçonaria, que não existiam na Escócia no século XVII:

  • Não existia nenhuma autoridade central de supervisão, como uma Grande Loja (apesar de Schaw e alguns dos sucessores o tentarem criar esse figura, numa forma mais estatutária que efetiva), embora existisse uma rede de lojas
  • Inexistência de lojas compostas unicamente por não-operativos.

Em 20 de maio de 1641, alguns membros da loja de Edimburgo que estavam na época em Newcastle com o exército “conjurado” escocês (na guerra com a Inglaterra), admitiram como “maçom aceito” o honorável Robert Moray (juntamente com Alexander Hamilton, também general revoltoso), quartel-mestre geral do exército escocês, figura notável à época, considerado um dos “pais” da maçonaria especulativa e um dos grandes impulsionadores da Royal Society. Esta prática manteve-se ao longo do tempo, propiciando a formação de lojas nos regimentos escoceses e irlandeses. Mais tarde referiremos o seu importante papel no estabelecimento da moderna maçonaria no continente europeu, em especial na França.

A liberdade e independência das Lojas propiciaram a formação de algumas constituídas somente por membros não operativos. Segundo Naudon, por volta de 1670, mais de três quartos dos membros da Loja de Aberdeen não eram maçons profissionais. Os Estatutos de Shaw especificavam que estes membros estavam isentos da caixa de coleta, da marca, do banquete e do “pint” de vinho.

A dificuldade de generalizar o comportamento das Lojas, já que diferem consideravelmente em tamanho e composição, aplica-se também aos seus membros.

Os “não operativos ou “gentleman-masons” tinham como atrativo nas Lojas um ideal de amizade, uma mistura social informal (embora dentro duma instituição formal) e o banquete anual podendo adicionalmente compreender traços do antigo, do secreto, do misterioso e do ritualístico.

Parece ter sido esta a causa, mas podemos questionar o real motivo do aparecimento destas lojas pré- especulativas, sendo que está comprovado que a Escócia foi um dos países em que a maçonaria operativa mais persistiu de forma organizada, o que comprovadamente não aconteceu na Inglaterra.

É curiosa a análise do percurso de duas das figuras mais notáveis da época, relativamente às quais existem provas da sua iniciação, sem que no entanto existam dados continuados da sua presença em lojas. Quando Robert Moray, como referimos atrás, foi admitido na Loja Mary’s Chapel de Edimburgo, consta nos arquivos da Loja a seguinte minuta:

“Em Newcastle, a 20 de maio 1641. Neste dia, um certo número de mestres e outros estando regularmente reunidos, admitem o muito distinto Robert Moray, Mestre General de Quartel do exército da Escócia, o que foi aprovado por todos os mestres maçons da loja de Edimburgo que colocaram as suas assinaturas ou as suas marcas”.

Quanto a Elias Ashmole (antigo capitão da artilharia real e fervoroso stuartista), foi iniciado cinco anos depois de Moray, em Warrington (também a norte da Inglaterra), numa loja com mais características de se tratar de uma loja escocesa deslocalizada do que uma loja inglesa. Verifica-se pois que duas das principais figuras precursoras da nova maçonaria eram ambos fervorosos partidários dos Stuarts. Poderá isto ter algum significado? Provavelmente terá.

Steveson mostrou inequivocamente que esta organização profundamente inovadora, era estritamente específica da Escócia, sem que nenhum sistema idêntico tenha existido anteriormente. Como refere Dachez, contrariamente às versões clássicas, o aspecto mais importante deste trabalho foi evidenciar que a característica da “aceitação”, expressão tipicamente inglesa, utilizada para justificar a penetração dos especulativos nos operativos, jamais foi utilizada na Escócia durante o século XVII.

A partir deste trabalho, por consulta dos registos disponíveis das lojas, é possível identificar e estudar os 139 membros não operativos recebidos nas Lojas escocesas entre 1637 e 1717. É no mínimo curioso observar que o pastor Anderson, escocês, filho do secretário da Loja escocesa de Aberdeen, ignora por completo estes escoceses não-operativos. Será que o motivo principal terá sido o de constituírem, na sua maioria, fervorosos stuartistas?

Durante o reinado de Carlos I, uma dúzia de membros “gentleman” admitidos na Loja Mary’s Chapel de Edimburgo pertenciam à corte do Rei. Destes, só Robert Moray voltou à loja em 1647. O panorama das lojas escocesas majoritariamente operativas irá mudar consideravelmente a partir da morte de Carlos II. O quantitativo de personalidades não operativas recebidas nessas lojas, desde a ascensão ao trono de James II em 1685, eleva-se a mais de uma centena até 1717, aproximadamente o quíntuplo dos recebidos na totalidade do reinado de Carlos II, num período de tempo sensivelmente equivalente.

Na loja de Dunblane em 1696, por exemplo, dos 13 membros nomeados em ata de reunião, somente 4 são operativos, sendo a maioria constituída por nobres, quase todos ligados à causa stuartista. Steveson aponta que os membros dessa loja muito seletiva eram relativamente assíduos, mas não se preocupavam muito com o “ofício”, até finais de 1710, quando o predomínio passou para os operativos. Teria a ver com o final das “esperanças” dos stuartistas em reconquistarem o trono, como sugere Louis Trébuchet?

A prática comprovada, mas excepcional, das Lojas receberem a titulo honorário pessoas exteriores à profissão, que raramente lá voltavam, terá produzido, segundo Dachez, um conjunto de “maçons livres” com a possibilidade de transmitir uma Maçonaria que foram transformando em função dos seus próprios objetivos e preocupações intelectuais. Tinham descoberto algo que lhes interessou vivamente, um ritual e uma tradição.

Assim a “fronteira do Norte” terá sido permeável à expansão até ao Sul da Inglaterra destes maçons “não- operativos” que a Maçonaria operativa nunca integrou internamente, justificando plenamente que a maçonaria inglesa do século XVII tenha sido, desde a origem, puramente especulativa.

Parece não existir outra explicação plausível para a admissão de elementos não operativos nas Lojas Escocesas já que, por volta de 1717, ainda possuíam um importante papel na área da construção e, contrariamente ao que se passava na Inglaterra, não se reuniam em tabernas ou em locais esporádicos, mas em edifícios ou locais que lhes pertenciam.

As Lojas “antigas” da Inglaterra

Na Inglaterra a iniciação de cavalheiros (“gentlemen”) em Lojas é registada desde 1640, mas aqui o processo é muito mais obscuro.

Sendo fato praticamente inequívoco que a maçonaria especulativa, tal como a entendemos, surgiu na Inglaterra, não existem contudo documentos suficientemente esclarecedores de que pessoas estranhas ao oficio fossem admitidos em lojas operativas inglesas. E, mesmo relativamente a estas últimas e ao seu funcionamento como estrutura permanente em todo o território, não existem quaisquer dados.

Para os que defendem a primazia da Inglaterra no aparecimento da moderna Maçonaria, sobretudo no século XVII, apontam-se os seguintes fatos:

  • cópias mais antigas das “Old Charges” (não são conhecidas cópias escocesas anteriores a meados do século XVII);
  • utilização generalizada do termo “freemason” e utilização do termo “maçom aceito”(“accepted mason”);
  • Lojas compostas unicamente por “não operativos” (que se pode interpretar como indicando que a “maçonaria” inglesa era, muito mais que a escocesa, uma criação sem, ou com reduzida, sustentação profissional);
  • criação da primeira Grande Loja.

A única certeza que existe é de que as poucas lojas operativas que tardiamente surgem, permanecem operativas até à sua extinção, como a loja de Chester. A famosa loja de Acception, de Londres (século XVII), abusivamente citada como exemplo da transição especulativa é indevidamente classificada como Loja, uma vez que este termo não aparece nunca em suas respectivas atas, não se sabendo quem a fundou e por que motivo, deixando historicamente apenas dois leves traços documentais, em 1610 e em 1686, relacionados com Elias Ashmole.

Nas primeiras lojas inglesas, contrariamente à Escócia, não se detectam ligações aos operativos, o que sugere que a maçonaria foi aqui uma criação “artificial”, no sentido de ter sido originada por pessoas sem contato direto com a profissão, muitas vezes influenciados provavelmente pelo que “acontecia” ou então podem ter sido “importadas” a partir da Escócia. Não existe atualmente nenhuma loja na Inglaterra a que se possa ser feita referência continuada antes de 1716-17, quando a Grande Loja foi criada. As lojas inglesas só tinham inicialmente um grau, o que implicava substanciais diferenças nos rituais comparativamente à Escócia, onde existiam dois graus.

A teoria clássica da “transição”, foi posta contestada também por outros historiadores (finais da década de setenta), nomeadamente Eric Ward, que defendem que na Inglaterra, contrariamente à Escócia, não teria havido transição da maçonaria operativa para a especulativa e que as lojas dos primeiros se foram progressivamente extinguindo, sem deixar rastro, face às características sócio-econômicas da época. A crítica de Ward fundamenta-se sobretudo na interpretação do significado clássico atribuído a certas palavras-chave (origens de “freemason” e de “Free-Mason” ou “Free-Masons”) utilizadas indistintamente pela teoria da “transição”).

Também para Knoop e Jones, os únicos fatos mais ou menos incontestados, comprovam que desde a sua origem, as lojas maçônicas inglesas são puramente especulativas, contando-se como exceção, como vimos, a loja de Chester. Nesse período existiu também a Companhia dos Maçons de Londres, restrita à área da capital, e a única guilda conhecida na Inglaterra para a profissão de maçom, não se conhecendo mais nenhuma estrutura comparável. Esta corporação procurou o suporte de vários patronos de famílias nobres e comerciantes, com a figura de membros honorários, para ajudarem a assegurar o fundo financeiro de apoio aos associados.

Lembre-se que a Escócia era, no início do século XVII, um país estrangeiro e inimigo, havendo poucas relações entre ambos, motivo pelo qual a existência de Lojas operativas organizadas por toda a Escócia não poderia, por si só, impulsionar ou servir de catalisador do surgimento de uma Maçonaria especulativa, na mesma época, no sul da Inglaterra.

A tese de Colin Dyer (a teoria do “empréstimo”/“emprunt” em francês), seguida por outros autores ingleses contemporâneos, aponta para que o movimento que dá origem à maçonaria especulativa tenha tido origem e motivações claramente religiosas. O estudo comparado das “Old Charges” (“Antigos Deveres”) estabelece claramente que este movimento, aparentemente secreto, o que à luz da história da época se torna compreensível, não teve qualquer ligação com a maçonaria operativa. Teria sido estabelecido por altura de 1560 ou 1580, época em que os conflitos religiosos atingiram grande intensidade (atestam por exemplo que o Manuscrito da “Grande Loja, n°1” não teve nada a ver com o de “Cooke”, sendo um documento totalmente novo, já que a ortografia utilizada segue a das Bíblias publicadas em Inglaterra após a Reforma, ou seja a partir de 1540, cerca de 180 anos após este).

Os trabalhos de David Steveson trouxeram, contudo, uma nova interpretação da controversa questão das fontes da maçonaria especulativa. O fenômeno da “aceitação” utilizava uma expressão puramente inglesa, nunca adotada na Escócia, o que comprovou pela análise cuidadosa das listas dos membros das diversas Lojas, e da sua história durante vários decênios.

Detectou contudo, um novo ponto muito importante, a curiosidade e o interesse com que, desde a origem, algumas personalidades, entre as quais o famoso Sir Robert Moray, demonstraram sobre estas Lojas escocesas. A prática excepcional, mas comprovada, de receber com o título de membros honorários, pessoas estranhas ao ofício, teria permitido constituir uma população de “maçons livres”, que embora numericamente fraca, era legítima e ativa, possibilitando-lhes transmitir uma Maçonaria que lhes foi possível transformar em ordem às suas preocupações intelectuais e filosóficas.

Poderiam as lutas religiosas de 1640 a 1660/80 e depois entre stuartistas e hanoverianos, estar na origem da falta de documentação relativa às Lojas Inglesas?

