Episódio 44 – O mito do inferno de Platão

Na república utópica, o que desafia constantemente a grande preocupação de Platão é assegurar obediência voluntária, isto é, estabelecer um fundamento sólido para aquilo que, desde os romanos, chamamos de autoridade. Platão resolvia seu dilema através de contos bastante longos acerca de uma vida futura com recompensas e punições, nos quais ele esperava que o vulgo acreditasse literalmente e cuja utilização recomenda portanto à atenção da elite… (music: Slow Burn by Kevin MacLeod; link: https://incompetech.filmmusic.io/song/4372-slow-burn; license: https://filmmusic.io/standard-license)
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O mito do anel de Giges

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Rei Candaules – Jean Léon Gérôme (1859)

Quem, não tendo medo de ser visto e punido, resistiria à tentação de fazer o que quiser? (Platão – O mito do anel de Giges)

Através do famoso “mito do anel de Giges”, Platão (427-347 a.C.) nos esclarece que, disfarçavelmente violento e ganancioso, o homem é levado pelo desejo de ter sempre mais (poder, glória, conforto, prazeres e vantagens, por exemplo) e que é a “Lei” que o reconduzirá ao respeito pela igualdade, pois não agiremos assim de bom grado por natureza, mas somente forçosamente.

A tese acima não é exclusivamente de Platão, trata-se de uma “opinião comumente admitida” que, embora seja “amoral em seus fundamentos, perigosa em suas consequências”, há séculos, animou (e ainda anima!) o debate sobre as relações da natureza da lei e, tanto de quais são nossas características inatas quanto quais são as nossas características adquiridas.

De Maquiavel a Thomas Hobbes, de Rousseau a Sigmund Freud passando por tantos outros, essa problemática questão tem sido foco de análise nas ciências humanas: desvendar nossa “natureza” é imperativo, até para que possamos compreender melhor como lidar com ela.

No Livro II da República, Platão expõe a teoria de que ninguém é justo, honesto e íntegro voluntariamente, mas que quem pratica a justiça só o faz meio que “obrigado”, por ser tímido, covarde, ainda por se sentir velho e impotente para deixar aflorar sua ambição ou por se ver coagido a temer represálias daqueles com os quais convive e dos guardiões da justiça, como a polícia, por exemplo.

É justamente por não sermos autossuficiente e termos essa perversa “formatação” que demos origem às leis, aos contratos e as convenções, pois se deixar por nossa conta, seguramente, privilegiaremos os nossos interesses, fazendo o que nos aprouver. E isso, todos (exceto, eu e você, leitor), pois se permitíssemos igualmente ao justo e ao injusto agir como desejam, agirão do mesmo modo. É o que vai nos revelar esse mito.

Giges era um pastor que morava na região da Lídia. Após uma tempestade, seguida de um tremor de terra, o chão se abriu e formou uma larga cratera onde ele apascentava seu rebanho.

Surpreso e curioso, o pastor desceu até a cratera e descobriu, entre outras coisas, um cavalo de bronze, cheio de buracos através dos quais enfiou a cabeça e viu um grande homem nu que parecia estar morto.

Ao avistar um belo anel de ouro na mão do morto, Giges o tirou e tratou de fugir logo dali. Mais tarde, reunindo-se com os outros pastores para fazer o relatório mensal dos rebanhos ao rei, Giges usou o anel.

Após tomar seu lugar entre os pastores na Assembleia, ele girou por acaso o engaste do anel para o interior da mão e imediatamente tornou-se invisível para os demais presentes.

E foi assim, totalmente invisível, que Giges ouviu os colegas o mencionarem como se ele não estivesse ali. Mexeu novamente o engaste do anel para fora da mão e tornou a ficar visível. Admirado com a descoberta desse poder, Giges repetiu a experiência para confirmar a magia. Seguro de si, sem titubear, ele dirigiu-se ao palácio, seduziu a rainha, matou o rei a apoderou-se do trono.

Platão afirma que, tanto faz se colocarmos um anel desses no dedo de um homem justo e outro no dedo de um homem injusto, o fato é que não encontraremos ninguém com temperamento suficientemente forte para permanecer fiel à justiça e resistir à tentação de se apoderar dos bens e dos benefícios de outrem.

Detendo poder e certo da impunidade, o homem se sente um deus entre os homens:

“Nisso, nada o distinguiria do injusto, e tenderiam os dois pra o mesmo fim, e poder-se-ia ver nisso uma grande prova de que não se é justo por escolha, mas por constrangimento, visto que não se encara a justiça como um bem individual, pois sempre que se acredita poder ser injusto [sem sofrer represálias] não se deixa de o ser.”

Quem seria suficientemente insensato para permanecer fiel à justiça, no momento em que tivesse na mão todos os poderes? Ninguém escolhe a justiça: se nos abstemos da injustiça, é porque não podendo fazer de outro jeito, resta seguir a lei. Resumindo: só se faz o bem por não se poder fazer impunemente o mal.

Segundo Platão, todos os homens, com efeito, creem que a injustiça lhes é muito mais vantajosa individualmente que a justiça e que eles tem todas as razões para acreditar nisso:

“Com efeito, se um homem, tornado senhor de um tal poder, não consentisse nunca em cometer uma injustiça e em tocar nos bens de outrem, seria olhado pelos que tivessem a par do segredo como o mais infeliz e insensato dos homens.”

Decerto, tememos nos outros o que sabemos trazer conosco, por isso enaltecemos tanto a honestidade. Ao testemunhar uma ação honesta os homens

“Não deixariam de fazer em público o elogio da sua virtude, mas com o objetivo de se enganarem mutuamente, com medo de serem vítimas de alguma injustiça.”

Será assim que a investigação sobre a justiça terá início e ocupará nove livros do mais longo e indispensável diálogo de Platão. Caberá a Sócrates mostrar, de forma magistral, que a justiça é mais vantajosa que a injustiça, e em si mesma o maior dos bens.

Uma das maiores mazelas sociais – a corrupção –, impera porque, quando o Direito cede lugar às manobras escusas, asseguramos aos detentores de poder a certeza da impunidade.

Omissos, ouvimos “estalar imediatamente o verniz da educação moral”, da “civilização”. Impune, regredindo à sua “verdadeira natureza”, a ardilosa besta está aí, pronta para reaparecer. E reaparecerá. Pedindo votos.

Autora: Luciene Felix

Fonte: Conhecimento sem Fronteiras

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Episódio 23 – A caverna, o candidato e o Aprendiz

O candidato, que deseja conhecer os Augustos Mistérios da Maçonaria, também se encontra em uma caverna. Acorrentado, desconhece a verdade sobre o globo terrestre, sobre seu corpo e sobre o SEU EU. Preso ao mundo profano, as imagens que lhe chegam por sombras na parede da vida lhe enganam, e os sons distorcidos que vão até seus ouvidos ajudam na criação do engodo promovido pelo Establishment, privando-o do conhecimento do EU Verdadeiro.

Pensar é perigoso; não pensar é mais perigoso ainda

Mente vazia, oficina do diabo: entenda o profundo significado dessa frase -  Portal

“A minha convicção”, escreveu Hannah Arendt, “é que o pensamento nasce de acontecimentos da experiência vivida e que deve continuar-lhes ligado como aos guias que servem para nos orientarmos.” [1]

Sem dúvida, na vida de Arendt a experiência vivida quintessencial para determinar os rumos de seu pensamento foi sua condição como judia alemã perseguida pelos nazis.

Obrigada ao exílio em 1933, ano do incêndio do Reichstag e do início do III Reich hitlerista, Arendt emigrou para a França. Ali, em 1937, perderia sua cidadania alemã, tornando-se uma apátrida, categoria que depois teria presença tão forte em sua obra.

Os apátridas, já que foram despidos do escudo protetor da cidadania – que ela definia como “o direito a ter direitos” -, adentram numa zona perigosa da condição humana, onde são considerados por poderes totalitários como seres matáveis, sub-humanos.

Arendt, tratada como pária pela Alemanha que expulsou esta filha de seu ventre, na França chegou a ponto de ser encarcerada no campo de concentração de Gurs em 1940. [2]

Libertada em maio de 1941, emigrou para os EUA, em uma época em que já se desenrolava o mecanismo fatal da Solução Final: o extermínio em massa de judeus nos campos de concentração como Auschwitz, Treblinka e Birkenau:

“Eis os fatos: 6 milhões de judeus, 6 milhões de seres humanos foram arrastados para a morte sem se poderem defender… Não há história mais difícil de contar em toda a História da humanidade. E, no entanto, nós precisamos desesperadamente, para o futuro, da história verdadeira desse inferno construído pelos nazis. Não só porque tais fatos alteraram e envenenaram o próprio ar que respiramos, não só porque povoam os nossos pesadelos e impregnam os nossos pensamentos dia e noite, mas também porque se tornaram a experiência fundamental da nossa época e a sua angústia fundamental.” [3]

O totalitarismo, como grande catástrofe do século XX, torna-se central para o pensamento de Arendt, filósofa devotada a compreender como foram possíveis as atrocidades e os horrores totalitários. Sintetizando as conclusões arendtianas, Catherine Vallée pondera:

“o mal extremo infiltra-se no mundo quando os cidadãos abandonam o espaço público-político para se refugiarem na segurança e no aconchego dos valores privados; quando aceitam cumprir ordens que desaprovam, lavando daí as mãos; quando desistem de pensar por si mesmos para irem na onda. Existe uma única defesa contra o totalitarismo: saber desobedecer, ousar pensar pela própria cabeça, nunca desistir de si. Não desertar do espaço público, pensar por si mesmo, ousar desobedecer: estas exigências conduzem Hannah Arendt a voltar-se para Sócrates como para alguém de quem a atualidade ainda tem muito que aprender.” [4]

Sócrates, que defendia que uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida, representaria para Arendt um emblema de vida filosófica dedicada àquela reflexão ajuizada que ela enxergava como antídoto salutar contra o totalitarismo. Vale lembrar que toda a reflexão sobre Adolf Eichmann, no livro-reportagem que Arendt escreve em 1961 a convite da revista The New Yorker, versa sobre as consequências funestas e atrozes da irreflexão:

“Eichmann representa o exemplo-tipo daquilo a que hoje chamamos ‘os criminosos de gabinete’ ou ‘os funcionários do mal’. Se ele nunca participou diretamente nas execuções, nem por isso deixou de ser o organizador eficaz e zeloso da Solução Final. O que Arendt descobre em Jerusalém é que esse homem capaz de crimes tão monstruosos não tem nada de um monstro: é descrito como normal, não tem tendências para o assassinato; também não é um ideólogo fanático, nem mesmo um anti-semita convicto. A noção de ‘banalidade do mal’ procura portanto revelar esse mal novo que não tem raízes nem motivos, que faz somente parte do ofício como se se tratasse de uma tarefa vulgar, e onde se unem num incompreensível paradoxo o caráter tão pouco ‘malvado’ do criminoso e o caráter tão monstruoso dos crimes que, apesar disso, ele cometeu.

Como se sabe, o único traço marcante de sua personalidade… é que ele se mostra ‘incapaz de pensar’. Não quer isto dizer que seja estúpido, mas repete fórmulas já gastas, estereótipos; e que se mostra totalmente desamparado quando se lhe apresenta uma situação nova para a qual não dispõe de uma banalidade de catálogo. Recusar-se a pensar é o mesmo que dizer, sobretudo, que Eichmann nunca se interrogou sobre o sentido das suas ações: ‘lavou as mãos’ da Solução Final que ele próprio organizou, demitindo-se de toda a responsabilidade e recusando-se a qualquer juízo pessoal.” [5]

Se a irreflexão, a idiotia, a incapacidade de assumir responsabilidade por seu próprio juízo e por suas próprias ações, acaba levando-nos ladeira abaixo rumo aos horrores totalitários, então é evidente que o só há remédio na difícil arte de pensar com coragem e autonomia, com senso crítico sempre alerta e vigilante, ousando dizer “não” àqueles que nos ordenam que façamos algo que julgamos, através de nossa faculdade de discernir entre Bem e Mal, como um mal evidente. É o que Arendt resumiu com a bela expressão: “pensar sem corrimão”.

Ainda que viver sem refletir seja plenamente possível, e não faltam exemplos em nosso cotidiano daqueles que parecem atravessar a terra como sonâmbulos, aplicando à suas mentes a perigosa lei do mínimo esforço, segundo Arendt “fracassa em fazer desabrochar sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva.” [6]

Demitir-se da tarefa de pensar por si mesmo, recusar o peso da responsabilidade própria, é o atalho mais rápido para que nos tornemos os cordeirinhos obedientes dos poderes mundiais que transformam os seres humanos em supérfluos e que, por escassez de amor ao mundo e à pluralidade a ele inerente, praticam as hecatombes de diversidade de que o século XX foi o palco sem precedentes.

Sócrates, o pensador-dialogante, agindo no espaço público através de suas provocações questionadoras, praticando a maiêutica (o parto das ideias) no coração da polis, poderia ser visto como símbolo da conduta daquele que não deseja permitir que o povo não pense.

Ainda que seja xingado por seus detratores, apelidado de mosca irritante, Sócrates é aquele que não dá permissão para a preguiça do pensamento. Sua ação política, ainda que ele não tenha sido governante nem tenha ocupado cargos públicos, tem a ver com esta presença no espaço público, em que ele toma a iniciativa de instaurar zonas de diálogo onde o pensamento é exercitado em comum, entre a multiplicidade dos humanos.

Como conciliar esta imagem de Sócrates, o cidadão que dissemina a reflexão pelo corpo social, com a imagem platônica, veiculada pela obra “A República” (Politeia), onde o socratismo se tinge de dogmatismo, ou mesmo de tirania, através da doutrina do filósofo-rei?

Para Arendt, Platão teria traído o Sócrates real, ou melhor, haveria no corpus platônico dois tipos de diálogos: os primeiros, veículo do Sócrates autêntico, são aqueles que conduzem a aporias e são verdadeiras máquinas de demolição do dogmatismo, que fazem o pensamento fluir, ainda que ele não chegue a descansar no remanso tranquilo das certezas indubitáveis; os segundos, veículo de um Sócrates inventado por Platão, seriam mais dogmáticos e revelariam uma figura arrogante, prepotente, que pensa poder impor à polis o governo monárquico do filósofo-rei, superior a quaisquer outros governantes devido à perfeição moral de seu ascetismo existencial e de sua cognição que ascende ao transcendente.

Arendt apoia-se, para realizar esta divisão da obra platônica em duas metades, no helenista G. Vlastos, que defende: “Nas diferentes partes do corpus platônico, encontram-se dois filósofos com o nome de Sócrates. O indivíduo continua a ser o mesmo, mas em grupos de diálogos diversos vemos ele praticar filosofias tão diferentes que é impossível terem sido descritas em coabitação constante no mesmo cérebro, a menos que se tratasse do cérebro de um esquizofrênico.” [7]

Filiando-se ao legado do primeiro Sócrates, o cidadão-pensante, a mosca na sopa da irreflexão, o parteiro de diálogos que movem o pensamento, Arendt afirmará que a pluralidade é a lei da terra, que “nenhum homem é uma ilha” (John Donne), e que a quintessência da política está aí: no fato de sermos indivíduos que participam de uma comunidade e por isso são inextricavelmente ligados aos outros por responsabilidades. Pensar é também uma responsabilidade, assim como respeitar a pluralidade que é inerente à condição humana.

