Com tantas ideias e teorias (de conspiração) em torno de nossa Sublime Arte, não é surpreendente ver tantos maçons confusos, cuja educação apenas arranhou a superfície e eles próprios se entregam a espalhar informações falsas sobre a Maçonaria. Sem saber e sem perceber, eles também contribuem muito para a desinformação das massas. Maçons recém-iniciados e Mestres parecem ser igualmente ignorantes quando se trata de história, fatos, afiliação de pessoas famosas e outros tópicos “populares”.
1. História e origens
Só porque duas coisas parecem semelhantes, isso não significa que elas estejam organicamente relacionadas.
Embora os tijolos de barro já tenham sido feitos na antiga Mesopotâmia, provavelmente na Babilônia… as fábricas de tijolos de hoje não são descendentes diretas dos artesãos que exerceram esse ofício há milhares de anos. Sim, a ideia básica é a mesma: desenterrar, moldar e modelar a argila como um paralelepípedo(!), deixar secar e depois queimar ou assar no fogo. Nós (quero dizer, os arqueólogos modernos) encontramos vestígios de tais tijolos durante as descobertas arqueológicas. Na aldeia dos meus avós na Transilvânia, os ciganos (hoje conhecidos como Rroma) eram os tradicionais fabricantes de tijolos de barro. Eles até têm um clã com o nome desse ofício! Isso os torna os “descendentes” dos fabricantes de tijolos babilônicos? Eles herdaram algum tipo de conhecimento mágico e secreto dos antigos fabricantes de tijolos e através deles esse conhecimento de percepção secreta desceu à Clay Brick Association of Canada ?
Qualquer um que afirmasse tal conexão seria ridicularizado e considerado maluco.
Por que então a afirmação de que a Maçonaria moderna de hoje se originou no tempo de Noé ou quem sabe onde na história não escrita… pode ser seriamente discutida por certos maçons? Estamos realmente pensando que o trabalho realizado na Torre de Babel ou no Templo do Rei Salomão foram, de alguma forma, os precursores da moderna maçonaria inglesa no século XVIII?
2. Organizações de Maçons?
Collegia romana
Os construtores se organizaram desde os tempos antigos – diz o outro “argumento” querendo dar o pedigree de antiguidade ao nosso Ofício. Portanto, e aqui vem o salto lógico: somos descendentes de todas essas organizações, como o Collegia romana. Nós somos? Não há evidências, apenas especulações de que elementos dos collegia no Império Romano possam ter sobrevivido e constituído a base das guildas medievais na Europa [1].
Sabemos que havia Collegium Fabrorum (de construtores), mas também Collegium Lupanariorum… caso você tenha perdido a aula de latim: significa donos de bordéis.
O Steinmetzen germânico e o Compagnonnagefrancês
Esses foram os primeiros sistemas de transmissão do conhecimento e “segredos” comerciais dos pedreiros alemães e de diferentes habilidades comerciais na França. Enquanto o primeiro está extinto, o segundo ainda existe na França, proporcionando educação prática e iniciação para aprendizes. Esses sistemas, no entanto, nunca superaram as fronteiras de seus países e não se tornaram um sistema mundial de organização fraterna. Eles são extremamente interessantes de estudar e entender – mas seria difícil aceitá-los como os precursores medievais da Maçonaria moderna.
Um exemplo de organização não-maçônica: carpinteiros .
3 – Todos os tipos de guildas ao redor do mundo e sindicatos modernos e “irmandades”
Desde os tempos medievais, quando uma guilda, como a dos alfaiates ou sapateiros, regulamentava esse comércio específico na jurisdição de uma vila ou cidade, até os sindicatos modernos (às vezes enganosamente chamadas de irmandades), todas eram organizações profissionais destinadas a proteger seus próprios interesses. As guildas, como órgãos autorreguladores, foram estabelecendo o caminho desde o aprendizado até se tornar um “mestre” – fazendo e apresentando aos responsáveis sua “obra-prima”, a prova de suas habilidades. Os requisitos mostravam muitas semelhanças, independentemente do ofício. Após longos anos de aprendizagem, o jovem fazia uma viagem (daí: viajante) às vezes apenas para outras cidades, às vezes até para outros países. Após o retorno, eles poderiam se candidatar para se tornar um membro mestre da guilda, uma espécie de profissional autônomo da época. As guildas, assim como os sindicatos e organizações profissionais de hoje, tentaram manter seu monopólio da produção e sua autoridade para decidir quem poderia exercer a profissão em seu território.
Novamente, semelhanças não significam parentesco. Por definição, qualquer ordem iniciática – desde os tempos antigos até hoje – vai apresentar semelhanças: as estruturas e métodos de tais organizações estão relacionados. Eles têm um ritual, seguem um procedimento cerimonial durante o qual trazem o aprendiz “de fora” para dentro do círculo de membros que foram iniciados anteriormente. É claro que haverá etapas e maneiras de fazer coisas que pareceriam “semelhantes”. Mas essas semelhanças vêm da natureza das coisas.
4. Iniciação
Cada cerimônia ou ritual iniciático tem um único propósito: compartilhar com o membro recém-admitido (o iniciado) o conhecimento sobre o sagrado. Aqueles que não pertencem ao círculo interno não são iniciados, são profanos – não conhecem o sagrado. Das culturas xamanísticas centro-asiáticas, aos aborígenes nativos das Américas e às várias ordens religiosas, todos têm uma cerimônia bem planejada (um enredo, se desejar) para trazer solenemente o candidato profano do estado de escuridão (ignorância, falta de conhecimento) ao estado elevado de ser iniciado, onde recebe a luz do conhecimento secreto – e sagrado.
Os maçons reconhecerão nas frases acima alusões aos seus rituais. No entanto, quase não há ordem iniciática que não sinta o mesmo: que as referências digam respeito aos seus próprios rituais de iniciação. E é exatamente esse o ponto: todas as organizações que têm esse caráter, vão demonstrar traços semelhantes porque não há outra maneira de fazer a iniciação. Para compartilhar o conhecimento sagrado dos iniciados é preciso passar por eventos e etapas que irão preparar e permitir que a pessoa receba a mesma informação privilegiada.
[O fato de certas organizações degradarem tais processos fazendo uso de “trote” não deve ser negligenciado aqui. O uso de trote é um erro e um desrespeito para com os rituais sagrados que deveriam servir ao recém-iniciado para adquirir a iluminação sagrada.]
5. Todo mundo era maçom…
Ou assim gostamos de pensar. Dos antigos faraós egípcios, aos astronautas e reis, aos presidentes e artistas famosos – qualquer um é suspeito de ser um maçom, um maçom aos olhos dos crentes da conspiração. E de maçons ignorantes.
Vamos deixar esse assunto bem claro: se não havia maçonaria moderna antes das lojas que existiam nas Ilhas Britânicas, então não havia maçons antes disso. Portanto, nenhum personagem bíblico pode ser reivindicado como maçom. Além disso, Leonardo da Vinci não era maçom – não importa o que você leia em um livro de ficção. (Definição de ficção – literatura em forma de prosa […] que descreve eventos e pessoas imaginárias.) Nem Pepino, o Breve, nem Carlos Magno. Isso vale para os Cavaleiros Templários.
Desde a minha infância, fui um ávido leitor: durante meus anos de escola primária, o maior castigo que meus pais podiam me dar era me proibir de ler por alguns dias ou, horribile dictu, uma semana! Eu costumava ser um leitor indiscriminado, que por sua vez resultou mais tarde em um detector muito fino de reconhecer os diferentes gêneros e tipos de textos escritos.
Quanto às celebridades vivas – a primeira regra que aprendi como maçom foi esta: posso dizer publicamente sobre mim mesmo que sou maçom, mas nunca posso dizer algo assim sobre um irmão meu. Então, pare de adivinhar e nomear personalidades vivas como maçons! Espere até que eles morram.