Na Inglaterra, o papel de loja mãe foi durante muito tempo assegurado pela velha loja de York. Este teria sido o motivo da recua da “Old Lodge of York” em reconhecer a autoridade da Grande Loja de Londres, quando esta foi instituída em 1717. Segundo P. Naudon, somente após a reunião da Assembleia Maçônica de York, em 27 de dezembro de 1663, quando a Maçonaria já se tinha tornado especulativa, o título de grão-mestre foi aprovado, embora não conferisse autoridade administrativa a quem fosse designado. De fato, o escolhido poderia ser somente um “protetor”, garantindo o patrocínio à corporação. Os poderes do grão-mestre só foram criados a partir de 1717, com a Grande Loja de Londres.

Segundo Knoop e Jones, a hipótese duma rede desconhecida de lojas (iniciáticas e secretas), cuja existência e ensinamentos tenham escapado à análise do historiador, é insustentável, pelo menos se pretendermos permanecer no campo da história, tal como o entendemos.

Há, contudo, uma data a que devemos prestar atenção e que não é muitas vezes referida, que é 1707. Neste ano realizou-se o “Ato de União”, transformando a Escócia e a Inglaterra num único reino. As duas nações que tinham estado até aqui de costas voltadas e muitas vezes em guerra, iniciaram finalmente uma lenta, mas real , aproximação, sem que contudo, a desconfiança de um país face ao outro se tivesse automaticamente atenuado.

Da Royal Society à Grande Loja de Londres

Considerando as diferenças e eventuais interseções entre maçonaria operativa e especulativa, sobretudo na Escócia do século XVII e início do XVIII, nada permite fundamentar, face à sequência temporal e histórica, que a maçonaria especulativa tenha nascido em 1717. De fato, esta data é quase irrelevante no longo processo de desenvolvimento do movimento. Segundo Knoop e Jones,

“naquela altura, a formação da Grande Loja foi uma ocorrência de menor importância no desenvolvimento da Maçonaria, e não faz sentido constituir um marco na historia maçônica”.

No entanto a nova forma de organização instituída pela Grande Loja de Londres constitui uma inovação, face à organização predominante até ao momento, de raiz escocesa, centrada sobretudo nas Lojas.

P. Naudon salienta que não se conhecem as razões oficiais da criação da referida Grande Loja, francamente modesta na concepção, sendo a ênfase dada possivelmente à necessidade de um poder regulador sobre as lojas, o que fará sentido, como veremos.

Somos pois levados a concordar com a afirmação de J. Marty:

“O fato das mais influentes lojas maçônicas na Inglaterra, na Escócia e na Irlanda terem uma fortíssima influência stuartista, a outra família real que disputava o trono, impôs aos novos ocupantes do trono inglês o desenvolvimento de esforços imediatos para contrariar essa influência no mesmo terreno, como uma das formas de manterem o poder adquirido.”

Não é pois sustentável diluir historicamente a criação da Grande Loja de Londres (que no século seguinte evoluiria para a Grande Loja Unida da Inglaterra), como não deixando de corresponder a um plano político organizado pela nova família real inglesa, a dinastia Orange ou hanoveriana, para combater a influência stuartista.

Recuando de novo à questão do nascimento da Maçonaria Especulativa, é necessário correlacioná-la e ter também presente a criação da Royal Society, em 28 de novembro 1660, no Gresham College, em Londres e em que tiveram destacado papel alguns maçons ou Rosacruzes da época, nomeadamente Robert Moray, Elias Ashmole, Christopher Wren, e outros.

Robert Moray foi elemento preponderante na liderança que constituiu a Royal Society, e foi virtualmente o seu presidente durante 1661 e a primeira metade de 1662, apesar do titulo não ter sido formalmente utilizado por ninguém, até a carta patente receber o selo real, onde foi personagem decisivo. O aparecimento desta instituição mostrou claramente o crescente interesse na investigação científica e na experimentação, e o prestigio crescente destas atividades.

Antes da constituição da Royal Society, a ciência estava completamente dominada pela religião e amarrada a argumentos teológicos. Qualquer investigador que desafiasse a visão dos inquisidores era considerado herege e punido enquanto tal, pagando muitas vezes o preço da própria vida.

Mais do que um conjunto de ideias estabelecidas, os princípios de estudo da natureza propostos pela Royal Society representavam uma atitude e uma maneira inovadoras de pensar a realidade, resultantes do desejo de reexaminar e pôr em questão as ideias e os valores recebidos, mas com enfoques bem diferentes.

A esta grande mudança no desenvolvimento científico, levando uma comunidade a rejeitar uma teoria pseudo-científica anteriormente seguida, em favor de uma outra com ela incompatível, traduz uma mudança de paradigma, no sentido “kuhniano” do termo. A esta mudança não foram alheios os ideais da verdade, da tolerância, do respeito pelo trabalho realizado, da retidão e da fraternidade dos Maçons que estiveram associados à fundação e direção inicial da Royal Society, da qual que Isaac Newton veio a ser um dos mais notáveis presidentes (já no início do século XVIII).

Em resposta à interpretação de Eric Ward, Frederic Seal-Coon respondeu no ano seguinte (1979) com uma teoria mais política, que estabelecia a correspondência cronológica entre o nascimento da maçonaria especulativa e as relações tumultuosas da dinastia escocesa dos Stuarts com o trono da Inglaterra, ocupando grande parte do século XVII e a primeira metade do século XVIII, em que tentou recuperar o trono, após o exílio na França.

Na Grã-Bretanha, tanto os stuartistas, quanto os hanoverianos, foram atraídos para alianças maçônicas rivais. O sistema das lojas, combinado com o secretismo, ideais de lealdade e modos secretos de reconhecimento, originou uma estrutura ideal de organização, na qual os membros puderam colocar os seus próprios valores, podendo adaptá-los para utilização própria.

Da análise dos sermões do Rev. Anderson de 1712 e 1715, Steveson concluiu que era evidente uma tonalidade “whigh” (protestantes, partidários da casa de Hannover) radical e determinante, já que descreve o país como

“benzido com um bom protestante como soberano e uma feliz Constituição, depois de libertado das garras e da escravatura papista, pela revolução…”

Aliando estas interrogações ao fato das Constituições elaboradas pretensamente pelo Rev. Anderson (que era pastor presbiteriano escocês), elaboradas em 1723, seis anos depois da criação da Grande Loja de Londres, terem efetuado uma “limpeza criativa e radical” (continuada pelo duque de Montagu) de toda a documentação conhecida anteriormente existente, contribuiu para reforçar um conjunto de interrogações, cujo esclarecimento tentamos aprofundar.

Somos, pois, levados a concordar de novo com J. Marty, em que

“a história oficial que foi criada e difundida, constituiu parte de um programa de cultura imperial global muito ativo no último quadrante do século XVIII e no século XIX, por parte da potência dominadora a nível mundial nesse período, a Grã- Bretanha.”

Também não se encontra antes de 1723 nenhum texto proibindo as lojas escocesas, e mais tarde as lojas temporárias inglesas, de serem criadas sem terem a autorização superior de alguém com poderes para tal, mas a partir daquele ano, só puderam ser criadas novas lojas na Inglaterra com a obtenção prévia da carta patente, firmada pelo Grão-Mestre da Grande Loja de Londres.

O primeiro Grão-Mestre de origem nobre da Grande Loja de Londres foi, em 1721, o Duque de Montagu, “whigh” convicto, condecorado em 1718 por George I com a distinta Ordem da Jarreteira, responsável pela criação em 1745, de um regimento de cavalaria para combater o príncipe Carlos Eduardo Stuart, quando da última tentativa deste para recuperar o trono.

Os dados parecem pois apontar para que tenha existido uma tomada de poder dentro da fraternidade maçônica pela facção “whigh”, então minoritária, numa época em que a ascensão ao trono de George I de Hanover, três anos atrás, estava longe de ser unânime, quer na Inglaterra, mas sobretudo na Escócia.

A reação stuartista/jacobita não se fez esperar e o duque de Wharton, de regresso da Europa depois de convertido à causa stuartista, conquistou o grão-mestrado num golpe interno. Foi destituído no ano seguinte, mas a luta de influencias, perdida no território inglês, continuará agora na França.

As “lojas escocesas” na França

Desde que se deu a confrontação entre os Stuarts e o Parlamento, e mais tarde entre os Stuarts e a casa de Hannover, cada uma duas partes procurou trazer a Ordem para o seu lado. A ligação desta aos Stuarts era manifesta desde a Escócia, em virtude das origens escocesas comuns, pelo que não lhes foi difícil utilizá-la como aliada e veículo dos seus objetivos restauracionistas.

O papel desempenhado pela Maçonaria Escocesa na França é confirmado pelo cavaleiro Ramsay, no seu famoso “discurso” de 1737, sendo a presença de lojas escocesas mais evidente a partir do exílio forçado dos Stuarts.

A Maçonaria stuartista chegou na França em 1688 através das primeiras lojas militares que se formaram nos regimentos que acompanharam James II, no exílio em Saint Germain de Laye. Existem provas de que a fuga para França intensificou a criação de Lojas maçônicas nos regimentos stuartistas. Por volta de 1689, os regimentos escoceses e irlandeses sediados na França possuíam “staffs” maçônicos, constituindo muitas vezes, a autoridade administrativa, sendo os militares a executiva.

É possível que a primeira loja na França tenha sido a que mais tarde se designou por “La Parfaite Égalité” (inicialmente “Irish Guard Lodge”), loja militar real irlandesa do coronel Walsh, do regimento de guarda pessoal de James II. Quatro anos depois da sua fundação , o Grande Oriente de França reconhece, em 1777, que essa loja foi constituída em 25 de março de 1688.

A primeira loja francesa, indiscutivelmente conhecida, foi fundada em 1725 por Charles Radcliffe de Derwenwater e outros fervorosos stuartistas. Sensivelmente por volta de 1728, as lojas escocesas na França, reconheceram como Grão-Mestre o duque de Wharton, anterior Grão-Mestre da Grande Loja de Londres e apoiador dos Stuarts. Após a sua morte, em 1731, Lord Derwentwater assumiu o grão-mestrado, seguido por Hector MacLean (baronete escocês) de 1733 a 1735 e de novo Lord Derwentwater, a partir de 1736.

A concorrência “whigh”/hanoveriana, não se fez esperar muito, deslocando-se também a partir de 1734 para o solo francês, com a criação em Paris de uma loja rival à de Derwentwater, em que a Grande Loja de Londres se faz representar pelo duque de Richmond e Jean T. Desaguiliers. O conflito provocado pela existência de duas categorias de lojas rivais – escocesas e inglesas, transpôs-se e desenvolveu-se também na França, até à criação da Grande Loja de França e da nomeação do duque de Antin, como Grão-Mestre (ad vitam), em 24 de junho de 1738.

Foi o duque de Montagu, que sucedeu, desde 1721, ao pastor J. T. Desaguiliers, que se comprometeu a introduzir na França a Maçonaria especulativa (tendência “inglesa”). Do desenvolvimento dos ritos da época, a par das teorias filosóficas que sustentaram o aparecimento da Real Society, acabaria por surgir o Rito Francês. Mais tarde, e embora apresente maior parentesco com a matriz escocesa, acabaria por surgir o Rito Escocês Antigo e Aceito, assim designado apesar do berço francês.

Notas finais

Julgamos poder concluir, no essencial, que a moderna maçonaria teve origem escocesa, em vez de inglesa. A evidência escocesa pode ser fielmente comprovada durante o século XVII, através dos documentos oficiais de várias lojas, que foram conservados, graças aos Estatutos de Schaw. Contrariamente, na Inglaterra somente parcos registos em papel, que possam ter pertencido a Lojas, sobrevivem.