“Arendt não é Lévinas. A ‘responsabilidade pelo outro’ enraíza-se, para Lévinas, no encontro do rosto do outro, necessariamente então no singular; e uma tal responsabilidade é por essência ética. A responsabilidade arendtiana é ‘responsabilidade pelo mundo’, é uma responsabilidade política que reclama um combate por direitos iguais para todos. Há pois um cuidar dos outros no plural, próximos e afastados, que encontramos ou que ficarão para sempre sem rosto, responsabilidade para com aqueles que vivem, mas também para com aqueles que hão-de viver. Arendt está, quanto a este ponto, muito próxima de seu amigo Hans Jonas: a responsabilidade pelo mundo é sempre responsabilidade pelo seu futuro.” [8]

Temos a responsabilidade de pensar, assim como devemos estar alertas quanto à arrogância de crermos que chegamos na verdade, que possuímos o conhecimento irrefutável do real. O pensamento se paralisa no sujeito que acredita demais que já sabe de tudo, e liberta-se quando conseguimos ir além de nossas crenças e opiniões, num processo de auto escrutínio e auto sondagem que cada eu tem a responsabilidade de fazer em meio à comunidade plural em que vive.

“Arendt destaca o lado ‘demolidor’ de Sócrates, que arrasa ‘os preconceitos e as crenças mal fundadas’, isto é, ‘as regras de uma sociedade dada numa época dada’, regras que pouco a pouco se tornam costumes e deixam de ser compreendidas por não serem interrogadas, são aplicadas de maneira mais ou menos mecânica, e que por isso deixam de ter sentido mesmo para quem as aplica. O conteúdo da regra pode então ser excelente, má é a relação que aquele que obedece mantém com a regra.” [9]

A adesão acrítica, impensada, a normais sociais reinantes em um dado momento histórico de uma sociedade específica, nunca poderá estar entre as práticas de um pensador que deseja pôr seu pensamento no exercício contínuo da avaliação da existência. O sabichão, que parou de estudar pois crê que tudo já aprendeu, é justamente o interlocutor preferencial de Sócrates, demolidor de pseudo-sábios, questionador infatigável dos seus concidadãos, e que segundo Arendt não visava ao saber definitivo, engessado, que conectamos ao termo Verdade e do qual Platão fez um ídolo perigoso.

Sócrates foi traído por Platão pois este quis pintá-lo, na República ou nas Leis, como um dogmático pregador de Verdades Transcendentes, quando o Sócrates de carne e osso havia sido um pensador em exercício interminável de seu juízo e que não aderia aos diktats / ditames da época em Atenas. O pensamento deve explorar de modo audaz o processo interminável do exame crítico, que começa pela relação do eu consigo mesmo, o auto diálogo reflexivo que instaura a travessia do autoconhecimento.

A distinção entre pensar conhecer ganha então extrema importância: o pensamento é uma atividade que não visa o repouso final na tranquilidade de um conhecimento ganho de uma vez por todas.

Pensar de verdade é sempre soltar o corrimão e pensar além do que se conhece. 

Aquilo que Sócrates admitia, sua própria ignorância, não é um vazio, um oco, um nada, mas sim a plena ciência de que não conhecemos clara e distintamente quase nada; a admissão de ignorância é positiva, abre um espaço de liberdade, onde o juízo se exercitará em público, com os outros, na pluralidade da esfera pública onde, na democracia ateniense, a persuasão devia valer mais que a violência.

Duas atividades humanas são essencialmente políticas, e Sócrates não as separava: “ação e palavra”, que “supõem diretamente a relação entre os homens e portanto a pluralidade, “formam um todo”, pois “a ação política cumpre-se pela palavra; a palavra é, em política, uma das formas privilegiadas da ação… Para Arendt, ‘viver numa cidade [polis] significava que todas as coisas se decidiam pela palavra e pela persuasão e não pela força nem pela violência.’ Ao despotismo que caracteriza a vida privada da família, onde o dono da casa [despotes] exerce um poder absoluto, opõe-se a experiência não violenta da cidade onde tudo se faz pela persuasão.

Temos dificuldade, diz Arendt, em compreender hoje a força da persuasão [peithein] grega, cuja importância política é indicada pelo fato de Peithô, a deusa da persuasão, ter um templo em Atenas… Os atenienses tinham orgulho em resolverem, ao contrário dos bárbaros, os seus assuntos políticos pela palavra e sem o recurso à coerção; consideravam a retórica, arte da persuasão, a mais alta e verdadeira arte política.’ Persuadir é propor argumentos à razão de um interlocutor, é ‘cortejar o consentimento de outrem’; não é, portanto, nem coagir nem pressionar, é essencialmente deixar livre… Segundo Arendt, a prática do diálogo é a maneira socrática de ser cidadão e de fazer política.” (VALLÉÉ: 1999, p. 46) [10]

Se a política se diferencia da guerra, é porque a política baseia-se no intercâmbio persuasivo e a guerra na coerção violenta, mas além disso a política está na dependência do exercício do pensamento, enquanto a guerra triunfa no solo nefasto da estupidez.

Pensar de verdade, com os outros, no espaço público, é uma força política sem a qual vamos chafurdando no totalitarismo, reinado total de uma falsa opinião (a de que a pluralidade humana deve ser sacrificada, ou seja, seres humanos supérfluos devem ser exterminados em prol de uma unidade homogênea, como aquela que motivou o delírio genocida dos nazis e seu “arianismo”, racista e eugênico). Dialogar de modo civilizado, com mútua disposição para o aprendizado, é o que torna a convivência política passível de dar bons frutos quando se traduz em ação conjunta:

O diálogo socrático – travessia do pensamento, sem ter como destinação o remanso lago das certezas indubitáveis (tanto é assim que a maioria deles acaba em aporia, ou seja, numa situação embaraçosa, onde o mistério permanece… – tem um alcance político, e não só para a antiga Atenas; nós também, mais de 2.500 anos depois, ainda carecemos de compreender o quanto a política e o diálogo estão imbricados.

Mestre da arte dialogal, Sócrates não se limitou às conversações privadas entre um Eu e um Tu; seus bate-papos não se desenrolam dentro de casa, com parentes fechados no oikos. O diálogo rompe com as paredes da idiotia reinante e vai para o meio da fervilhante pluralidade humana:

“O objeto do diálogo socrático não é nem tu, nem eu, mas o mundo que está entre nós: a coragem, a justiça, a piedade… Há sempre espectadores para os diálogos de Sócrates, os quais podem, se o desejarem, tomar a palavra. Na linguagem de Arendt, o espectador é sempre ao mesmo tempo um juiz. Quando Sócrates interroga, quando alguém lhe responde para dizer o que lhe parece, são todos os que ali se encontram que aprendem a ver o mundo do ponto de vista de um outro, adquirindo assim uma ‘mentalidade alargada’, que permite julgar e que é a função política por excelência.” [11]

Autor: Eduardo Carli de Moraes

Fonte: A Casa de Vidro

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Notas

[1] – ARENDT, H. A Crise do Homem Moderno (1958), apud Vallée, p. 14.

[2] – AUSCHWITZ STUDY GROUP (ASG). “Hannah Arendt, the Prisoner of Gurs Camp”. http://auschwitzstudygroup.com/56-english/projects/the-forgotten-camps/445-gurs-3

[3] – ARENDT, H. Auschwitz e Jerusalém (1941-1966). Agora: 1993, apud Vallée, p. 13.

[4] – VALLÉÉ, C. Hannah Arendt: Sócrates e a Questão do Totalitarismo. Lisboa: Piaget, 1999, p. 14.

[5] – Idem, p. 19.

[6] – ARENDT, H. A Vida do Espírito. Citada por Revista CULT: https://www.facebook.com/blogacasadevidro/posts/2481619525197691.

[7] – VLASTOS, G. “Sócrates Contra Sócrates Em Platão”. In: Socrate: ironie et philosophie morale. Aubier, 1994, p. 70. Apud Vallée, p. 24.

[8] – VALLÉÉ, C. Op Cit, p. 26.

[9] – Idem, p. 39.

[10] – Idem, p. 46

[11] – Idem, p. 48.

Mito da caverna: um convite permanente à reflexão

Mito da caverna - abstracta - Filosofia, Sociologia e Psicologia

Mudanças bruscas tendem a assustar e é natural que vários de nós estejamos apreensivos com as notícias que chegam como prenúncio de um futuro que, para muitos, não existirá. Cada um tem se equilibrado na sua corda bamba para não sucumbir diante de uma realidade tão dolorosa. Eu, por exemplo, recorri à leitura e à Filosofia, que sempre foram meus alicerces, sobretudo, em momentos como este, propício a reflexões.

Nesta primeira etapa da quarentena, lancei um olhar mais aprofundado para o Mito da Caverna de Platão e gostaria de compartilhar com vocês algumas questões. Mas antes, os motivos da minha escolha. O primeiro ponto é que o filósofo grego que viveu entre o século III e IV antes de Cristo é um pensador atual e estamos imersos na mesma realidade descrita por esse mito 2.400 anos atrás. É, no mínimo, curioso que ele traga questões muito apropriadas à situação particular da atual política brasileira.

Em “A República” (o mito está no capítulo VII, também chamado de livro VII, parte em que ele discorre sobre o conhecimento), quando Platão discute as formas de governo, da decadência política, parece que ele leu os jornais de hoje.

O que diz o Mito da Caverna?

O diálogo travado entre Sócrates, personagem principal, e Glauco, seu interlocutor, trata da teoria platônica sobre o conhecimento da verdade e a necessidade de que o governante da cidade tenha acesso a esse conhecimento.

Segundo a alegoria, alguns prisioneiros são mantidos desde a infância em uma caverna, no seu nível mais profundo, onde estão acorrentados e virados de costas para uma pequena parede com uma fogueira acesa e, por detrás dela, está a saída. Por ali passam homens transportando objetos que se transformam em sombras projetadas na parede em frente aos prisioneiros, que sequer têm noção de sua condição de confinamento. Estas sombras e o eco dos sons produzidos pelas pessoas de cima são todo o conhecimento que eles têm do mundo.

O caminho natural seria ali permanecerem por toda a vida. Porém existem coisas dentro de nós que ultrapassam a razão e isso é um mistério da condição humana. Lá pelas tantas, algo dentro de um dos prisioneiros começa a dizer que a vida não pode ser só aquilo. “Intuo que deve ter algo mais profundo para fazermos na vida”. É um “clique interno” que não tem explicação, mas pelo qual todos nós já passamos. Então certo dia ele se liberta.

Quando esse jovem arrebenta a corrente e olha para trás, percebe que tudo o que ele até então havia tomado como realidade eram sombras, uma mentira. Ao olhar para cima, ele vê uma luz lá no fundo, pequenina, muito mais forte que a fogueira. Pensa: “Se a luz dessa fogueira provocou tudo isso, aquela ali é que deve ter a verdade”. Não desiste até chegar lá. Cai mil vezes, levanta mil e uma e consegue sair com muito sacrifício e esforço. Ele se libertou por mérito próprio.

Acostumado com a escuridão, a luz do sol não o permite enxergar num primeiro momento.  Mas à medida em que vai se acostumando com a luminosidade, ele começa a perceber a natureza e a infinidade do mundo exterior. Esse homem não tinha tudo para ser feliz? Porém ele não pode usufruir dessa felicidade sabendo que toda a humanidade sofre e ele não fez nada. Ele é um homem e a virtude fundamental do ser humano é a fraternidade. Ele retorna.

O percurso íngreme faz com que ele caia várias vezes até chegar novamente ao estágio inicial, todo arranhado e machucado. Ao contar aos seus parceiros de uma vida toda o que havia acontecido e o que ele encontrara fora da caverna, ninguém acredita. “Se você voltou de lá assim, eu é que não quero conhecer esse lugar. Você só pode estar louco!”.

Se uma pessoa não está nem desconfiada que o esquema da caverna é uma ilusão, nada que se fale fará com que ela acredite, porque falta esse “clique interno”, não tem como ser imposto por outra pessoa. Quem está curtindo o espetáculo é capaz de agredir e destruir quem pensa de forma diferente, como fizeram com muitos filósofos ao longo da História.

Na visão de Platão, esse homem que se libertou, quando busca a sabedoria para si, é um filósofo. Quando ele tem necessidade de trazer consigo a humanidade e deixar pegadas, ele se torna um político verdadeiro, que na expressão pura, é um homem que conquistou tal nível de consciência que, para ajudar a humanidade, ele tem que descer. E só faz isso por uma única razão: compaixão.

Se uma pessoa deseja um posto no governo é porque estava abaixo do que é exigido para merecer esse posto. Isso significaria ganho para ela. O político verdadeiro não tem esse desejo, tem “sacro-ofício”. Ele abre mão da sua posição e desce até a caverna para conduzir a humanidade, porque sabe que se ele não o fizer, a humanidade vai ficar perdida ou vai ser explorada por alguém. Quer um posto de governo? Deseje estar abaixo.

Tudo que você leu até aqui sobre o Mito da Caverna é um resumo do que explica brilhantemente a professora Lúcia Helena Galvão em suas aulas. A partir de agora, compartilho um pouco do efeito desse conhecimento sobre minhas reflexões e vivências.

Uma ostra que não foi ferida não produz pérolas

Vocês já devem ter ouvido essa frase, que traduz exatamente como me sinto. As pérolas são resultado da entrada de uma substância estranha ou indesejável no interior da ostra, como um parasita ou um grão de areia. Ou seja, as pérolas são produto da dor.

Fazendo um paralelismo com a minha realidade, essa substância que, de tão recorrente, não tem sido tão estranha assim, se chama cortisona, o hormônio do estresse. Eu ando sentindo muita raiva e dor – no coração e na alma -, como a ostra sendo invadida por um corpo estranho. Já havia estudado o Mito da Caverna na faculdade de jornalismo. Desde então, recorri a ele algumas vezes e, nesses dias de isolamento social, comecei a assistir a palestras sobre filosofia, o que me fez produzir algumas reflexões que são a minha produção de pérolas.

Muitas informações contidas nessa alegoria denunciam a alienação humana, presente naqueles que insistem em negar a gravidade do momento em que estamos atravessando. Até quando alguns escolherão o fundo da caverna? Será que é uma pré-disposição ao engano ou puro comodismo? Sim, manter-se na ignorância é muito mais confortável do que buscar o conhecimento, que implica em muito sacrifício.

Diversas vezes já ouvimos dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Isso quer dizer que, se tudo mundo pensa de tal forma, eu devo estar errado, como o prisioneiro que se atreveu a se libertar das correntes e conhecer o mundo lá fora. Seus parceiros o acusaram de estar louco, porém, na Idade Média todo mundo acreditava que a Terra era plana e estavam todos errados, só não Galileu Galilei e Giordano Bruno, como lembra muito bem Lúcia Helena em sua aula.

É impressionante que ainda hoje existam os terraplanistas, que contestam o que a Ciência já comprovou há séculos. É estarrecedor que a voz do povo queira desafiar o que vários cientistas e especialistas no mundo inteiro recomendam quanto às medidas que se devem adotar para combater o novo coronavírus. Ainda que não acreditem, contra fatos não há argumentos. Pessoas estão morrendo nos quatro cantos do planeta e, se não fosse a imprensa informando, já estaríamos – todos nós – condenados à morte.

“Em diversas épocas, não foi a maioria quem fez História. Sócrates era um só, Platão era um só, Galileu era um só”, ressalta a professora. No mesmo caminho parece estar indo […] tantos cientistas que neste momento trabalham, cada um, para encontrar uma vacina que nos tire desse algoz. Devo lembrar que os cortes de investimento na área de ciências, que começaram no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT), seguiram na gestão de Michel Temer (MDB) e se acentuaram com Jair Bolsonaro (sem partido), impediram a continuidade de pesquisas. Quem encontrar a cura para a doença responsável pela maior pandemia do século entrará para os anais da história. Será uma pessoa, não manada.