6. Pais fundadores
É um fato bem conhecido que os ideais ensinados nas lojas maçônicas, sobre a igualdade de todos os homens, uma sociedade onde a liberdade religiosa é a norma, um mundo utópico (tiro o chapéu para Sir Francis Bacon que também não era maçom) de harmonia, paz e liberdade … foram implementados como os princípios básicos de alguns novos países criados por aqueles que deixaram o Velho Mundo para construir um melhor. Em outros lugares, o modelo seguido nas lojas, por exemplo, parlamentarismo (terminologia moderna) onde todos têm voto igual, com regras de direito, democracia e direitos iguais – tornou-se o ideal a ser imitado na sociedade.
Em suma, muitas instituições políticas da era moderna foram influenciadas pelos maçons e seus ideais e práticas. O que não significa que todos os adeptos dessas ideias fossem maçons. Thomas Paine, a “celebridade” influente da época, até escreveu uma história da Maçonaria e ele não era um membro documentado da Arte Real. Dos 56 homens que assinaram a Declaração de Independência (americana) apenas 9 [nove] eram maçons! Nove dos cinquenta e seis.
No Canadá, também temos vários maçons no nascimento da Confederação. Mais interessante, todos os três famosos cervejeiros canadenses também eram maçons: John Labatt, Alexander Keith, John Molson. Devemos dizer que estas são (ou eram) cervejas maçônicas?
7. Maçonaria na Bíblia
Todos sabem, inclusive os não maçons, que a maioria dos símbolos, personagens e histórias que contamos em nossas cerimônias (rituais) são baseados em textos bíblicos. Para alguns, isso é uma prova de que a Maçonaria é uma organização “cristã”, para outros, são como quaisquer parábolas do Antigo Testamento: histórias tiradas de uma fonte e depois moldadas e transformadas em uma dramatização para transmitir os ensinamentos morais e incutir inspiração para o aperfeiçoamento de nossas virtudes. (Nota: não há absolutamente nenhuma referência ao Novo Testamento no ritual!)
Um dos personagens centrais de nossas histórias é o Rei Salomão junto com seu templo. É muito interessante que, à luz das últimas pesquisas, a metáfora do “templo”, especialmente a do Templo de Jerusalém, como o templo da sabedoria [templum sapientiae], o templo do conhecimento enciclopédico [templum encyclopediae] era um topos que retornava – uma vez que era a fórmula de tópico tradicional nas décadas imediatamente anteriores à formação da primeira Grande Loja conhecida em 1717. O simbolismo do templo e em um contexto mais amplo, o simbolismo da “Nova Jerusalém” está presente na retórica inglesa desde Sir Francis Bacon…
A Maçonaria, ou mais exatamente, os autores dos primeiros livros e regras e a mitologia apenas adaptaram os temas literários existentes para seus propósitos. Vale ressaltar que, há 300 anos, as histórias bíblicas, a mitologia clássica grega e romana e a literatura eram a base do que chamaríamos de educação. Assim, a maneira mais fácil de transmitir uma mensagem – seja de moral ou outro conteúdo espiritual – era usar as conhecidas histórias, parábolas, metáforas e simbolismos.
No entanto, não há maçons na Bíblia.
Vamos resumir o que aprendemos hoje:
NÃO havia “maçonaria” na Antiguidade ou nos tempos bíblicos;
Diferentes organizações comerciais de construtores/pedreiros (sindicatos?) podem apresentar semelhanças, no entanto, semelhanças não significam linhagem ou descendente do mesmo ancestral;
A maioria das ordens iniciáticas tem métodos semelhantes – per definitonem;
Muitas guildas comerciais protegem seus segredos comerciais com o mesmo tipo de sigilo;
O fato de existirem construtores desde que a humanidade começou a erigir objetos arquitetônicos… não significa uma linha contínua de maçons ao longo da história;
A Maçonaria Especulativa, como a conhecemos hoje, originou-se nas Ilhas Britânicas;
Consecutivamente, não houve maçons – como usamos a palavra hoje – antes disso em outros países;
Steinmetzen e Compangnonnage são diferentes organizações que permaneceram locais e nunca evoluíram para um sistema mundial;
Não, as figuras bíblicas usadas em nossas cerimônias não eram maçons modernos;
Não, não havia maçons AC (antes de Cristo);
Não, Leonardo da Vinci NÃO era maçom;
Não, a maioria dos Pais Fundadores dos EUA não eram maçons: dos 56 signatários, apenas 9 eram maçons documentados;
As 3 marcas de cerveja canadenses mais conhecidas foram fundadas por maçons.
*Horvath é Mestre Maçom, Maçom do Arco Real, membro da Philaletes Society, do Quatuor Coronati Correspondence Circle e da Scottish Rite Research Society.
Nota
[1] – Clique AQUIpara ler mais sobre a Maçonaria e os Collegia Romana
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As críticas à Maçonaria e o imaginário antimaçônico
Escolhemos uma consulta aos sites na internet para procurar perceber como a Maçonaria é vista por seus opositores e aprofundar um pouco a reflexão sobre o imaginário que a envolve.
A Igreja Católica é opositora da Maçonaria desde os tempos da Revolução Francesa, à medida que os maçons combatiam a falta de liberdade de pensamento que a Igreja era uma das principais responsáveis. As críticas da Igreja Católica já foram mais contundentes, mas hoje permanece a proibição aos católicos de pertencerem à Maçonaria, como aparece no site https://padrepauloricardo.org/episodios/um-catolico-pode-ser-macom:
Permanece, portanto imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçônicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas. Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão. (Acesso em 15/07/2014).
A principal motivação para essa proibição, na continuidade da reflexão apresentada no site, é que a Maçonaria defende o relativismo religioso como regra fundamental para seus adeptos. Esse fato fere o princípio cristão de que somente Jesus Cristo pode levar à salvação, o que contraria qualquer tipo de relativismo. Assim, desde o século XIX quando diversos documentos papais condenaram a Maçonaria, permanece o veredicto católico sobre o erro de se participar dessa instituição[4].
Já outros sites são bastante agressivos contra a Maçonaria, como, por exemplo, o site http://intellectus-site.com/site2/artigos/maconaria-braco-direito-do-diabo.htm, que em tom violentamente contrário, procura mostrar que os símbolos e ideais maçônicos são contrários à Bíblia e ligados a Lúcifer ou Satanás. No texto do site encontramos:
Deus está entregando o Brasil nas mãos de saqueadores e de homens cujo coração não somente se encontra longe dele, mas cujos intentos nunca levam em consideração nem o amor ao próximo e nem a misericórdia. Porém, estamos falando de uma nação inteira, de um país com quase 200 milhões de pessoas, como se tem dado isto na prática? As Origens da Maçonaria e de seu Pai, Lúcifer Essa organização luciferiana, chamada de Maçonaria, diferentemente do que muitos supõem, não é um organismo isolado e singular no mundo. Antes, trata-se de um poderoso segmento do Império de Satanás. (Acesso em 15/07/2014).
Como pode ser entendido pelo texto citado, o autor do site associa a Maçonaria ao satanismo e também reputa a essa instituição o que ele entende como fracasso do Brasil em se tornar uma nação desenvolvida. O interessante deste site é que o autor parece conhecer bastante os ritos e símbolos da Maçonaria, pois se utiliza de imagens dos mesmos e textos maçônicos para exemplificar e contestar cada elemento pertencente à Maçonaria. Ao fim de sua argumentação, a conclusão é bastante contundente:
A Bíblia e a Maçonaria são opostas entre si e eternamente inconciliáveis! A Maçonaria é uma organização iniciática, ocultista e completamente satânica! A Maçonaria se infiltrou na política brasileira, e continua infiltrada, e nenhuma nação da Terra pode ser beneficiada por uma organização filha do Inferno! Muito pelo contrário! O deus da Maçonaria não é o Deus da Bíblia! O deus da Maçonaria é o diabo! Impossível ser Cristão e Maçom ao mesmo tempo! Mais cedo ou mais tarde, a escolha terá de ser feita, e significará o Céu ou o Inferno, respectivamente. (http://intellectus-site.com/site2/artigos/maconaria-braco-direito-do-diabo.htm Acesso em 15/07/2014)
O interessante da contraposição desses dois sites em relação à Maçonaria é que a finalidade é a mesma – manter os cristãos afastados dessa instituição –, mas a forma assumida reflete dois modos contemporâneos do cristianismo de combater as demais crenças: a argumentação racional e assertiva com base em pressupostos teológicos, que é característica do catolicismo e demais igrejas protestantes históricas; e a demonização pura e simples, mesmo que acompanhada de certo conhecimento do tema, que é característica das igrejas evangélicas de cunho pentecostal e neopentecostal surgidas nos últimos 120 anos.
