Discute-se neste ensaio a relação entre Igreja Católica e Maçonaria. Para tanto, toma-se como objeto a chamada Questão Religiosa, quando houve um embate entre as duas instituições, ocorrido no final do século XIX. Utiliza-se como fontes documentos produzidos pela Igreja Católica e por maçons. Ademais, faz-se o uso de bibliografia acerca do tema produzida por historiadores.
O recente debate eleitoral trouxe à tona a relação entre alguns candidatos e a Maçonaria, ressaltando-se o caráter supostamente antirreligioso dos maçons. Os comentários acerca do assunto, de diferentes origens e de conteúdos diversos, expressam um certo preconceito em relação aos maçons (BERGAMO, 2022). Os exageros e preconceitos são variados e, ainda que eventualmente possam ter algum elemento de verdade, expressam um conjunto de ideias equivocadas atribuídas à Maçonaria, em grande medida produzidas nos últimos séculos pela Igreja Católica. Desde o século XVIII são difundidas narrativas antimaçônicas, procurando desqualificar a Ordem, “relacionando sua origem e seus objetivos com tudo o que há de mais obscuro e contrastante com os valores morais, principalmente, no que se refere àqueles advindas da cultura cristã” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 35).
Um dos acontecimentos de maior repercussão na história da Maçonaria no Brasil foi a chamada “Questão Religiosa”, cujo auge ocorreu nos anos 1872 e 1873, quando o padre José Luís de Almeida Martins, que era maçom, foi suspenso pelo bispo do Rio de Janeiro por ter participado como orador de uma festa comemorativa da promulgação da Lei do Ventre Livre organizada pelo Grande Oriente do Brasil (GOB). Em seu discurso, o padre “enalteceu a Maçonaria e o Grande Oriente do Brasil, pela obra realizada em prol da emancipação dos escravos no Brasil” (CASTELLANI, 2001, p. 107). O ato de suspensão do padre Martins contribuiu “para mobilizar toda a organização maçônica que, através do Parlamento e da imprensa, desencadeou uma verdadeira luta contra os adversários da liberdade de pensamento” (BARATA, 1999, p. 93).
O embate entre Igreja e Maçonaria envolveu inclusive o governo imperial, que, no auge da crise, ordenou a prisão dos bispos de Olinda, dom Vital Maria Oliveira, e do Pará, dom Antônio Macedo da Costa, pelo fato de exigirem “que as irmandades religiosas expulsassem os maçons de seus quadros e, como algumas destas se recusaram a tal medida, foram interditadas pelos bispos” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 159). Como resposta, as irmandades apelaram ao governo imperial, que acatou o recurso. Os bispos se negaram a reconhecer a supremacia do poder secular do governo e, “diante da atitude dos bispos, expediu-se o mandado de prisão. D. Vital foi preso em janeiro e D. Macedo, em abril de 1874” (BARATA, 1999, p. 94). Os bispos, submetidos a julgamento, “foram condenados a quatro anos de prisão com trabalho forçado”, mas “no ano seguinte foram anistiados pelo Gabinete presidido por Caxias” (BARATA, 1999, p. 94).
Nessa disputa, a Igreja e a Maçonaria mobilizaram templos, escolas, clubes literários e até mesmo festas públicas, buscando sobrepor-se ao adversário. Em meio a esses embates, observa-se que “o número de padres maçons foi diminuindo gradativamente, a ponto de tornar-se aberração aos olhos da sociedade aquele que ousasse combinar a batina católica e o aventa de pedreiro-livre” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 157). Os maçons entendiam que, quanto mais templos fossem fundados, mais conseguiriam “defender-se e contra-atacar a Igreja, fazendo seus discursos penetrarem no corpo social e na vida cotidiana” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 160). Paralelo a isso, a Igreja intensificou o discurso que associava os maçons ao satanismo ou a imagens negativas. Nesse processo, “a luta maçônica contra o conservadorismo católico acabou por ganhar a simpatia dos segmentos liberais da sociedade, o que atraiu muitos desses homens para a iniciação” (MOREL & SOUZA, 2008, p. 160).
Esses embates se inserem num processo conhecido como romanização pelo qual passou a Igreja, nos séculos XIX e XX, constituindo-se em ações reformadoras de bispos, padres e congregações religiosas com objetivo de moldar o catolicismo conforme o modelo romano. No Brasil, nesse processo de “europeização” do catolicismo, “os sacramentos, a moralidade e a autoridade clerical suplantaram como principal eixo da vida da Igreja os rituais e organizações autônomos e de base laica” (SERBIN, 2008, p. 79). Para Kenneth Serbin (2008, p. 81), a romanização seria “modernização conservadora” do catolicismo, afinal,
ao mesmo tempo que representou a reação contra a modernidade foi também seu produto e sua promotora. Assim como socialismo e o nacionalismo, o catolicismo procurou construir novas formas de comunidade em face da destruição dos laços tradicionais pelo capitalismo internacional. No processo, o papado, acentuadamente fortalecido, procurou criar a unidade da comunidade católica no mundo todo.