Vivemos tempos sombrios e só o verdadeiro conhecimento será capaz de nos libertar das amarras da ignorância. Não se iluda. Esse caminho é solitário e sair da caverna vai exigir muito esforço próprio, porque o verdadeiro conhecimento está acima do senso comum. Não na mensagem falsa que você recebe no seu WhatsApp e passa para frente. Não está naquele “influenciador digital” que vai para o seu canal e expressa sua opinião construída em cima de sombras.

Mas sempre valerá a pena lutar pela sabedoria, pois a recompensa é muito valiosa. Com ela, você aprende a formular seu pensamento, a ter senso crítico e, a partir do momento em que isso acontece, você deixa de fazer parte da grande massa de manobra. Você se liberta! A crítica pela crítica todo mundo sabe fazer, já a crítica fundamentada em bons argumentos é rara. E você será capaz de fazê-la. Lembre-se: conhecimento é a luz que vai te guiar em todas as suas decisões, que precisam ser, no mínimo, racionais. Hoje vivemos o tempo da paixão cega. Você saberá distinguir o que é falso do que é verdadeiro e vai ser mais consciente nas próximas eleições.

“Mitos são atemporais porque falam do homem, não de um tempo passado. Por isso, qualquer um que o ler se encontra lá dentro e sabe exatamente o momento em que ele está vivendo dentro daquela narrativa. Enquanto o homem for homem e lutar contra as mesmas sombras, aquele mesmo mito funcionará”, finaliza a professora Lúcia Helena Galvão, sempre generosa ao compartilhar conosco seus conhecimentos.

Por fim, um conselho. Não podemos cair na armadilha das paixões. Raiva, revolta e tristeza são emoções recorrentes neste momento. Pare, reflita, busque informações em fontes credíveis. Produza  a sua pérola verdadeira. O opinionismo raso não vai mudar em nada a realidade.

Autora: Diana Leiko

Fonte: Congresso em foco

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A Iniciação Real e a Morte do Ego – Parte I

Eu sou de Plutão, baby.. Tudo soa tragédia grega mas na real eu ...

असतो मा सगमय
Asato ma sat gamaya
Do ilusório conduz-me ao real

तमसो मा योतगम य ।
Tamaso ma yiotir-gamaya
Das trevas à Luz

मृयोमाअमतृ ंगमय ।
Mritior-ma amritam gamaya.
Da morte à Imortalidade.

(Brhadaranyaka Upanishad — I.iii.28)
Mantra(Oração) Védico Milenar

A verdadeira Iniciação é aquela que obriga o homem a descobrir por si mesmo o que não pode, desde logo, ser desvendado diante de seus olhos, nublados pelos densos véus da matéria em que se acha envolvido. Daí o mantra: “Do ilusório conduz-me ao real, das trevas à luz, da morte à imortalidade” (Professor Henrique José de Souza)

Introdução

A Maçonaria foi descrita como uma continuação dos vários cultos de Mistério que floresceram na Roma antiga, Egito, Pérsia e especialmente na Grécia antes de serem indiscriminadamente suprimidos em favor da nova, crescente religião cristã. O ilustre irmão Albert Pike chegou ao ponto de declarar que “a Maçonaria é idêntica aos mistérios antigos”, embora mais tarde ele tenha acrescentado que isso é verdade apenas em uma extensão limitada. Pois, na estimativa de Pike, a Maçonaria é mas uma imagem imperfeita do brilho dos mistérios, as ruínas apenas de sua grandeza e um sistema que sofreu alterações progressivas, frutos de eventos sociais, circunstâncias políticas e a ambiciosa imbecilidade de seus melhoradores.

O ponto central desses mistérios, sejam eles de natureza solar ou agrária, era a doutrinação e revelação de seus participantes em relação à realidade da divindade e à imortalidade da alma. Como o ilustre irmão Albert Mackey explicou:

O objetivo da instrução em todos os mistérios era a Experiência Mística, e a intenção das cerimônias de iniciação, era por uma representação cênica da morte e subsequente restauração da vida, impressionar as grandes verdades da ressurreição dos mortos e a imortalidade da alma.

Na maioria dos casos, essas doutrinas parecem ter sido transmitidas por meio de uma dramatização ritualizada complexa dos mitos e lendas tradicionais que cercam a divindade central do culto, em que o próprio candidato era muitas vezes corporificado à divindade, sofrendo suas provações, morte e ressurreição, em alguns casos, até encenando os empreendimentos da divindade enquanto peregrinava pela Terra dos Mortos. Foram precisamente essas reconstituições ritualizadas que, na maioria das vezes, constituíram as várias cerimônias da Iniciação nos mistérios antigos, cuja conclusão o fez de verdade um membro do culto aos Mistérios.

Em algum momento em meio ao nevoeiro do tempo, perdemos um aspecto que provavelmente era definitivo na conformação intelectual e espiritual dessas culturas.

Onde os gregos obtiveram a substância de seu conhecimento? Aquilo que em seu aspecto mais profundo os revelam como mestres iniciados nos mistérios da alma e do cosmos?

A tradição afirma que, do Egito, beberam os mistérios órficos e os pitagóricos. Platão e Pitágoras teriam obtido os segredos filosóficos dos Mistérios Egípcios.

Essa visão da história nos faria acreditar que a filosofia, e em geral o pensamento crítico e o conhecimento validado objetivamente, nasceu na Grécia quase por geração espontânea, libertando-se da superstição religiosa de todas as outras culturas do passado. No entanto, a tradição daqueles mais próximos de Platão, seus contemporâneos e a escola místico-filosófica que desenvolveu seus ensinamentos nos dizem que Platão era primariamente um místico, um iniciado e um teólogo e que sua filosofia não é tão original quanto pense, mas é o refino intelectual de uma antiga tradição esotérica. Marsilio Ficino, o grande tradutor de Platão para o latim, nos diz que seu ensino pode ser chamado de “uma teologia”, uma vez que “qualquer assunto que ele aborda, seja ética, dialética, matemática, rapidamente o completa, em espírito de piedade, e o leva à contemplação e veneração de Deus”.

Em seu livro Os Mistérios Eleusinianos e Báquicos, Thomas Taylor nos diz que Platão considerou que

“o grande desígnio dos Mistérios … era nos levar de volta aos princípios dos quais descemos … uma experiência perfeita do bem espiritual.”

Cícero não podia dar maior estima aos mistérios:

“De todas as excelentes e verdadeiramente divinas instituições que Atenas trouxe e contribuiu para a vida humana, nenhuma, na minha opinião, é melhor que os mistérios. Isso ocorre porque através deles crescemos além do modo selvagem de existência em que fomos educados e refinados para um estado civilizado; e como os ritos são chamados de iniciações, aprendemos verdadeiramente sobre o início da vida e ganhamos força não apenas para viver feliz, mas para morrer com esperança.”

Os Mistérios Iniciáticos de Elêusis

Elêusis era uma pequena cidade da baía cerca de 15 milhas a noroeste de Atenas. Começando tão cedo quanto o século XV a.C., um culto agrícola da deusa Deméter está associada com a localização. É este culto da fertilidade provincial que cresceu em tempos
helenísticos para se tornar o mais importante dos grandes mistérios. O notável historiador Walter Burkert explica que esses mistérios não eram entidades religiosas para além do contexto mais amplo do paganismo antigo, mas sim eram tangencial e primordial para os que os desejavam.

“Os Mistérios eram rituais de iniciação de caráter voluntário, pessoal e secreto que visa uma mudança de mente através da experiência do sagrado.”

Por mais de mil anos os mistérios eleusinos fariam parte integrante da vida religiosa de Atenas. Anualmente, no outono, formava-se um novo grupo de mystai (candidatos a Iniciação, semelhante aos nossos recipiendários).

O que ocorria no interior do santuário era mantido em segredo, Nesses mistérios, criptografados pelo mais alto sigilo, foram realizados um tipo de drama psico-cósmico e psicodramático. Muito provavelmente, os mystai encenavam a estada de Deméter em Elêusis. Como em toda iniciação antiga, esses rituais eram assustadores. Os mystai sabiam que os ritos e o mito eram símbolos: se lhes perguntassem se havia suficientes evidências históricas da visita de Deméter a Elêusis, achariam a pergunta um tanto descabida. Mythos (uma narrativa tradicional cujo objetivo é explicar a origem e existência das coisas) e a Theología (o estudo da existência de Deus, das questões referentes ao conhecimento da divindade, assim como de sua relação com o mundo e com os homens.) e, como todo discurso religioso, só fazia sentido no contexto dos disciplinados exercícios que lhe davam vida. O fato de não ser interpretado literalmente tornava o mito mais eficaz. “O que é subentendido (mas não expresso abertamente) é mais assustador”, explica Demétrio, escritor helenístico.

“O claro e manifesto é facilmente desprezado, como o homem nu. Portanto, os mistérios também são expressos na forma de alegoria, a fim de provocar consternação e pavor, e por isso têm lugar na escuridão, à noite. Através dos ritos, os mystai partilhavam o sofrimento de Deméter. Seu culto mostrava que não existe vida sem morte. As sementes têm de ser lançadas nas profundezas da terra para poder produzir o alimento que dá vida, portanto, Deméter, deusa do trigo, era também senhora do mundo subterrâneo.”

Os mistérios obrigavam os iniciados a encarar a própria mortalidade, vivenciar o terror da morte e aprender a aceitá-la como parte integrante da vida.

O processo era duro e exaustivo. Começava em Atenas, onde os mystai jejuavam durante dois dias inteiros, sacrificavam um leitão em homenagem a Perséfone e, numa imensa multidão, davam início à longa caminhada até Elêusis. A essa altura, estavam fracos e apreensivos. Os epoptai (significa “aquele que vê as coisas tais quais são”), iniciados no ano anterior, os acompanhavam, insultando-os e ameaçando-os, enquanto hipnóticas evocações de Dioniso, o deus da transformação, levavam a multidão a um frenesi. A caminhada até Eleusis terminava ao anoitecer. Confusos, eufóricos, exaustos e assustados, os mystai eram conduzidos de um lado para outro pelas ruas da cidade, à luz trêmula das tochas, até que, completamente desorientados, mergulhavam por fim na escuridão absoluta da sala de iniciação. Então, dentro das paredes do complexo, os iniciados foram tomados através de um processo de iniciação que envolve, três elementos:

  • o Drómena ( “Drama”);
  • o Legómena ( “provérbios”); e
  • o Deiknýmena ( “Resultados”).

O primeiro, Drómena, era uma encenação do mitologema das deusas: de archotes em punho, os Iniciados encenavam a busca de Deméter por Perséfone . […]

O segundo aspecto diz respeito aos Legómena, a saber, determinadas fórmulas litúrgicas e palavras reservadas aos Iniciados, fórmulas e palavras que eles certamente repetiriam, daí a necessidade de saber grego. […]

O terceiro e último componente da iniciação são os Deiknýmena, vocábulo que só se pode traduzir por “ação de mostrar ou o que é mostrado, uma revelação”. Trata-se, segundo se crê, de uma contemplação por parte dos Iniciados. (BRANDÃO, 1986, p. 299-301).

George E. Mylonas, autor do livro Eleusis and the Eleusinian Mysteries, define o mistério Iniciático de Elêusis :

“Seja qual for a conteúdo e significado dos Mistérios, permanece o fato de que o culto de Elêusis satisfez os anseios mais sinceros e os desejos mais profundos do coração humano. Os iniciados retornam de suas peregrinações a Elêusis cheios de alegria e felicidade, o medo da morte diminuiu, e a esperança reforçada de uma vida melhor no mundo das sombras.”

E Píndaro cantou:

“Feliz aquele que viu isto antes de morrer. Conhece o término da vida, e conhece também o começo.”

E clama Sófocles:

“Oh três vezes felizes os mortais que, depois de contemplarem estes mistérios, partam a morada de Hades: somente eles poderão ali viver; para os demais, tudo será sofrimento.”

Não se ensinava nenhuma doutrina secreta na qual os mystai tivessem de “acreditar”. A “revelação” era importante somente como a culminância da intensa experiência ritualística Num esplêndido resumo do processo religioso e espiritual, Aristóteles escreveria posteriormente, que os mystai iam a Eleusis não para aprender (mathein) alguma coisa, mas para viver uma experiência (pathein) e uma mudança no estado mental (diatethenai). Parece que os ritos causavam uma profunda impressão.

Era impossível os mystes não ficarem atordoados com uma cerimônia tão “imponente pela beleza e pela magnitude”, escreveu o retórico grego Dion de Prusa, 117 d. C.), eles tinham

“muitas visões místicas e ouvia muitos sons do mesmo teor, enquanto escuridão e claridade se alternavam bruscamente e ocorria um sem-número de outras coisas”, era impossível “não sentir nada na alma, não imaginar que existe uma inteligência maior ou um plano mais sábio em tudo que acontece.”

Para o historiador Plutarco (c. 46-120 d.C.), a iniciação era uma amostra da morte:

“Começava com a dissolução dos processos mentais do indivíduo, com desorientação, caminhos assustadores, que aparentemente não levavam a lugar algum, e, pouco antes do final, pânico, tremor, suor e espanto. Mas, então, uma luz maravilhosa […] regiões e prados puros estão ali para nos receber com sons e danças, e palavras solenes e sagradas, e santas visões.”

O drama concebido meticulosamente conduzia os mystai a uma nova dimensão da vida e
os punha em contato com um nível inconsciente e mais profundo da psique. Assim, no final, muitos se sentiam totalmente mudados, “Deixei a sala do mistério, sentindo me um estranho para mim mesmo”, lembrou um mystes.

Eles já não temiam a morte: alcançaram o ekstasis, o “sair” de seu eu prosaico, e, por um breve tempo, experimentavam algo semelhante à beatitude dos deuses. Mas nem todos se saíam bem nesses jogos rituais.

O filósofo ateniense Proclo (c. 412-85 d.C.) relata que alguns mystai ficavam tomados de pânico na parte mais sombria do rito e permaneciam aprisionados em seu medo; não eram suficientemente hábeis nesse jogo ritual de faz de conta. Outros, porém, chegavam a uma sympatheia (sofrer ou sentir juntos), uma afinidade que os incorporava ao ritual, fazendo-os perder-se nele “de uma forma ininteligível para nós e divina”. Seu ekstasis era
uma kenosis, um esquecimento de si mesmo que lhes permitia “assimilar-se aos símbolos
sagrados, despojar-se da própria identidade, fundir-se com os deuses e experimentar a possessão divina”.

Interpretações como a de Thomas Taylor, o tradutor mais importante da filosofia platônica e neoplatônica na história, ou a do pesquisador místico, célebre pensador, conferencista, mundialmente reconhecido por centenas de trabalhos publicados dedicados à religião comparada, filosofia, e tradições esotéricas e iniciáticas, o Ir.’. 33° Manly P. Hall , também nos conta que

“os mistérios produziam uma experiência de quase morte no neófito, uma verdadeira iniciação, no o que o fez entender e experimentar de alguma maneira íntima e indescritível, a imortalidade ou a noção de que a alma continuava após a morte”.