O termo “aceito” continuou a ser aplicado na Inglaterra aos Mmaçons iniciados, e a Grande Loja de Londres, fundada cerca de 40 anos depois, passou a chamar-lhes “maçons livres e aceitos“. Nos anos do rápido desenvolvimento da maçonaria inglesa depois de 1700, os rituais que surgiram eram baseados na “mason word” e as práticas descritas no catecismos mais antigos têm, sem dúvida, origem na Escócia.

A primeira referência a uma loja inglesa caracterizada por um corpo permanente e não por uma reunião ocasional, é a de Chester, também no norte do país. A primeira loja na Inglaterra cujas atas sobreviveram, a loja de Alnwick, fica a 20 milhas da fronteira com a Escócia. A loja mais antiga descrita na Inglaterra refere-se a Warrington, no Lancashire, também no Norte.

Tudo isto sugere claramente que as lojas maçônicas, na sua moderna configuração, nascem da instituição escocesa que se espalhou pela Inglaterra no decurso do século XVII. A maçonaria na qual os primeiros “gentlemen” não operativos foram iniciados foi também muito influenciada pelas práticas escocesas.

No entanto, e esta é uma diferença essencial, desde o início os ingleses preferiram encontrar-se informal e irregularmente, apelidando por vezes estes encontros ocasionais de “reuniões de loja”. No entanto, a institucionalização da estrutura, originada por Schaw, foi reconhecida e as lojas ocasionais foram dando progressivamente origem a instituições permanentes.

Doze dos Grão-Mestres da Inglaterra no século XVIII eram escoceses e, quando os maçons franceses inventaram inúmeros altos graus e rituais, sentiram que a melhor maneira de lhes dar legitimidade era designá-los por “Rito Escocês”. Também estes fatos parecem admitir tacitamente que a maçonaria escocesa tem um papel especial na história da Ordem….

O objetivo subjacente à elaboração das Constituições de Anderson, o papel desempenhado por Desaguiliers, a Grande Loja de Londres e os conflitos que se arrastaram por quase 100 anos entre “Antigos” e “Modernos”, podem dar lugar a diversas interpretações, mas certo é que por trás destes conflitos estavam dois conceitos distintos da Maçonaria, que foram utilizados na disputa do trono real britânico pelos blocos stuartista e hanoveriano.

Parece não existir dúvidas, face aos historiadores e obras que temos referido, que as Lojas maçônicas escocesas, irlandesas e inglesas foram palco da intensa luta entre estes dois blocos, que no fundo apoiavam duas concepções religiosas distintas, a católica e protestante. Também pode não ter sido ocasional que o Papado só tenha apresentado a sua primeira Bula contra a Maçonaria (“In Eminenti Apostolatus Specula”), quando já era evidente que a luta entre os dois blocos pendia para os protestantes (hanoverianos) e a derrota definitiva dos Stuarts se resumia a uma questão de tempo. Todavia, este assunto é por demais vasto, exigindo elevada preparação e estudo, para que possa ser tratado nestas breves e humildes notas.

Pelas análises dos historiadores que citamos, nomeadamente Steveson e Eric Ward, a teoria da “transição” parece não ter suporte documental fidedigno, pelo menos analisando historicamente os dois países onde mais se enraizava, a Inglaterra e a Escócia.

Parece também não existirem dúvidas de que as Constituições de Anderson traduziam uma versão mais universalista e agregadora da Maçonaria, rompendo com as versões mais tradicionalistas, que eram a base da Maçonaria católica stuartista.

Em reação a esta visão mais progressista (à época) organizaram-se mais tarde os “Antigos”. Esta polêmica entre “Antigos” e “Modernos” durou cerca de 100 anos, mas o enfraquecimento progressivo da Grande Loja de Londres e a pressão do establishment real acabaria, também por pressão adicional da revolução francesa e dos receios por ela provocados na monarquia britânica, de proporcionar a fusão das duas, originando a Grande Loja Unida de Inglaterra, com predominância inequívoca dos valores dos “antigos”.

O estudo das origens é fundamental para uma melhor compreensão da Ordem. No entanto a sua análise, contribuindo para a nossa progressão individual a caminho do conhecimento e da Luz, só alcançará o seu sentido último se alavancar o nosso trabalho no mundo profano.

Termino citando Jean Mourges:

“Independente da interpretação das origens, a Augusta Ordem deverá conservar dois princípios, sem os quais não será Maçonaria:

      • Os Maçons são construtores. Creem na possibilidade de estabelecer uma Ordem Social ou em todo o caso de contribuir para a estabelecer”; e,
      • Escolher os construtores que, entre eles, saibam elevar-se acima das querelas das Escolas, já que a perfeição da ordem Coletiva repousa na qualidade dos homens chamados a construí-la.”

Autor: Salvador Allende – R∴ L∴ Ocidente

Fonte: Freemason

Revisão e adaptação ao português brasileiro: Luiz Marcelo Viegas

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Bibliografia

“The-Origins-of-Freemasonry-Scotland-s-Century-1590-1710” – David Stevenson – Cambridge University Press, 1988.

“A Maçonaria e o Nascimento da Ciência Moderna -O Colégio Invisível” – Lomas, R. – Madras Editora Lda, 2007.

“The-Secret-History-of-Freemasonry-Its-Origins-and-Connection-to-the-Knights-Templar” – Paul Naudon – 2005.

“Les Origines de la Maçonnerie Spéculative” – Roger Dachez, revista “Renaissance”.

“The Genesis of Freemasonry” – Douglas Knoop e G.P. Jones” – Manchester University Press – 1947.

“Maçonaria Especulativa e Sir Robert Moray” – José Marti.

Blog + Sites da Loja Ocidente – http://a2ocidente.blogspot.pt.

“El Nacimiento del Escocismo” – Louis Trébuchet (www.masoniclib.com).

“Isaac Newton and the Scientific Revolution, Christianson, G. Oxford University Press.

“Sir-Robert-Moray-Freemason” – Robert Lomas.

“El Rito Francês Moderno” – Guillermo Fuchslocher.

Los Oficios y Los Oficiales de La Logia” – Daniel Berésniak.

“La Masoneria” – Armando Hurtado.

“La Pensée Maçonnique -Une Sagesse pour Occident” – Jean Mourges – Éditions P.U.F. – 1998.

Sugestão de leitura – maio/2020

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Caríssimos,

Já está na página Biblioteca do blog O Ponto Dentro do Círculo a sugestão de leitura do mês de maio.

Ver em: https://opontodentrocirculo.com/biblioteca/

“A leitura é uma forma de felicidade que só está ao alcance das mentes mais livres. Aquelas que são capazes de se desvestir de suas preocupações diárias para atravessar a barreira do conhecimento, da paixão, do deleite e adentrar aos mais sublimes mistérios.” (Valeria Sabater)

Fraternalmente,

Luiz Marcelo Viegas

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O Desenho e o Canteiro no Renascimento Medieval (séculos XII e XIII): Indicativos da formação dos arquitetos mestres construtores – Capítulo II

Vitrúvio – Wikipédia, a enciclopédia livre

2 – Vitrúvio – De Architectura Libri Decem

A noção que nos foi legada acerca do grau de conhecimento da obra de Vitrúvio durante a Idade Média, provocou um equívoco, que a exemplo do epíteto Idade das Trevas perdurou até o período contemporâneo.

Nele, transparecia a ideia de que sua monumental obra sobre o saber arquitetônico acumulado desde a Antiguidade somente teria sido redescoberta pelos europeus através de um manuscrito do livro em 1416 (século XV). Esta façanha devia-se a um secretário apostólico que participava do Concílio de Constança no Mosteiro de Saint-Gall.

Hoje sabemos que isso é completamente falso. Procuraremos resgatar todo o percurso possível desde a gênese da obra até os séculos XII e XIII, com o intuito de demonstrar quais edições estavam (ao menos teoricamente) disponíveis neste período histórico, chamado de Renascimento Medieval e de onde vem o melhor registro gráfico do conhecimento geométrico medieval que era aplicado nas edificações, os Cadernos de Villard de Honnecourt.

Marcus Vitruvius Pollio foi um arquiteto que viveu no período republicano da Roma Antiga. As datas de seu nascimento e morte são controversas, mas localizam-se em torno de 90 AC e 20 AC. Era natural de Latium, de origem respeitável e que por isso recebeu boa educação.

Trabalhou em engenharia militar, tendo sido designado pelo Imperador como supervisor permanente das máquinas. Tinha pouca prática na profissão de arquiteto e aparentemente teve pouco sucesso.

Sua referência à Basílica de Fano como sendo de sua autoria, dá-nos a certeza de que era realmente um arquiteto e não um construtor de muralhas, portos, pontes ou aquedutos.

Na velhice, escreveu o De Architectura Libri Decem conhecido entre nós como Os Dez Livros da Arquitetura, um tratado arquitetônico que dedicou ao Imperador Otávio Augusto aproximadamente no ano 27 AC.

Ele não foi um homem de muita importância em seu tempo, mas seu trabalho escrito foi o único sobre a Arquitetura Antiga que sobreviveu, tornando-se de grande importância principalmente para os italianos no Renascimento e leitura essencial para os arquitetos. Sistematizou seu tratado, no qual discutiu com grande precisão e detalhe a teoria e a prática da arte arquitetônica.

Comenta vários escritores gregos e trata seu próprio trabalho como uma compilação de conhecimentos prévios. Por esta razão, o professor Júlio Roberto Katinsky ao prefaciar o livro Vitrúvio – Da Arquitetura na tradução de Lagonegro, 2002 comenta que Françoise Choay “remete o livro de Vitrúvio (talvez fazendo eco a Boullée) à categoria de livros de engenharia, nada tendo a ver com Arquitetura”.

Apesar da idade do texto (século I AC.) a primeira edição impressa e ilustrada foi feita em Roma apenas em 1511 (século XVI). A primeira edição impressa em latim – sem ilustrações – é de Veneza em 1486 (século XV).

Durante todo este tempo, cerca de 1500 anos, o texto não tinha o auxílio das ilustrações. Rafael supervisionou uma tradução italiana em 1520 e outra edição foi impressa em Como (1521) com comentários detalhados feitos por Cesare Cesariano e acompanhados de numerosas ilustrações.

O texto de Vitrúvio é obscuro e um pouco místico; seu latim muito difícil provocou o comentário de Alberti de que “os gregos pensavam que ele estivesse escrevendo em latim e os latinos, em grego”.

O trabalho de Vitrúvio é um dos muitos exemplos de textos latinos que devem sua sobrevivência ao escritório – scriptoria – do palácio de Carlos Magno, no início do século IX.

A procura e a cópia de manuscritos antigos ficou conhecida como Renascimento Carolíngio. Um dos mais antigos manuscritos do trabalho de Vitrúvio encontra-se na Biblioteca do Museu Britânico, conhecido como o Manuscrito Harley 2767.

Ainda que sua obra tenha sido conhecida na Idade Média, ela popularizou-se de fato no século XVI, provavelmente por efeito das ilustrações que se apresentam cada vez mais elaboradas. No corpo do trabalho são descritos muitos instrumentos utilizados pelos mestres pedreiros como por exemplo o chorobate, utilizado para nivelamentos e que aparece no Livro VIII, capítulo VI (RUA,op.cit,1998).

Na verdade, segundo o professor Júlio Roberto Katinsky, a revelação para o mundo do tratado de Vitrúvio ocorre em plena Renascença, passando assim a integrar-se após 1414 à nossa cultura ocidental e deixando de ser uma leitura de especialistas. Sua obra passa a ser mais citada e comentada então do que nos mil e quinhentos anos passados.

2.1 – De Architectura – referências do século I ao século XV

No longo caminho da história do conhecimento do texto de Vitrúvio, ele aparece sempre visto por duas ópticas: servindo como manual técnico para uns e obra erudita para outros.