A romanização, iniciada no pontificado de Pio IX (1846-1878), não é exclusiva ao catolicismo no Brasil, inserindo-se “num processo mais amplo de transformação do aparelho religioso católico em escala mundial” (OLIVEIRA, 1985, p. 292). Esse processo esteve marcado, entre outras coisas, pelo combate a “sociedades clandestinas que conspiravam contra a Igreja” (BENIMELI, 2013, p. 95). No pontificado de Pio IX levou-se a cabo uma política que condenava “o racionalismo, o socialismo, o comunismo, a Maçonaria, a separação entre a Igreja e o estado, o liberalismo, o programa e a civilização” (BARATA, 1999, p. 103).
Em palestra proferida em 1916, Everardo Dias analisou o Syllabus Errorum, promulgado em 1864 por Pio IX, que, entre outras coisas, afirmava que “os fiéis devem odiar os livres-pensadores, filósofos, naturalistas, racionalistas, revolucionários e reformistas”, que “estão possuídos do demônio e serão castigados com penas eternas os invasores e usurpadores dos direitos e das propriedades da Igreja”, que “são abortos do Inferno o Socialismo, o Comunismo, as sociedade secretas e bíblicas e as associações católico-liberais” e que, no caso “de oposição entre as leis das duas potências, civil e católica, deve prevalecer o direito eclesiástico” (DIAS, 1921, p. 72-3).
Everardo Dias discutiu o tema da relação entre igreja e Maçonaria em conferência realizada em uma loja maçônica em 1908. Dias (1921, p. 17) afirma que “a Maçonaria respeita todas as religiões e, no entanto, combate todos os fanatismos”. Segundo Everardo Dias, “o Maçom tem por fim essencial combater o fanatismo, o erro e a ignorância” (DIAS, 1921, p. 18). Para Dias (1921, p. 22), “o Catolicismo não aceita a igualdade nem entre os próprios sectários, nem neste nem no outro mundo (…) onde há lugares separados para os grandes e pequenos”, sendo que “para averiguar a diferença entre pequenos e grandes não é o grau de fé que regula, mas as posições sociais e a maior ou menor quantidade de esmolas para as confrarias”. Segundo Everardo Dias (1921, p. 23), o Catolicismo “ama a discórdia entre os povos, desde que lhe advenha proveito. Acima dos interesses sociais está o interesse da cúria ou do papa!”. Referindo-se ao enfrentamento entre os maçons e o clero, afirma:
A Maçonaria, que é o mais formidável adversário das tiranias, dos fanatismos, das intrujices, tem, forçosamente, que dar combate franco e decisivo ao Clericalismo que a insulta e difama desde os púlpitos das igrejas, pelos confessionários, pelos jornais, pelos livros e até na banca das escolas (DIAS, 1921, p. 24).
O papado de Leão XIII (1878-1903) deu seguimento às ações de Pio IX, em um “contexto marcado pelo fim dos Estados pontifícios e da Campanha pela Unificação Italiana, o que agravava ainda mais a situação da Maçonaria, que era identificada como uma das causadoras da usurpação dos Estados pontifícios” (BARATA, 1999, p. 104). Em 1884, na encíclica Humanum genus, Leão XIII constata que “a seita dos mações fez progressos incríveis. Empregando simultaneamente a audácia e a astúcia, invadiu ela todas as categorias da hierarquia social, e começa a assumir, no seio dos Estados modernos, um poder que equivale quase à soberania” (LEÃO XIII, 1955, p. 6). O documento associa a Maçonaria à “corrente naturalista”, pois esta defende que “em todas as coisas a natureza ou a razão devem ser soberanas”, fazendo pouco caso “dos deveres para com Deus” (LEÃO XIII, 1955, p. 10). Leão XIII afirma que aos maçons, “pela palavra, pela pena, pelo ensino, é permitido atacar os próprios fundamentos da religião católica” (LEÃO XIII, 1955, p. 11). No cenário político, o papa constata que os católicos estariam lidando
[…] com um inimigo astuto e fecundo em argumentos. Ele prima em fazer cócegas agradavelmente nos ouvidos dos príncipes e dos povos; tem sabido prender uns e outros pela doçura de suas máximas e pelo engodo das suas lisonjas (LEÃO XIII, 1955, p. 21).