Sabemos de outros estudiosos modernos, como Carl Ruck e Gordon Wasson, (que escreveram um livro em conjunto com o Dr. Albert Hofmann sobre Elêusis e o fato de que uma forma de substância psicoativa natural foi ingerida) que os rituais faziam parte de suas vidas e no drama iniciático visionário, eles usaram uma bebida psicodélica, o Kykeon.

Na verdade, isso não é tão surpreendente. O uso de compostos enteogênicos (a palavra “enteógeno”, significa literalmente, “manifestação interior do divino”, deriva duma palavra grega obsoleta da mesma raiz da palavra “entusiasmo”, e se refere à comunhão religiosa Espiritual sob efeito de substâncias visionárias.) em ambientes ritualísticos comumente empregado em sociedades indígenas, linhas xamânicas, e espirituais aqui no Brasil.

Na Bacia Amazônica, é a

    • Ayahuasca (também chamado de Santo Daime, o chá de ayahuasca – na linguagem quéchua, aya significa espírito ou ancestral, e huasca quer dizer vinho ou chá );

Entre os Mazatecas, no México, o

    • Teonanacatl (Significa “Carne dos Deuses”, Conhecidos como cogumelos mágicos, Psilocybe cubensis (anteriormente designada por Stropharia cubensis) é uma espécie de cogumelo enteógeno, mundialmente conhecido, que apresenta como principais princípios ativos a psilocibina e a psilocina);

Com os milenares vedantistas, era o

    • Soma, (Soma é uma bebida ritual da cultura védica e hindu. É também o nome da própria planta da qual se extrai a bebida, bem como a personificação do Deus dos deuses. Existem nos Vedas (Rigveda, Soma Mandala) 114 hinos exaltando suas qualidades. Alguns antropólogos acreditam que o cogumelo Amanita muscaria seja o soma, ou parte dele. Outros afirmam que poderia ser o cogumelo Psilocybe cubensis);

“Bebemos o soma, nos tornamos imortais, fomos para a luz, e encontramos os deuses.” (Rig Veda 8.48.1-15

Com os Parsis zoroastrianos, foi o

    • Haoma (era na mitologia persa ou iraniana a bebida dos deuses, feita de um planta com o mesmo nome. Esta bebida desempenha um papel fundamental nos rituais da religião ariana, sendo ela que dava a divindade aos deuses. Esta bebida psicoativa tinha um paralelo semelhante na Índia (do qual terá derivado), com o nome de soma, sendo deus e bebida num só).

Em todos esses casos, foi ou é um composto enteogênico que facilita (ou realiza) a experiência mística.

Iniciação simbólica x Iniciação real

Uma distinção importante precisa ser feita aqui. Na milenar pedagogia Iniciática, existem dois tipos diferentes de iniciação: a formal e a real.

A iniciação formal planta as sementes e fornece os meios pelos quais, com o tempo e a aplicação das lições inculcadas, essas sementes podem florescer para a verdadeira iniciação ou a iluminação. No entanto, nem todos os iniciados formais atingem a iniciação real, nem todos os iniciados reais foram formalmente iniciados. A única maneira, portanto, de garantir que tanto a iniciação formal quanto a iniciação real coincidam no mesmo momento é ter um meio à prova de falhas pelo qual a iniciação real possa ser induzida ao ser formalmente iniciada. É essa função que as substâncias psicodélicas serviam nos antigos mistérios e ainda servem até hoje em certas linhas religiosas, filosóficas e iniciáticas.

Compostos enteogênicos selecionados têm o efeito de expandir a consciência de tal maneira que noções previamente abstratas e inefáveis de divindade e espírito se tornam ao mesmo tempo tangíveis e concretas, na medida em que não se pode questionar a realidade do plano espiritual. As experiências relatadas por aqueles que experimentaram tais compostos consistentemente envolvem viagens astrais, experiências de quase morte, percepção da unidade de toda a criação e da imanência da divindade, contato com seres angélicos ou divinos, etc. Nas palavras orientais do nosso estimado irmão Swami Vivekananda,

“A matéria é representada pelo éter; quando a ação do Prana é mais sutil, esse mesmo éter, no mais fino estado de vibração, representará a mente, e ainda aí continua existindo uma massa uniforme. Se pudéssemos criar em nós mesmos essa vibração sutil, veríamos e sentiríamos que o universo inteiro é composto de vibrações sutis. Às vezes, certas substâncias têm o poder de nos levar, acima dos sentidos, onde podemos sentir tais vibrações.”

Assim como em Elêusis, o que antes era necessário aceitar com fé, Agora o iniciado recebeu o conhecimento direto da realidade ou irrealidade.

Continua…

Autor: Geovanne Pereira

Geovanne é professor de Filosofia, psicanalista, Mestre Maçom da ARLS Jacques DeMolay, n°22 – GLMMG e, para nossa alegria, também um colaborador do blog.

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Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes e Rousseau

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Essa animação é uma ótima contribuição da UNIVESP TV.

Excelente oportunidade para entender um pouco sobre da vida e obra desses grandes homens.

Assista que vale o tempo investido!

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Apareço, logo existo: o mundo das aparências por Bauman, Nietzsche e Shakespeare

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O mundo contemporâneo é regido pelo estratagema da comunicação, provavelmente este seja o maior pilar erguido pela era da informação. Bauman, contextualizando Descartes, versa que para que haja existência – neste mundo tenebroso – é preciso, sobretudo, aparecer; propagandear-se, por assim dizer. Apareço, logo existo”. Quem não está presente nas Redes Sociais é como uma esponja, um sujeito paupérrimo, possivelmente um eremita. É preciso que se diga: o Facebook, muito mais do que refletir a nossa imagem, cria outro ser, indiferente ao que somos geralmente na vida tangível. A internet é um paraíso digital no qual podemos selecionar um mundo só nosso: somos mais bonitos, mais pacientes e mais inteligentes. Para fugir do inferno dantesco que é a realidade, basta uma espaçonave para o mundo digital. Quem topa a viagem?

Hamlet talvez seja o personagem que mais ojerizaria o mundo contemporâneo das aparências”, afinal, como asseverou o historiador Leandro Karnal, Hamlet é o anti-facebook.  O personagem de Shakespeare odeia o mundo dos seres falastrões, indivíduos que se regozijam com o personagem que eles mesmo criam e chamam de eu”; a prova disso era o seu desprezo ao personagem mais falso da peça: Polônio. Nietzsche, também um assíduo leitor de Shakespeare, chama atenção para o descaso que nós temos conosco mesmos, a recusa que temos em conhecer o nosso interior, de tal maneira que não suportamos mais ficar sozinhos e erigimos, dessa forma, um cárcere sobre nós mesmos.

O falso amor de si mesmo transforma a solidão em prisão. Friedrich Nietzsche

O filósofo Esloveno Slavoj Zizek entende que cada vez mais a modernidade alimenta o mundo das aparências, de tal maneira que hoje não basta irmos a casa da vizinha que odiamos e dizer bom dia, é preciso pairar uma aparência de jubilo e felicidade. Não basta sorrirmos para uma foto em um dia em que preferimos ter uma corda pra nos enforcarmos, é indubitavelmente importante que seja um sorriso sincero. A vida nos prepara para sermos atores em um mundo sem roteiro, em que tudo que sabemos é que precisamos comprar e sorrir. A frase trágica de Macbeth, personagem mais trágico de Shakespeare, traduz essa inconstância:

“A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se empavona e agita por uma hora no palco, sem que seja, após, ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que nada significa.”

Faríamos qualquer coisa para conseguir a aceitação dos outros? Um pacto com o demônio, um eu te amo” dissimulado, uma foto mostrando uma vida totalmente diversa da nossa? As perguntas são flechas certeiras que acertam o nosso peito. E se a psicanálise estiver certa e formos mesmo seres da falta”, então, porventura estamos perdidos? Não podemos viver sem ter que penhorar as nossas vidas à igreja, às drogas, à hipocrisia. Precisamos mesmo de um mecanismo de fuga, para que não lembremos de nossa limitação e da morte que nos persegue a cada dia? Cada um com a sua caverna escura e sombria.

Viver é ter de carregar nas costas os cadáveres de nosso passado: as inúmeras pessoas que já fomos e que hoje se perderam em uma memória cada vez mais escassa, aqueles amigos que foram e nunca mais voltaram, os que morreram biologicamente e os que morreram pra dar lugar a outro ser completamente diferente. Ficar sozinho é acender uma vela a cada um destes seres moribundos, que balbuciam em nossas costas, pedindo misericórdia e rezando para que tudo volte a ser como era antes. Não há mais volta, e nós dois sabemos disso, caro leitor.  Mesmo que você remarque encontros com os amigos de infância, ao encontrá-los, você perceberá que não são mais os mesmos que brincavam com seus brinquedos no Jardim de Infância. Os desenhos não têm a mesma graça de quando éramos crianças. Talvez isso revele o porquê de querermos ficar sempre em multidões, temos medo do que podemos encontrar dentro de nós, medo desses cadáveres do passado. E, assim, nos tornamos uma presa fácil a um mundo de fingimento.

Falar muito de si mesmo também pode ser uma forma de ocultar-se, a frase é do Filósofo Bigodudo (Nietzsche), e ela revela a mais profunda ideia de manipulação, pois, quando falamos de nós mesmos, também estamos selecionando o que falar, portanto, escondendo as margens diabólicas de nossas vidas para evitar qualquer possível apedrejamento físico ou mental. Desconfie de pessoas que passam muito tempo falando de suas próprias vidas e de suas virtudes, elas provavelmente fazem isso por medo de que descubram a faca que as suas mãos seguram por detrás de suas costas. E voltando à peça de Shakespeare, Macbech, uma frase proferida por um de seus personagens é bastante elucidativa para concatenar os pontos:

“Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma.”

A menos que tenhamos habilidades similares às do Professor Xavier, não poderemos entender o que se passa na cabeça das pessoas. O que os olhares e sorrisos escondem por dentro – às vezes lágrimas, às vezes ódio – qualquer disfarce que nos furta o entendimento do que há por dentro das cascas sorridentes. Eu sugiro uma visita ao Oráculo de Delfos e uma leitura da frase pleonástica esculpida em sua entrada: “Conhece-te a ti mesmo”, frase socrática que nos convida a embarcar em um mundo perigoso, todavia, necessário – o mundo que há dentro de nós. E só depois tentar entender o significado dos sorrisos vazios.

Fonte: Pensador Anônimo

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“Quem não é geômetra não entre!” Geometria, Filosofia e Platonismo

Imagem relacionadaA Academia de Platão, artista desconhecido, mosaico, Pompeia, c. séc. I a. C.

O objetivo deste artigo é analisar, a partir dos textos de Platão e de comentadores, a apresentação de argumentos a favor da utilização da matemática e da geometria como propedêutica à aprendizagem da filosofia, bem como investigar as reverberações da ontologia e da epistemologia platônicas nesse programa pedagógico. Pretende-se, ainda, apontar comparativamente similaridades entre crises nos fundamentos da matemática e seu impacto na concepção de racionalidade, tanto no universo grego antigo como na contemporaneidade.

“Dois e dois são três” disse o louco.
“Não são não!” berrou o tolo.
“Talvez sejam” resmungou o sábio.
Skepsis. (José Paulo Paes)[2]

Introdução

Gostaríamos de começar este artigo com uma crônica de nossos dias. A revista Carta Capital, em sua coluna Brasiliana, de setembro de 2006, comenta o sumiço do “Professor”. Trata-se de uma história da Praça XV, no centro de Florianópolis, onde vivem diversos moradores de rua. Entre eles, o “Professor”:

Se autodenominava revolucionário e falava português, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, holandês, ao todo sete idiomas. Antes de ter ido embora, ensinava estas línguas aos colegas, logo depois do almoço, a divisão dos restos dos pães doados pelo padeiro do outro lado da  rua.[3]

Falava também de Marx e Weber, e suas aulas acabavam em longas discussões oportunamente regadas à cachaça de R$1,50. Os amigos contam que pouco antes de seu desaparecimento, havia feito uma revelação a todos: retirando de sua sacola uma pasta cinza, teria mostrado papéis com números, desenhos, uns triângulos de ponta-cabeça. Eram esboços de sua autoria – havia esclarecido, e concluíra enfático: “Aqui está a equação matemática, cuja solução será capaz de explicar… tudo nesta vida!”[4]

Sim, a equação matemática capaz de explicar tudo… Apesar de infinitamente distante da Praça XV, o mundo para o qual olharemos, aquele das relações entre geometria e filosofia na época clássica, parece ter alojado a mesma tensão gnoseológica: aqui, a brincadeira é aquela de achar, na matemática, a explicação “de tudo nesta vida”. Certamente, essa ambição de compreender o mundo descobrindo seus números e as relações entre eles é antiga e não está reservada, exclusivamente, àquele âmbito da cultura que costumamos chamar de ocidental[5]. Hoje, nós a pensamos bastante influenciados, ainda, pelo paradigma da ciência moderna, aquela fundada por Galileu, que via a natureza como um livro, encontrando nela um léxico matemático[6], e teorizada por Descartes ao falar de mathesis univesalis, uma ciência geral relativa à ordem e à medida[7].

A relação entre matemática e natureza (phýsis) tornou-se particularmente diferente, a partir do momento em que foram publicados, em 1638, os Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze[8]. Uma das razões principais foi o fato de Galileu romper com a tradição aristotélica que separava o trabalho do físico daquele do geômetra, pois enquanto o primeiro examinava coisas reais, o segundo examinava razões em função de abstrações – os métodos de cada um não podiam ser os mesmos, dentre outras coisas, porque o espaço vazio da geometria seria incompatível com a ideia de lugar natural e de cosmos[9]. O “caso Galileu” é, ainda, objeto de muita pesquisa, e alguns trabalhos recentes mostram as conexões complexas entre o que, hoje, chamamos física, astronomia, matemática e ontologia. Ao retomar certos pressupostos platônicos sobre a constituição matemática da matéria, Galileu teria, inclusive, dado margem a acusações de que suas pesquisas sobre o movimento possuíam implicações teológicas que ultrapassavam, sobremaneira, o campo da física[10]. Que Galileu tenha herdado de Platão o estilo dialógico ou certos pressupostos metafísicos, como a circularidade do movimento dos astros, é fácil de ser constatado, mas o atomismo e o projeto de uma geometrização da natureza dependem de um esclarecimento que tentaremos fazer, aqui, por meio de um comentário do renomado helenista Gregory Vlastos. Com sua ajuda, faremos esse salto de, aproximadamente, dois mil anos, mergulhando no período que nos interessa nesse momento, a saber, aquele universo em que floresceu Platão.

Vlastos[11], partindo do pressuposto aristotélico de que a teoria da estrutura da matéria de Platão é uma variante da hipótese atômica de Leucipo e Demócrito[12], analisou o modo como Platão adaptou a concepção atomista ao propor que os átomos fossem suscetíveis de dois tipos de alterações: a primeira, relativa à existência de variedades de cada um dos tipos primários de matéria (éter e neblina são, por exemplo, variedades de ar)[13]; a segunda, relativa à mudança de um tipo de matéria em outro, como no caso dos átomos de fogo, ar e água, devido a eles terem faces idênticas, isto é, triângulos equiláteros. Lembremos que o Demiurgo imprimiu uma forma estereométrica regular à matéria, ao transformá-la de caos em cosmos; fogo, ar, água e terra são constituídos de tetraedros, hexaedros, octaedros, icosaedros, respectivamente[14]. Esse atomismo geometrizado será aquele retomado por Galileu, que, defendendo a matematização da natureza como método para a elaboração de uma nova ciência, deu, como observou Alexandre Koyré, “uma prova experimental do platonismo”[15].