Katinsky (op.cit.,1985,p.219-220) sustenta que a grande difusão do texto do engenheiro e arquiteto romano durante a Idade Média foi levada com certeza pelos frades e monges ligados à Igreja Romana, ilustrando a apreciação erudita. Face à disseminação de técnicas práticas, levanta ainda uma segunda hipótese (sugerida por William L. MacDonald), na qual a obra de Vitrúvio teria sido escrita para profissionais socialmente secundários, ficando este viés denotado pelos conselhos e observações morais frequentes nas introduções dos Livros e pela sua utilização como um manual de orientação técnica.

As referências à obra de Vitrúvio serão anotadas conforme sua aparição através dos séculos, no intuito de documentar períodos de maior ou menor contacto com seu texto.

Século I (1 – 100 da Era Cristã)

As primeiras referências a Vitrúvio aparecem cerca de 90 anos após sua morte, com Plínio, o Velho (23-79) em sua História Natural, a qual difere nas proporções estabelecidas por Vitrúvio para as ordens dórica e jônica e concorda com a toscana. Sextus Julius Frontinus (25-104) com sua obra De Aquis et Aqueductibus Urbis Romae, ao descrever o sistema de captação e condução de água que abastecia Roma, cita Vitrúvio como o possível introdutor na cidade do módulo quinaria, que tinha secção muito apropriada.

Século II (101 – 200)

Não se conhecem referências a Vitrúvio, mas supõe-se que seu texto fosse conhecido por eruditos como Tácio, Plínio, o Jovem e Suetônio. Embora os letrados não tenham deixado provas deste seu conhecimento, a atividade construtora foi intensa nos tempos de Trajano (98 – 117) e de seu sucessor Adriano (117 – 138): Fórum de Roma, as Termas e o Mercado.

Século III (201 – 300)

Aparece uma nova e atuante geração literária que se apaixona pelos escritores do passado. Ao lado de inúmeras obras, Cetius Faventinus e Gargilius Martialis retomam a obra de Vitrúvio.

Cetius Faventinus intitulou sua compilação como Artis Architectonicae Privatis Abreviatus Líber. Aqui, aparece pela primeira vez a palavra Polio junto ao nome de Vitrúvio. Isto fez surgir a hipótese de que eram várias as pessoas chamadas Vitrúvio. Choisy (1909,p.259) interpôs uma vírgula entre os nomes Vitrúvio e Polio, para justificar que era outro autor.

Isto nunca foi comprovado e assim o sobrenome Polio agregou-se naturalmente ao nome. No século IX, havia uma cópia desta obra na Biblioteca do Mosteiro de Saint-Gall.

Trata exclusivamente da arquitetura civil privada, não tendo seu texto o rigor científico de Vitrúvio, talvez por ser produto de um compilador e não de um arquiteto. Esta obra marca o início de um hábito muito importante, que é o de produzir manuais práticos, que seriam muito utilizados nos séculos seguintes.

Gargilius Martialis é posterior a Cetius Faventinus. Escreveu um compêndio prático, para o qual utilizou fontes como Vitrúvio e Cetius.

Sérvio (360 – 411), quatro séculos após a morte do arquiteto romano, em seu livro Commentarii sobre a Eneida de Virgílio, recorda que Vitrúvio escreveu sobre arquitetura. Embora seja uma breve citação, fica demonstrada que a memória de Vitrúvio não havia sido esquecida.

Século V (401 – 500)

Os últimos testemunhos da civilização antiga no Ocidente aparecem com grande importância na transmissão da cultura às épocas vindouras ao suceder antigos eruditos que se dedicaram principalmente à matemática, geografia e medicina.

Martianus Capella escreveu entre 410 e 439, As Bodas de Mercúrio, da Filologia e das Sete Artes Liberais, uma enciclopédia onde se sistematizava os estudos que perdurariam por toda a Idade Média: o Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música) que juntos compõem as Sete Artes Liberais.

No seu Quadrivium desaparecem as matérias referentes a Arquitetura e Medicina que haviam sido aí anteriormente incluídas por Marcus Terencius Varron (116 – 27 AC). Apesar de Capella não tratar de arquitetura, refere-se ao gnomon descrito por Vitrúvio. Isto nos leva a crer que conhecia o De Architectura, fato comum entre os intelectuais da época.

Sidônio Apollinar (430 – 486) era de família nobre, tendo sido prefeito de Roma quando os bárbaros já invadiam as províncias romanas e o Império já dava mostras de seu colapso. Referiu-se a Vitrúvio em suas Cartas, comparando-o a Orfeu, Esculápio, Arquimedes e outros sábios da Antiguidade, entre estes Perdix, o mítico inventor do compasso.

Foi o último testemunho deixado pela Antiguidade sobre Vitrúvio nestes anos cruciais de encontro entre as civilizações romana e bárbara.

O agonizante Império Romano finalmente cai em 476, com a deposição do Imperador pelo godo Odoacro, inaugurando assim uma nova civilização no ocidente europeu que seria chamada de Idade Média.

Século VI (501 – 600)

Aparecem neste e no próximo século, os homens que pelo estudo e sabedoria serão denominados de Fundadores da Idade Média: Boécio, Cassiodoro, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda (do qual não se tem registro do conhecimento do texto vitruviano).

Mancio Severino Boécio (Roma 480 – Pávia 525) – de família romana nobre, tinha o cargo de mestre do palácio na corte do rei ostrogodo Teodorico. Boécio é chamado de o último romano, tendo escrito suas ideias baseado em Platão e Aristóteles.

Escreveu valiosos trabalhos sobre Geometria – tão importantes que ficaram por muito tempo conhecidos como a Geometria de Boécio – Aritmética, Astronomia e Música, não por acaso, disciplinas que integravam o Quadrivium.

Por força de seu cargo palaciano, conheceu as restaurações arquitetônicas empreendidas por Teodorico no Teatro de Pompeia, nas muralhas de Roma e nos Aquedutos de Ravena. Esta experiência faz supor que Boécio conheceu o texto de Vitrúvio, ainda mais que ideias e conceitos do arquiteto romano aparecem em seus escritos.

Admite também a missão que Vitrúvio atribuiu ao arquiteto, aumentando a diferença entre sensibilidade e razão: o operário trabalha empiricamente com a ferramenta e deve aceitar a direção do arquiteto e este, calcula com precisão por meio dos instrumentos (compasso). Aos sentidos correspondem aproximações, à razão, instrumentos de precisão.

Seus textos foram lidos e consultados por estudiosos durante toda a Idade Média.

Fávio Magno Aurélio Cassiodoro (Squillace 490 – 583) – ocupou o cargo de Mestre de Ofícios de Teodorico, no trabalho de salvar os monumentos antigos. No ano de 540 abandona a vida pública e funda em sua terra natal um monastério, denominado Vivarium, para onde se retirou com sua biblioteca.

Este monastério destaca-se pelas suas oficinas e pela contratação de artesãos não religiosos. O modelo de comunidade monástica apoiava-se na colaboração espiritual e manual. Seus monges copiam manuscritos clássicos e iniciou-se uma nova sistematização do Trivium e do Quadrivium.

Sua maior obra Institutiones Divinarum et Saecularium Litterarum é um ensaio sobre as artes e ciências. Cassiodoro busca sua estética nos números e nas proporções. Discute a dispositio, que é um termo derivado de Vitrúvio, provando com isso seu conhecimento do texto.

Recomenda ainda a seus monges, a leitura do obra de Gargilius Martialis, que provinha diretamente de Vitrúvio.

Século VII (601 – 700)

Isidoro de Sevilha (570 – 636) – foi nomeado arcebispo de Sevilha no ano 600, tornando-se chefe da Igreja cristã na Espanha. É o mais importante dos Fundadores da Idade Média.

Continuando com os critérios de Boécio e Cassiodoro, incorpora grande volume de conhecimentos ao compilar notas científicas, artísticas e todo tipo de trabalho de escritores e tratadistas da Antiguidade.

Valeu-se para tanto do primeiro Scriptorium da Espanha, onde reuniu vasta biblioteca. Nesta biblioteca encontravam-se duas obras de Vitrúvio: o De Architectura e o De Diversis Fabricis Architectonicis e os comentários de Sérvio sobre Virgílio, que fazem referências ao arquiteto romano.

Século VIII (701 – 800)

Das cópias conhecidas do De Architectura feitas até o final do século VIII figuram, a Harlleianus 2767 do Museu Britânico e a Regia Latina 1504 da Biblioteca do Vaticano, que provavelmente foi terminada no século IX.

Neste século, nasce Eginardo (770 – 840), artista e estudioso que terá papel destacado no Renascimento Carolíngio que se inicia com a coroação de Carlos Magno no ano 800.

Século IX (801 – 900)

Carlos Magno, o grande imperador do Ocidente, coroado no Natal do ano 800 pelo próprio Papa, tentou reviver o antigo Império do Ocidente, tendo como missão sustentar o cristianismo com a espada e com a cultura. Assim com a colaboração de guerreiros e sábios, tem início um renascimento cultural que ficou conhecido como o Renascimento Carolíngio e que se estendeu entre os séculos IX e X.

É neste meio que apareceu Eginardo, que conhecendo o tratado de Vitrúvio, interpreta-o para resolver problemas construtivos e criar soluções para as obras que perseguiam as ideias da arquitetura romana.

Eginardo compunha com os cânones do classicismo, aconselhando à compreensão e interpretação do De Architectura. Carlos Magno manifesta nos Libri Carolini seu orgulho em levantar igrejas magníficas segundo os modelos da Antiguidade indicados por Vitrúvio.

De acordo com o desejo do Imperador, Eginardo reviveu os fundamentos estéticos e técnicos da Antiguidade, procurando construir more romanorum, por efeito direto dos conceitos vitruvianos.

No ano 844, Rabano Mauro, arcebispo em Maguncia e autor do tratado De Universo Libri XXII,menciona no capítulo II do Livro XXI, as condições vitruvianas de dispositio, constructo e venustas.

As cópias conhecidas são: Bruxellensis 5253 da Biblioteca Real de Bruxelas (copiada entre 850 e 863) e a Gudianus 132 da Biblioteca Herzog-August de Wolfenbüttel, que contém um resumo de Cetius Faventinus.

Século X (901 – 1000) – Idade Média Central

No ano de 926, aparece a Constitutio de York que na verdade é um conjunto de regras de comportamento, convivência e obrigações dos Mestres Pedreiros, a qual em uma de suas prescrições aconselha o estudo dos tratados de Euclides e Vitrúvio.

As cópias conhecidas são: Pithoeanus Lat.10277 da Biblioteca Nacional de Paris; Scletstatensis,ms.17 da Biblioteca e Arquivos Municipais de Selestat; Cottonianus da Biblioteca Britânica; Franckeranus da Biblioteca Provincial de Leeuwarden (com texto integral); Leidensis Voss 88 da Universidade de Leiden e a Escorialensis 111,F.19 da Biblioteca do Monastério de San Lorenzo (com texto integral).

Século XI (1001 – 1100)

Durante este século, embora continuasse ainda a tradição carolíngia, aparece a Escolástica, com suas diversas escolas e começa a preparação para o maior momento criativo da Idade Média, que será chamado de renascimento do século XII, o Renascimento Medieval. É aqui que dar-se-á o nascimento efetivo da cristandade ocidental.

Embora floresça a arquitetura românica, encontramos alguns testemunhos de Vitrúvio através do uso de termos técnicos de seu vocabulário e da aplicação de sua teoria de proporções do corpo humano na igreja de São Fidelis em Como.

As cópias conhecidas são: Paris Lat. 7227 da Biblioteca Nacional de Paris (contém algumas ilustrações); Paris Lat. 1236 da Biblioteca Nacional de Paris; Harleianus 3859 da Biblioteca Britânica; Leidensis Voss 107 da Biblioteca de Leiden e Gudianus 69 da Biblioteca HerzogAugust de Wolfenbüttel.

Século XII (1101 – 1200)

O mundo medieval sente neste século melhorias nos aspectos materiais decorrentes de importantes progressos na agricultura, como a rotação dos campos para plantio, domínio da tração animal dos cavalos com o aprimoramento dos arreios e a liberação do uso da energia humana nos trabalhos.