Leão XIII parece estar se preparando para uma cruzada, associando a atuação da Maçonaria inclusive ao processo de revoluções ocorridas na Europa. Os críticos da ordem estabelecida, da qual fariam parte tanto socialistas como a Maçonaria e mesmo outros setores da sociedade, afirmariam que “foi a Igreja, foram os soberanos que sempre fizeram obstáculo a que as massas fossem arrancadas a uma servidão injusta, e libertadas da miséria” (LEÃO XIII, 1955, p. 21-2). Leão XIII defendia a necessidade de “fazer desaparecer o contágio impuro do veneno que circula nas veias da sociedade e a infeta toda”, promovendo “a glória de Deus e a salvação do próximo” (LEÃO XIII, 1955, p. 23).
Não havia no interior da Maçonaria uma forma única de encarar a Questão Religiosa ou mesmo a relação com a Igreja. Pode-se afirmar que esse conflito entre Igreja Católica e maçonaria “foi historicamente datado, não representava um antagonismo eterno. Não havia até então, apesar da animosidade do Vaticano e de setores eclesiásticos, incompatibilidade entre catolicismo e maçonaria no Brasil” (MOREL; SOUZA, 2008, p. 155). José Maria da Silva Paranhos, mais conhecido como Visconde do Rio Branco, Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, afirmava haver uma especificidade da Maçonaria brasileira em relação aos seus congêneres europeus. Segundo ele, “se as lojas maçônicas europeias interferiam excessivamente nos aspectos ligados à religião e à política dos Estados, as lojas brasileiras se ocupavam precipuamente do aperfeiçoamento moral e intelectual do homem e de atos beneficentes” (BARATA 1999, p. 96-97). Essa concepção, que destacava o caráter apolítico e beneficente da Maçonaria, fortalecia as posições regalistas, que se estruturavam a partir da noção de subordinação da Igreja ao Estado. Essas posições se chocavam com os setores liberais da Maçonaria, liderados por Saldanha Marinho, para quem “a liberdade de consciência era incompatível com o regime de união entre Igreja e Estado” (BARATA 1999, p. 99).
Portanto, considerando o ocorrido na chamada Questão Religiosa, percebe-se que muitos dos elementos de crítica à Maçonaria por parte da Igreja permanecem na contemporaneidade. Contudo, como se percebe, são questões episódicas, considerando que, a despeito de não se associar a nenhuma religião diretamente, a Maçonaria, em teoria, não proíbe crenças dentro de suas lojas. Nas últimas décadas, ao desvelar o véu de mistério da Maçonaria, muitos pesquisadores acadêmicos foram capazes de mostrar a ordem como uma organização atuante política e socialmente no meio em que está inserida (SILVA, 2015). Esses elementos mostram a importância de se olhar os fenômenos sociais livre de preconceitos, procurando superar as representações quase ficcionais construídas nos dois últimos séculos, olhando os fenômenos em sua concretude e contradições.
Autor: Michel Goulart da Silva
Michel Goulart é técnico em assuntos educacionais do Instituto Federal Catarinense (IFC). Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail para contato: michelgsilva@yahoo.com.br
Fonte: SILVA, M. G. da . MAÇONARIA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 12, n. 36, p. 14–18, 2022. DOI: 10.5281/zenodo.7482446. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/772. Acesso em: 7 mar. 2023.
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Referências
BARATA, A. M. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
BENIMELI, J. F. La masonería. Madrid: Alianza, 2013.
BERGAMO, M. “Maçonaria repudia ‘produção imbecil’ de ‘informações falsas’ depois de vídeo de Bolsonaro”. Folha de São Paulo [2022]. Disponível em: <www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 23/09/2022.
CASTELLANI, J. Ação secreta da maçonaria na política mundial. São Paulo: Editora Landmark, 2001.
DIAS, E. Semeando: palestras e conferências. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Escola Profissional Maçônica José Bonifácio, 1921.
LEÃO XIII. Sobra a Maçonaria. Petrópolis: Editora Vozes, 1955.
MOREL, M.; SOUZA, F. J. O. O poder da maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008.
OLIVEIRA, P. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
SERBIN, K. P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008.
SILVA, M. G. Entre a foice e o compasso: imprensa, socialismo e Maçonaria na trajetória de Everardo Dias na primeira república (Tese de Doutorado em História). Florianópolis: UFSC, 2016.
SILVA, M. G. “Maçonaria e anticlericalismo no jornal O Livre Pensador”. Revista de Estudios Historicos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña, n. 12, 2019. SILVA, M. G. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
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