Desnecessário lembrar que a exclamação no título deste artigo “Quem não é geômetra não entre!” se refere à famosa advertência que se podia ler no portal da Academia de Platão[16]. Advertências análogas eram comuns nas entradas de templos e santuários antigos, nos quais, no lugar da geometria, eram requeridas pureza e outras qualidades, funcionando como uma “senha” para iniciados. De maneira análoga, iremos utilizá-la ao longo do ensaio, para indicar-nos o lugar que a matemática e a geometria assumem em um momento de grande importância na definição do pensamento ocidental e da filosofia em seu nascer: aquele da “descoberta” de um “método científico”, entre o V e o IV séculos a.C.[17] “Quem não é geômetra não entre!”, portanto. Partiremos, daqui, para compreender a importância do diálogo entre a filosofia, a matemática e a geometria na construção desse método. Partiremos de Platão, lembrando que a palavra matemática vem do verbo mantháno, que significa, aprender, compreender, e esse saber (máthema) pode ser relativo à ideia (suprema) de Bem (República 505a). Hé mathematiké é o que concerne à ciência da matemática[18]; as matemáticas são os conhecimentos que se apreendem em um corpo de disciplinas que se constitui de aritmética, geometria em duas dimensões, geometria em três dimensões, a astronomia e a harmonia dos sons (República 525a-531d), e que são fundamentais na formação do filósofo[19].

Desse modo, uma sentença como a do frontão da Academia encaixa-se muito bem naquela que devia ser a prática das ciências matemáticas no interior da escola de Platão. Um entre muitos, podemos ficar com o testemunho de Proclo:

Platão (…) deu um imenso impulso a toda a ciência matemática e em particular à geometria, pelo apaixonado estudo que a isso dedicou e que divulgou quer recheando seus escritos de raciocínios matemáticos, quer despertando em toda parte a admiração por estes estudos naqueles que se dedicam à filosofia.[20]

Sobre o papel que Platão teria exercido como matemático, os estudiosos discordam, tendendo mais a considerá-lo um formador de jovens matemáticos do que um descobridor de novos métodos ou teorias. É o que afirma, por exemplo, Boyer: “Platão é importante na história da matemática principalmente por seu papel como inspirador e guia de outros e talvez a ele se deva a distinção clara que se fez na Grécia Antiga entre aritmética (no sentido de teoria dos números) e logística (a técnica da computação)”[21].

A distinção a que se refere Boyer, sem oferecer maiores detalhes, é importante para nos dar a medida da preocupação platônica e mesmo de sua presença, ainda hoje, nos debates sobre a natureza da matemática. No Filebo (56d-e), Sócrates faz distinção entre a aritmética do homem comum e a do filósofo, com base na diferença dos “objetos” a que se dirige cada um: enquanto o primeiro opera com unidades que são distintas (ao contar dois exércitos, sabe-se que eles são diferentes), para o segundo, as unidades são todas indistintas (números são coleções de unidades puras)[22]. A rigor, a aritmética (como a geometria) do filósofo aplica-se apenas ao mundo do ser[23]. Um problema decorrente dessa visão da aritmética e, também, da geometria é o de explicar como essas disciplinas se aplicam ao mundo físico. Uma tentativa será feita no Timeu, no qual temos uma teoria especulativa da construção geométrica do mundo, interligada ao realismo epistemológico e ontológico de Platão[24].

Acrescente-se, ainda, que, independentemente das atividades de Platão como matemático, textos como o Mênon e o Teeteto mostram o quanto as questões matemáticas estão presentes na discussão sobre os critérios para a aquisição de conhecimento verdadeiro e sobre impasses gerados devido a problemas internos à geometria e à aritmética. Desde o famoso artigo de F. Cherniss, Plato as a mathematician[25], à recente obra de P. Pritchard, Plato’s philosophy of mathematics[26], tornou-se claro como a relação entre matemática e filosofia é estreita, e um primeiro momento de crise ocorre exatamente aqui, na Academia de Platão. É desse momento que falaremos a seguir de uma crise que é ocasião de “afinar os instrumentos” para a ciência antiga e para a filosofia dos séculos V e IV, de maneira especial. Uma crise que, em seu momento final, levará Aristóteles a sair “batendo a porta” e – numa imagem um pouco naïve e pela qual desde já nos desculpamos – derrubando, teoricamente, a famosa escrita no frontão. No entanto, para podermos compreender essa crise, será preciso recuar, observando como se desenhou a relação entre filosofia e geometria, ao longo de anos de fecunda simbiose, desde aqueles que a mitologia das origens da filosofia designou como ponto inicial, por meio de um “fundador”, Tales de Mileto.

Considerações sobre a relação entre a geometria e a filosofia que nasce

Galeno conta uma anedota que ilustra muito bem qual é a imbricação cultural das ciências matemáticas (e, de maneira especial, da geometria) no mundo grego: Aristipo teria sido jogado durante um naufrágio numa praia desconhecida, e vendo desenhadas na areia algumas figuras geométricas, teria ficado aliviado, pois, naquele momento, sabia não ter caído em terras bárbaras, e sim em terras gregas[27]. Encontrava-se, de fato, na costa da Sicília, próximo da cidade de Siracusa. É verdade que Tales de Mileto, segundo o testemunho de Proclo, no Comentário ao primeiro livro dos elementos de Euclides, provavelmente retirado do sumário da mais antiga História da geometria de Eudemo, teria ido ao Egito estudar exatamente a geometria, que aqui nasceu para responder a necessidades práticas: “Foi o primeiro que, tendo ido ao Egito – trouxe de lá esta doutrina e a introduziu na Hélade, e ele próprio fez muitas descobertas e, de muitas, deixou uma ideia aos seus sucessores, abordando alguns problemas de modo mais geral, e outros de modo mais prático” (In Eucl. 65, 3).

Na medida em que o Egito é geralmente considerado o berço da civilização grega, “o reconhecimento da origem egípcia não era outra coisa senão o corolário da certeza de que a geometria era um traço essencial da identidade cultural helênica”[28]. Entre outras descobertas de Tales, a tradição informou-nos sobre o famoso teorema, pelo qual o ângulo inscrito em um semicírculo é um ângulo reto, que parece ter sido o primeiro teorema de geometria demonstrado de forma dedutiva[29]. Com Tales, um dos sete sábios já segundo Platão (Protágoras, 343a), a matemática insere-se em um programa maior, que poderíamos chamar de organização racional do conhecimento e do mundo, que passava pela astronomia, pela política e – sobretudo – pela conduta humana, isto é, pela ética. Esse programa não é invalidado mesmo se concordarmos que algumas célebres “proezas” atribuídas a Tales sejam de cunho até anedótico, como a de ter conseguido determinar a distância de um barco a partir da costa (D.L. I, 27) ou a altura de uma pirâmide (PLÍNIO, N.H. 36, 82). Elas são, claramente, anacrônicas, pois pressupõem o uso do conceito de proporção (analogía, lógos), um dos conceitos que nos interessa neste artigo, e que parece ter sido descoberto somente no âmbito pitagórico – posteriormente, portanto[30].

De fato, tanto o desenvolvimento teórico da matemática como a aproximação entre ciência (em geral e, especialmente, a geometria) e ética aparecem de forma ainda mais significativa no pitagorismo[31], constituindo-se como o primeiro momento daquele que Boyer chamava de “período heroico da matemática”:

Praticamente não existem documentos matemáticos ou científicos até os dias de Platão no quarto século a.C. No entanto, durante a segunda metade do quinto século circularam relatos persistentes e consistentes sobre um punhado de matemáticos que evidentemente estavam intensamente preocupados com problemas que formaram a base da maior parte dos desenvolvimentos posteriores na geometria.[32]

É no interior do complexo e multifacetado movimento pitagórico que teriam sido cunhados os termos-chave de nossa discussão: “filosofia” e “matemática” (aquilo que se aprende, como dissemos antes)[33]. Os termos indicam os interesses fundamentais da escola, articulados no sentido daquele que, para Platão, era o grande objetivo da historía, da pesquisa pitagórica: um trópos tou biou, um estilo de vida, uma ética, uma conduta humana que dizia respeito, ao mesmo tempo, a preocupações religiosas e práticas ascéticas ligadas a uma concepção da imortalidade da alma reencarnacionista e a preocupações políticas. Uma geometria, digamos, aplicada à vida, mas em um sentido diferente daquele técnico ao qual estamos acostumados. É novamente Proclo a nos impedir de pensar nas pesquisas matemáticas dos pitagóricos como em algo simplesmente “funcional”: “Pitágoras fez do estudo da geometria um ensino liberal, subindo aos princípios com a investigação e estudando seus problemas sob um ponto de vista puramente abstrato e teórico. Deste modo foi ele que descobriu o tratamento dos irracionais e a construção da figuras cósmicas”[34].

Desde o teorema de Pitágoras até todas as outras “descobertas” geométricas que Proclo, Euclides e outros atribuem aos pitagóricos, como também o fazem autores como Eudemo e Aristóxeno com relação ao desenvolvimento por estes da teoria musical (relações harmônicas de quarta, quinta e oitava)[35] e ao campo da astronomia[36], a filosofia pitagórica tem uma intenção e uma acepção claramente teóricas, mesmo fazendo parte de um quadro geral filosófico e ideológico, em que as diversas disciplinas e interesses se compunham. Boyer, também, realça essa característica: “No mundo grego a matemática era aparentada mais de perto à filosofia do que a negócios práticos, e este parentesco permaneceu até hoje” (1974, p. 48). Ao que parece, a aritmética torna-se disciplina intelectual antes do que cálculo técnico (logística), já com os pitagóricos, o que é atestado por Aristóteles ao afirmar que aqueles “foram os primeiros a se dedicar às matemáticas e a fazê-las progredir” (Met. 985b24). Mas, ao mesmo tempo, diz Aristóteles, dedicaram-se à natureza (phýsis), no sentido do trabalho filosófico pré-socrático de determinar quais seriam os princípios (archai) ontológicos e epistemológicos da realidade. Dessa forma, “nutrindo-se das matemáticas, pensaram que os princípios delas fossem princípios de todos os seres”, concluindo, assim, que “o universo inteiro é harmonia e número” (Met. A 5, 985b25-26).

Vai além dos limites deste ensaio uma análise, ainda que breve, da contribuição pitagórica à história da matemática e da geometria, ou melhor, da aritmogeometria – célebre expressão de Abel Rey –, como se costuma chamar esse conjunto ainda indistinto de teoremas e teorias que a tradição nos transmite dos estudos do movimento pitagórico[37]. Concedemos à paciência historiográfica somente mais duas observações. Primeiro, que seria melhor falar não de uma aritmogeometria, e, portanto, de uma correspondência entre números e figuras geométricas, mas de uma correspondência mais generalizada (cosmológica) entre número e todas as entidades constitutivas da realidade. Se é verdade que o número um é o ponto, o dois é a linha, o três é o plano, é também verdade que Eurito pensava poder indicar os números do cavalo e do homem, e Filolau o número que correspondia à memória, ao éros, a certas divindades[38]. Segundo, que é oportuno lembrar uma outra vertente matemático-filosófica pré-platônica não pitagórica, na qual poderiam estar autores eleatas, como Zenão, e outros, como Anaxágoras e Demócrito. No entanto, a economia destas páginas não nos permite um tratamento adequado do tema[39]. Estamos interessados, no momento, em mostrar que o conhecimento sobre o princípio (arkhé) da filosofia pitagórica, o arithmos, o número indivisível, inteiro, que é a base da geometria e da filosofia pitagóricas (Met., 985b, 990a, 1078b, 1092b), entra em crise, na metade do século V. É, novamente, Boyer a introduzir muito bem os termos da questão:

Os diálogos de Platão mostram que (…) a comunidade matemática grega fora assombrada por uma descoberta que praticamente demolia a base da fé pitagórica nos inteiros. Tratava-se da descoberta que na própria geometria os inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever mesmo simples propriedades básicas.[40]

Trata-se, provavelmente, de uma crise que acontece no âmbito pitagórico: Hipaso seria seu autor, pela descoberta das grandezas incomensuráveis (asýmmetronou sýmmetroi; álogos)[41]. A anedótica da história da filosofia conta-nos que, por esse motivo, teria sido expulso da escola pitagórica[42]. A “ciência normal” de kuhniana memória já fazia aqui, provavelmente, sua primeira vítima. É uma crise grave nos fundamentos do conhecimento matemático, e não somente uma questão periférica, uma aporia secundária da geometria. O incomensurável irrompe no céu puro e imaculado das figuras e dos números racionais e de seus axiomas e princípios evidentes, dos quais procede a rigorosa cadeia de consequências necessárias. A crise atinge os próprios alicerces epistemológicos, tanto da matemática como da geometria.

Como já foi observado, frente aos problemas com a incomensurabilidade, muitas demonstrações perderam seu poder de convencimento, sendo reduzidas a raciocínios plausíveis. Como números significam, na época, “números racionais”, originou-se o que é chamado hoje “álgebra geométrica dos gregos”, por exemplo, “o retângulo de lado a e b” era usado em vez de “a vezes b“. Coube a Eudoxo (século IV a.C.) a tarefa de fornecer fundamento sólido para a matemática[43]. Semelhante reação crítica e busca de rigor só ocorreriam, novamente, no século XIX, aparecendo, aliás, em um nível de maturidade filosófica semelhante ao de Eudoxo, que, com sua teoria das proporções, formulou uma primeira abordagem satisfatória dos números irracionais. Lembremos como Dedekind, para fundamentar a Análise (que é um desdobramento do cálculo diferencial e integral), seguiu métodos semelhantes aos de Eudoxo. Outras crises, entretanto, surgiram ligadas, principalmente, à Teoria dos Conjuntos, de Cantor, cujos pressupostos metafísicos (dentre eles, a existência de infinitos atuais) levaram, em certos contextos, a intrincados paradoxos. Um depoimento eloquente sobre a situação e suas implicações na própria possibilidade do conhecimento humano é dado por Hilbert:

O objetivo de minha teoria é estabelecer de uma vez por todas a certeza dos métodos matemáticos. Essa é uma tarefa que não foi realizada mesmo durante o período crítico do cálculo infinitesimal (…) Nós agora chegamos à mais estética e delicada estrutura da matemática, isto é, a análise (…) em certo sentido a análise matemática é a sinfonia do infinito (…) O estado atual das coisas, em que nos chocamos com os paradoxos é intolerável. Apenas considerem as definições, os métodos dedutivos que cada um aprende, ensina e usa em matemática, o modelo da certeza e da verdade conduzindo a absurdos. Se o pensamento matemático é defeituoso, onde encontraremos verdade e certeza?[44]

Nessa afirmação de um dos maiores matemáticos dos séculos XIX e XX, constatamos o eco das propostas tanto platônica como cartesiana do que compreendemos como mathesis universalis. Resultados de Gödel mostraram que o sucesso do programa de Hilbert é muito improvável, se não impossível. O debate, ao menos no terreno filosófico, continua. Temos, deve-se destacar, os que mostram como é possível aceitar a existência de contradição dentro de um sistema de pensamento, sem trivializá-lo ou torná-lo irracional, como na lógica paraconsistente – o que não deixa de refletir, ainda, a intenção de uma forma lógica, a coexistência da racionalidade com a contradição[45]. Temos, ainda, o apelo para que a filosofia reavalie a “aversão contumaz à irracionalidade” existente no mundo científico e em si própria[46]. Tais considerações sobre o período contemporâneo permitem-nos ver, ainda que superficialmente, o impacto das questões filosóficas relacionadas à lógica e à matemática, em um projeto de salvar a racionalidade e um critério seguro de conhecimento. Tendo isso em mente, voltemos ao ambiente grego e, por analogia, compreendamos o impacto de certos problemas no projeto pitagórico-platônico de alicerçar uma epistemologia e uma ontologia em bases matemáticas.