Esses dois exemplos que coletamos constituem uma pequena, mas significativa, amostra do que uma rápida consulta ao “Google” oferece: encontram-se 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil) sites que disseminam informações sobre a Maçonaria e também os que tratam tanto das acusações dos inimigos da Maçonaria como das defesas postadas pelos maçons e seus defensores. Ao consultar o conteúdo de muitos deles, encontramos sempre os mesmos argumentos contrários e as mesmas explicações, mostrando que o diálogo é impossível entre essas correntes de pensamento, e que, apesar da Maçonaria estar expondo publicamente a parte não secreta de seus rituais e doutrinas, não há um limite para o estímulo dos opositores ao imaginário que procura transformar a instituição numa força demoníaca e conspiradora contra a sociedade que se pensa cristã.
Considerações sobre os mitos e o imaginário que cercam a Maçonaria
A consulta aos livros que estudam a história da Maçonaria, aos artigos de divulgação em revistas científicas e de divulgação jornalística e aos sites que tratam dos temas ligados à Maçonaria, nos possibilitaram um entendimento sobre o poder que é atribuído à Maçonaria, o medo e as polêmicas que a instituição suscita socialmente, assim como os motivos para que ela seja condenada pelos defensores mais radicais do cristianismo.
O surgimento dessa instituição num momento histórico de grandes transformações no mundo ocidental, com a revolução produzida pelos ideais renascentistas e depois iluministas, o confronto das novas formas de pensamento com as tradicionais formas de poder que vigoravam desde o final da Antiguidade, mais precisamente o poder monárquico e o clerical, colocou a Maçonaria no centro de muitas polêmicas, principalmente por acolher entre seus adeptos muitos defensores dessas novas ideias.
Aliado a essa opção pela defesa da liberdade de pensamento e de investigação que marcou a Maçonaria desde o princípio, sua constituição sob a forma de sociedade iniciática, adepta do estudo das ciências ocultas cuja origem remonta a um passado mítico, produziu um efeito impressionante sobre o imaginário das sociedades ocidentais onde a instituição atuou decisivamente. A capacidade de manipular o poder, de influenciar decisões, de mudar os rumos dos acontecimentos, sempre foram capacidades atribuídas aos magos. Numa sociedade de maioria cristã e intolerante com outras formas de crença e de conhecimento religioso, o poder mágico atribuído aos maçons só poderia ter uma única origem, que não era, obviamente, ligado a Jesus Cristo.
Hoje os conhecimentos ditos ocultos estão disponíveis na internet sob a forma de artigos, documentários, guias práticos, etc., não constituindo mais nenhum mistério essas informações que – segundo o imaginário coletivo – podem ajudar uma pessoa a manipular situações e mentes. O fato da Maçonaria permanecer como alvo das críticas e oposições ferrenhas dos cristãos está mais ligado ao passado e ao imaginário social do que ao presente, pelo fato da instituição ter perdido – no último século – grande parte de seu estímulo para lutar por ideais que agora já são bastante comuns e públicos.
É sobre esse aspecto que trataremos na continuidade do texto.
A presença da Maçonaria na História e o discurso e práticas atuais
Já abordamos rapidamente alguns aspectos da participação da Maçonaria e dos maçons na Revolução Francesa e na Independência dos Estados Unidos. Nessas duas nações inspiradoras da maior parte dos ideais que hoje fundamentam a cultura ocidental, assim como na Grã-Bretanha, nação onde se originou a instituição maçônica, o papel da Maçonaria foi muito importante historicamente. Chatenet (2009), por exemplo, afirma que, entre George Washington e Bill Clinton, apenas dois presidentes americanos não pertenceram à Maçonaria: John Kennedy e George Bush.
Se olharmos para a história do Brasil, apesar da participação maçônica não ter sido tão preponderante como nos EUA, houve claras influências da Maçonaria no movimento republicano e abolicionista, assim como na direção que o Brasil tomou na Primeira República. (AZEVEDO, 1996; BARATA, 1999).
As ideias maçônicas estão presentes no Brasil desde o final do século XVIII (AZEVEDO, 1996, ACIOLY, 2004), havendo especulações sobre a presença dessas ideias na Inconfidência Mineira. Entretanto, há certo acordo entre os historiadores de que a primeira Loja foi fundada em 1801. Nas décadas seguintes, até 1860, aconteceu grande expansão das Lojas pelo Brasil, que se afiliaram às tradições maçônicas francesa, belga, portuguesa e inglesa (AZEVEDO, 1996, p. 182).
Apesar de ser impossível dissociar as atividades maçônicas das principais questões que motivaram transformações no Brasil durante o período imperial e no início da República, poucos estudiosos se aventuraram a um aprofundamento maior sobre a real participação da Maçonaria nos eventos políticos, econômicos, sociais e culturais.
Barata (1999) procurou mostrar a Maçonaria no Brasil – como também na sua origem europeia – como a principal divulgadora dos ideais do iluminismo e da ilustração, tendo seus membros se tornado alguns dos mais importantes defensores da abolição da escravidão, da necessidade de modernização para o país, tanto economicamente como na área da educação. O esforço para retirar da Igreja Católica o predomínio sobre o sistema educacional brasileiro aparece como um dos principais investimentos maçônicos, fato que aconteceu nos principais estados do Brasil, como também mostra o artigo de Colussi (2000) quando aborda a participação da Maçonaria no Rio Grande do Sul.
Vieira (1999) centra seu foco na participação da Maçonaria na Questão Religiosa (ocorrida entre 1872 e 1875), conflito que envolveu a Maçonaria, a Igreja Católica e o Regime Imperial, e que contribuiu significativamente para o aumento do descrédito do governo monárquico de conduzir o Brasil ao desenvolvimento, à medida que tinha dificuldade de lidar com o poder religioso e impor sua autoridade (ROMANO, 1979). Esse conflito acabou por beneficiar o movimento republicano e o movimento favorável à vinda de imigrantes para substituir a mão de obra escrava. Para Vieira (1999) a Questão Religiosa e a atuação da Maçonaria – mesmo que os protestantes também tivessem dificuldade de aceitar a instituição maçônica – contribuíram para que o Protestantismo tivesse maior liberdade de atuação no Brasil, país que tinha na época o catolicismo como religião oficial.
Morel e Souza (2008), numa abordagem fundamentada historicamente, mas com o viés do enfoque e da linguagem jornalística, esforçam-se por apresentar um panorama geral da Maçonaria, desde seu surgimento na Grã-Bretanha, explicando seus mitos e sua condição de organização iniciática, até sua chegada e desenvolvimento no Brasil. Procuram mostrar a participação dos maçons nos principais eventos da política brasileira no século XIX e contradizem a tese de Sérgio Buarque de Holanda de que a Maçonaria perdeu força no Brasil devido ao avanço do pensamento positivista. O aspecto diferenciado da obra de Morel e Souza (2008) é ter avançado até o período contemporâneo, quando há um silêncio entre historiadores sobre a Maçonaria, analisando a transformação da Maçonaria em função das transformações culturais acontecidas no Brasil e no mundo.
Azevedo (1996) procura fazer uma reflexão sobre esse silêncio que cercou os estudos sobre a Maçonaria a partir da década de 1940. A autora afirma que mesmo os historiadores da Escola dos Annales pouco se interessaram pelo tema desde a fundação da revista (AZEVEDO, 1996, p. 186). Outro fato que a autora destaca, é que no Congresso Internacional do Bicentenário da Revolução Francesa, realizado na Sorbonne em 1989, entre as mais de duzentas comunicações apresentadas nenhuma tratou da participação da Maçonaria (AZEVEDO, 1996, p. 188).
