Considerações sobre o Poema Regius, do século XIV

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O presente texto tem como objetivos:

  • situar, brevemente, um poema do final do século XIV – conhecido como Poema Régio – entre documentos denominados Old Charges (Antigas Obrigações);
  • explicar as características básicas do texto;
  • oferecer uma tradução sintética do seu conteúdo e,
  • contextualizar os dados considerados mais relevantes para a compreensão mais acurada de determinados aspectos da história da nossa Ordem.

I

A História mais antiga da nossa Ordem está cercada, de um lado, de imprecisões e lacunas e, de outro lado, de muitos dados fantasiosos, sem qualquer comprovação, geralmente arrolados ao léu. Falta, de modo habitual, conhecimento de metodologia de pesquisa científica a inúmeros daqueles autores que acabam elaborando teses mirabolantes e, assim, desejam recuar os primórdios da instituição a tempos imemoráveis, não-documentados e míticos. Contudo, entre suposições e dados documentais há enorme distância.

Parece evidente, no entanto, que haja vínculos estreitos entre a organização da nossa Ordem e a estrutura de algumas corporações de ofício medievais e que também a instituição tenha herdado traços diversos de outras ordens iniciáticas, sobretudo no que respeita ao embasamento filosófico, em especial das correntes neopitagóricas, neoplatónicas e similares. Todavia, este tema, em especial, é complexo o suficiente para gerar um outro trabalho. No ocaso da Idade Média, a corporação dos editores (sem dúvida, posterior ao ano de 1455, data em que Johan Gutenberg teria iniciado a reprodução mecânica de textos impressos) também mostra uma organização assemelhada em diversos aspectos à dos construtores medievais.

Desde três séculos para cá, existem documentos baseados em fatos históricos comprovados, sobretudo depois da constituição da Grande Loja de Londres, em 1717. No entanto, há outros, mais antigos, que têm importância seminal para compreender diversos fatos históricos relacionados com a nossa Ordem. As chamadas Old Charges (Antigas Obrigações) são manuscritos do final da Idade Média e do início da Idade Moderna usados pelas corporações dos Maçons Operativos Talhadores de Pedra e que foram encontrados, basicamente, na Inglaterra e na Escócia, e recobrem um período que vai do final do século XIV ao ano de 1748. Na verdade, os antigos manuscritos que, grosso modo, fazem referência tanto à Maçonaria Operativa medieval, quanto à Maçonaria Especulativa moderna, eram contabilizados, em 1872, por William James Hughan, como um total de 32 documentos. Em 1889, já se mencionavam 62, e o próprio Hughan, em 1895, falava da existência de 66 manuscritos, mais nove versões impressas e onze desaparecidas, num total de 86 documentos. No começo do século passado, em 1918, o Ir∴ Roderick H. Baxter, V∴ M∴ da Loja Quatuor Coronati, listou nada menos de 98 , incluindo as versões em falta.

Entre outros, fazem parte do que se denomina Old Charges:

  • o Poema Regiuscirca 1390;
  • Manuscrito de Cooke, de 1410, descoberto por Matthew J. Cooke, divulgado sob forma impressa em 1861, redigido em prosa de 930 linhas; 19 artigos sobre a história da Arquitetura e Geometria, quatro relativos à vida social dos maçons, nove conselhos de ordem religiosa e moral; o historiador Wilhelm Begemann indica a cidade inglesa de Gloucester como provável origem do documento e também há quem o date de 1430 ou 1440;
  • os Estatutos de Schaw, de 1598, referem-se a estatutos promulgados por William Schaw, na Escócia, a quem se faz menção como “mestre dos maçons” (Maister o’ Work Warden General o’er a’ the masons), na Loja Kilwinning, em Ayrshire, e cujos registos parecem remontar a 1140;
  • Manuscrito de Aitchison´s Haven, de 1598, no Condado de Midlothian, Escócia, contém um livro de balaústres da Loja de Edimburgo;
  • Manuscrito de Inigo Jones, de 1607, que, nomeado mestre dos maçons, na Inglaterra, organiza lojas no estilo das academias italianas e incentiva a ingressar na instituição personagens desejosos de adquirir cultura;
  • Manuscrito de Melrose, de 1674, balaústres da Loja Melrose Saint John, de Newstead, na Escócia, 258 páginas, que contam a história das reuniões de 1674 até 1792; o brasão de armas da Loja Melrose , gravado em madeira, remonta a 1156.

II

O chamado Poema Regius, datado supostamente de 1390, parece ser um dos elos mais antigos capazes de ligar, em definitivo, a Maçonaria Operativa à Maçonaria Especulativa. Trata-se de um manuscrito de 64 páginas, em pergaminho, de autor anônimo, que se encontra hoje no Museu Britânico. Foi catalogado como A Poem of Moral Duties: here entitled Constitutiones Artis Geometriae secundum Euclydem (Um Poema de Obrigações morais, aqui intitulado como as Constituições da Arte da Geometria, segundo Euclides), com metade do título em inglês e outra metade, em latim. O rei inglês George II, em 1757, apresentou-o à nação e mandou depositá-lo na abadia de Westminster. O antiquário James Orchard Halliwell-Phillips (1820-1889), um renomado especialista em Shakespeare, revelou o real sentido do manuscrito redigido em inglês medieval. Entre 1838-39, apresentou à Sociedade dos Antiquários de Londres um trabalho intitulado On the Introduction of Freemasonry in England (Sobre a Introdução da Franco-Maçonaria na Inglaterra) e, com isto, chamou à atenção de muitos Irmãos nossos (interessados em pesquisa séria sobre a História da Ordem) para as reais ligações entre maçons operativos e especulativos. Em 1844, Halliwell revisou e ampliou o seu texto e acrescentou-lhe uma cópia fac-simila do original. No ano de 1889, um fac-simile exato foi publicado no volume primeiro das Antigrapha da Lodge Quatuor Coronati, editado pelo secretário da Loj∴, Ir∴ George William Speth, com glossário indispensável e comentários do Ir∴ R.F. Gould.