Crise nas matemáticas

Os testemunhos de Arquitas[47], Platão[48] e Aristóteles[49] parecem concordar sobre o fato de que a preocupação fundamental, e a matriz da pesquisa dos pitagóricos, é a música, no sentido da investigação da natureza do som e dos princípios que subjazem à produção dos acordes[50]. A vida de Pitágoras, de Jâmblico, está repleta de referências a esse interesse de Pitágoras. Deve ter sido exatamente essa experimentação musical a sugerir aos pitagóricos que são as relações (lógoi) numéricas simples que determinam a harmonia dos acordes. A passagem da harmonia musical à geometria é quase obrigatória: serão as mesmas relações a reger as proporções das figuras geométricas. Da mesma forma que os acordes musicais podem ser reproduzidos em instrumentos e escalas diferentes, obtendo-se a mesma harmonia e agradando ao ouvido, assim, as formas dos corpos geométricos que obedecem a relações numéricas simples geram um efeito harmônico semelhante na vista e podem ser reproduzidas[51]. Por isso, provavelmente, o grande interesse de Pitágoras pelos triângulos, especialmente aqueles casos particulares de triângulos retângulos cujos lados mediam 3, 4 e 5: é, aqui, que nasceria a primeira formulação de lógos, de razão, de proporção: todos os triângulos (de qualquer tamanho) que tivessem a relação (o lógos) 3-4-5 seriam iguais.

É necessária, aqui, uma observação terminológica com relação à utilização do termo lógos, no sentido de proporção, de razão geométrica. O termo é utilizado na expressão tôn autôn lógon ékhein, isto é, “ter a mesma proporção”. Como bem sabemos, lógos significa, fundamentalmente, palavra, mas uma palavra diferente do épos, que se quer representado na fala, a realidade. O lógos é a palavra (ou um conjunto discursivo de palavras) penetrante, que aponta para a tentativa de expressão da natureza da coisa. Nesse sentido, conhecer o lógos, a proporção do triângulo 3-4-5, é compreender sua razão, seu sentido mais profundo[52]. Mas, com a descoberta das proporções, ocorreu a descoberta da incomensurabilidade: se a simples relação entre a diagonal e o lado de um quadrado não pode ser expressa por um conjunto de números inteiros, então, o número inteiro e indivisível não pode ser considerado como o arkhé da realidade (Met., 983a15).

A crise é, portanto, uma crise que se instaura entre os números (que, até Aristóteles, são considerados monadikói, inteiros, indivisíveis, não sendo possível pensá-los diferentemente) e os lógoi, as proporções. O ponto de partida não discutido é a proposição pitagórica de que “a mônada é indivisível”, o que de fato corresponde a um Axioma de Peano: “1 não é sucessor de nenhum número”. Isso significa que o número 1 não tem predecessor e, portanto, é a arkhé absoluta, é o início de tudo[53]. Não há, também, número menor do que 1, e, portanto, 1 é indivisível[54]. A aritmética pitagórica assume a contradição conscientemente e encontra – aparentemente – uma solução: aquela de separar números (aríthmoi) de lógoi, afirmando estes últimos não serem números, e, sim, pares ordenados de números, díades (dyás) finitas. Apesar de Aristóteles se distinguir dos pitagóricos, na medida em que estes insistiam que as unidades têm extensão espacial, confundindo a unidade aritmética e o ponto geométrico (Met. 1080b16-20)[55], é de Aristóteles a melhor definição do que foi a solução pitagórica: “Os lógoi não são definidos como números, e sim como relações numéricas e afecções do número” (Met. 1021a 8-9). Poderíamos dizer que “a matemática científica e com ela a filosofia recorreram ao ostracismo”[56]. Entre outras palavras, aquelas de Imre Toth:

Os pitagóricos perceberam a intolerabilidade desta contradição lógica entre as duas proporções axiomáticas e (…) Platão compartilhava plenamente essa opinião. O monstro lógico do folclore matemático, o número fracionário, foi expulso da teoria superior dos números. Entretanto o povo vivia feliz nessa desprezível promiscuidade lógica, e, sem preocupar-se com nada, continuava a fazer cálculos com números fracionários: pela simples razão de que, com toda maravilha, a presumida intolerável contradição lógica não levava a nenhum erro no curso dos cálculos, enquanto as teorias dos savants, logicamente imaculadas, só podiam tornar insuportavelmente difíceis esses cálculos. De sua parte o povo achava as aflições lógicas de consciência dos pitagóricos – com as quais tornavam deliberadamente difícil a vida – não só inúteis, mas, sobretudo, extremamente “ridículas”.[57]

Como demonstra a comédia aristofânica, satirizando posições filosóficas, o povo continuava a usar proporções e frações para calcular o preço do pão e outras trivialidades (Aves, versos 903-1020; Nuvens, versos 607-620). No entanto, não é só o povo, pois os próprios matemáticos, em determinados momentos de crise, ignoram os problemas ligados aos fundamentos. Por meio da seguinte afirmação, feita pelo genial Paul Cohen, comentando o comportamento dos matemáticos, em função da “crise dos fundamentos” na virada do século, podemos constatar que as questões radicais de teor metafísico sobre a natureza da matemática e sua relação com o conhecimento humano não parecem extrapolar, seja na Antiguidade, seja hoje, o espaço da “Academia”, e mesmo dentro dela encontram uma solução que consiga passar entre Cila e Caríbdis:

A posição realista [isto é, platonista] é a que a maior parte dos matemáticos gostariam de adotar. Somente quando se torna consciente de algumas das dificuldades da teoria dos conjuntos é que o matemático começa a questioná-la. Se estas dificuldades o inquietam particularmente, ele correrá para o abrigo do formalismo [grosso modo, este afirma que a matemática é uma combinação de símbolos sem sentido e que, portanto, seus enunciados não podem ser verdadeiros ou falsos, pois não se referem a coisa alguma no mundo] enquanto que sua posição normal será em algum ponto entre as duas, tentando desfrutar o melhor dos dois mundos.[58]

Retornando ao contexto da matemáticas na Grécia, observemos que se a crise aritmética é gerada e, de alguma forma, “resolvida” no interior do movimento pitagórico, a crise da geometria, que é uma crise de sua fundamentação axiomática, parece ser toda acadêmica, isto é, interior à escola de Platão. Ao que sabemos, pelo próprio Aristóteles, o tema da fundamentação axiomática da geometria era discutido com vivacidade na Academia[59]. O que os acadêmicos percebem é que muitas das proposições fundamentais da geometria são utilizadas como se fossem teoremas demonstrados, sem, todavia, terem sido demonstrados. A essa situação é aplicada uma metodologia de demonstração, já utilizada em muitas outras questões filosóficas: a via da negação, da contradição, já apontada no Parmênides (136a) da seguinte forma: “Não deves considerar as consequências que emergem da hipótese de que cada coisa exista, mas deves também supor que essa mesma coisa não exista”. Assim, os filósofos-geômetras da Academia exploram o campo dos axiomas e de suas consequências, para tentar provar a verdade deles. No entanto, eles tropeçam, com o método negativo, exatamente, naquilo que não queriam encontrar, que queriam refutar: uma geometria oposta, “onde as paralelas se encontram, as diagonais são comensuráveis e as retas curvas”[60]. Claramente, Platão oporá um “outro método” (álle méthodos), para alcançar aquilo que cada coisa “é” (hò estín), e tal método está além daquele da geometria e áreas que decorrem dela, as quais, quanto à apreensão do “ser” (tò ón), têm apenas “sonhos” (República 533b8), pois não conseguem chegar a alguma demonstração de que sejam verdadeiras as hipóteses de que partem – nas demonstrações geométricas, pode-se ter uma cadeia coerente de consequências a partir de uma premissa falsa (Crátilo 436c-438d).

Resposta de Platão

A essas crises Platão, e depois Aristóteles, antes de Euclides, respondem como filósofos. Eles vislumbram, na explicação metafísica, a possibilidade de resolver o irracional e o incomensurável, fundamentando, para além da matemática e da geometria, seus postulados. Partamos de um conhecimento geral da estrutura da epistemologia e ontologia platônicas – tanto do “raciocínio a partir das ciências” (lógos ek tôn epistemôn), pelo qual toda ciência tem como seu objeto um objeto único e idêntico, como a própria Teoria da Ideias. Segundo esta última, o objeto do conhecimento verdadeiro, da ciência, não pode ser particular, sensível (todos os quadrados que existem, todos os sons que existem), pois, dessa forma, seria um objeto móvel (pois a realidade é móvel). Portanto, objeto da ciência poderão ser somente outras realidades, isto é, as idéias desses mesmos objetos, pois elas sim são imutáveis[61]. “Pois das coisas que são sujeitas a perene fluxo não há ciência” – dirá, também, ainda que em outro contexto, Aristóteles (Met. 1078 b 17). Com relação à geometria, no fr. 3 do De ideis, diz: “Se a geometria não é ciência deste determinado igual e desse determinado comensurável, mas do que é simplesmente igual e do que é simplesmente comensurável, então haverá o igual em si e o comensurável em si: e estas são as Ideias”[62].

As ciências matemáticas, portanto, têm como objeto realidades imóveis, idênticas a si mesmas, não sensíveis. Surge, naturalmente, uma pergunta, a essa altura: Isso significa que esses objetos da matemática são Ideias? Isto é, pertenceriam ao mundo inteligível? Platão responde que não. E responde num dos lugares centrais de seu pensamento, que é o Livro VI da República. A resposta constrói-se com uma famosa metáfora, a “metáfora da linha”: Sócrates, para explicar para Glauco a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível, convida-o a “dividir uma linha (grammèn) em duas partes desiguais (ánisos)” – trabalho de geômetra, portanto – e a dividi-la novamente em duas, “segundo a mesma proporção (tòn autòn lógon)”[63]. A linha é uma linha plasticamente epistemológica, que distingue, tanto na parte do inteligível (nooménou) como na parte do visível (oroménou), “imagens” e “modelos destas imagens” a serem apreendidos. Frente à dificuldade de compreensão que Glauco expressa (oukh hikanôs émathon), Sócrates desenvolve uma das páginas mais lúcidas de Platão sobre a epistemologia da matemática de seu tempo:

Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria (geometrias), da aritmética (logismoùs) e de coisas deste tipo (pragmateuómenoi) supõem (hypotémenoi) o par e o ímpar, as figuras, três espécies (eíde) de ângulos, e outras irmãs destas, segundo o método (méthodon) de cada uma. Essas coisas dão-nas por sabidas (eidótes) e fazendo-as como hipóteses (hypothéseis), nenhuma palavra (lógon), nem a si nem aos outros consideram mais necessário prestar conta, como se fossem evidentes (phanerôn) a todos; e partindo destas e passando ao que resta, caminhando coerentemente atingem ao que tinham se proposto a alcançar (República 510 c2-d2).[64]

Da mesma forma, os geômetras:

Servem-se de figuras visíveis (oroménois eidesi) e fazem raciocínios (lógous) sobre elas, pensando (dianooúmenoi) não nelas, mas naquilo com que se parecem (éoike), raciocinam com respeito ao quadrado mesmo e à diagonal mesma, mas não ao quadrado, à diagonal, ou aquela que desenham, e semelhantemente quanto às outra figuras. Estas mesmas que estão fazendo ou desenhando, das quais há sombras e imagens na água, eles usam agora como imagens, buscando ver aquilo mesmo que alguém não pode ver exceto pelo pensamento (diánoia) (República 510d4-511a1).

Glauco, finalmente, compreende. Sócrates está se referindo “à geometria e às artes (tékhnai) afins a ela” (511b 3-8), não à dialética das ideias, ciência suprema. De fato, Sócrates confirma a distinção entre a parte superior da linha (a potência heurística da filosofia) e aquela das ciências matemáticas:

Aprende então o que quero dizer com a outra parte do inteligível, aquela que o raciocínio mesmo atinge com o poder da dialética (dialégesthai), fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses mesmo – um tipo de acesso, de apoio, para chegar ao não hipotético (anupothétou), ao que é princípio de tudo. Alcançado isso, retorna, atendo-se a cada resultado, de tal modo que desça até a conclusão, sem fazer uso de nada visível, movendo-se das ideias (eídesin) umas às outras, terminando na ideia (eide) (República 511 b3– c1).

Assim, a matemática, no interior da metáfora da linha, é ciência, e uma ciência que está na linha na metade do caminho (metaxú) entre o mundo sensível (pístis, crença e eikasía, conjetura) e o mundo inteligível. Mas, a bem ver, é ciência apenas analogamente à ciência mesma, à dialética (dialetikè méthodos), aquela que diz respeito às ideias, destruindo as hipóteses e arrastando, aos poucos, os olhos da alma do lodo bárbaro (borbóro barbarikó)[65] em que ela se encontra. Tanto que Platão faz Sócrates afirmar que, relativamente à matemática e à geometria: “Sobretudo por costume (éthos) as chamamos com frequência de ciências, (epistéme), mas é necessária outra denominação, mais clara que opinião e mais obscura que ciência: nesse sentido antes a definimos como entendimento (diánoia)” (República 533 d1). Algo que seja “metade do caminho entre opinião e intelecto” (hós metaxú tes doxés te kaì nou tén diánoian) (República 511d). Diánoia, ou seja, conhecimento mediado.

Especialmente na geometria, Platão entrevê uma profunda ambiguidade ou, melhor, duplicidade, que é, ao mesmo tempo, seu ponto de força: sua irresistível aproximação ao sensível, sua contaminação com as imagens reais, permite-lhe ser ponte entre o inteligível e o sensível. Assim, a matemática torna-se, epistemologicamente, uma “terra de meio” lugar mediano, necessário de ser atravessado no caminho das Ideias, das verdades não hipotéticas. Ecoa, aqui, o frontão da Academia “Quem não é geômetra não entre!”. A geometria é a porta, a conexão, entre os dois mundos.

Conexão que se expressa na metodologia do caminho desenhado pela linha: das hipóteses até os princípios primeiros, e vice-versa. Em um caminho ascendente e descendente, que é típico da epistemologia platônica (no Banquete, a erótica é esse caminho de mão dupla, embora seja, muitas vezes, muito mal interpretada, sendo apenas lida na visão de uma ascese, de uma ascensão em direção à alma, um abandono do corpo). No caso da ciência matemática, ela é o caminho, não a meta, pois seus pressupostos não são demonstrados, e, sim, remetem para um caminho ulterior, até sua fundamentação na plenitude das ideias. É nesse sentido que a matemática procede analogicamente: síntese dos dois mundos, as verdades matemáticas e geométricas são capazes de representar todo o ser, mas apenas em chave analógica. Pois é no ser inteligível que elas encontram, ainda, seu fundamento último.

Conclusão

Consideramos pertinente fazer duas observações finais. A primeira diz respeito a como Aristóteles compreende a solução de Platão. Não podemos nos dedicar à solução aristotélica da mesma crise por óbvios motivos de economia do texto. A reclamação dele, na Metafísica (992a33-b1), dirigida contra “os filósofos de agora, para os quais as matemáticas tornaram-se filosofia”, refere-se, claramente, a Platão e à Academia. O erro de Platão seria aquele de ter considerado a matemática como parte integrante e indistinta da metodologia da ontologia: a crítica de Aristóteles é dirigida à “linha” e sua continuidade, portanto. Para Aristóteles, é inconcebível que o objeto da matemática seja algo “fora do sensível”: a metafisicização da matemática é o seu problema. O objeto de matemática (figura e número) está dentro da realidade, não fora dela, aproximando, sob certos aspectos, sua posição àquela dos pitagóricos[66].