Algumas explicações têm sido apresentadas para justificar – segundo a autora – o silêncio a que os historiadores relegaram a Maçonaria. A primeira delas é “o impacto do mito da conspiração maçônico-judaica que perpassou o imaginário europeu desde o início da década de 1930” (AZEVEDO, 1996, p. 188), outro motivo seria a dificuldade de acesso às fontes maçônicas, sigilosas pela própria natureza da instituição, por fim, a opção por não pesquisar uma sociedade secreta que supostamente estuda ciências ocultas, tema pouco interessante para a abordagem mais racionalista contemporânea.
Na abordagem de Azevedo (1996), assim como em Morel e Souza (2008) e em reportagens das revistas História Viva e Superinteressante, aparece um aspecto que se mostra bastante relevante para a abordagem que procuramos dar sobre o tema: apesar dos elementos míticos e imaginários que cercam a Maçonaria ainda nos dias atuais, a instituição se tornou comum, isto é, deixou de ser uma vanguarda do pensamento político e cultural como foi nos tempos em que os ideais iluministas ainda necessitavam de um intenso esforço para se tornarem a base da sociedade ocidental.
Nos dias atuais a liberdade de pensamento é uma realidade no ocidente, a liberdade de iniciativa, a liberdade religiosa, a educação laica, a sociedade e os costumes secularizados já constituem o núcleo fundamental da cultura ocidental, tornando, nessa perspectiva, a Maçonaria uma instituição comum, com participação política e social naturalmente aceitas, mesmo que relativamente estigmatizada pelo fato de manter secretos seus rituais. Essa atual posição da Maçonaria na sociedade aparece, por exemplo, no texto de Gwercman (2005) que, citando trecho da entrevista de H. Paul Jeffers, autor de um livro sobre a Maçonaria, escreve: “Atualmente, a maçonaria mais parece uma tentativa por parte de homens bem intencionados, na maioria brancos e velhos, de entender o sentido da vida.” (GWERCMAN, 2005, p. 59).
Essa afirmação parece ser um exagero, mas as indicações dos sites e das reportagens mostram que, realmente, o que intriga e incomoda os não maçons é o mistério e o imaginário, particularmente as construções negativas que já citamos: satanismo, complôs, etc.
Nas reportagens de revistas que selecionamos para analisar como a Maçonaria aparece atualmente nas publicações, à medida que os livros sobre a Maçonaria que citamos são poucos e provavelmente lidos por um restrito número de pessoas, emergem alguns traços interessantes que devem ser destacados.
Nefontaine (2007), por exemplo, aponta que o segredo ou discrição – como dizem os maçons – é uma condição para manter um dos pontos centrais da organização: a liberdade de pensamento e de busca do conhecimento. Não falando sobre os rituais e sobre as experiências internas que acontecem nos templos, os maçons reservam esse local para a vivência de momentos únicos, voltados para a reflexão e para o debate sobre todos os temas que estão em voga na sociedade, na política, na economia, na ciência e na espiritualidade. Esse autor afirma:
Mas qual a eficácia de ocultar informações? Na França, as lojas maçônicas foram apresentadas como laboratórios de ideias em que novos temas podiam ser explorados com total liberdade, o que contrastava com as tendências naturalmente conservadoras e imobilistas da sociedade. Assim, o segredo permitiu a eclosão e a discussão livre de ideias novas e progressistas, que puderam concorrer para o estabelecimento de legislações sociais e éticas como o descanso remunerado, a liberação do aborto a partir de 1973, a contracepção e o planejamento familiar. (NEFONTAINE, 2007, p. 63)
Outro aspecto que aparece como relevante para a análise sobre a atuação da Maçonaria na atualidade refere-se à suposta proteção social que os maçons recebem da Organização. Gwercman (2005) propõe que a Maçonaria, apesar de não estar mais tão ativa na busca pela influência direta no poder político, permanece atuando nos bastidores para conseguir favores ou alcançar metas que podem ser voltadas tanto para benefícios sociais (hospitais, creches, casas de correção, etc.) como para beneficiar os próprios irmãos. Nesse sentido o autor lança algumas indagações:
Muitos maçons brasileiros adoram listar pessoas importantes que integram a ordem. São empresários, policiais de alta patente, políticos, juízes. Todos unidos pelo compromisso de ajuda mútua – irmão que é irmão nunca deixa o outro na mão. Atualmente, por exemplo, circula entre os maçons paulistas a história de um julgamento recente, parte de um escândalo nacional, que caminhava para a condenação do réu e mudou de rumo após telefonemas entre altos membros do tribunal. Advogados, juízes e o acusado eram iniciados na ordem. Casos assim são frequentemente ouvidos, ainda que na maioria das vezes em tom de boato. E preocupam muita gente. Por mais que os integrantes da maçonaria sejam gente da mais fina estirpe e dotados das melhores intenções, será que têm condições de abandonar os valores e pactos da fraternidade na hora de exercer cargos na sociedade pública? (GWERCMAN, 2005, p. 59)
Esse é um problema que, com certeza, não obterá resposta. Todas as pessoas que ocupam cargos públicos – sejam maçons ou não – podem cometer o mesmo tipo de ato de improbidade, beneficiando parentes, amigos, membros da mesma religião, etc. Não há nenhuma garantia de honestidade quando esses fatores estão em jogo, sendo os casos de honestidade a exceção à regra. Então, esse não é um problema dos maçons, mas – como já afirmamos – do imaginário social que leva grande parte das pessoas a enxergar a Maçonaria sob a ótica que a tem marcado desde o início de suas atividades.
Considerações Finais
A modernidade tardia ou pós modernidade[5] trouxe a necessidade das instituições tradicionais da sociedade ocidental se reinventarem. A não aceitação pura e simples das verdades religiosas ou científicas, por um lado, e a liberdade de investigação e busca por caminhos alternativos de conhecimento e realização pessoal, por outro, redefiniu ou vem redefinindo os papéis e a importância das instituições dentro da ordem social, assim como sua perspectiva de alcançar ou manter o sucesso de suas ideias, crenças, doutrinas e regras.
Ao abordar a Maçonaria como tema de reflexão, nos colocamos diante do fato de que há grande riqueza na história da instituição e também múltiplas interpretações existentes sobre a criação e o desenvolvimento da mesma, assim como sobre seus rituais e sua participação na história de muitas sociedades. Mas entendemos que hoje essa riqueza pode não ser suficiente para a continuidade de suas atividades no nível em que quase sempre se colocou.
No nosso entender, o mito de origem da Maçonaria ainda constitui uma forma de conferir autoridade e reverência aos rituais e conhecimentos que a instituição ensina internamente e defende socialmente. Colocar-se como herdeira da tradição dos grandes construtores da humanidade, conhecedores da arte de erguer monumentos extraordinários – como os egípcios – é se afirmar a partir de conhecimentos imemoriais, que não precisam ser verdadeiros, no sentido que é dado pelo Cristianismo e pela ciência, mas no sentido mítico, como modelos exemplares de conduta e comportamento. Nessa perspectiva, os mitos maçônicos são compreensíveis e conferem sentido à existência de uma instituição como a Maçonaria.
Entendemos também que o imaginário social, construído, como vimos, durante e após a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, mostra que a instituição lutou por seus ideais como qualquer outra instituição e que o fato de ser uma Ordem iniciática e que mantém seus rituais em segredo, causou maior preocupação nos não adeptos do que o poder real que a instituição possuiu durante sua história. Seus membros fizeram política, procuraram influenciar os destinos das sociedades em que participavam – assim como os cristãos sempre fizeram – mas foram demonizados por não tornarem públicos os seus membros e seus ritos e doutrinas.
A curiosidade, e também o medo, em relação a tudo que é misterioso, emoção comum à maioria dos seres humanos, parece ser o fermento que impulsionou o imaginário antimaçônico, deixando sempre a dúvida sobre se existe mesmo todo o poder que é conferido a essa instituição. De qualquer modo, os maçons continuam mantendo esse imaginário intacto – e talvez se divertindo com ele – porque permanecem fiéis aos segredos da Ordem e continuam atuando sem que a sociedade saiba exatamente onde começa e onde termina sua influência.