Estas novas condições fortaleceram as cidades, com a produção de excedentes que para lá eram carreados. O crescimento demográfico logo se faz sentir e o consequente incremento comercial transforma a economia de tradição essencialmente agrícola em uma nova, de caráter monetário. O novo panorama transmite-se à arquitetura e às artes.

Este pré-Renascimento (do século XVI) , ficou conhecido como o Renascimento Medieval, surgindo então um grande interesse pela arqueologia e pela aquisição de antiguidades clássicas, especialmente elementos arquitetônicos utilizados pelos romanos.

John de Salisbury conheceu os tratados de Frontino e Capella, Adelard of Bath traduz do árabe Os Elementos de Euclides e na Espanha são traduzidos inúmeros manuscritos árabes dos clássicos gregos abrangendo uma infinidade de campos do conhecimento e da
filosofia. O Almagesto de Ptolomeu é uma destas obras traduzidas.

Da seleta classe dos literatos de então, os únicos que citam Vitrúvio são Thierry de Saint Trond em dois poemas onde celebra as máquinas maravilhosas (deve ter conhecido o De Architectura por ter residido na abadia de Eginardo) e Isaac Tzetzes em seus comentários ao Alexandra de Licofronte.

Não se conhecem citações pelos escritores escolásticos no século XII.

Petrus Diaconus continuou o Chronicon Monasterii Casinensis de Leo Ostiensis (1046 – 1115) onde descreve em detalhes a construção da abadia de Montecassino, que foi planejada de acordo com as ideias de Vitrúvio. As medidas e proporções do templo são relacionadas às do corpo humano.

Petrus escreveu também o Vitruvium De Architectura Abbreviavit, que é um resumo do tratado e que foi conservado na biblioteca da Abadia.

As cópias conhecidas são: Berlin 601 da Biblioteca Estatal de Berlim, contendo o texto quase completo e ainda o tratado De Arithmetica de Boécio; British Add. 38818 da Biblioteca Britânica com o texto completo; Roma Reg. Lat. 2079 e Roma Urb. Lat. 293, ambas da Biblioteca do Vaticano e com o texto completo.

Século XIII (1201 – 1300)

É o chamado Grande Século, pois abrigou um grande rei, São Luiz; um grande filósofo, São Tomás de Aquino; um grande pintor, Giotto e um grande literato, Dante Alighieri. É também o século das catedrais francesas – opus francigenum – e das universidades.

Restaura-se a filosofia grega com as traduções de textos árabes na importante Escola de Tradutores de Toledo na Espanha a aparecem as Summas de São Tomás de Aquino, Alberto Magno e Hugo de São Vitor.

A cristandade ocidental precisa então definir quais os aspectos da cultura pagã aristotélica poderia aceitar. As respostas serão tentadas pela Escolástica.

À estética do século XII que girava em torno de composição, beleza e proporções, junta-se um especial interesse a tudo que é claridade, luz e esplendor. É a resposta estética ao bem estar material que se instala e alarga os limites da vida terrena: se a luz é a fonte de
toda beleza, a luminosidade da arquitetura gótica se impõe.

A estética cisterciense de São Bernardo recusava tudo o que pudesse excitar a curiosidade ou o prazer nas abadias e com isso conduz a uma arquitetura despojada, simples e de proporções apenas necessárias. Os refinamentos levariam a arquitetura gótica, a partir da metade do século XIII, a iniciar sua decadência e a extrema habilidade dos Mestres Construtores, a executar variações formais de um problema já resolvido.

Neste ambiente de rigor cisterciense, mas de prosperidade econômica viveram três homens muito interessados no tratado de Vitrúvio: Vicente de Beauvais (1190 – 1264), São Alberto Magno (1206 – 1280) e São Tomás de Aquino (1225 – 1274).

Este interesse confirma a importância que os círculos cultos devotavam ao De Architectura, mesmo na época mais vigorosa da arte gótica.

Vicente de Beauvais cita textualmente a teoria vitruviana das proporções humanas em seu Speculum Naturale.

São Alberto Magno é o responsável por trazer a doutrina de Aristóteles para junto do cristianismo. Cita Vitrúvio em sua obra De Natura Locorum.

São Tomás de Aquino recebeu educação esmerada até a universidade e quando ingressou na ordem dos dominicanos, teve São Alberto Magno por professor. A ideia tomista de arte é aristotélica e encontra-se desenvolvida na Summa Teológica. Na arquitetura segue Vitrúvio, mas concede grande importância ao sentido da visão, pois na
ideia da apprehensio – conhecimento intuitivo – considera a contemplação visual o mesmo que o prazer estético, introduzindo com isso a perspectiva e a óptica.

As cópias conhecidas são: Harleianus 2760 da Biblioteca Britânica, com o texto completo; Roma Lat. 2230, Roma Lat. 6020, Roma Reg. Lat. 1328 todas da Biblioteca do Vaticano e com texto completo; Leidensis Voss. 93 da Biblioteca de Leiden que contem apenas extratos do texto; Escorialensis O .H.5 da Biblioteca do Monastério de San Lorenzo com o texto completo e Florentinus Plut.XXX,13 da Biblioteca Laurentiana de Florença também com o texto completo.

Século XIV (1301 – 1400) – o Trecento – Idade Média Tardia

Continua a concentração de riquezas e a elevação do nível material de vida, circunstância que possibilitará o aparecimento dos mecenatos que impulsionarão a produção e a divulgação da arte e da cultura.

Apesar de inúmeras calamidades como a Peste Negra que irrompeu em meados do século, o enriquecimento deu-se em proporção maior que no século anterior, onde determinados hábitos de vida estavam limitados às classes sociais superiores.

Os costumes ligados especialmente ao luxo difundiram-se para largos extratos da sociedade: prenunciava-se uma nova etapa da vida medieval.

Seria uma época tão diferente da medieval de até então, como esta fora da Antiguidade. Dante (1265 – 1321) escreve sua Divina Comédia em língua vulgar, destinada aos leitores leigos que tinham grandes dificuldades com o latim de norma culta, o padrão então vigente para as obras de literatura.

Esta nova postura frente à produção intelectual expandia a difusão da cultura erudita e escolástica às diferentes camadas da sociedade laica.

A concepção europeia de poder vai se tornando mais civil, derivada principalmente do estudo do Direito Romano. A nobreza e o clero ainda dominam a sociedade embora a crescente burguesia vá se infiltrando nos altos círculos do poder.

A individualidade humana começa a ser percebida através da busca do reconhecimento, colocando-se o artista não mais anonimamente a serviço da nobreza ou do clero, mas afirmando claramente seus dotes e talentos.

O trabalho dos artistas medievais dos séculos anteriores que quase sempre ficava anônimo é substituído pelo trabalho assinado do artista deste século. De fato, ainda permanecemos na Idade Média por convenção histórica, pois as transformações são muito relevantes.

Deste modo, a cristandade ocidental experimenta na literatura deste século, sob a influência dos Humanistas do Trecento, Dante (1265 – 1321), Petrarca (1304 – 1374) e Boccaccio (1313 – 1375) a nova tendência que a arte apresentará no próximo século: o culto apaixonado ao glorioso passado da Antiguidade.

Francesco Petrarca adquiriu entre 1351 – 1353 uma cópia do De Architectura, possivelmente de um exemplar francês, cujo texto corrigiu cuidadosamente. Seu propósito era a depuração da língua latina, a restauração do estudo do grego e o conhecimento pontual de textos da Antiguidade.

Giovanni Boccaccio era amigo e discípulo de Petrarca e contrariamente ao seu mestre, cujo tema básico era a volta aos clássicos, o seu era a volta à natureza. Copiou seu próprio exemplar do De Architectura do volume existente na Biblioteca da Abadia de Montecassino. Seu interesse pela obra foi provavelmente a curiosidade histórica e os aspectos filológicos.

As cópias conhecidas são: Paris Lat. 7228 da Biblioteca Nacional de Paris com texto completo; Eton B.I.4.10 da Biblioteca de Eton com texto completo; Etonensis Auctar F.5.7 da Biblioteca Blodeian de Oxford com texto completo; Medicensis Plut. XXX.10 da Biblioteca Laurentiana de Florença com texto completo; Estensis VI.B.10 da Biblioteca de Módena com o texto completo e o Da Aqueductibus de Frontino; Basilicus H.34 da Biblioteca da Basílica de São Pedro em Roma com texto completo; Cicognara 691 da Biblioteca do Vaticano com texto completo; Ottoboni 1522 da Biblioteca do Vaticano com texto completo; Roma Lat. 2229 da Biblioteca do Vaticano com texto completo; Wratislaviensis R.142 da Biblioteca Municipal de Wroclaw com texto completo e Oxford Laud 66B da Biblioteca do St. John’s College de Oxford com texto completo.

Século XV (1401 – 1500) – o Quattrocento

Em 1440 é fundada em Florença a Academia Platônica, com o propósito de abandonar a Escolástica e renovar a filosofia antiga. O espectro da necessidade de uma reforma religiosa começa a materializar-se.

Niccolo Cusano (1401 – 1464) tenta superar as contradições e colocar de acordo o mundo e Deus, acalmando as inquietudes espirituais que a força do pensamento racionalista suscita e que vai provocando uma deterioração nos conceitos da Igreja.

Os grandes nomes deste século: Filippo Brunelleschi (1377 – 1446), arquiteto, vencedor do concurso para a construção da cúpula da Igreja de Santa Maria das Flores em Florença; Fra Angélico (c.1400 – 1455) que pinta a primeira pespectiva; Paolo Ucello (1397 – 1475) com a complexa perspectiva do afresco da Natividade e com grande influência sobre Piero della Francesca e Leonardo da Vinci e Leon Batista Alberti (1404 – 1472) que escreve em língua vulgar seu tratado Da Pintura e o dedica a Brunelleschi.

As formas arquitetônicas criadas por Brunelleschi e baseadas na maneira romana, ressuscitaram o modo antigo de construir e seu trabalho de restaurador da arquitetura clássica iria condicionar os séculos seguintes.

Isto faz supor que Brunelleschi conheceu o tratado de Vitrúvio, embora não se tenha prova disso. Mas, se considerarmos o seu relacionamento social e cultural, num meio onde se encontravam artistas, eruditos, cientistas e construtores, é muito provável que algum deles conhecesse o De Architectura e comentasse o fato. Além disso, a descoberta em 1416 do texto de Vitrúvio no Mosteiro de Saint Gall foi um fato de grande repercussão para o circuito cultural.

Talvez o fato de Brunelleschi não dominar muito bem o latim, possa fortalecer a hipótese do conhecimento do texto através de outras pessoas e com isso desobrigá-lo de seguir estritamente seus preceitos, fato confirmado em sua interpretação pessoal de alguns daqueles cânones vitruvianos.

Lorenzo Ghiberti, que conhecia o tratado de Vitrúvio também foi escolhido no concurso para a construção da cúpula de Florença, tendo colaborado com Brunelleschi. Escreveu no fim da vida, os Commentarii, onde seu o programa para a educação do arquiteto é retirado de Vitrúvio, as proporções prescritas são criticadas em função do estabelecimento de suas próprias.

Muitos historiadores consideram que é no Quattrocento italiano que se reiniciou o culto a Vitrúvio, com a descoberta da cópia de seu tratado por Poggio Bracciolini no Monastério de Saint-Gall em 1416, quando estava a serviço da Chancelaria do Vaticano no Concílio na cidade de Constanza.

Na verdade, Petrarca e seus amigos já haviam iniciado esta difusão desde o século XIV.

Leon Batista Alberti, chamado de o último vitruviano medieval, desenvolve uma interpretação pessoal dos conceitos de Vitrúvio. O artista utilizando o critério medieval de repetidas medições nas ruínas romanas, procurava recuperar as proporções e estudá-las comparativamente com as normas vitruvianas.