Uma segunda e última observação diz respeito à expressão “platonismo”, utilizada na filosofia contemporânea da matemática para indicar, grosso modo, a crença de que objetos matemáticos existem independentemente de nós e que, com eles, não temos nenhuma interação causal; podemos descobri-los, mas não criá-los. Um importante registro do termo aparece em uma conferência de Paul Bernays, de 1934[67]. Ao tratar da axiomatização da geometria por Hilbert, comparando-a à de Euclides, Bernays destaca que, enquanto o segundo fala da “construção” de figuras, o primeiro assume a existência delas, mostrando “uma tendência de ver os objetos como desvinculados de qualquer ligação com o sujeito pensante”, à qual Bernays chama de platonismo[68]. Embora o termo tenha surgido aqui, a tendência era mais antiga, como vemos pelo que dizia Russell num ensaio de juventude (1901, na revista Mind): “A aritmética deve ser descoberta exatamente no mesmo sentido em que Colombo descobriu os índios do Oeste, e nós não criamos os números, como ele não criou os índios…”[69]. Nossa observação diz respeito ao fato de Platão ser não “platonista”, nesse sentido acima descrito. Acreditamos que o platonismo descreva, somente de forma limitada, a “filosofia da matemática” de Platão, que tem objetivos e ambições bem maiores: aqueles de fundamentar a matemática no interior de um caminho epistemológico que permita a esta chegar ao princípio de toda a realidade. Ambições epistemológicas, portanto, mais do que simples afirmações ontológicas. A matemática e a geometria são portas e, como tais, abrem-se e fecham sobre a verdade e seus possíveis caminhos dialéticos.

Autores: Gabriele Cornelli e Maria Cecília de Miranda N. Coelho

Fonte: Kriterion – Revista de Filosofia

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Notas

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada por Gabriele Cornelli no Seminário “Filosofia, cultura e complexidade”, organizado pela Cátedra Charles Morazé, da Universidade de Brasília, em setembro de 2006, sob a coordenação do Prof. Dr. Wilton Barroso Filho.

2 Socráticas: poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17.

3 MORESCHI, Bruno. Professor, cadê você? Carta Capital, n. 411, p. 6, set. 2006.

4 Idem, p. 6. Menos pretensioso, mas não menos ambicioso, lembremos como um dos líderes mundiais, na pesquisa em geometria algébrica, e representante do chamado “Novo neoplatonismo”, Igor R. Shafarevich, concluiu uma conferência sobre matemática e religião na academia de Göttingen: “Desejo exprimir a esperança de que… a matemática possa servir agora como modelo para a solução de muitos problemas de nossa época: revelar um objetivo religioso supremo e avaliar o significado da atividade espiritual da humanidade” (apud DAVIS, Phillip J.; HERSH, Reuben. A experiência matemática. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. p. 82).

5 Cf. LLOYD, Geoffrey. La curiositá nei mondi antichi: Grecia e Cina. Roma: Donzelli, 2003. p. 55.

6 GALILEI, Galileu. Il Saggiatore. Milano: Feltrenelli, 1965. § 6.

7 O termo é sempre associado a ele e aparece nas Regras para a direção do espírito, mas já havia sido usado antes por Erhard Weigel, professor de Leibniz. Sobre a história do conceito, ver: DUMONCEL, Jean C. La tradition de la mathesis universalis: Platon, Leibniz, Russell. Paris: Unebévue, 2002. Ver, também, o detalhado e cuidadoso artigo de: PATY, Michael. Mathesis universalis e inteligibilidade em Descartes. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 8, 1998, p. 9-57.

8 GALILEI, Galileu. Duas novas ciências. 2. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Nova Stella / Istituto Italiano di Cultura/Mast, 1987. Alguns aspectos da nova abordagem galileana são desenvolvidos em: COELHO, Maria Cecília M. Nogueira. Matemática e lógica em Galileu. Anais… Brasília: Ed. UnB, 1992. p. 265-291. Y

9 Cf. ARISTÓTELES. Física II, 2; IV, 7-8.

10 Sobre o tema, veja: REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Nessa obra, o autor defende que o atomismo de Galileu era um problema mais grave para a igreja do que sua defesa (realista) do heliocentrismo.

11 VLASTOS, Gregory. O universo de Platão. Brasília: Ed. UnB, 1987. p. 47et seq.

12 De generatione et corruptione, 315b28et seq.

13 Timeu 58d. PLATONE. Opere complete com il texto greco. A cura di G. Iannotta, A. Manchi, D. Papitto. Itinerari di navigazione a cura di G. Giannantoni. Roma: 1999. CD-ROM.

14 Timeu 54c. Ao quinto sólido regular (o dodecaedro), Platão faz corresponder o universo, Timeu 55c; vemos, aqui, a importância do pressuposto metafísico de uma simetria universal, na formulação de teorias cosmológicas e cosmogônicas. Sobre a importância desse conceito de simetria no pensamento racional, veja: WEYL, Hermann. Symmetry. Princeton: Princeton U.P., 1980.

15 KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. In: Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 152-172. Sobre a questão dos modelos da astronomia (uma das matemáticas) veja: DUHEM, P. Salvar os fenômenos – ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Suplemento 3, 1984. Y

16 Ageometrètos mèdeis eisito. A referência é datada posteriormente, nos escritos de João Filopono e de Olympiodoro, neoplatônicos, que viveram no século VI d. C.; e por João Tzetzes, autor bizantino do século XII (Chiliades, 8, 972). Cf. SAFFREY, Henry. Ageômetrètos mèdeis eisitô: une inscription légendaire. Revue des Études Grecques, n. 81, p. 67-87, 1968.

17 Utilizamos a expressão “método científico”, mesmo sabendo das discussões sobre a possibilidade de anacronismo, dadas as diferenças de abordagem entre a ciência moderna e o que seria a ciência helênica.

18 Máthemata, Leis 817e, no plural designa as ciências matemáticas. Podemos encontrar, com base em um comentário de Aulo Gélio (Noites áticas, I, 9), uma diferenciação entre os discípulos da escola pitagórica nas qualidades de acusmáticos e de matemáticos, referindo-se, respectivamente, a uma fase em que escutavam e a outra em que perguntavam e exprimiam o que haviam sentido. A última fase seria quando consideravam os princípios da natureza, e eram chamados físicos. Cf. ZHMUD, Lonid. Mathematici and akousmatici in the pythagorean school. In: BOUDOURIS, K. I. Pythagorean philosophy. Athens: Ionia, 1992.

19 República 523a-525b. Aristóteles também usará o termo mathematikai (Met. 981B24). ARISTÓTELES. Metafísica. Ed. trilíngue por V. G. Yebra. Madrid: Gredos, 1982.

20 PROCLUS. In primum Euclidis elementorum librum, 64. Leipzig: Ed. G. Friedlein, 1873.

21 BOYER, Charles. História da matemática. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1974, p. 63. No entanto, é o próprio Boyer que defende Platão como criador do chamado método analítico e autor da fórmula para triplas pitagóricas (cf. Boyer, idem, p. 64 e 65). Quanto aos matemáticos do círculo de Platão, Boyer identifica Teodoro, Teeteto, Eudoxo e Menéxeno. Uma das razões para termos utilizado o livro de Boyer, neste artigo, foi a difusão deste texto no ambiente universitário brasileiro. A precisão matemática é assegurada pela tradução da Professora Elza Gomide. Quanto à acuidade em apresentar as questões da história da matemática, ainda que o texto de Boyer não tenha o mesmo grau de detalhamento que os de Thomas Heath, por exemplo, pensamos que trata-se de um manual confiável.

22 A mesma questão aparece no Teeteto 196a, na República 525d-506b, no Gorgias 451b e no Sofista 245b.

23 Ver República 510 d-e, 507a-c; Sofista 238a.

24 Sobre a utilização desta terminologia, sabemos que pode ser um anacronismo. Notemos, porém, como está imbricado o debate hodierno e a tradição platônica por meio do comentário de uma expoente filósofa da matemática contemporânea “Plato originated the most dramatic version of realism about universals and his spetacular theory of forms… contemporary thinkers have proposed a more modern argument, modern in the sense that it partakes ot the “naturalizing” tendency… The moral for the defender of universals is clear: to show that there are universals, don’t try to give a pre-scientific philosophical argument; just show that our best scientific theory cannot do without them”. MADDY, Penelope. Realism in Mathematics. Oxford: Clarendon, 1990. p. 12-13. Penelope esta mais interessada em bloquear uma desanalogia metafísica e epistemológica entre a matemática e as ciências naturais do que em manter um realismo estrito em relação a elas. Anteriormente uma defensora do realismo naturalizado, a autora é, atualmente, uma das importantes defensoras da posição naturalista Cf. Naturalism in Mathematics Oxford: Clarendon, 1997. Y

25 Review of Metaphysics, n. 4, p. 395-425, 1951.

26 Sankt Augustin: Academia Verlag, 1995.

27 Protreptico 5. Cf. ARISTÓTELES. Metafìsica 996a 29- 36.

28 CAMBIANO, Giuseppe. Figura e numero. In: VEGETTI, M. Introduzione alle culture antiche II: il sapere degli antichi. Torino: Bollati Boringhieri, 1992, p. 83. Confira, também, a avaliação negativa com relação a estas tradições da origem oriental da matemática grega em SALAS, Omar Daniel Alvarez. Pitágoras y los Orígenes de la Matemática Griega. México: Universidad Nacional Autonoma de México, 1996, p. 66et seq. Y

29 11 A 20 DK.

30 Cf. SALAS, op. cit., p. 82. O termo analogia aparecerá em Platão (República 534a6) indicando igualdade de relações entre formas de conhecimento e também, ao lado de symmetría, indicando como as coisas foram colocadas de maneira comensurável e proporcional (Timeu 69b3).

31 Lembremos do frag. 11 de Filolau, que diz serem a falsidade e a inveja da mesma natureza do infinito e do absurdo.

32 BOYER, op. cit., p. 47. O autor identifica como matemáticos desse período: Árquitas de Tarento, Hipaso de Metaponto, Demócrito de Abdera, Hípias de Élis, Hipócrates de Quios, Anaxágoras de Clazômenas e Zenão de Eléia.

33 Sobre o uso dos termos “matemática” e “filosofia”, veja: 58 B 15 DK; DL, 1, 12 e Fédon 62c; 69e. É interessante lembrar como esse sentido mais amplo permanece, sendo encontrado, por exemplo, nos próprios títulos atribuídos à obra de Sexto Empírico. SEXTUS EMPIRICUS. Adversus mathematicus. Trad. de R. G. Burry. London: Heinemann, 1933-1949.

34 In Pr. Eucli, 65.

35 58 B 18 DK.

36 58 A 36-37 DK.

37 Sobre a expressão de Rey, cf. CAMBIANO, op. cit., p. 86.

38 Cf. os testemunhos A12 e A14, como também: ARISTÓTELES, Met. 1092B8. Mais detalhes, ver: CORNELLI, Gabriele. As origens pitagóricas do método filosófico: o uso das archai como princípios metodológicos em Filolau. Hypnos, n. 11, p. 71-83, 2003.

39 Cf., nesse sentido, o restante do sumário de Eudemo, presente em PROCLO, In Pr. Eucl. II, 64. Ver, também, o artigo clássico de OWEN, George E. L. Zeno and the mathematicians. Proceedings of the Aristotelian Society, p. 199-222, 1958.

40 BOYER, op. cit., p. 53. O problema só foi resolvido no século XIX, quando se demonstrou a impossibilidade de se fazer a duplicação do cubo com régua e compasso.

41 Teeteto 147 d 4;An. Post. 1, 10, 3. O termo “irracional” é utilizado, habitualmente, nesse contexto; lembremos que ratio, palavra latina, também carrega esse sentido, ligado mais diretamente à matemática – o conceito de razão como comparação entre dois segmentos –, bem como o conceito, mais geral, de faculdade de conhecer (o conhecimento, por sua vez, não deixa de ser um processo comparativo).

42 18A4DK. O tema é discutido, de maneira particularmente interessante, por Nussbaum, ao inseri-lo no debate sobre uma ciência da medida no campo ético. Cf. The Protagoras: a science of practical reasoning. In: NUSSBAUM, Martha Craven. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 89et seq.

43 AABOE, Asger. Episódios da história antiga da matemática. Rio de Janeiro: Ed. SBM, 1984. p. 54.

44 HILBERT, D. On the infinity. In: BENACERRAF, Paul; PUTNAM, Hillary. Philosophy of mathematics. Cambridge: C. U. P., 1983. p. 183-221, p. 184, 191.

45 Para o principal criador da lógica paraconsistente, o filósofo brasileiro Newton da Costa, “Desde Heráclito, passando por Hegel, Marx e Lênin, e, em nossos dias, por Wittgenstein, tem havido filósofos admitindo que a contradição pode ser aceita em teorias e contextos racionais que expressam conhecimento legítimo. Wittgenstein afirmou: “se uma contradição fosse efetivamente agora descoberta na aritmética “isso provaria apenas que uma aritmética, com essa contradição, poderia prestar serviços muito bons”. Para alguns pensadores, a existência de contradição é, aliás, característica básica de toda teoria que traduza qualquer porção não muito restrita da realidade. No entanto, até há alguns poucos anos, filósofo algum tratou de desenvolver sistemas lógicos paraconsistentes que se destinassem a justificar ou tornar plausíveis suas ideias “o que não deixa de ser surpreendente” (COSTA, Newton Carneiro Affonso da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 2. ed. São Paulo: HUCITEC/Ed. USP, 1994. p. 147-148).

46 GRANGER, Gilles Gaston. O irracional. São Paulo: Ed. UNESP, 2002. Nesse instigante livro, o autor busca, também, uma tentativa de compreender a irracionalidade como uma força criativa importante ao desenvolvimento do pensamento.

47 47 B 1 DK.

48 República 530c-31d.

49 Política VIII, 5, 1341b-42a.

50 JÂMBLICO, Vida, p. 64-65 e p. 68-69. Sobre os sentidos mais amplos do termo “harmonia” e algumas análises de suas ocorrências na literatura, ver: CORREA, Paula da Cunha. Harmonia, mito e música na Grécia antiga. São Paulo: Humanitas, 2003.

51 Cf. SALAS, op. cit., p. 104.

52 Ver nota 31.

53 Cf. CATTANEI, Elisabetta. Enti matematici e metafisica: Platone, l’Accademia e Aristotele a confronto. Milano: Vita e Pensiero, 1996. p. 220.

54 Essa concepção, grávida de consequências para a matemática, não é, obviamente, alheia a sentidos políticos: o 1 constituiu-se desde sempre como um limite intransponível, uma entidade indivisível, atrás da qual não havia antecedentes. Até isso podia se revestir de valências políticas: “Um é para mim dez mil, desde que aristós“, afirmava Heráclito (22 B 49a DK). Cf. CAMBIANO, op. cit., p. 87. Ver, num outro sentido político, o fr. 3 de Arquitas.

55 Aristóteles define monás como substância sem posição, ao contrário de ponto (stígme), substância com posição (Anal. Post., I, 87a).