Poema Regius está composto de quinze artigos e quinze pontos, alguns comentários introdutórios e uma longa peroração final. Trata-se de um poema – mas com rimas pobres-, com 794 linhas, redigido em inglês arcaico, contemporâneo a Geoffrey Chaucer [1]. Supõe-se que o manuscrito tenha sido copiado de um texto mais antigo e há indícios de que, ou o copista, ou o autor do texto original. tenha sido um padre, face às alusões que faz à cristandade, à necessidade de frequentar a igreja –

“o próprio Cristo ensinou-nos que a sagrada igreja é a casa de Deus, feita para nada mais do que para rezar, como nos ensina o Livro”- [(…) For Christ hymself, he techet ous/ That holy churhe ys Goddes hous,/That ys y-mad for nothynge ellus/but for to pray yn, as the bok tellus, linhas 87: 90, no original].

Há trechos que aludem, de modo transparente, à visão esposada pela igreja católica – os sete pecados capitais e o culto a Maria (que aparece somente no Poema Regius e em nenhum outro manuscrito das Old Charges). Nos versos finais, há claras instruções a respeito da maneira de se comportar dentro da igreja, como proceder durante a missa, como se ajoelhar, etc. Aparecem, ainda, menções ao pensador Santo Agostinho (354-430 d.C.), a personagens bíblicas, aos procedimentos a serem adotados na presença de nobres, às boas maneiras à mesa e nas ruas.

Há trechos em latim medieval, com evidentes erros de ortografia e/ou transcrição e, a certa altura, o texto faz menção ao rei inglês Athelstan [2], insinuando que teria sido ele o responsável pela regulamentação da Maçonaria (Operativa) na Inglaterra. A primeira linha do poema está em latim (já se notam os erros mencionados) e reza o seguinte: 

Hic incipiunt constituciones artis gemetriae secundum Eucyldem [sic] (Aqui começam as constituições da Arte da Geometria, segundo Euclides).

O texto menciona, na parte final, personagens bíblicos, como é o caso de Noé, refere-se à torre da Babilónia, ao rei Nabucodonosor II [3], ao dilúvio, à perda dos conhecimentos relativos à construção e ao fato de o erudito Euclides [4], muitos anos depois, ter ensinado novamente a arte da Geometria (recuperando, portanto, o conhecimento perdido) e, ao todo, as sete ciências, ou seja, as Sete Artes Liberais do mundo antigo. O narrador, em primeira pessoa, afirma que a Gramática é a primeira ciência de que tem conhecimento e, a seguir, enumera as outras seis: Dialética, Retórica, Música, Astronomia, Aritmética e Geometria; assevera, também, que a Geometria

“pode separar a falsidade da verdade” [ (…) con deperte falshed from trewthe, linha 574, no original].

III

Em linhas gerais, é possível concluir que o texto faz referência explícita à Maçonaria Operativa medieval, na medida em que menciona “grandes senhores” aos quais os Mestres Maçons estariam ligados, o que permite supor, corretamente, que tenham sido os nobres que contratavam a construção de castelos, catedrais, fortalezas, etc. Há uma série de alusões marcantes ao ambiente socioeconómico, político e cultural da Idade Média europeia e, particularmente, inglesa, como, por exemplo, a figura do xerife de um condado. No entanto, levando-se em conta uma sociedade, como a medieval, em que as classes sociais eram estanques e separadas, o papel da nobreza e da igreja era preponderante, não deixa de ser surpreendente ler, no Ponto Nono do texto que “todos os homens devem ser igualmente livres” e que a equidade no comportamento deveria ser observado tanto em relação a homens, quanto a mulheres.

A partir do texto, não fica muito claro se, de fato, os construtores medievais consideravam a existência de três graus diferentes na escala de conhecimentos, ou seja, Aprendiz, Companheiro e Mestre, uma vez que o texto cita a figura do Aprendiz (que devia ser subordinado a um Mestre), a do Mestre e, em sucessivas passagens, refere-se a Companheiros, mas não há clareza quanto ao fato de o termo significar, literalmente, “companheiro” ou referir-se a “todos os integrantes da confraria”. Convém lembrar que com o surgir da Grande Loja Unida de Inglaterra, em 1813, quando os Antigos e Modernos concordaram em trabalhar sob comando único, estabeleceu-se em definitivo, que

fica declarado e promulgado que a pura Antiga Maçonaria consiste de três graus e não mais , isto é, Aprendiz, Companheiro e Mestre Maçom, incluindo a Suprema Ordem do Sagrado Real Arco”.

A simples leitura dos quinze artigos do Poema Regius permite, no entanto, perceber inúmeras e claras interrelações entre operativos e especulativos e a existência de um rígido código ético.

É interessante mencionar que, em 1968, Henry Carr [5] afirmava o seguinte:

“Insisto, contudo, que a nossa Franco-Maçonaria atual, especulativa, é descendente direta da maçonaria operativa, cujos princípios podemos fazer retroceder aos mais antigos registos referentes à organização entre construtores, em 1356”.

Uma década mais tarde, Carr voltaria a dizer:

“A transição da maçonaria operativa para a especulativa não representou a substituição de uma atividade antiga sob nova direção. Era a atividade antiga, que, gradualmente, alterou o caráter, segundo as necessidades da sua época, mas com continuidade perfeita” [6].

Todavia, ao longo do século XX, nada menos que dez teorias diferentes desfilaram nas páginas do Ars Quatuor Coronatorum, publicação oficial da Loja Quatuor Coronati [7], muitas delas contraditórias entre si.

McLoughlin [8], por seu turno, lembra que documentos históricos autênticos mostram a existência, durante a Idade Média, de construtores de catedrais e outras obras que eram chamados de “Free and Accepted Masons” (Maçons Livres e Aceitos), chamados de operativos, e a designação recobria vários profissionais, inclusive carpinteiros. Aos poucos, prossegue, burgueses, nobres e até mesmo reis foram iniciados, gradualmente, como “especulativos”. Sublinha a existência de inúmeras lojas na Europa, nos séculos XV, XVI e XVII e menciona as atas, de 1599, da Loja Maçónica de Edimburgo nº 1.