Com estes critérios e seu espírito humanista, escreve o Descriptio Urbis Romae por volta de 1450, onde os edifícios são locados com a utilização de coordenadas polares.

Sua obra maior, porém é o tratado De Re Aedificatoria, que supera toda sua produção anterior.

O mesmo caminho de Vitrúvio que aprendeu analisando monumentos, textos e documentos gregos, Alberti trilhou ao modernizar para sua época as tradicionais ideias helenísticas. Catorze séculos depois, Alberti aprende com a análise das ruínas romanas para escrever sua obra.

Ambos se apoiavam em conceitos análogos, mas tinham objetivos diferentes: Vitrúvio escreveu primeiramente para arquitetos e depois para literatos; Alberti se dirige aos humanistas e secundariamente aos arquitetos, que poderiam eventualmente tirar daí alguma utilidade.

Esta postura deixa claro que o propósito desta produção cultural é dirigido às classes eruditas e não à categoria dos mestres construtores das Corporações de Ofícios. Aí, como veremos reinará a Geometria Fabrorum e a transmissão oral do conhecimento prático.

Vitrúvio, como arquiteto compôs o De Architectura para ensinar a prática da arquitetura e define para isso as regras de execução: firmitas, utilitas e venustas enquanto Alberti como humanista em sua De Re Aedificatoria valoriza a arquitetura como arte suprema, considerando que seus materiais, função e beleza têm como única  finalidade criar um edifício que valorize o entorno e a cidade (CERVERA VERA,1978).

Este século apresenta o maior número de cópias do tratado de Vitrúvio. As cópias conhecidas são: Wien Ms.54 com resumo do texto vitruviano; Wien Ms.310 com fragmentos do Livro III; Wien Ms.3113 com o texto completo, todos da Biblioteca Nacional de Viena; Paris Lat. 7382 com texto completo; Paris Nouv.Acq.Lat.1422 com texto completo, ambos da Biblioteca Nacional de Paris; Berlin Cód. Lat.Quart.735 com texto completo da Biblioteca de Berlim; British Arundel 122 com texto completo; British Harley 2508 com texto completo; British Harley 4870 com texto completo, todos da Biblioteca Britânica; Budapest Ms.32 com texto completo da Biblioteca Universitária de Budapeste; Bologna Ms. 1215 com texto completo da Biblioteca Universitária de Bologna; Cesena Plut. XX,Cód.111 com texto completo da Biblioteca Malatestiana de Cesena; Medicea-Laurenziana Acq.E Don.297 com texto completo; Medicea-Laurenziana Plut. XXX,11 com texto completo; MediceaLaurenziana Plut. XXX,12 com texto completo, todos da Biblioteca Laurentiana de Florença; Firenze Magl. XVII, Cód.5 com texto completo da Biblioteca Nacional de Florença; Ambrosiana A 90 Sup. com texto completo; Ambrosiana A 137 Sup. com texto completo, ambos da Biblioteca Ambrosiana de Milão; Corsini Ms. 784 com texto completo da Biblioteca Corsini de Roma; Vallicella Ms. D31 com texto completo e uma seleção de textos de Faventinus da Biblioteca Patrum Oratori de Roma; Barberini Lat. 90 com o texto completo; Chisianus H. IV. 113 com texto completo; Chisianus H. VI. 189 com texto completo; Cicognara 692 contendo apenas os três primeiros Livros; Ottoboni 1233 com texto completo; Ottoboni 1561 com texto completo; Ottoboni 1930 com texto completo; Palatinus Lat. 1562 com texto completo; Palatinus Lat. 1563 com texto completo e o tratado Stratagematicon de Frontino; Roma Reg. Lat. 1965 com texto completo; Roma Urb. Lat. 1360 com texto completo, todos da Biblioteca do Vaticano; Marciano Classis XVIII, Cód. 1 com texto completo; Marciano Classis XVIII, Cód. 2 com texto completo, ambos da Biblioteca Marciana de Veneza; Kurnik com texto completo da Biblioteca do Monastério Zamoyski em Kurnik na Polônia; Toledo Reg. CDXVI, 581 com texto completo da Biblioteca do Cabildo de Toledo; Valencia Ms. 2411 com texto completo da Biblioteca da Universidade de Valencia e Metropolitan Museum com texto completo do Departamento de Impressos do Museu Metropolitano de Artes de Nova York.

Em 1453, cai Constantinopla em poder dos turcos e junto com o Império Bizantino termina historicamente a Idade Média. Os diferentes aspectos culturais e condições materiais existentes no século XV serão impulsionados e claramente definidos no século XVI, com o Renascimento, na Idade Moderna.

2.2 – A organização da Obra

Marcus Vitruvius Pollio produziu o mais famoso e importante texto do mundo ocidental, versando sobre arquitetura paisagística, arquitetura, engenharia civil, engenharia mecânica e planejamento urbano.

A preocupação em varrer campos tão extensos e diferentes no entender atual justificava-se, pois nos tempos romanos, o arquiteto era o técnico principal, exatamente como ensinava a etimologia grega de origem desta palavra.

O conteúdo da obra revela mais aspectos de engenharia (construção de portos, planejamento urbano, aquedutos, bombas, relógios e máquinas de guerra), parecendo ser este o principal escopo do autor. Somente uma pequena porção de assuntos tem como foco principal a arquitetura.

Os assuntos principais e os capítulos de cada um dos Dez Livros de Vitrúvio, em terminologias atuais são relacionados a seguir.

  • Livro I – Arquitetura Paisagística
    Prefácio – Elogios e agradecimentos ao Imperador
    Capítulo I – A educação do arquiteto
    Capítulo II – Os principais fundamentos da Arquitetura
    Capítulo III – As divisões da Arquitetura
    Capítulo IV – O sítio da cidade
    Capítulo V – Os muros da cidade
    Capítulo VI – A direção das ruas e comentários sobre os ventos
    Capítulo VII – Os lugares para edifícios públicos
  • Livro II – Materiais de construção
    Introdução
    Capítulo I – As origens da habitação
    Capítulo II – A substancia primordial de acordo com os físicos
    Capítulo III – Tijolos
    Capítulo IV – Areia
    Capítulo V – Cal
    Capítulo VI – Cimento Pozolânico
    Capítulo VII – Pedras
    Capítulo VIII – Métodos para construir muros
    Capítulo IX – Madeiras
    Capítulo X – Abetos da região do mar Tirreno e do Adriático
  • Livro III – Templos (Parte I)
    Introdução
    Capítulo I – Simetria nos templos e no corpo humano
    Capítulo II – Classificação dos templos
    Capítulo III – As proporções de intercolúnios e colunas
    Capítulo IV – Fundações e infraestrutura dos templos
    Capítulo V – Proporções: base, capitel e entablamento da ordem Jônica
  • Livro IV – Templos (Parte II)
    Introdução
    Capítulo I – A origem das três ordens e as proporções do capitel coríntio
    Capítulo II – Os ornamentos das ordens
    Capítulo III – Proporções dos Templos Dóricos
    Capítulo IV – A Câmara Principal e o Vestíbulo
    Capítulo V – A aparência dos Templos
    Capítulo VI – A circulação nos Templos
    Capítulo VII – Templos Toscanos
    Capítulo VIII – Templos circulares e variantes
    Capítulo IX – Altares
  • Livro V Espaços Públicos
    Introdução
    Capítulo I – O Fórum e a Basílica
    Capítulo II – O Tesouro, a Prisão e o Senado
    Capítulo III – O Teatro: seu lugar, fundações e acústica
    Capítulo IV – Harmonia
    Capítulo V – Som no Teatro
    Capítulo VI – Planta do Teatro
    Capítulo VII – Teatro Grego
    Capítulo VIII – Acústica do lugar do Teatro
    Capítulo IX – Colunatas e passeios
    Capítulo X – Banhos
    Capítulo XI – O Ginásio
    Capítulo XII – Portos, quebra-mar e estaleiros
  • Livro VI – Habitação Privada
    Introdução
    Capítulo I – O clima como determinante no estilo da casa
    Capítulo II – Simetria e modificações para adaptação ao sítio
    Capítulo III – Proporções das principais salas
    Capítulo IV – Exposições apropriadas nos diferentes espaços
    Capítulo V – Adaptação de salas
    Capítulo VI – O proprietário
    Capítulo VII – A casa da fazenda
    Capítulo VIII – A casa grega
    Capítulo IX – Fundações e infraestrutura
  • Livro VII – Acabamentos e Cores
    Introdução
    Capítulo I – Pisos
    Capítulo II – Cal extinta para estuques
    Capítulo III – Abóbadas e trabalho em estuque
    Capítulo IV – O trabalho de estuque em lugares úmidos e a decoração
    da sala de jantar
    Capítulo V – A decadência do afresco
    Capítulo VI – Mármore para uso em estuque
    Capítulo VII – Cores naturais
    Capítulo VIII – Cinabre e mercúrio
    Capítulo IX – Cores artificiais: preto, azul e ocre queimado
    Capítulo X – Chumbo, pátina de cobre e resina amarela
    Capítulo XI – Roxo púrpura
    Capítulo XII – Substitutos para roxo púrpura, amarelo ocre, verde e anil
  • Livro VIII – Abastecimento de Água
    Introdução
    Capítulo I – Como encontrar água
    Capítulo II – Água de chuva
    Capítulo III – Propriedades de diferentes águas
    Capítulo IV – Testes para determinar boas águas
    Capítulo V – Nível e instrumentos de nivelamento
    Capítulo VI – Aquedutos, fontes e cisternas
  • Livro IX – Relógios de Sol e Relógios
    Introdução
    Capítulo I – O Zodíaco e os planetas
    Capítulo II – As fases da Lua
    Capítulo III – O curso do Sol através dos doze signos
    Capítulo IV – As constelações do Norte
    Capítulo V – As constelações do Sul
    Capítulo VI – Astrologia e previsão do tempo
    Capítulo VII – Escala gráfica da declinação do sol e aplicações
    Capítulo VIII – Relógio de Sol e Relógio de Água
  • Livro X – Engenharia Mecânica
    Introdução
    Capítulo I – Máquinas e Implementos
    Capítulo II – Máquinas de levantar pesos
    Capítulo III – Os elementos do movimento
    Capítulo IV – Máquinas para elevar água
    Capítulo V – Engrenagens e Moinhos d’água
    Capítulo VI – O parafuso de Arquimedes (rosca d’água)
    Capítulo VII – A bomba de Ctesibius
    Capítulo VIII – O órgão de água
    Capítulo IX – O Hodômetro
    Capítulo X – Catapultas e escorpiões
    Capítulo XI – Balística
    Capítulo XII – Cabos e ajustes da catapulta
    Capítulo XIII – Máquinas para sitiar cidades
    Capítulo XIV – A Tartaruga (plataforma de ataque)
    Capítulo XV – A Tartaruga de Hegétor de Bizâncio
    Capítulo XVI – Medidas de defesa

Continua…

Autor: Francisco Borges Filho

Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Estruturas Ambientais Urbanas.

Fonte: Digital Library USP – Theses and Dissertations

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Maçonaria e Antimaçonaria: Uma análise da “História secreta do Brasil” de Gustavo Barroso – Parte VII

NOTAS SOBRE "OS PROTOCOLOS DOS SÁBIOS DE SIÃO" - Loryel Rocha ...

3.2 – A entrada em cena da Maçonaria

A Maçonaria surge na narrativa no capítulo dez, aproximadamente metade do livro, a partir da ligação entre judeus e maçons, introduzida pelo autor por meio da obra de Dario Vellozo, O Templo Maçônico. Segundo Barroso, foram os ocultistas Rosa-Cruzes que inseriram a cabala judaica na poderosa corporação dos Pedreiros Livres, que durante a Idade Média gozavam do monopólio da construção de edifícios públicos e das catedrais góticas. Iniciava-se ali uma nova fase na história da Maçonaria, que deixava de ser exclusivamente “operativa” para se tornar uma associação “moderna e filosófica”[281]. Deste modo, a cabala viveu sempre no mais profundo seio dos mistérios da Maçonaria, destinada a propagação de seus ensinamentos. Barroso afirmou, parafraseando Michelet, que a doutrina maçônica nada mais era do que o judaísmo cabalista, que daí por diante espalhou-se por toda a Europa.