Uma questão para ser investigada é se esses mitos e esse imaginário, nas condições do tempo atual, são adequados à manutenção da Maçonaria como uma instituição de peso na sociedade, como aparenta ter sido em outros momentos históricos. Nesse sentido, instituição maçônica não correria o risco – por ter perdido o sentido de sua antiga luta por valores universalistas nos campos político e religioso – de se tornar apenas uma instituição de sociabilidade, que agrega pessoas em torno da manutenção de um status que não representa mais a riqueza da construção histórica e imaginária que a fundamenta?
Autor: André Luiz Caes
Fonte: Revista Sapiência- Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais
*Clique AQUI para ler a primeira parte doa artigo.
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[5] – Não entramos particularmente na discussão desses conceitos, que podem ser melhor compreendidos em diversas obras, das quais citamos: GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991; BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
Referências
ACIOLY, Augusto César. As luzes da Maçonaria sobre Pernambuco. Recife: UFPE, ANPUH, Anais, Outubro/2004.
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A Maçonaria é uma das instituições mais polêmicas existentes na sociedade ocidental. Surgida num contexto de transformações no mundo medieval, como uma associação de artesãos pedreiros e construtores, seu posterior desenvolvimento levou à formação de uma organização iniciática, com rituais secretos e ideias inovadoras, baseadas nos ideais iluministas. Desde o seu surgimento, os maçons procuraram construir um mito sobre sua origem como herdeira de tradições muito antigas e poderosas da antiguidade e da própria Idade Média. Por outro lado, a sociedade ocidental, dominada por muito tempo pelos costumes e pelos ensinamentos cristãos, acabou por construir em torno da Maçonaria um imaginário bastante extraordinário, conferindo a essa Ordem o potencial para mudar a história e para corromper a sociedade através de práticas consideradas satânicas. Neste trabalho, analisamos os mitos maçônicos e o imaginário que envolve a Ordem, procurando refletir sobre a forma como a Maçonaria é vista na sociedade atual.
Introdução
A Maçonaria guarda dentro de si, como instituição, muitos segredos.
Pelo menos é isso que a Ordem deseja que todos pensem, é isso que os maçons transmitem para quem os indaga sobre o que acontece dentro do Templo e é isso que a maior parte das pessoas pensa sobre essa instituição que atrai tanta desconfiança.
O fato é que guardar segredo sobre o que acontece dentro de uma instituição que é pública – porque nunca ficou escondida – parece ser uma situação tão desconcertante para a maior parte das pessoas que faz com que a imaginação faça grandes voos. Pode-se dizer que esses segredos se tornaram a maior força da Maçonaria e também o maior foco das críticas que sempre são feitas à instituição.
Mesmo nesse momento histórico, no qual aparentemente a Maçonaria perdeu parte do interesse pelos seus mistérios, ainda é interessante perceber e refletir sobre seu significado no contexto da diversidade das manifestações religiosas ou espirituais que mobilizam o imaginário social. Para escrever este texto, procuramos olhar justamente para essa questão que envolve a Maçonaria e nosso esforço foi para compreender alguns aspectos dessa construção histórica de uma imagem de instituição poderosa, tanto para o bem como para o mal.
Com esse objetivo, analisamos os mitos e imaginários construídos pela própria Maçonaria sobre si mesma e, também, o imaginário que surgiu por meio dos opositores da Ordem, que procuraram denegrir sua imagem e envolvê-la com objetivos negativos.
Para abordar os mitos sobre a Maçonaria utilizamos as noções sobre o mito dadas por Eliade (2007) e Croatto (2010). Para este último autor, o mito é uma narrativa exemplar, na qual a realidade passa a ter sentido pelo fato de ter sido produzida pelos deuses ou entes sobrenaturais: “como instaurador de uma realidade, o acontecimento mítico lhe dá sentido, pois ela remonta-se, em última instância, à primordialidade transcendente, ideia reforçada pela atuação protagonista dos Deuses” (CROATTO, 2010, p. 218, grifo do autor). Assim, a Maçonaria, ao construir seu mito de origem, buscando no passado muito antigo o surgimento do saber de que é portadora, busca conferir uma qualidade de transcendência às suas ações e sua organização. Os mitos maçônicos fazem remontar o saber maçônico ao saber originário sobre as construções sagradas.
Já sobre o imaginário construído em torno da Maçonaria e sua atuação na sociedade, usamos as noções desenvolvidas por Pesavento (2005, p. 45) que afirma: “entende-se por imaginário um sistema de ideias e imagens de representações coletivas que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo”. No nosso entender, a partir das reflexões da autora, o imaginário confere sentido às experiências individuais e sociais, por ser uma construção que tem como um dos objetivos, mesmo partindo do campo da imaginação, integrar o que é difícil de compreender, o que é misterioso e amedrontador. É nessa perspectiva que se pode olhar o imaginário sobre a Maçonaria, instituição que supostamente promove complôs, que se utiliza de conhecimentos ocultos e satânicos para manter seu poder e influenciar o destino da sociedade.
Num segundo momento do texto, procuramos abordar a Maçonaria sob a ótica da história, na qual os mitos e imaginários são desmontados e fica a concepção de que essa instituição sempre se constituiu em ambiente para ideias e ideais inovadores, que seus membros se dedicaram à política com o intuito de defender essas ideias e ideais e que – com o decorrer do tempo e as transformações históricas – a instituição deixou de ter essa importância e passou para outro estágio de atuação, que envolve mais o aspecto social e espiritual do que propriamente o político.
É importante informar que utilizamos para construir nosso relato artigos de revistas de divulgação como Superinteressante e História Viva, além de sites que tratam da Maçonaria, pelo fato de que essas reportagens refletem a curiosidade e as indagações que a sociedade têm sobre a Ordem Maçônica e sobre seus segredos. Essas reportagens informativas e investigativas contribuíram para enriquecer a perspectiva que construímos durante o trabalho.
Entendemos, a partir do estudo, que a Maçonaria é um interessante exemplo de como os mitos e imaginários são fundamentais para a visão que temos do mundo e da sociedade.
Maçonaria: mitos e imaginários
Para tratar do tema “Maçonaria” é necessário analisar os diversos elementos que constituem o que podemos chamar de “mitos” e “imaginários” que foram construídos em torno dessa instituição. Esses mitos e imaginários foram construídos tanto pelos próprios maçons como pelos opositores da Maçonaria, em especial a Igreja Católica e as demais Igrejas cristãs. Esses mitos e imaginários permanecem vivos até os dias atuais, fato que indica a importância de se realizar uma análise mais detalhada sobre o tema.
Começaremos pelos mitos e imaginários construídos pela própria Maçonaria para depois tratarmos das construções efetivadas para tentar denegrir e demonizar essa instituição.
O primeiro aspecto a ser ressaltado sobre a Maçonaria é o seu impressionante investimento na criação de um “mito da origem”. Essa criação ocorreu desde o início das atividades maçônicas, momento que é reconhecido pelos historiadores como ocorrido durante o período medieval. Para Azevedo (1996), citando um historiador especialista na história da Maçonaria: “Segundo Paul Naudon, há entretanto um ponto de concordância entre seus estudiosos quanto à filiação direta da franco-maçonaria moderna (a maçonaria especulativa) à antiga maçonaria de ofício (a maçonaria operativa)”[1] (AZEVEDO, 1996, p. 180).
Assim, entre o surgimento das confrarias de pedreiros (a maçonaria operativa) durante a Idade Média, aproximadamente no século XIV – data dos mais antigos textos que citam essas confrarias (AZEVEDO, 1996, p. 180) e a fundação da primeira Loja maçônica (maçonaria especulativa) em 1717 (BENHAMOU, 2009, p. 28), ou seja, praticamente quatro séculos, aconteceu esse intenso movimento que produziu um passado mítico para a instituição.
Azevedo (1996) propõe que as antigas corporações de ofício, existentes desde a antiguidade e que ressurgiram no auge do período medieval, tiveram como características tanto o aspecto operativo como o especulativo.
Podemos considerar essa afirmação a partir da probabilidade de que havia entre os conhecedores dos ofícios, especialmente o das construções, tanto os indivíduos hábeis com as ferramentas quanto aqueles que se preocupavam com as medidas, as formas e os “segredos” contidos nos cálculos geométricos e matemáticos, isto é, uma ciência que não era acessível a todos os construtores e pedreiros. Portanto, é possível que, dentro desse conjunto de artesãos da construção, tenha havido não apenas a transmissão dos conhecimentos das técnicas, mas também a construção de um “mito de origem” a partir da busca pela origem da ciência das construções.