IV

Segue, abaixo, resumo traduzido do texto, na ordem em que estão relacionados os artigos, pontos e outros dados no poema:

  • Artigo 1º – o Mestre Maçom deve ter segurança absoluta no conhecimento da Geometria e deve pagar os Companheiros corretamente;
  • Artigo 2º – todo Mestre Maçom deve comparecer às assembleias da Ordem;
  • Artigo 3º – um Mestre Maçom não deve aceitar qualquer Aprendiz, a menos que tenha certeza de que poderá conviver bem durante sete anos com ele e se estiver seguro de que o Aprendiz será capaz de aprender o ofício;
  • Artigo 4º – o Mestre Maçom deve supervisionar o trabalho do Aprendiz que, por sua vez, deve ter boa índole;
  • Artigo 5º – o Aprendiz não pode ser deformado para não fazer a Ordem passar vergonha porque faria mal à instituição e deve ser um homem forte;
  • Artigo 6º – o Mestre Maçom, convém sublinhar, deve ser perfeito na sua Arte e deve transmitir absolutamente tudo ao Aprendiz;
  • Artigo 7º – um Mestre Maçom não deve, em hipótese alguma, dar abrigo a ladrões ou assassinos, a fim de não envergonhar a Ordem;
  • Artigo 8º – um Mestre Maçom deve substituir, imediatamente, qualquer membro da Ordem que não corresponder às expectativas e necessidades;
  • Artigo 9º – o Mestre Maçom deve ser sábio e forte e deve ser útil à Ordem, onde quer que vá;
  • Artigo 10º – todos devem ter ciência, acima e abaixo (na hierarquia), que nenhum Mestre Maçom deve tentar suplantar o outro, mas deve comportar-se como um Irmão e deve terminar o seu trabalho de modo correto;
  • Artigo 11º – nenhum Maçom deve trabalhar à noite;
  • Artigo 12º – um Mestre Maçom, onde quer que esteja, deve zelar para que nada possa depravar os seus Companheiros;
  • Artigo 13º – se o Mestre Maçom tiver um Aprendiz, deve instruí-lo o necessário para que ele se torne útil à Ordem, onde quer que vá;
  • Artigo 14º – nenhum Mestre Maçom deve tomar Aprendiz, a menos que seja capaz de instruí-lo e responder por ele;
  • Artigo 15º – o Mestre Maçom deve ser um instrutor amigo, não deve prestar falso juramento e jamais deve envergonhar a Ordem.

Ponto Primeiro – onde se congregarem Mestres Maçons, devem demonstrar amor a Deus e também aos seus Companheiros;

Ponto Segundo – o Mestre Maçom deve trabalhar dedicadamente, para merecer o descanso;

Ponto Terceiro – o Aprendiz deve levar a sério os conselhos do Mestre Maçom e dos seus demais Companheiros também, e nada do que vir ou ouvir em Loja poderá contar a qualquer homem no mundo;

Ponto Quarto – nenhum homem deve mostrar-se falso em relação à Ordem, ou prejudicar os Mestres Maçons e Companheiros, e todos devem obedecer às leis;

Ponto Quinto – o Maçom deve receber pagamento do Mestre, que deve avisá-lo, até o meio-dia, se não precisar dele depois [desse horário];

Ponto Sexto – se surgir inveja ou ódio entre Maçons, cabe a outro Maçom corrigi-los, para que convivam segundo as leis de Deus;

Ponto Sétimo – o Maçom deve respeitar a esposa do Mestre e do Companheiro;

Ponto Oitavo – o Maçom sempre deve ser um mediador positivo entre o Mestre Maçom e os Companheiros;

Ponto Nono – o Maçom deve servir aos seus Companheiros, dia após dia, sem buscar quaisquer vantagens e todos os homens devem ser igualmente livres; deve pagar todos os homens de modo correto e deve ser justo com todos os Companheiros, todos os homens e todas as mulheres e também deve registar o bem que os Companheiros fizerem;

Ponto Décimo – o Maçom deve viver corretamente, para não fazer recair sobre a Ordem vergonha alguma e, se cometer algo impróprio, será chamado à Assembleia para explicar-se diante dos seus iguais; e, se não aparecer, será punido conforme a lei que vem de tempos antigos (that was y-fownded by olde dawe, no original);

Ponto Décimo-Primeiro – o Maçom, se vir um Companheiro executar um trabalho de forma incorreta, deve admoestá-lo com palavras dóceis;

Ponto Décimo-Segundo – no local em que se realizar a Assembleia, deve haver Mestres Maçons e Companheiros (Ther schul be maystrys and felows also, linha 409, no original), e outros grandes Senhores, e o prefeito da localidade e o xerife do condado (There schal be the scheref of that contré / And also the meyr of that syté, /Knytes and sqwyers ther schul be,/ linhas 411;13, no original) cavaleiros também; e, se houver qualquer acusação contra eles (Mestres e Companheiros?), devem tomá-los sob a sua custódia;

Ponto Décimo-Terceiro – o Maçom deve jurar que jamais roubará e jamais ajudará falsos Obreiros;

Ponto Décimo-Quarto – o Maçom deve jurar, perante Mestres Maçons e Companheiros, que obedecerá ao seu rei e também deve prestar o juramento dos Maçons sobre todos os pontos anteriores, e saber que será responsabilizado, se faltar com a palavra;

Ponto Décimo-Quinto – se os Maçons atentarem contra a Ordem, não poderão retornar a ela e o xerife poderá encarcerá-los e tomar-lhe os bens e o gado e colocá-los à disposição do rei, e deixar que ele lhes decida o destino (?).

Alia ordinacio artis gemetriae (sic) [Outras ordenações da Arte da Geometria]

Afirma o texto que, a cada ano, uma Assembleia deverá corrigir as falhas encontradas na Ordem e, a cada três anos, todos devem comparecer para corrigir os erros e manter os estatutos concedidos à Ordem pelo rei Athelstan.

Ars quatuor coronatorum [Arte dos Quatro Coroados]

“Rezemos, ao Deus Todo-Poderoso e à sua Mãe bendita para que todos estes artigos possam ser conservados como o fizeram os quatro mártires – que são grande honra para o Ofício -, (Pray we now to God almyht, / And to hys moder Mary bryht, / That we mowe keepe these artyculus here, / And these poynts wel al y-fere, / As dede these holy martyres fowre, /That yn thys craft were of fret honoure, / linhas 497:502, no original) foram bons Maçons, escultores e gravadores – e eles amaram a Deus e serviram e viveram segundo as leis de Deus”, reza o poema.

A seguir, faz menção à punição que os Quatro Coroados sofreram. Menciona que são festejados no oitavo dia após Alle Halwen (sic), ou seja, Hallow-e´en (Here fest wol be, withoute nay, /After Alle Halwen the eyght day. /, linhas 533:34, no original).