56 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 222.

57 Apud CATTANEI, op. cit., p. 222.

58 Citado por DAVIS, op. cit., p. 362. Sobre as reflexões acerca da matemática (por filósofos e matemáticos) e o trabalho dos matemáticos, veja, especialmente: SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics: the philosophy of mathematics. Oxford: O.U.P., 2000.

59 Para uma discussão mais detalhada sobre o problema de uma fundamentação axiomática, veja: SCHOLZ, Hans. A axiomática dos antigos. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 1, p. 5-20, 1980.

60 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 226.

61 República 507b-c; 596a-b.

62 Cf. CATTANEI, op. cit., p. 245, nota 98.

63 República 509d-e.

64 As citações são apoiadas na tradução de M. Helena R. Pereira; porém, modificadas por nós em alguns trechos. Cf. PLATÃO. República. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1987.

65 O termo aparece, também, no Fédon (69d), indicando o lugar dos que não se purificaram por meio de uma iniciação, ao filosofar corretamente (pephilosophekótes orthôs).

66 Met. 987 b 10-14.

67 Publicado posteriormente. BERNAYS, Paul. Sur le platonisme dans le mathématique. Le Enseignemant Mathematique, v. 34, p. 52-69, 1935.

68 BERNAYS,ibidem, p. 53. Lembremos que há várias variantes do platonismo. Uma das abordagens mais heterodoxas pode ser encontrada em: BALAGUER, Mark. Platonism and anti-platonism in mathematics. Oxford: Oxford Universtity Press, 2001.

69 CATTANEI, op. cit., p. 286, nota 294.

A Temperança e o Protrepticus de Aristóteles

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O intuito desse breve trabalho é relacionar a virtude da temperança com o Protrepticus de Aristóteles, obra cujo conteúdo trata-se de uma exortação à filosofia, feita para um certo Themison, que ao que tudo indica, seria um rei numa cidade do Chipre. Logo no início do texto, Aristóteles mostrará ao rei por que a filosofia é a realização natural do homem e o maior dos bens, e durante os primeiros capítulos dá as razões por que ela deve ser procurada. Pretendo mostrar como a temperança, ou sophrosyne, é de suma importância para aquilo que Aristóteles tem em mente: mostrar a constituição do homem e da natureza para assim convencer ao rei as razões do filosofar. Vou me apoiar principalmente nos primeiros capítulos do Protrepticus, o Cármides de Platão e também me guiarei por autores que esclareçam o conceito de sophrosyne nos filósofos gregos.

Sophrosyne

A sophrosyne é o assunto do diálogo Cármides, de Platão, e ela geralmente é traduzida como temperança ou moderação[1]. A etimologia da palavra sophrosyne apresenta os seguintes elementos:

  • saos ou sos – são, salvo, em boa saúde;
  • phron/phren – coração, espírito;
  • syne, sufixo que indica qualidade.

No Cármides nenhuma definição precisa é dada, segundo o dicionário de termos filosóficos de F.E.Peters, mas o que Platão tem em mente ao falar de sophrosyne é o conceito pitagórico de harmonia e também as palavras de Heráclito no fragmento 112, onde ele diz que: “Sophrosyne é a maior das virtudes, e sabedoria é falar e agir na verdade, fazendo jus a natureza das coisas”. Nesse diálogo, Sócrates diz ser a moderação ou temperança, um grande bem e verdadeira fonte de felicidade. Podemos dizer que o conceito de sophrosyne é um modo de agir e de pensar, um modo de entender os limites, um modo de se relacionar com a natureza das coisas. O contrário da sophrosyne é a hybris, o excesso, a falta de medida.

Apesar de o conceito de sophrosyne apresentar concepções populares, práticas, religiosas, políticas dentre outras, vamos nos ater a dois aspectos principais. Na introdução da edição portuguesa do Cármides feita por Francisco de Oliveira, ao enumerar esses diferentes aspectos, ele diz acerca da sophrosyne encarada sob o aspecto do autoconhecimento: “ …este plano é primordial na estrutura do Cármides e no diálogo aporético, devendo situar-se no âmbito mais vasto da identificação de virtude e conhecimento e da unificação das virtudes”. Mais à frente faremos o paralelo disso com o Protrepticus. Há também o aspecto ético ou prático da sophrosyne, que é a prática do bem ou a prática da virtude, em oposição aos prazeres[2].

Aqui portanto, já podemos vislumbrar algo acerca dessa relação, já que o conselho que Aristóteles dá ao rei no primeiro capítulo do Protrepticus e suas justificações nos primeiros capítulos a respeito da hierarquia da natureza, com a razão no topo dessa hierarquia, mostrarão em que sentido o filósofo vai se relacionar ou vai se apoiar na sophrosyne para atingir a vida feliz. Sendo a razão aquela que deve imperar sobre todas as outras partes, tanto em Platão como em Aristóteles, o Protrepticus deixa claro qual a maneira do filósofo agir para atingir a vida feliz.

Necessário se ater por instantes as noções de Platão e Aristóteles das partes do homem. Em Platão, há uma divisão da alma em três partes, a racional, a irascível e a concupiscente; a alma bem ordenada, aquela alma que tem harmonia entre as partes, é a alma cuja parte racional domina as outras duas. Em Aristóteles, como veremos, isso se dá numa divisão tripartida também, há uma parte vegetativa, uma sensitiva e uma parte racional. Aquele que deseja iniciar na filosofia deverá por meio da temperança estabelecer o que é melhor para si e para os outros, segundo a ordem natural, esta portanto o levará da pratica rumo a sabedoria.

Por fim, devo dizer que a virtude da temperança ou da justiça em Aristóteles estão relacionadas com a ética. A parte sensitiva do homem, que estaria acima da parte vegetativa e abaixo da parte racional, é aquela que controla as paixões, por meio do intelecto ou dianóesis, ela busca encontrar a justa medida na prática dessas virtudes.

O Protrepticus

O primeiro capítulo do Protrepticus Aristóteles diz a Themison que aquele que tem muito dinheiro, está mais apto a filosofar, pois tem mais tempo para estudar. Porém, sem sabedoria, esse acúmulo de bens intelectuais só produziria loucura: “…a felicidade não consiste em adquirir muitas coisas, mas sim na maneira pela qual a alma é disposta.” Para o homem cuja alma está em desarmonia, está mal disposta, a riqueza, a força, a beleza não podem ser bens, essas pelo contrário, são nocivas frente a essa desarmonia. Aqui como no Cármides, há uma preocupação com a sanidade do espírito, o são de espírito pode esperar usufruir dos bens do mundo com a devida moderação e harmoniosamente, mas aqueles cuja alma é destemperada, só podem aguardar um fim trágico, já que a falta de temperança aliada a tais bens, só levariam tal homem a cometer a hybris, a loucura como aquela retratada na peça de Ésquilo, Os Persas, onde Xerxes age em oposição ao comportamento moderado.

Estabelecido portanto esse primeiro passo, que a alma desordenada não poderá usufruir de modo correto os bens, Aristóteles inicia uma explicação acerca da constituição das coisas, a ordem na qual o homem e consequentemente sua razão está inserida, e mostra de que maneira a filosofia é a realização natural dos homens. Vamos tentar acompanhar esses passos.

Aristóteles explica que entre as coisas, algumas são engendradas por um pensamento e por uma arte, enquanto outras são engendradas pela natureza. Algumas porém são engendradas pelo acaso, e nesse caso, não pode haver finalidade, e portanto não pode haver realização. Tudo que é engendrado segundo a arte e a natureza é engendrado segundo um objetivo, e esta é sua melhor realização. Na natureza, Aristóteles dá o exemplo da gênese das coisas:

“…não é verdade que algumas sementes, em qualquer terra caiam, germinam sem proteção, ao passo que outras precisam, além disso, da arte do cultivador? Quase do mesmo modo, alguns animais dão conta, por si mesmos, de toda a sua natureza, aio passo que o homem precisa de muitas artes para a sua preservação, tanto por ocasião da gênese primeira, quanto mais tarde, durante a nutrição.”

Toda a gênese se produz com vistas a um objetivo, esse objetivo pelo qual a coisa foi engendrada é o mesmo pela qual ela deveria ser engendrada. E a natureza engendra os seres para o melhor, não para eles destruírem ou prejudicar essa ordem. Podemos ver nitidamente que o que está em foco nessas passagens é que tudo aquilo que é engendrado por uma arte ou pela natureza é feito segundo uma finalidade, e essa finalidade é aquilo pelo qual o ser foi engendrado, é o seu bem maior. A realização natural é o que se realiza por último lugar na ordem da gênese, no homem, primeiro se realiza aquilo que se refere ao corpo, e por último a alma, que é a realização do melhor. Dando sequência a esse esquema, a última parte da alma, a melhor, é a parte racional. “E realmente, se a sabedoria é, em conformidade com a natureza, nossa realização, então, de todas as coisas, exercer a sabedoria será a melhor.”

Dentro do que foi dito acerca da realização do homem, ele é engendrado segundo a natureza, mas sua constituição de corpo e alma faz com que o corpo esteja subordinado ao fim maior que é a alma, pois ela vem depois desse na ordem natural, e na alma, realizar a virtude com vistas à sabedoria. Aqui fica claro aquela tripartição da alma, estando as virtudes subordinadas ao bem maior que é a aquisição da sabedoria.

O que está sendo dito ao rei no Protrepticus é que a natureza e a arte, que a imita, trabalha segundo uma ordem, essa ordem só pode funcionar bem segundo o fim para qual a coisa foi feita, se houver harmonia entre as partes que constituem o todo. Diz Platão na República, 430e: “ A temperança é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e desejos…”. Essa ordenação é um alinhamento com a natureza das coisas, o meio mais propício de fazer bem as coisas, de se atingir o fim para o qual a coisa foi feita.

Na constituição do homem, portanto, seu fim último, o motivo para o qual ele foi engendrado é o uso da razão, mas a razão ordenada, a razão dentro de uma harmonia, pois essa razão sem a ordenação devida se transforma em loucura.

A temperança, sophrosyne, é o elemento inicial das lições ou exortações que Aristóteles está mostrando ao rei, através das virtudes como a justiça e a temperança, o rei poderá ser sábio. No primeiro capítulo ela se mostra do ponto de vista prático e ético, ao evitar a hybris, o homem pode esperar o bem para ele e para os outros, e na sequência do texto, ao mostrar como age a natureza e as artes, Aristóteles busca mostrar como essa mesma natureza se dá no homem, qual a maneira de atingir o fim último do homem, aqui ela se mostra não como virtude prática, mas sim como autoconhecimento. Esse autoconhecimento é a sabedoria[3], e essa é uma virtude intelectual, enquanto a sophrosyne é uma virtude prática. Há em Aristóteles uma divisão entre virtudes práticas e intelectuais. Mas nessa breve exposição, está além de minhas capacidades esgotar tal assunto. O fato é que uma virtude prática como a sophrosyne pode ser justificada no Protrepticus pela sua relação com a ordenação da natureza e do homem.

Dando sequência ao texto, Aristóteles dirá que: “ …somos capazes de aprender as ciências que tratam do que é justo e lucrativo…”, e que “…o anterior é sempre mais passível de conhecimento do que o posterior, e o que é melhor por natureza…”. Aqui há novas justificativas, a primeira da possibilidade de aprender as ciências do justo, ou seja, é possível o homem saber a respeito do lugar das coisas, da harmonia entre as coisas, e em segundo lugar, que o anterior tem sempre mais atributos de ser conhecido que o posterior, isso por causa da relação de causa e efeito, o posterior depende do anterior na ordem das coisas, é claro, mas o que Aristóteles quer deixar claro aqui é que será em vista à intelecção que todas as coisas deverão ser escolhidas pelo homem, pois todo o resto da hierarquia das coisas subsiste em função do melhor.

A sabedoria do filósofo será portanto a consciência dessa ordem nas coisas, a hierarquia da natureza dentro e fora dele. As leis por exemplo são um produto dessa razão e a consciência da lei a sabedoria dessa ordem, mas a atitude, o submeter-se a elas será a sophrosyne, a temperança é a prática, uma virtude prática, é se por em conformidade à ordem das coisas e o regular-se conforme a ordem natural do homem, fazendo com que a parte racional dirija as outras partes do homem. A sophrosyne, que aqui traduzo por temperança, ou moderação, é a ordenadora das virtudes, esse reconhecimento do lugar nas coisas, o entrar em harmonia com a ordem é também uma atitude de humildade, onde o homem sabe o seu lugar e não ousa se por acima daquilo que deve, a virtude da justiça também se assemelha à temperança, já que a justiça, segundo W.K.C. Guthrie é ocupar-se de seus próprios assuntos, cada um fazendo o que deve ser feito e segundo o modo como deve ser feito. Eis aqui portanto novamente a noção de ordem, de harmonia, ser temperante é estar não só consciente dessa ordem mas agir segundo essa ordem.

É interessante que alguns dizem ser a temperança a maior das virtudes, a que ordena todas as outras virtudes. O homem temperante é o homem são, aquele que sabe a ordem de importância das coisas.

Considerações finais

A temperança, virtude que mostra ao homem o seu lugar e o faz agir segundo aquilo que se deve fazer, ou nas palavras de Sócrates no Cármides, “…é saber o que se sabe e o que se não sabe.”, está presente no Protrepticus de Aristóteles nos conselhos que esse dá ao rei. Ao mostrar a hierarquia das coisas da natureza e do homem, Aristóteles estabelece uma harmonia oriunda da estrutura das coisas mesmas, segundo Hilary Armstrong “ A vida moral do homem deve formar um todo ordenado e dirigido a um fim púnico, da mesma forma que o universo forma um sistema ordenado dirigido a um fim único”, o filósofo deverá ser temperante para alinhar prática e pensamento, e assim não agir de forma errada, que poderá leva-lo a cometer coisas perniciosas para si e para os outros.

Autor: Fernando Gomez

Fonte: Revista Pandora

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Notas

[1] – Nas notas da edição portuguesa do Cármides, Francisco de Oliveira diz que: “Como se vê, irá ser difícil uma tradução exata para o termo: prudência, sensatez, sabedoria, moderação, temperança.

[2] – Esses aspectos são defendidos por Crítias ou por Cármides no diálogo, e o caráter aporético do Cármides força-nos a conceber nesses termos a temperança, para que ela possa relacionar-se com um fim estabelecido em Aristóteles.

[3] – Isso nos remete a fórmula conhece-te a ti mesmo. Esse preceito délfico é caro a Sócrates, por causa da identificação de conhecimento e virtude e pelas discussões acerca da possibilidade de se ensinar as virtudes, como no Ménon 87c-89ª, no Protágoras ou em Eutidemo 282c. A identificação de sophrosyne com a inscrição délfica feita por Crítias no Cármides, é a interpretação tradicional. Sobre isso as notas de rodapé de Francisco Oliveira na edição do Cármides de Universidade de Coimbra, também E. Martens.

Referências Bibliográficas

F. E. Peters, Greek Philosofical Terms. A history Lexicon, New York, University Press, 1967. Platão, Cármides, introdução, versão grego e notas de Francisco de Oliveira, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981. Aristóteles, Da Geração e Corrupção Seguido de Convite à Filosofia, São Paulo, Landy, 2001. Platão, República, tradução de M. H. Rocha Pereira, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1976. W. K. C. Guthrie, Los filósofos Griegos, México DF, Fondo de Cultura Econômica, 2008. A. H. Armstrong, Introducción a la Filosofia Antigua, Buenos Aires, Eudeba, 2007.

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