Sabemos por Eliade (2007) que os “mitos de origem” são fundamentais para o homem religioso e foram fundamentais para todas as culturas. Tanto os mitos da criação do universo, da Terra e da humanidade – as cosmogonias – como os mitos de surgimento das instituições humanas constituem uma das bases para a estruturação das culturas.
O mito é assim mostrado por esse autor:
A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “principio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja ela uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 2007, p. 11, grifo do autor)
Parece-nos que os antigos maçons, ao construírem o “mito de origem” da Maçonaria, buscaram permanecer dentro dessa estrutura do mito, conforme definida por Eliade. Mais do que isso, eles realizaram aquilo que era um procedimento comum na cultura anterior ao desenvolvimento da ciência moderna, isto é, procuraram pela origem de uma ciência da construção, recuando cada vez mais longe no tempo histórico em busca do evento “fundador” da franco-maçonaria ou freemasons, isto é, da confraria dos pedreiros livres.
Assim, podemos considerar a história da Maçonaria sob duas perspectivas.
Por um lado, do ponto de vista histórico, a franco-maçonaria teve origem numa corporação de ofício com características peculiares no mundo medieval, pois detinha uma liberdade de locomoção e deslocamento que não era comum a outras corporações.
Segundo Azevedo (1996), citando Naudon:
O único poder então existente capaz de conceder tais privilégios, ou seja, as franquias, era a Igreja. E foi sob a sua tutela que se desenvolveram essas confrarias laicas de artesãos privilegiados conhecidos na época como os francs-mestiers. Os textos mais antigos nos quais se faz menção a esses artesãos itinerantes, devotados às mais diversas atividades de construção, foram encontrados na Inglaterra ao tempo em que o francês era a língua oficial, e também a língua dos ofícios. Assim, além do termo francs-mestiers, consta em documento de 1376 o termo ffremason; em 1381, masonfree; em 1396, ffremaceons[2]. (AZEVEDO, 1996, p. 180)
Com essa liberdade de circulação por toda a Europa e com o aval da Igreja, os franco-maçons passaram a organizar sua confraria em termos mais filosóficos e especulativos com a passagem do tempo e o aprofundamento dos ideais renascentistas. A aceitação de membros não profissionais como “filósofos, hermetistas e alquimistas” (AZEVEDO, 1996, p. 180), produziu uma atração entre homens da nobreza e da intelectualidade, desejosos de dar livre vazão às suas reflexões sobre os diversos “mistérios” da natureza e da vida, conhecimentos que, naquele momento, eram controlados pelo poder eclesiástico.
É por esse caminho que a Maçonaria foi se consolidando até surgir oficialmente na Escócia em 1717, quando se formalizou enquanto instituição, com templo, ritos, doutrinas e organização hierárquica. Portanto, podemos considerar que juntamente com a história da Maçonaria enquanto instituição há também um mito sobre o surgimento do saber sobre a construção, e que a Maçonaria – a confraria dos pedreiros – está ligada a esse saber.
É interessante que Benhamou (2009), em artigo na Revista História Viva nº 71, que se declara maçom e autor de diversos livros sobre a Maçonaria, faça questão de negar e até ridicularizar os mitos construídos em relação à origem da instituição.
Por outro lado, para nosso propósito neste trabalho e independentemente das reflexões de Benhamou (2009), é importante olhar para o elemento mítico que marca a instituição maçônica.
O mito de origem da Maçonaria que nos leva mais longe no tempo refere-se a uma possível filiação dos conhecimentos maçônicos aos construtores das pirâmides no Egito Antigo. Nessa civilização ocorreu a construção de alguns dos maiores monumentos arquitetônicos da humanidade, mostrando a existência, desde tempos muito antigos, de conhecimentos matemáticos, geométricos e arquitetônicos muito profundos, além é claro, do simbolismo intenso que essa civilização construiu sobre suas realizações.
Nesse sentido, Benhamou (2009), contrário a esse mito, propõe:
Seria sedutor imaginar uma maçonaria atravessando os séculos para preservar os segredos dos primeiros construtores de pirâmides. Eis uma ideia bonita, mas nada mais que inventiva. É verdade que papiros datando de 2000 a.C. antes de nossa era (sic) descrevem o que poderíamos chamar corporações, com objetivos definidos: caridade, condições de trabalho, salários, privilégios. As referências maçônicas ao Egito e a seus mistérios, porém, são recentes. Surgiram nos séculos XVIII e XIX, quando a franco-maçonaria se estruturava. Os ritos chamados egípcios, como o Rito de Mênfis-Misraim, se multiplicaram no século XIX. Atualmente, subsiste uma maçonaria egípcia que reivindica uma herança espiritual, mas é preciso refletir sobre o que os maçons do século XIX pensavam sobre o Egito. Para eles, tratava-se do berço dos ritos iniciáticos, o que resultou em uma visão extremamente deformada, que foi bastante explorada pelos escritores românticos […]. (BENHAMOU, 2009, p. 29).
Como podemos observar, houve dentro da Maçonaria, em passado mais remoto ou mais recente, a construção de um mito de origem que indica uma filiação a um conhecimento específico, o dos construtores, como também aos conhecimentos secretos guardados pelos iniciados das escolas de mistérios, que existiram também no antigo Egito.
A nosso ver, a preocupação de Benhamou (2009), conforme apresentada na citação, mostra uma característica da atual fase da Maçonaria, que está se tornando mais pública, abrindo algumas das portas onde se encerravam os mistérios que povoaram o imaginário dos não iniciados durante séculos. Não nos cabe aqui discutir se essa desmistificação da Maçonaria é positiva ou negativa, o fato que constatamos é que esses mitos ainda são muito importantes.
Outro mito de origem da Maçonaria propõe que os conhecimentos maçons surgiram durante a construção do Templo de Jerusalém pelo Rei Salomão. Neste mito, os segredos sobre a construção do Templo teriam sido guardados pelo engenheiro-chefe Hiram Abiff. Essa lenda é contada por Gwercman (2005) em artigo da revista Superinteressante:
A lenda mais famosa conta que a origem da maçonaria está na construção do grande templo de Salomão, em Jerusalém, narrada no Velho Testamento. Durante a obra, Hiram Abiff, o engenheiro-chefe, foi assassinado por 3 de seus pupilos. O motivo do crime é nebuloso, mas envolveria segredos de engenharia guardados por Hiram e uma disputa por promoções de cargo. O fato é que Hiram foi para o túmulo, mas não revelou o que sabia. Além de mártir, virou exemplo de bom comportamento maçônico. (GWERCMAN, 2005, p. 53)
Esse personagem Hiram Abiff, não existe no texto bíblico, entretanto, há na narrativa da construção do templo (I Reis, 7) a presença de um artesão com grande habilidade vindo de Tiro, cujo nome é Hiram, que foi responsável pelo acabamento do templo. Também não há a narrativa do assassinato de Hiram, mas é possível que seja este personagem a origem do mito maçônico sobre o homem que guardou os segredos da construção até a morte, atitude que é exigida dos maçons quando entram para a instituição.
Esse mito de origem da Maçonaria nos traz à reflexão o mais importante aspecto do imaginário que foi também construído em torno dessa instituição; como já dissemos, tanto pelos próprios maçons quanto por seus opositores. Esse aspecto é relativo aos segredos que a Maçonaria guarda para si. Mais à frente vamos falar sobre esse imaginário, por ora vamos ainda tratar dos mitos de origem.
Um terceiro mito que está relacionado ao surgimento e desenvolvimento da Maçonaria é o que liga os pedreiros-livres à Ordem dos Cavaleiros Templários. Essa Ordem surgiu durante as Cruzadas com o intuito de prestar socorro e proteção aos peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, após a conquista dessa cidade em 1099 (FRANCO JR, 1989).
A própria Ordem dos Templários é envolta em mistérios. Seu rápido crescimento a partir da criação em 1119, tanto em número como em poder, assim como o rápido enriquecimento, foi motivo para o surgimento de inúmeras lendas. A falta de documentos históricos que facilitem a reconstituição das atividades dos templários nas primeiras décadas de sua existência favoreceu essas criações (LOPES, 2006, p. 51).