Parte significativa do conteúdo do Poema Regius reaparece nas Constituições dos Pedreiros Livres (The Constitutions of the Free-Masons), de James Anderson, editadas em 1723 [9]. É extremamente interessante, segundo nos parece, a linha de raciocínio ético que perpassa o texto e coincide com preceitos que sobreviveram até aos nossos dias dentro da nossa Ordem. A principal contribuição de Anderson foi o fato de subtrair do documento que redigiu referências explícitas ao denominacionalismo e, com isto, conferiu, em definitivo, caráter universal à nossa Ordem, que aceita a Iniciação de pessoas de qualquer confissão religiosa. No entanto, isto também já é tema suficiente para outro trabalho.

O longo Poema Regius merece uma tradução completa, cuidadosa e comentada para o português, tarefa que representa um desafio múltiplo não somente devido aos inúmeros problemas linguísticos que o texto oferece, às circunstâncias históricas que precisam ser elucidadas, mas, sobretudo, em decorrência da necessidade de identificar muitas fontes documentais corretas.

Autor: Aleksandar Jovanović

Fonte: Freemason

* O Poema Regius pode ser consultado AQUI

Notas

[1] – Geoffrey Chaucer (1343-1400), filósofo, diplomata, tradutor e poeta, autor dos Canterbury Tales (Contos de Cantuária), considerado o Pai da Literatura Inglesa, porque modernizou o idioma, inclusive devido aos conhecimentos que possuía de latim, francês, italiano, etc. e das respectivas literaturas.

[2] – Athelstan ou Æþelstān, o Glorioso (895-939), rei inglês (saxão), submeteu Constantino II, rei dos escoceses, na Batalha de Brunanburh, em 937, e, por isso, foi o primeiro a ostentar o título de rex totius Britanniae (rei da Bretanha inteira).

[3] – Nabucodonosor II (c. 632 a.C. – 562 a.C.), o mais conhecido imperador do Império neobabilônico. Ficou famoso pela conquista do Reino de Judá e pela destruição de Jerusalém e o seu Templo, em 587 a.C., além das monumentais construções na cidade de Babilônia e, entre elas, os Jardins Suspensos, conhecidos como uma das sete maravilhas do Mundo Antigo.

[4] – Euclides de Alexandria (360 a.C. – 295 a.C.), professor, matemático e escritor de origem desconhecida, criador da Geometria Euclidiana. Teria estudado em Atenas e teria sido discípulo de Platão. Foi convidado por Ptolomeu I a compor o quadro de docentes da Academia, que tornaria Alexandria o centro do saber, durante muito tempo. Euclides foi o mais importante matemático da Antiguidade: publicou os Stoikhía (Os Elementos), em 300 a.C., obra em treze volumes, a respeito de Geometria Plana, números, teoria das proporções, etc.

[5] – Carr, Henry. 600 years of Craft Ritual. Ars Quatuor Coronatorum, 81 (1968): 200.

[6] – Carr, Henry. Ars Quatuor Coronatorum, 91 (1978), passim.

[7] – Os Quatro Coroados (Quatuor Coronatis, em latim) eram, segundo reza a tradição, escultores de Sirmium (hoje Srem, região da Sérvia, ao norte de Belgrado), que se recusaram a esculpir uma estátua pagã para o imperador romano Diocleciano (243-305), porque se tinham convertido ao cristianismo. Por isto, foram aprisionados, martirizados com uma coroa de pregos agudos de ferro que lhes foi martelada no crânio. Foram eles Castório, Nicóstrato, Cláudio e Sinfrónio; Simplício, um quinto, morreu com eles, mas não há explicações claras a respeito. Aos Quatro Coroados está dedicada uma capela, erigida em 619, em Canterbury, Inglaterra. São venerados na Maçonaria inglesa e a Loja Quatuor Coronati Lodge No. 2076 ostenta, inclusive, o título de The Premier Lodge of Masonic Research (A primeira loja de pesquisa maçônica), e, de fato, é a mais importante Loja de pesquisas maçônicas, consagrada em 12 de Janeiro de 1886. A Ars Quatuor Coronatorum (A Arte dos Quatro Coroados) é a publicação regular da Loja de pesquisa Quatuor Coronati.

[8] – McLoughlin, Emmett. An Introduction to Freemasonry. In: Waite, Arthur E. [1970] A New Encyclopedia of Freemasonry and cognate instituted mysteries: their rites, Literature and History. New York: Weathervane Books. p. xxxiii.

[9] – James Anderson (1679-1739), escocês nascido em Aberdeen, foi ministro presbiteriano e membro da Grande Loja de Londres. Escreveu as Constituições, que ficaram conhecidas como A Constituição de Anderson. Em 1734, o nosso  Ir∴ Benjamin Franklin reproduziu e editou a obra, o primeiro livro maçônico impresso no que são hoje os Estados Unidos da América. A obra é considerada um dos marcos fundamentais da nossa Ordem.

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Referências

  • Anderson, James. The Constitutions of the Free-Masons containing the History, Charges, Regulations, &c of that most Ancient and Right Worshipful Fraternity. Digital Commons, University of Nebraska, Lincoln. 2006. Edição fac-similar electrónica..
  • Ars Quatuor Coronatorum. [1968]: 81.
  • Ars Quatuor Coronatorum. [1978]: 91.
  • DAVIES, Norman [1996] Europe. Oxford: New York. Oxford University Press. 1996.
  • WAITE, Arthur E. [1970] A New Encyclopedia of Freemasonry and cognate instituted mysteries: their rites, Literature and History. New York: Weathervane Books.
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À sombra dos mitos – Sinais de reconhecimento, segredo, fraternidade…

Brother H. A. | Maçonaria, Pedreiros

A Maçonaria, cuja originalidade consiste em misturar ritual e reflexão, tradição e modernidade, simbolismo e solidariedade, não escapou do mito. Ela tem uma dúzia de histórias ou referências míticas que ela emprestou do fundo cultural judaico-cristão e que lhe permitiu desenvolver uma visão particular do mundo.

Em relação à mitologia clássica, ela selecionou seus temas preferidos: ela não destaca Édipo, Sísifo ou Eros, Zeus ou os Titãs, Orfeu e o submundo, belas deusas e ninfas imprevisíveis, heróis metamorfoseados, monstros fabulosos ou histórias de amor e incesto. Mas encontramos o crime (assassinato de Hiram), tantas vezes presente nas relações entre os deuses pagãos; encontramos a questão da transmissão do conhecimento (as duas colunas) colocada por Prometeu ou Hermes; encontramos a culpa do homem envolvendo a vingança de Deus (o Dilúvio e a Torre de Babel).