Na Inglaterra, destinada a ser, no século XVIII, a mãe da maçonaria, a infiltração nos pedreiros-livres ocorreu em 1703. A maçonaria surgiu em França no reinado de Luiz XV, em 1737, com grande aceitação dos fidalgos fúteis e cortesãos. Relata um cronista coévo que mantinha “inviolável segredo” quanto ás suas “assembleias ocultas e perigosas para o Estado”. Vinha importada da Inglaterra e o cardeal de Fleury, primeiro ministro, mandou fecha-la manu militari. Imputavam-lhe, como se vê, o mesmo propósito dos Templários: destruir a Religião e o Trono, destruindo o Estado). Iniciava a preparação do terremoto social de 1793. Porque nenhuma revolução, confessa o maior dos técnicos revolucionários modernos, pode triunfar sem antes haver destruído os fundamentos do Estado.[282]

Tempos depois o marquês de Pombal inaugurou em Portugal a “era dos maçons”, que não passavam de cristãos novos. Conforme informou Barroso, as duas palavras eram sinônimos e, no campo, Pedreiro Livre significava judeu. Por seu turno, no Brasil, as lojas
maçônicas remontariam ao século XVIII.

Precederam de um quarto de século a translação da corte. Umas foram instaladas sob os auspícios do Grande Oriente português, algumas sob os do de França; outras, independentes deles. Todas do rito adonhiramita. Fundaram-se no Rio de Janeiro, na Bahia e em Pernambuco. Embora não tendo à mão o documento maçônico de que extraímos estes dados, o consciencioso historiador Joaquim Felício dos Santos declara não saber, ao certo, como se introduziu a maçonaria no nosso país; mas afirma, com razão, que, no meado do século XVIII, “já funcionava na Bahia o Grande Oriente”, começando seu “trabalho lento, oculto, persistente, para a nossa independência. Essa independência dos países sul-americanos, na opinião dum dos homens que melhor estudarem a questão nas suas causas e efeitos, não era propriamente um fim para a maçonaria, porem um meio de enfraquecer Espanha e Portugal, isto é, os dois maiores inimigos do judaísmo: latinidade e catolicidade.[283]

Para o autor o verdadeiro papel da Ordem maçônica era estudar, investigar e dar curso ás ordens recebidas pelo poder “Oculto de Israel”. Ao atrair adeptos e realizar a propaganda de seus ideais, a Maçonaria preparava o terreno para que os judeus pudessem agir sobre a grande massa do povo.

Para isso, o envenenam com ideias de aparência liberal e filantrópica, verdadeiras utopias na maior parte dos casos, todas, sem exceção, destruidores dos lineamentos da ordem social e geradoras de ódios. Com tais ideologias, o Governo Oculto de Israel pretende dominar o mundo. Os que servem à maçonaria ignoram que, atingido esse desideratum, eles, meros instrumentos e intermediários do judaísmo, desaparecerão na voragem. Assim, aconteceu na Rússia bolchevista, onde a maçonaria foi terminantemente proibida após o triunfo judaico, somente sendo permitida a abertura das lojas recentemente, em virtude da pressão de novas necessidades políticas.[284]

A Maçonaria seria o “agente preparatório” que, passando despercebido do comum dos mortais, dava prosseguimento à dominação judaica. Através do segredo maçônico, o “Poder Oculto Internacional” provocava em todos os organismos governamentais as divisões intestinais das quais resultaria a fraqueza do Estado e, consequentemente, a sua destruição.

A conspiração judaica contra o mundo inteiro é antiquíssima e permanente. Desde o cativeiro de Babilônia até o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, durante cinco centenários, os judeus viveram numa “conspiração contínua”. Contra os persas, contra os egípcios, contra os sírios, contra os romanos.[285]

Nas palavras de Barroso se temia mais os inimigos internos do que os externos, a começar pelos jovens brasileiros que iam estudar na Europa, sobretudo nas universidades de Montpellier e Paris, e ao regressarem vinham cheios de entusiasmo pela grandeza da terra brasileira comparada com a exiguidade européia e cheios de maior entusiasmo ainda pelo exemplo norte-americano e pela figura do maçom Benjamim Franklin.

Em França, começava a lavrar pelas forças ocultas, prenunciadora da Grande Revolução, a qual ia incendiando os nossos patrícios em contato com a juventude revolta das escolas francesas. Levados por essas idéias e entusiasmos, houve estudantes brasileiros em França que procuravam entabolar negociações para a nossa independência com potencias estrangeiras, como José Joaquim da Maia, Domingos Vidal Barbosa, José Mariano Leal e José Pereira Ribeiro. Maia, de nome certamente herdado dos forasteiros de 1709, escreveu, em 1786, a respeito de seus propósitos libertadores, a Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos, o qual lhe concedeu uma entrevista romântica nas arenas de Arles.[286]

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a “gravidade” que as “conspirações maçônicas” ganharam na explicação da história do Brasil. Para isso Barroso vira de ponta cabeça os mitos maçônicos e os re-significa. Como já vimos, um exemplo foi a Inconfidência de Minas, de 1789, que na lógica da História secreta do Brasil, foi dirigida pela Maçonaria.

Com o fim visível e retumbante da libertação dos brasileiros das garras da metrópole, mas com o fim mudo e latente do esfacelamento do império colonial português, o mesmo fim da conquista flamenga, e do esfacelamento do novo império que, decerto, com o tempo, se constituiria na América latina.[287]

Segundo Barroso, avolumavam-se os boatos do levante por ocasião da derrama. Foi quando entrou na história, o coronel Joaquim Silvério dos Reis, um dos delatores da Conjuração. “O cognome dos Reis era comum entre os marranos portugueses”. Além disso, o autor acrescentou que todo o seu “procedimento foi judaico” em contraposição com o do “infeliz Tiradentes, que morreu cristãmente no cadafalso, levando a sua humilhação ao ponto de oscular o verdugo. O descendente de Judas recebeu os trinta dinheiros de traição”[288].

Na noite de 17 para 18 de maio, um vulto misterioso, teria percorrido as ruas escuras de Vila Rica, e “batendo á porta dos conjurados, os preveniu que tudo estava descoberto, decerto para que pusessem a bom recato e queimassem documentos comprometedores”. Na opinião de Barroso era o “poder oculto” que procurava salvar o segredo do movimento, “nunca se conseguiu saber que vulto foi esse, quem o mandou e de onde veio”. No dia 22, os conspiradores foram presos em Minas e só voltariam à cena no século XIX[289].

Os argumentos de Barroso apoiavam-se, sobretudo, numa literatura estrangeira que incitava as ditas “teorias conspirativas”. Os autores Léon de Poncins e Emmanuel Malynski a todo o momento são referenciados no livro. Mas foi talvez a proximidade que Barroso mantivera até 1938 com clássicos anti-semitas sua maior fonte de inspiração. O autor acreditava que por traz da história contada publicamente existia uma muito mais importante e, por isso mesmo, escondida do resto da sociedade.

Na perspectiva de Maria Luiza Tucci Carneiro, os conceitos e valores anti-semitas sustentados por Barroso foram alimentados através de seus freqüentes contatos com a Alemanha, o que lhe rendeu um conhecimento aprofundado da literatura nazi-fascista. Além disso, a autora salienta que, apesar da temática polêmica, suas obras foram reeditadas sucessivamente, o que nos permite afirmar que existia um público no Brasil e no exterior, consumidor e apreciador das suas idéias. Alguns de seus trabalhos foram publicados em outros países, como, Roosevelt é Judeu traduzido para o castelhano por Mario Buzatto na Argentina, em 1938, nos Cuadernos Antijudios. Para Carneiro, Barroso não estava completamente isolado em sua postura, pois intelectuais do Sigma, em vários momentos, pronunciaram conferências sobre o racismo alemão, não escondendo sua admiração pelo Reich e pelo Führer, pela nova Itália e por Mussolini[290].

A principal fonte de inspiração de Barroso foi o livro anti-semita intitulado Os Protocolos dos Sábios de Sião. Em sintonia com a análise de Tucci Carneiro, a historiadora Maria das Graças Ataíde de Almeida defende a necessidade da análise dos Protocolos para a compreensão do discurso fundador do anti-semitismo no Brasil. A autora chama a atenção para a instrumentalidade e adaptação do uso do mito dos Protocolos. Se para os historiadores a obra é fonte testemunhal do discurso anti-semita, para a comunidade judaica é um elemento de tensão. Segundo a autora, é aqui que está o perigo do mito, exatamente por conta de sua imortalidade, atualidade e capacidade de multiplicação adaptando-se às novas tecnologias[291].

Como sabemos, os Protocolos são reconhecidamente um dos maiores best-sellers do mundo. Vários pesquisadores já despenderam enormes esforços, a fim de esmiuçar o conteúdo deste polêmico clássico. Alguns estudiosos acreditam que na classificação mundial dos best-sellers, a obra apareça em segundo lugar, logo depois da Bíblia. Trata-se provavelmente de um exagero, mas o que é certo, é que novas edições dos Protocolos apareceram nos quatro cantos do mundo[292]. Conforme sugeriu o historiador italiano Carlo Ginzburg, o clássico foi inspirado num texto de 1864, intitulado Dialogue aux Enfers entre Maquiavel e Montesquieu, de autoria do jornalista francês Maurice Joly. Deste modo, os Protocolos seriam a fortuna póstuma do referido texto. A obra, publicada pela primeira vez na Rússia em 1903, teria como autor um membro da polícia secreta do Czar Nicolau II. O texto, apresentado em forma de ata, foi supostamente redigido num Congresso realizado em Basileia no ano de 1807, onde sábios maçons, judeus, bolcheviques, rosacruzes, enfim, todas as elites das sociedades secretas, estavam reunidas em torno de um único ideal, a destruição do cristianismo. Com a Revolução Bolchevique de 1917, ocorreu definitivamente a materialização deste mal. Para as forças reacionárias, esse episódio fora revelado pelos Protocolos, alguns anos antes[293].

Por volta de 1919, apareceu na Alemanha a primeira tradução do livro, vários comentários e notas foram anexados ao documento, dando ênfase especial à “Conspiração Sionista” que ameaçava as monarquias e as igrejas cristãs. Foi a partir desta versão, nitidamente direcionada, que os Protocolos chegaram à Inglaterra, Espanha, França, Portugal… espalhando-se incrivelmente pelo globo. Na análise de Ginzburg, esta foi a obra que melhor ilustrou a versão moderna do anti-semitismo, pois todas as indicações de cunho religioso e econômico, características da cultura judaica, são organizadas no texto, como mecanismos de atuação política[294].

Em 1936, o livro foi traduzido e comentado por Barroso. A obra lhe foi apresentada logo que ingressou na AIB em 1933. Até então o autor dizia-se um leigo no assunto e não tinha escrito nada com relação ao anti-semitismo.