Em artigo publicado na revista Superinteressante, Lopes (2006), depois de citar as palavras do historiador Ellis L. Knox em entrevista, fala sobre os tipos de especulação que surgiram a partir da falta de informações:
[…] “os documentos sobre essa fase da história deles são escassos. De 1120 até 1140, tudo é especulativo” diz Ellis “Skip” Knox, da Universidade Estadual de Boise, EUA. Tanto é assim que os mais empolgados falam de uma escavação secreta no terreno do velho templo: Hugo e companhia teriam descoberto algum segredo dos primórdios da cristandade bem debaixo do seu quartel. Só alguns nobres de alto escalão teriam sido informados do “achado” e o acobertaram, em conluio com a ordem. O duro é saber que diabos era o tal segredo, porque cada teórico da conspiração tem seu artefato favorito. Alguns falam das relíquias sagradas do templo judaico; outros, do santo graal; há os que apostam na própria cabeça embalsamada de Jesus Cristo, provando que ele não tinha ressuscitado nem era divino. Os mais modestos sugerem que as ruínas do templo deram à ordem conhecimentos secretos sobre a natureza mística da arquitetura, como forma de criar espaços sagrados e de se comunicar com Deus. Essa sabedoria, depois, teria sido passada à maçonaria, que originalmente era uma confraria de mestres construtores. (LOPES, 2006, p. 51 e 52)
Essa especulação sobre os segredos dos Templários tornou-se maior ainda com o fim drástico da ordem decretado pelo Papa Clemente V, a partir da perseguição movida pelo rei da França Filipe, o Belo. A morte na fogueira dos principais líderes (no ano 1314) e o mistério que envolveu o desaparecimento dos bens e da riqueza acumulada pela ordem foi fundamental para alimentar a ideia de continuidade da preservação dos segredos templários no interior da Maçonaria.
Para Benhamou (2009) essa suposta continuidade entre os Templários e a Maçonaria se deve ao fato da Ordem dos Templários ter construído muitas igrejas e outros prédios na Europa, dependendo para isso das confrarias de pedreiros. Esse autor afirma:
Assim, durante dois séculos, os Templários e as corporações de ofícios coabitaram. Por isso, é tão tentador imaginar que determinados membros da Ordem do Templo fugiram e encontraram refúgio, em especial na Escócia, junto de organizações fraternais de trabalhadores de pedra. (BENHAMOU, 2009, p. 29)
Para completar sua reflexão, Benhamou (2009) propõe que no processo de consolidação da maçonaria especulativa, a instituição se preocupou em alcançar maior prestígio social para atrair membros que possibilitassem à confraria deixar de ser uma simples organização de trabalhadores e passar a outra forma organizativa. Benhamou afirma:
Andrew Michael de Ramsay, grande orador da Ordem Maçônica da França, encontrou um recurso astucioso: fundou uma nova maçonaria, com base na simbologia das Cruzadas. Ele não se referia explicitamente à Ordem dos Cavaleiros do Templo, ainda condenada por Roma, mas a uma ordem construtora que teria surgido na Escócia. Por meio dessa lenda, construiu o chamado “rito escocês antigo e aceito”, no qual certos graus se referem aos Templários: Cavaleiro do Oriente, Príncipe de Jerusalém, Cavaleiro Rosacruz e Cavaleiro Kadosh. (BENHAMOU, 2009, p. 29).
Por esses argumentos, defendidos por historiadores e maçons e publicados tanto em artigos, como em livros ou em reportagens que misturam investigação histórica e curiosidades sobre mistérios que alimentam o imaginário social, podemos perceber como mito e história estão profundamente enraizados na presença da Maçonaria na sociedade ocidental, possibilitando inúmeras interpretações sobre sua participação nos eventos marcantes da história de diversos países.
O imaginário sobre a maçonaria
Para iniciar a reflexão sobre o imaginário que envolve a Maçonaria vamos abordar um aspecto importante desenvolvido na cultura ocidental durante os últimos séculos: a ideia da existência de uma ciência oculta, alheia às conquistas e conhecimentos da ciência racionalista.
Eliade (1979) em artigo intitulado “O oculto e o mundo moderno” faz uma reflexão sobre a grande valorização das chamadas “ciências ocultas” ou do “ocultismo” e do “esoterismo” durante os últimos séculos, com particular ênfase no século XIX em diante.
Para definir o que é esse “oculto”, esse autor utiliza o texto de Edward A. Tiryakian:
[…] por oculto, eu entendo práticas, técnicas e procedimentos intencionais que: a) fazem uso de poderes secretos ou desconhecidos da natureza ou do cosmos, poderes esses incomensuráveis ou irreconhecíveis pelos instrumentos das ciências modernas; e b) que buscam resultados empíricos, tais como o conhecimento da sucessão dos acontecimentos ou a alteração de seu curso norma… Para se ir mais longe, na medida em que a pessoa que pratica a atividade oculta é alguém que adquiriu conhecimento e habilidades necessárias a tais práticas e, na medida em que tais práticas e habilidades são aprendidas e transmitidas de maneira social (embora não abertas ao grande público), de modo organizado, ritualizado, podemos chamar essas práticas de ciências ou artes ocultas. (TIRYAKIAN apud ELIADE, 1979, p. 57)
A partir dessa definição, Eliade (1979) afirma que essas “crenças, teorias e técnicas chamadas ocultas e esotéricas” (p. 57) já existiam desde a mais alta antiguidade, nas civilizações do Antigo Egito e da Mesopotâmia, assim como nas civilizações grega e romana, e que elas permaneceram vivas durante todo o período medieval – apesar do controle que a Igreja Católica procurou exercer sobre a sociedade. Esses conhecimentos chegaram ao mundo moderno pelas atividades de muitos alquimistas, místicos e instituições com caráter iniciático.
Eliade (1979, p. 63) elenca muitas das influências exercidas pelas ciências ocultas durante o período renascentista e também a importância desse conhecimento para o próprio desenvolvimento da ciência moderna. Copérnico, Giordano Bruno e outros cientistas do período estiveram completamente ligados a essas ciências que tinham sua origem nas culturas antigas. A magia, a cabala, a bruxaria, a alquimia, a astrologia, as práticas xamânicas antigas, são muitas das expressões desse conhecimento que tiveram um valor fundamental para muitos sábios do Renascimento e continuaram sendo difundidas em círculos restritos até serem “redescobertas” pelos intelectuais livres-pensadores do século XIX e XX (ELIADE, 1979, p. 63).
Do ponto de vista deste trabalho, quando se fala em Maçonaria há uma referência natural à mais polêmica das sociedades secretas e iniciáticas do mundo ocidental, justamente porque esta parece guardar – e estimula todos a pensar dessa forma – os mais profundos segredos das ciências ocultas, normalmente definidas pelos inimigos como rituais e conhecimentos satânicos.
Benhamou (2009a) mostra que, desde a Revolução Francesa, foi difundida a crença de que a Maçonaria estaria à frente de um projeto cuja finalidade era modificar radicalmente as estruturas de poder que então existiam na sociedade ocidental. O autor afirma:
Não há dúvida de que a Revolução Francesa foi deflagrada em nome dos valores defendidos pelos maçons no fim do século XVIII. A luta contra o despotismo real e a defesa da liberdade eram temas recorrentes nas lojas francesas da época. Há, no entanto, quem acredite que o levante de 1789 teria sido a primeira etapa de um complô mundial orquestrado pelos maçons para destruir todas as religiões. Inúmeros historiadores já demonstraram quão absurda é essa teoria, mas até hoje ela sobrevive entre os amantes de teorias da conspiração. (BENHAMOU, 2009a, p. 30)
O autor propõe que havia realmente muitos maçons envolvidos no movimento revolucionário, mas que no andamento do processo os adeptos da Maçonaria, em sua maioria “burgueses, aristocratas, militares e, surpreendentemente, eclesiásticos” (BENHAMOU, 2009a, p. 31), foram considerados inimigos da revolução, tendo um de seus grãos mestres “o duque de Orléans, Philippe Egalité” (p. 31) sido guilhotinado em 1793.