Basta dizer que a mitologia maçônica, apesar de dimensões restritas, não pertence menos à mitologia universal. Ela pode se articular em torno de três eixos: primeiro, a construção do Templo, imagem fantasista do templo de Salomão. Este edifício é tanto o próprio templo interior de cada maçom que deve dominar sua natureza, e o templo exterior representado pela Cidade ideal; em todos os casos, assume-se que permanece inacabado. Em segundo lugar, a lenda de Hiram, transposição de múltiplos arquétipos, retomada parcial do mito de Ísis e Osíris, símbolo da transcendência diante da finitude humana, realização de um destino e esperança de uma ressurreição. Finalmente, o mito de cavalaria que não só penetrou o ritual desde o grau de aprendiz (cerimônia de iniciação), mas também promove os valores tradicionais atribuídos a esta instituição: honra, coragem, lealdade, generosidade, altruísmo. Tal como o conjunto da sociedade, o fascínio cavalheiresco também permeia a Maçonaria.

Esses mitos – com a exceção da cavalaria – aparecem nas Antigas Obrigações que, entre 1390 e 1720 são os textos de referência dos maçons operativos que serviram de corpus para o desenvolvimento da Maçonaria moderna. Estes manuscritos (cerca de cento e trinta cópias) geralmente incluem uma história lendária da profissão do construtor e uma lista dos deveres morais e profissionais dos pedreiros. Existem ali também muitas ocorrências religiosas: invocações a Deus ou os santos, à Virgem Maria ou à igreja, busca da salvação da alma, referências e histórias bíblicas, orações. Uma interpretação espiritualista deduzida ali, instalada no corpus maçônico no início do século XVIII: entre 1710 e 1750 escolhas ideológicas decisivas relacionadas aos mitos foram feitas: apagamento de Euclides e eliminação de Noé em favor de Hiram e Salomão, uso sistemático de elementos bíblicos, a promoção do Deus único. Esta concepção é hoje dominante no espaço reflexivo maçônico.

Uma releitura secular e racional dos mitos maçônicas foi necessária; ela desafia muitas concepções tradicionais, mas esta nova visão alternativa não é destrutiva: ele não tem a pretensão de se livrar de Deus nem de outros atributos do modelo dominante, mas ela prefere a geometria, fonte de outras Ciência e local de raciocínio dedutivo. Para ela, o mito comporta tanto a imaginação quanto a razão: é claro que a razão produz mitos e os mitos mais irracionais têm uma razão.

Mas o maçom, na busca incessante do sentido que lhe sugere a presença de seus mitos, deve reabilitar aqueles que lhe atribuem uma finalidade de compreensão lógica da razão do mundo. Por esta inteligibilidade adogmática distante dos abusos espiritualistas de discurso meloso, e sem negligenciar uma certa consciência mítica, ele cumprirá totalmente sua missão: compreender, aprender, construir e transmitir.

Dois personagens míticos eliminados: culpa de Hiram?

Euclides, a fonte racionalista esquecida

O Manuscrito Regius (1390), o mais antigo texto das Antigas Obrigações, começa com uma fórmula claramente significativa:

“Aqui começam os estatutos da arte da geometria segundo Euclides.”

Não só Euclides é o padrinho do Regius, mas lhe é creditado ser o criador das sete ciências; em todas as ações atribuídas a ele, Euclides sempre age de acordo com os princípios da razão geométrica, tornando-se um homem providencial. Ele é também – embora este ponto seja totalmente omitido pelos espiritualistas e historiadores maçons – aquele que pela primeira vez formaliza as regras de organização e funcionamento do ofício.

Ele é, assim, o autor de quatro “obrigações” decisivas:

  • A obrigação de transmissão recíproca: aquele que é mais avançado na arte da geometria deve instruir os menos dotados, a fim de aperfeiçoar e esta instrução deve ser recíproca;
  • O dever de fraternidade: os homens que praticam a arte devem “amar a todos como irmãos e irmãs”;
  • A designação de um mestre: o mais avançado na arte deve ser chamado de “mestre” para homenageá-lo particularmente;
  • O respeito mútuo: os maçons, para o bem da unidade, devem se chamar companheiros entre si, qualquer que seja o seu nível profissional.

Outro texto das Antigas Obrigações, o Manuscrito Dumfries no. 4 (C 1710) apresenta Euclides como aquele que cria quatro novas medidas verdadeiramente constitutivas da Maçonaria especulativa: a criação em forma de Ordem, o sinal de reconhecimento, o segredo e a regularidade do trabalho em loja.

Apesar desse papel essencial, Euclides não foi mantido como um mito da Maçonaria moderna: Anderson o cita pouco e os rituais desenvolvidos no decorrer do século XVIII, lhe atribuem apenas algumas evocações em alguns graus do Rito Escocês Antigo e Aceito.

Noé, um destino maçônico contrariado

Noé, mito universal e um dos mais antigos da humanidade, tanto como resultado do dilúvio quanto da arca, representa na Bíblia o fundador da nova ordem mundial. Deus, vendo-o como o único justo e o único homem de integridade, conclui com ele a sua primeira aliança depois do dilúvio. Os termos dela são simples: Deus diz a Noé que ele nunca mais o amaldiçoará e, portanto, não destruirá os seres vivos como acabou de fazer. Ele, então, determina a Noé e a seus filhos uma missão de quatro pontos: eles devem ser fecundos e prolíficos; eles dominarão a natureza; eles poderão se alimentar de tudo o que há na terra, exceto o sangue; e eles deverão velar pela vida de seus irmãos, ou seja, não matar. O arco-íris será o sinal dessa aliança. Trata-se de uma nova filosofia equilibrando direitos e deveres: possibilidade para o homem dominar a natureza, mas obrigação de respeitar a vida dos outros.