Quando entrei para o Integralismo, era já um escritor mais ou menos conhecido, com algumas dezenas de obras publicadas. O meu publico poderia estar que eu nunca escrevera uma palavra contra os judeus. Sabia alguma coisa a respeito da questão, mas não o bastante para me imprimir uma atitude espiritual. Foi o Integralismo que me tornou anti-judaico. A primeira pessoa que comigo conversou profundamente sob o judaísmo foi o chefe nacional Plínio Salgado. A segunda, o companheiro Madeira de Freitas, que me emprestou para ler a edição francesa dos Protocolos dos Sábios de Sião, obra que eu não conhecia. Os estudos para a feitura do livro Brasil: Colônia de banqueiros desvendaram-se os últimos mistérios da organização secreta do judaísmo. Passei então, a dar-lhe combate, baseado na doutrina e palavra de Plínio.[295]

Os comentários acrescentados por Barroso ao longo dos 24 capítulos em que se constituem o livro, na perspectiva de Jefferson William Gohl, atribuem uma importância
maior a Maçonaria na ordem do complô. Ou seja, a apropriação dos originais dos Protocolos por Barroso e suas notas explicativas emprestou um segundo plano de leitura que conferiu à Maçonaria um poder até mais significativo que teria nos originais[296]. O livro obteve uma boa receptividade, prova disso é que ainda em 1936, mais uma edição foi lançada, e em 1937 a obra já estava em sua terceira edição. Igualmente ao que ocorreu na Rússia, quando o livro só ficou famoso após a Revolução de 1917, no Brasil os Protocolos também só atingiram respaldo depois da chamada “Intentona Comunista” de 1935.

O ideólogo integralista sabia perfeitamente como explorar esse mecanismo de efeito moral. Com argumentos retirados dos Protocolos incitava a juventude militante integralista.

Vede esses animais embriagados com aguardente, imbecilizados pelo álcool, a quem o direito de beber sem limites foi dado ao mesmo tempo que a liberdade. Não podemos permitir que os nossos se degradem a esse ponto… Os povos cristãos estão sendo embrutecidos pelas bebidas alcoólicas ; sua juventude está embrutecida pelos estudos clássicos e pela devassidão precoce a que a impelem nossos agentes, professores, criados, governantes de casas ricas, caixeiros, mulheres públicas nos lugares onde os cristãos se divertem (…) A violência deve ser um princípio ; a astúcia e a hipocrisia, uma regra para os governos que não queiram entregar sua coroa aos agentes de uma nova força. Esse mal é o único meio de chegar ao fim, o bem. Por isso não nos devemos deter diante da corrupção, da velhacada e da traição, todas as vezes que possam servir as nossas finalidades. Em política, é preciso saber tomar a propriedade de outrem sem hesitar, se por esse meio temos de alcançar o poder.[297]

Nos comentários acrescidos por Barroso, a Maçonaria além de controlar as agências de informações internacionais, manipulando e disseminando as notícias de acordo com as “necessidades do judaísmo”, estaria comandando também os vários levantes extremistas. As acusações eram no sentido de demonstrar que atualmente o Kahal, ou poder secreto judeu, trabalhava na articulação da Revolução comunista que se queria impor ao Brasil. Esta “ameaça” crescia à medida que se aproximavam as eleições de 1938, por isso desqualificar os oponentes rotulando-os como maçons e/ou comunistas foi uma tática muito bem empregada pelo Chefe das Milícias integralistas.

O líder comunista João Mangabeira tem toda a razão quando afirma no seu Manifesto que o Sr. Jose Américo de Almeida é espiritualmente da esquerda. O antigo ministro da Viação nega ser maçom e diz-se católico: mas quem conhece a sua obra de escritor realista e freudiano não pode acreditar nessa afirmação dos dentes para fora. O que ele mostra ser no que escreve é um espírito anti-religioso, anti-clerical, maçônico e imoralista, virtualmente demolidor, que nada respeita e que tem o prazer masochista das causas imorais… Vamos documentar o que estamos dizendo, serenamente, com os próprios escritos do candidato à presidência da Republica.[298]

Ainda era muito recente na memória de Barroso a influência da Maçonaria na política brasileira. Afinal, o intelectual sabia que o movimento de proclamação da República, em 1889, apesar de não contar com a completa adesão do GOB, teve a participação de vários maçons, sejam eles civis ou militares. Ilustrativo dessa forte presença da Maçonaria, no cenário político, foi o fato de que assim que o Governo Provisório assumiu o poder, o então presidente o marechal Deodoro da Fonseca organizou um ministério composto somente por maçons, foram eles: Quintino Bocaiúva (ministro dos Transportes), Aristides Lobo (ministro do Interior), Benjamin Constant (ministro da Guerra), Rui Barbosa (ministro da Fazenda), Campos Sales (ministro da Justiça), Eduardo Wandenkolk (ministro da Marinha) e Demetrio Ribeiro (ministro da Agricultura). Na opinião de Morel, é importante perceber que os membros desse primeiro ministério não foram escolhidos por pertencerem à Maçonaria, mas por serem eles, com exceção de Rui Barbosa, republicanos históricos, que compartilhavam da sociabilidade maçônica[299].

De modo que, segundo Morel, passado o 15 de novembro, a Maçonaria brasileira, até então dividida quanto à forma de governo a ser adotada, parecia não ter mais pudor em si auto proclamar como o “baluarte do republicanismo”. Tornou-se comum dentro das Lojas maçônicas vangloriar os feitos dos irmãos maçons, no sentido de instaurar o novo regime, entendida como uma “grande evolução social” que colocaria definitivamente o Brasil no rumo do progresso. Esse otimismo explica-se, em grande parte, pelo fato de que o modelo republicano concretizou um dos mais importantes projetos defendidos pela Maçonaria, ao longo do século XIX, qual seja a implantação do Estado laico e secular[300].

Barroso vivenciou esta “incomoda” presença de maçons nos quadros do governo brasileiro, que ao longo da Primeira República elegeu 8 dos 12 presidentes, sendo eles, Deodoro da Fonseca, Prudente de Morais, Campos Salles, Rodrigo Alves, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás e Washington Luiz. Desses presidentes maçons, Deodoro da Fonseca e Nilo Peçanha chegaram ao cargo de Grão-mestre geral da Maçonaria. Além disso, o autor sabia que muitos maçons aproveitaram do prestigio políticos de seus irmãos na busca de favores especiais. A ajuda mútua entre os maçons foi um dos principais motivos que levou Barroso a condenar a Maçonaria.

Conforme demonstrou Colussi, no período republicano, quando da separação definitiva Estado/Igreja, a Maçonaria manteve o mesmo discurso anticlerical, desenvolvendo campanhas e iniciativas que concorriam com as promovidas pelos seus principais inimigos, especialmente os jesuítas. A filantropia e a educação se acentuaram como práticas prioritárias da Maçonaria no embate contra o fortalecimento eminente do catolicismo. Deste modo, as ações filantrópicas sistemáticas, a construção de casas de saúde e de asilos e orfanatos, as campanhas de caridade em períodos de epidemias e de secas ou enchentes, bem como alguma inserção no campo do ensino popular foram as estratégias mais importantes. Como seus porta-vozes eram, em sua maioria, ateus ou agnósticos, o que poderia chocar diversos grupos, a instituição valia-se da caridade como mediadora de sua ação; também não dirigia seus ataques à religião, nem mesmo à católica, mas à Igreja institucionalizada e hierarquizada, especificamente ao papado[301].

Não obstante, a primeira Constituição republicana, em 24 de janeiro de 1891, não foi declarada em nome de Deus, pois pela carta constitucional a liberdade de culto tornara-se uma realidade e a fé, questão de foro privado. Deste modo, somente os casamentos civis ficaram oficialmente reconhecidos, os cemitérios foram secularizados, assim como os registros de nascimento, casamento e óbito. A educação pública também foi laicizada e a religião eliminada do currículo escolar[302]. Depois de quatrocentos anos, a Igreja Católica viu sua influencia diminuir consideravelmente, esta situação foi muito bem explorada por Barroso que demonstrava através de seus textos que aquela situação foi cuidadosamente elaborada pela Maçonaria desde o final do século XVIII. Barroso se valia, basicamente das acusações inauguradas pelos Protocolos, para decifrar os segredos escondidos nos bastidores da história brasileira, deste modo, instigava seus leitores a “conhecer melhor os judeus”, aquela “raça maldita”, que segundo a Bíblia, teria condenado Jesus Cristo a morte.

Na perspectiva de Barroso o nexo de união entre judeus e maçons, naquilo que ele chamou de complô “judaico-cabalista-maçônico”, era o ódio comum pela religião católica. Na argumentação do teórico integralista, o plano judaico de dominação do mundo, só não tinha sido ainda estabelecido devido a “vigilância e energia” dos governos cristãos, que impediam que se realizasse este programa. Com estas revelações, Barroso acreditava ter encontrado o fio da meada podendo desvendar um dos primeiros grandes segredos da história, o fato de que no passado os judeus agiram escondidos nas antigas corporações dos Pedreiros Livres, mas, que atualmente, eles se concentravam, sobretudo nas agremiações judaicas-comunistas, criadas no Brasil desde a década de 1920. Para o autor, era “farinha do mesmo saco judaísmo e comunismo” que juntos lutavam contra a civilização cristã e a atual ordem social.

Depois de abandonarem os Inconfidentes á forca e ao degredo, prosseguiam infatigáveis no desenvolvimento de seus planos, mascarando-se com rótulos literários, como os comunistas e maçons de hoje ainda se escondem em bibliotecas populares, sociedades de cultura e centros estudantis ou comitês anti-guerreiros e anti-fascistas… Essa gente, se tivesse um pouco mais de imaginação, mudaria de tática…[303]

Continua…

Autor: Luiz Mário Ferreira Costa

Fonte: Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.

Notas

[281] – Idem, p. 233.

[282] – Idem, p. 155.

[283] – Idem, p. 156.

[284] – Idem, p. 152.

[285] – Idem, p. 153.

[286] – Idem, p. 158.

[287] – Idem, p. 157.

[288] – Idem, p. 169.

[289] – Idem, p. 170.

[290] – CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Sob a máscara do nacionalismo. Autoritarismo e anti-semitismo na Era Vargas. (1930-1945). On-line. Disponível em: http://www.tau.ac.il/eial/I_1/carneiro.htm. Acesso 10 de março de 2009.

[291] – ALMEIDA, Maria das Graças Ataíde de. Leituras Anti-semitas: Periodismo disfarçado de Catequese (1924 – 1940). In. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. (org). O anti-semitismo nas Américas: Memória e História. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo-Fapesp, 2007.

[292] – GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Trad. de Rosa Freire d´Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 201.

[293] – Idem, p. 201.

[294] – Idem, p. 202.

[295] – BARROSO, Gustavo. Reflexões de um Bode. Rio de Janeiro: Gráfica Educadora, 1937. p. 161- 162.

[296] – GOHL, Jefferson William. O real e o Imaginário: A Experiência da Maçonaria na Loja União III em Porto União da Vitória – 1936 a 1950. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná, 2003. p. 60.

[297] – BARROSO, Gustavo. Os Protocolos dos Sábios de Sião. São Paulo: Editora Minerva. 1936.

[298] – BARROSO, Gustavo. Reflexões de um Bode. Rio de Janeiro: Gráfica Educadora, 1937. p. 2.

[299] – MOREL, Marco & SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. O poder da Maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 180

[300] – Idem, p. 179.

[301] – Segundo Colussi, a filantropia maçônica possuía dois vetores: um, estava voltado para o mundo profano e outro, para os filiados da instituição. No primeiro caso, a filantropia externa servia de ligação entre os maçons e a sociedade, especialmente os menos favorecidos. Ver: COLUSSI, Eliane Lúcia. A Maçonaria Gaúcha no Século XIX. 2.ed. Passo Fundo: Editora UPF. 2000. p. 429

[302] – MOREL, Marco & SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. (op. cit), p. 192.

[303] – BARROSO, Gustavo. História secreta do Brasil: do descobrimento á abdicação de D. Pedro I. (op. cit), p. 175

Sugestão de leitura – novembro/2019

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Caríssimos,

Já está na página Biblioteca do blog O Ponto Dentro do Círculo a sugestão de leitura do mês de novembro.

Ver em: https://opontodentrocirculo.com/biblioteca/

“A leitura é uma forma de felicidade que só está ao alcance das mentes mais livres. Aquelas que são capazes de se desvestir de suas preocupações diárias para atravessar a barreia do conhecimento, da paixão, do deleite e adentrar aos mais sublimes mistérios.”

Fraternalmente,

Luiz Marcelo Viegas

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