O fato, para Benhamou (2009a), é que a publicação de pequenos livretos defendendo a ideia de um complô maçônico acabou por alimentar essa teoria conspiratória que permanece viva no imaginário ocidental até hoje. O autor cita três obras publicadas ainda no período revolucionário cujo impacto pode ter sido bastante grande.
Se pensarmos nessas publicações a partir da ótica apresentada por Darnton (1987) sobre o papel da “baixa” literatura durante o período pré-revolucionário e mesmo durante a Revolução, podemos ter uma noção de como os livretos foram recebidos pela sociedade da época. Segundo as fontes analisadas por Darnton (1987), o grande comércio de livros na França naquele período era constituído por escritos panfletários e populares, contendo informações não comprovadas sobre a vida de nobres e eclesiásticos, sobre a política real e a administração pública, escritos que disseminavam ideias completamente avessas aos textos filosóficos do Iluminismo. Vejamos como Darnton apresenta essa “baixa” literatura:
Tantas foram, e tão boas, as descrições do ápice da história intelectual do século XVIII, que talvez conviesse rumar noutra direção, tentando atingir a base do Iluminismo e mesmo penetrar seu submundo, lá onde ele possa ser examinado como ultimamente se tem feito com a Revolução – isto é, de baixo. O ato de escavar, na história das ideias, exige novos métodos e novos materiais. Remexam-se arquivos, em vez de contemplar tratados filosóficos. Um exemplo da espécie de detritos que tal escavação pode trazer à luz é a seguinte carta, dirigida por um livreiro de Poitiers a seu fornecedor na Suíça: Eis uma pequena lista de livros filosóficos que desejo. Favor mandar a fatura antecipadamente: Vênus no claustro ou A freira em camisola O cristianismo desvendado Memórias da Marquesa de Pompadour Investigação sobre a origem do despotismo oriental O sistema da natureza Thérese, a filósofa Margot, a companheira dos exércitos Eis, no jargão do comércio livreiro do século XVIII, uma noção do filosófico partilhada por homens cujo negócio era saber o que os franceses queriam ler. (DARNTON, 1987, p. 13 e 14, grifos do autor)
O autor sugere, em sua análise da literatura do período revolucionário na França, que foi muito grande a circulação e importante o papel desses panfletos, à medida que eles constituíam a maior parte dos textos que circulavam popularmente entre os franceses.
Nessa perspectiva, e voltando aos livretos citados por Benhamou (2009a) que falam do complô maçônico, podemos obter certo entendimento do por que essa lenda adquiriu tanta força. Os títulos desses livretos já mostram seus objetivos: “Retirando o véu para os curiosos ou o Segredo da Revolução revelado com a ajuda da franco-maçonaria” (Abade Lefranc, 1791), “Memórias a serviço da história do jacobinismo” (Abade Barruel, 1793) e “A tumba de Jacques Molay ou História secreta resumida dos iniciados antigos e modernos, Templários, franco-maçons, Illuminati” (Charles Louis Cadet de Gassicourt, 1796).
Os três livros tratam do complô maçônico sem apresentar provas concretas, apenas especulações. Dentre eles, Benhamou (2009a) cita:
Assim, foi de Londres que Barruel escreveu suas Memórias a serviço da história do jacobinismo. Um trecho desse livro resume bem a visão do abade: “Nessa Revolução Francesa tudo foi previsto, meditado, combinado, decidido, estabelecido – até os mais espantosos crimes: tudo foi resultado da mais profunda maldade, pois tudo foi preparado, dirigido por homens que tinham como único objetivo as conspirações há muito urdidas em sociedades secretas, e que espreitaram e souberam esperar pelo momento propício para o complô”. (BENHAMOU, 2009a, p. 30)
É importante dizer que essa tese mostrada por Benhamou foi amplamente defendida pelos católicos nos anos após o início da Revolução[3].
Mesmo que a perspectiva apresentada por Benhamou (2009a) procure desmontar a tese da conspiração, o fato é que a participação ativa da Maçonaria no processo de independência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776, também ajudou a incentivar o imaginário sobre a influência subterrânea ou explícita dos maçons em movimentos políticos importantes. George Washington, o primeiro presidente norte-americano, aparece frequentemente em trajes maçônicos durante momentos significativos de seu governo, como a cerimônia de assentamento da pedra fundamental do “Capitólio”, em (CHATENET, 2009, p. 37).
Consultando outros textos que tratam da história da Maçonaria (BARATA, 1999 e 2000, MOREL, 2001, AZEVEDO, 1996, VIEIRA, 1999 e PINHEIRO, 1997) podemos constatar que os maçons sempre tiveram um importante papel também na política brasileira, sendo, entretanto, impossível afirmar que a Maçonaria como instituição estivesse à frente e comandando os diversos momentos históricos decisivos em que os maçons participaram.
É nesses limites sutis entre a ativa participação dos maçons e a supervalorização do poder da Maçonaria que o imaginário social é alimentado e desenvolvido.
O fato da Maçonaria, como sociedade iniciática, procurar manter – e conseguir, o que é mais impressionante – o segredo sobre suas atividades internas, faz com que o imaginário sobre ela enfoque tanto o cultivo das ciências ocultas como a prática do satanismo. Por isso, é importante ressaltar alguns pontos sobre a Maçonaria encontrados no texto de Nefontaine (2007):
Diferentemente do que pensa o senso comum, essa organização sempre teve sua existência formalmente conhecida e reconhecida e, logo que surgiu, declarou fidelidade ao poder estabelecido. Ao mesmo tempo, suas lojas imediatamente reivindicaram o direito de se constituir de forma livre e autônoma, o que gerou perseguições e transtornos com a polícia. Embora os locais de reuniões fossem perfeitamente conhecidos pelas forças da ordem, a alegação principal para tal repressão era justamente que os maçons se reuniam em segredo. Na realidade, o juramento de nada revelar do que é dito nesses encontros é o que inquieta e assusta. Diante das acusações e das perseguições, os maçons repetem que não são uma sociedade secreta, mas sim discreta; que seu segredo é inviolável apenas porque não pode ser comunicado; que a não revelação da filiação de outro é sinônimo de preservação da esfera privada para se protegerem de qualquer retaliação externa, em particular no meio profissional; que a prática do sigilo é preciosa em momentos de ressurgimento de totalitarismos, sempre prontos a persegui-los; por fim, que a ocultação é a garantia de liberdade total de expressão dentro dos limites do templo. (NEFONTAINE, 2007, p. 60)
É interessante essa perspectiva porque mostra o poder do imaginário: o fato de uma sociedade manter em segredo seus rituais e suas doutrinas internas, além de outros como a não divulgação do nome dos irmãos, faz com que os não participantes se incomodem, especialmente se o imaginário é movido pelo medo da conspiração ou medo religioso.
Como dissemos acima, o estudo das ciências ocultas atraiu muitas pessoas nos últimos séculos, mas atraiu também muito ódio e perseguições, como se o estudo do que é oculto pudesse, por si mesmo, se constituir numa ameaça à vida das sociedades. Esse medo só foi difundido com tanta eficácia porque esteve sempre envolto com as crenças religiosas cristãs e a partir da ideia de que o que está oculto é das trevas.
Continua…
Autor: André Luiz Caes
Fonte: Revista Sapiência- Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais
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[1] – Conforme citado por Azevedo (1996): Paul Naudon, La Franc-Maçonnerie, Paris, Presses Universitaires de France, 1963, p. 9 -13.
[2] – Paul Naudon, La Franc-Maçonnerie, Paris, Presses Universitaires de France, 1963, p. 20 – 2.
[3] – Para um aprofundamento desse tema, conferir: CAES, André Luiz. Da espiritualidade familiar ao espírito cívico: a família nas estratégias de reestruturação da Igreja (1890-1934). Campinas/Unicamp: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1995. Dissertação de Mestrado. No primeiro capítulo desse trabalho, como introdução ao tema principal da Dissertação, o autor faz uma reflexão sobre a reação da Igreja Católica em relação à Revolução Francesa, abordando também a tese da conspiração.