Nos textos maçônicos do século XVIII, Noé é valorizado: Anderson o apresenta em 1738 como o pai da Maçonaria, cada maçom sendo um “verdadeiro filho de Noé” e Ramsay como o restaurador da raça humana e o primeiro Grande Mestre da Ordem. O Noaquismo é assim, a religião primitiva anterior a todo dogma, uma espécie de religião natural global em que todos os homens podem se reconhecer. Noé deveria ter sido o mítico fundador da Maçonaria especulativa. No entanto, ele desaparece muito rapidamente das referências maçônicas: ele já não é mencionado na edição das Constituições de 1756 e não reaparece no novo texto da Constituição Maçônica Inglesa de 1813. Ele não é mais encontrado hoje, senão no grau 21 do REAA chamado Noaquita ou Cavaleiro Prussiano e no Grau de Royal Ark Mariner, novamente praticado na França há vários anos. Como Euclides, ele foi deposto por Hiram.

Um novo rosto para Hiram: uma apresentação de sacrifício à luta de classes

O mito de Hiram é a narrativa fundamental da Maçonaria especulativa; aparecido na década de 1730, ele coloca em cena Hiram, Mestre Maçom do canteiro de obras do Templo de Salomão, que foi assassinado por três maus companheiros a quem ele não quis revelar o segredo dos mestres. Existem cerca de cinquenta versões do mito hirâmico. Mas, Hiram continua a ser o mestre perfeito, dotado de todas as virtudes humanas e de todas as competências técnicas possíveis; ao invés de revelar um segredo, ele se sacrificou e morreu: senso de Dever, recusa a ceder à fraude, ele representa no imaginário dos maçons um modelo de coragem e de vida, ao mesmo tempo um herói e um santo, o mito maçônico absoluto.

Esta lenda é incompleta porque um episódio crítico foi omitido pelos redatores maçônicos do século XVIII.

O documento sobre o qual repousa o mito, o Manuscrito Graham (1726), relata que um conflito profissional eclodiu no canteiro de obras: é uma disputa entre os trabalhadores e os pedreiros sobre salários. Hiram ocupa o cargo de vigilante de todo o canteiro de obra, mas é o próprio rei Salomão quem intervém para se chegar a um acordo: ele explica para acalmar as recriminações que todos os trabalhadores serão pagos da mesma forma, mas ele dá aos pedreiros um sinal que os trabalhadores não conheciam:

“E aquele que podia fazer o sinal onde os salários eram pagos eram pagos como pedreiros; os trabalhadores não o conheciam e eram pagos como antes.”

Embora a calma tenha voltado, Hiram se torna, portanto, cúmplice de uma torpeza de Salomão, de uma manipulação e uma mentira, apagada do texto maçônico, ostensivamente para dar a Hiram um papel idealizado.

Hiram é, portanto, o tipo de executivo dividido entre os objetivos do cliente e as queixas dos trabalhadores, defendendo até a morte os interesses da classe dominante.

As duas colunas antediluvianas, um mito negligenciado

Este mito é amplamente destacado por vários textos das Antigas Obrigações e retomado por Anderson. Ele encontra sua origem nas Antiguidades Judaicas do historiador Flavius Josephus (37-100). Ele indica que homens que tiveram a presciência de um cataclismo universal querido por Deus e que arriscava destruir a humanidade por água e fogo decidiram construir dois pilares sobre os quais todo o conhecimento seria inscrito, com o objetivo explícito de o preservar e transmitir às gerações futuras.

Pelo efeito de uma mudança de significado, uma confusão com as duas colunas do Templo de Salomão ele foi gradualmente instalado na mitologia maçônica; hoje, apenas no grau 13 do Rito Escocês o tema se mantém intacto.

Alguns aspectos são dignos de nota:

  • De acordo com as versões, passamos de quatro construtores (os filhos de Seth, terceiro filho de Adão e Eva) a um único construtor: Enoque, o patriarca antediluviano que foi levado vivo para o céu. Da mesma forma, os materiais de construção variam de pedra ao mármore, de tijolos ao latão.
  • A intenção inicial é motivada pelo medo de perder as invenções humanas; estas dizem respeito principalmente à astrologia, depois a geometria e a maçonaria. Finalmente, é Hermes que redescobrirá uma única coluna, permitindo o sucesso da operação.

Muitos historiadores maçons integram este mito no Noaquismo; essa assimilação é injustificada. Noé e as duas colunas não têm ligação alguma entre si. Noé é um personagem bíblico, enquanto que o episódio das duas colunas, invenção profana está ausente do texto bíblico; Noé é uma personagem que faz a ligação com Deus, enquanto a decisão de construir as duas colunas é puramente humana, sem um relacionamento anterior com Deus. Pode-se até argumentar que esta decisão é a marca de um desafio a Deus, os homens assumindo que arriscam perder permanentemente o que eles ganharam.

É preciso lembrar a natureza Prometeana de um projeto perfeitamente racional.

O duplo mito salomônico, ambiguidade da natureza humana

A Maçonaria é permeada pelo mito Salomoniano em dois aspectos: primeiro, a construção do Templo como o canteiro ideal e por outro lado, a pessoa do próprio rei Salomão, cujo papel é importante, especialmente nos graus escoceses. Sejam quais forem os textos, o Templo é a expressão da perfeição; ele representa o cosmos e para muitos maçons é a expressão simbólica do Templo Maçônico. Salomão é apresentado em todos os atributos da soberania: construtor, justiceiro, concedendo recompensas, presidindo todas as assembleias; na plenitude de sua glória, ele é, especialmente no REAA, o fiador simbólico da maestria sem defeito.

De acordo com a visão bíblica, Salomão é um homem sábio, possuidor do dom do discernimento na origem de sua equidade e sua tolerância proverbial, conhecimentos científicos e uma abordagem filosófica.

Esta visão é em grande parte distorcida e inequívoca. O templo não é apenas um santuário religioso, mas também ao mesmo tempo um lugar político. Sua construção interrompe o nomadismo da religião judaica e, simultaneamente funda a identidade nacional do povo judeu. Os caprichos da história fizeram dele um lugar de rivalidade e crimes, tanto religiosos quanto políticos. Salomão, por sua vez, mandou assassinar seu irmão e vários dignitários ou rivais para consolidar seu poder; depois de uma primeira parte do glorioso reino, ele se tornou infiel a seu Deus, entregando-se ao politeísmo e à poligamia, aumentando os impostos de seus súditos, usando escravos e não respeitando seus compromissos comerciais com seus vizinhos. Com sua morte, as tribos do norte se revoltaram e o país se dividiu em dois reinos.

Por que os maçons valorizam um lugar simbolicamente tão questionável e uma figura criminosa? Esquecendo-se o lado escuro dos homens e sua história, a Maçonaria quer mostrar a imperfeição da natureza humana?

A Torre de Babel, um mito amaldiçoado que se tornou benéfico

A Maçonaria propõe três grandes interpretações do mito da Torre de Babel:

  • A visão tradicionalista: construindo a Torre, os homens deram prova de orgulho e vaidade insuportáveis para Deus; a ira divina é, assim, natural, a confusão de idiomas é um castigo merecido, assim como a maldição do homem sobre a terra. Esta concepção moralizante e culpabilizante baseada na Bíblia está presente especialmente no Manuscrito Regius (1390), no Manuscrito Graham (1726) e quase totalmente no grau 21 do REAA.
  • A interpretação construtivista: ela tem sua origem no Manuscrito Cooke (c. 1400) que apresenta este mito como a capitalização da experiência adquirida pela “ciência da geometria”, que levou a uma mestria da arte de construir. Nada é dito sobre a intenção original dos homens nem sobre a vingança divina. A torre não é mais o símbolo da vaidade humana, mas torna-se o lugar da transmissão do conhecimento técnico. Estamos aqui na origem de uma visão amplamente positiva do mito.
  • A síntese Andersoniana: As Constituições de Anderson (1723 e 1738) ultrapassam as duas correntes anteriores, emprestando-lhes vários elementos. A construção da torre não tem a intenção de desafiar a Deus, este ponto não sendo mais que uma consequência; a sanção é a mesma para os homens, a da confusão de idiomas e a dispersão; mas os homens adquiriram por meio dela, uma competência excepcional que servirá ao desenvolvimento da arte de construir.

Assistimos durante quarenta anos uma inversão axiológica: seguindo-se a evolução geral da opinião a diversidade é agora uma bênção e o múltiplo é a ordem natural do mundo. Babel permanece a metáfora da desordem extrema e do excesso, mas a maioria dos maçons de nossos dias compartilha a ideia de que a diversidade é uma riqueza em nome do princípio de que é preciso “reunir o que está espalhado”. A reinterpretação regular desse mito mostra que ele não se fossiliza, Babel tendo se tornado ao longo do tempo o paradigma da unidade e da diversidade humana.

O mito no coração do homem

Todas as culturas o utilizam. É uma história que tem uma ou mais histórias; elas retratam deuses ou seres sobrenaturais ou heróis divinizados que adquiriram status divino; esses deuses têm relações entre si e com os homens. Eles muitas vezes se comportam de forma imoral, mas isso é para mostrar aos homens em contraponto aos valores morais que eles devem respeitar. Para muitos – especialistas ou simples seguidores – a natureza religiosa do mito é evidente, porque a intrigas na maior parte das vezes se refere à origem dos deuses, do mundo, do mal, da morte. Todas as religiões estabeleceram ligações com os mitos, porque eles são portadores de uma visão sagrada. Portanto, a questão dos mitos fundadores é essencial porque participa da crença coletiva em uma criação antiga, se não arcaica, expressando uma verdade reconhecida como certa e que se tornou atemporal.

Autor: François Cavaignac
Tradução: José Filardo

Fonte: REVISTA BIBLIOT3CA

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O caráter secreto das Ordens de Mistério

Henryk Siemiradzki : Phryne em Poseidonia, em Eleusis, 1889

Nas Ordens de Mistério da Antiguidade, sempre houve uma nítida separação entre o iniciado e o profano. Do iniciado exigiam-se severos votos de segredo. A publicação dos segredos, além de fazer os ensinamentos recaírem sobre ouvidos moucos, representava perigo para a sociedade iniciática, uma vez que, sendo um grupo pequeno e seleto e, muitas vezes, possível vítima de detração por parte da sociedade, expunha-a a perseguições políticas potencialmente fatais, como, por exemplo, aquela de que foi vítima a Escola de Crótona, fundada por Pitágoras.

A exigência do silêncio sobreviveu aos tempos. Começando nos Mistérios da Antiguidade, perpassou pelas corporações de pedreiros da Idade Média até as Ordens que, já existindo no fim da Renascença, ainda hoje subsistem. A tradição de manutenção do segredo quanto aos ensinamentos internos é, assim, bastante antiga.

Neste texto, ilustro com fragmentos de textos antigos quatro evidências documentais (todas as traduções dos originais são minhas). Os documentos são dois textos do Corpus Hermeticum, mais precisamente o Asclepius, de que só nos resta a versão latina, e o Poimandres, em sua versão grega original, ambos relacionados ao Hermetismo; o livro De Iside et Osiride, de Plutarco, sobre os Mistérios Isíacos; o Manuscriptus Regius, do século XIV, das corporações de pedreiros; finalmente, The Anderson’s Constitution, do século XVIII, primeiro documento oficial da Grande Loja Maçônica da Inglaterra. Evidentemente os documentos históricos, todos de domínio público, mencionam o caráter secreto das ordens iniciáticas, não os seus segredos. Como diz Mircea Eliade (vide ELIADE, Mircea: A History of Religious Ideas, 1:294), “os ritos dos Grandes Mistérios, os verdadeiros segredos das iniciações (teletai) e a iluminação (epopteia) nunca foram divulgados” [the rites of the Greater Mysteries (…) the true secrets of the teletai (initiation proper) and the epopteia (the culminating vision) have never been divulged]. Lembre-se de que os Mistérios dividiam-se em Mysteria Minora e Mysteria Maiora.

No tratado hermético Asclepius, um dos tratados do Corpus Hermeticum, de Hermes Trimegisto [vide SCOT, Walter (ed.): Hermetica: The Ancient Greek and Latin Writings Which Contain Religious or Philosophical Teachings Ascribed to Hermes Trimegistus. Shambhala. Boston, 1993], a personagem Asclepius pede a Trimegistus que permita chamar Amon, para que este possa ouvir, junto com Asclepius, os ensinamentos que Trimegistus iria passar. Trimegistus termina seu prólogo pedindo que Asclepius chame Amon e ninguém mais e que, após receber os ensinamentos, mantenha silêncio sobre eles:

“Além de Amon, chama ninguém mais, para que um discurso tão religioso sobre tantas coisas não seja violado pela intervenção e presença de muitos. Com efeito, é de uma mente irreligiosa publicar, pela consciência de muitos, um tratado pleníssimo de divindade em toda majestade.”

Acredita-se que o Asclepius, pelo menos sua parte inicial à qual faço referência, foi escrito por volta do ano 100 a.C., o que indica que seu conteúdo é ainda mais antigo. Escrito originalmente em grego, provavelmente por algum professor de Alexandria, resta-nos apenas a sua versão latina, recolhida por Marsilio Ficino no século XV.

É comum encontrar a ideia de que o termo religiosum, isto é, “religioso”, deriva do verbo religare, que significa “religar”, dando-se a entender uma suposta “religação” do Homem com a Divindade. Essa ideia é falsa. Na verdade, a associação de religiosum a religare foi feita por Lactâncio e especialmente por Santo Agostinho em sua obra Retractationes, I, 13, no século IV de nossa Era. Santo Agostinho, já adepto do dogma da queda de Adão do Paraíso, encontrou nessa associação uma excelente justificativa para a imposição do dogma da queda e do consequente retorno do Homem a Deus pela óbvia intermediação da Igreja. Etimologicamente, porém, religiosum significa “aquele que cumpre sua obrigação”. Que esse é o significado verdadeiro é comprovado por Cícero, no século I a.C. e, portanto, mais de 400 anos antes de Santo Agostinho, em sua obra De Natura Deorum, II, 72, na qual se afirma que religiosum deriva do verbo relegere, que significa “reler”. Com efeito:

“Todos aqueles, porém, que pertencessem ao culto divino diligentemente repetissem como se relessem, são ditos religiosos por reler, assim como elegantes por eleger, cuidadosos de cuidar, inteligentes de inteligir; por tudo isso, efetivamente, em todas essas palavras jaz o mesmo valor de ler que em religioso.”

“Religioso” é, então, “aquele que cumpre os atos do culto divino” e que, por assim dizer, “relê atentamente o ritual” [vide ABBAGNANO, Nicola (1982): Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou, São Paulo, p. 814].

Portanto, quando Trimegistus diz que somente uma mente irreligiosa seria capaz de revelar ao público os segredos contidos em seu discurso, ele quer dizer que o verdadeiro iniciado, aquele que cumpre cuidadosamente seu dever ritualístico, jamais quebrará o voto de segredo. Sua explicação é que a mente profana é irreligiosa, ou seja, o profano é aquele que, não sendo um iniciado, não cumpre ritual algum e, por conseguinte, não está apto a compreender os ensinamentos herméticos.

Corpus Hermeticum possui outro tratado importante, o Poimandres [vide Scot (1993) supra], uma palavra grega que significa Pastor de Homens. No tratado, Asclepius, após mergulhar na reflexão profunda sobre as coisas divinas, tem uma visão na qual um ser gigante e luminoso, que se apresenta como Poimandres, lhe aparece e lhe transmite os ensinamentos herméticos. Já quase no final do tratado, no livro XIII (22b), Poimandres roga que Asclepius preserve silêncio sobre tudo que lhe foi transmitido acerca do renascimento, a quebra dessa promessa sendo vista como traição e geradora da desordem no mundo:

“Tendo aprendido isto de mim, promete o silêncio quanto à verdade, ó filho, e não revelar a qualquer outra criatura a instrução do renascimento, para que, desse modo, não sejamos considerados destruidores do universo.”

Traduzi παράδοσις (que no trecho está no acusativo singular) por “instrução” e não por “transmissão”. Isso porque o sentido é de transmissão oral ou escrita de uma doutrina ou de uma tradição religiosa [vide BAILLY, Anatole (2000): Dictionaire Grec-Français. Hachette, Paris, p. 1461]. Cri, assim, ser mais fiel ao sentido do texto e à doutrina da reencarnação professada pelos antigos hermetistas.

Plutarco, em seu tratado sobre os Mistérios de Ísis e Osíris (N.B.: clique AQUI para ler artigo sobre esse tema), mostra as similitudes entre os ritos de vários povos, argumentando que todos se referem a uma mesma Verdade universal. No final da seção 25, em particular, Plutarco compara o mito grego de Deméter ao mito egípcio de Osíris e Tífon (ou Seth) e mostra que têm o mesmo significado. Logo em seguida, ele menciona que o mesmo ocorre com todas as coisas que são vedadas aos olhos e ouvidos da multidão e que são veladas em ritos e cerimônias:

“Tanto as coisas que são encobertas pelos ritos místicos quanto as coisas que se preservam, pelos iniciados, não ditas e ocultas para a multidão têm uma explicação similar.”

Escrito por volta de 1390, o Manuscriptus Regius é a primeira versão do que se costumou designar as Old Charges, ou “Antigas Obrigações”. O Manuscriptus Regius é composto de quinze artigos. Nele existem ainda as chamadas constituições adicionais, compostas de quinze pontos ou dispositivos. Com relação à condição de se guardar segredo, é interessante reproduzir o terceiro ponto adicional (versos 275–286) do Manuscriptus Regius:

“Terceiro ponto: e com os aprendizes bem o saibas, ser o terceiro ponto o mais severo: A resolução de seu mestre ele mantenha e guarde e a de seus companheiros, por seu bom propósito; os segredos da câmara diga ele a homem nenhum nem qualquer coisa que na Logia façam; o que quer que ouças ou os vejas fazer, dize-os a homem nenhum aonde quer que vás; a resolução da assembleia e a da câmara, guarda bem, por magna honra, caso não queiras expor-te à reprovação e trazer à confraria grande vergonha.”

Constituição de Anderson (1723), no capítulo VI, que trata da conduta, aborda o tema do segredo particularmente no item 4º, que versa sobre a conduta que se deve observar diante daqueles que não pertencem à Ordem:

“4. Conduta em presença de estranhos não Maçons: Sereis cuidadosos em vossas palavras e obras, de modo que o mais perspicaz profano não seja capaz de descobrir ou de se aperceber do que não é próprio ser conhecido, e por vezes devereis mudar o rumo de uma conversação e administrá-la prudentemente, para a honra da venerável Fraternidade.”

Não foi, obviamente, minha intenção aqui escrever um ensaio completo e acadêmico sobre o caráter de secrecy das ordens de Mistério ao longo do tempo, mas apresentar algumas poucas, porém significativas, evidências literárias.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Fonte: Medium

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