A questão da liberdade em Rousseau: Nascemos livres, mas vivemos presos na sociedade?

liberdade em rousseau: nascemos livres, mas vivemos presos na sociedade?

Você já parou para pensar (e constatar) que tudo que está à sua volta foi, de certa forma, imposto a você? Ao nascer, ninguém lhe perguntou se você concordava ou não com o modo com que a sociedade dirige seus negócios, suas relações políticas ou mesmo elabora suas leis. Ao nascer, você foi bombardeado com obrigações, com um mundo já previamente pronto e seu nascimento de nada influenciaria o ritmo dessa sociedade. Você teve que aceitar o fato de que mesmo tendo alguns poucos dias de vida e não concordando com o regime político vigente (levando-se em consideração que, enquanto bebê, você já pudesse ter essa consciência), ele não mudaria só porque era sua vontade. Mesmo que chorasse com toda a força de seus pulmões as coisas continuariam como estavam.

Isso também acontece com a tecnologia. Não sabemos como funciona nosso celular ou tablet. Na verdade, para a maioria das pessoas não importa como um mecanismo pode se comunicar a uma rede mundial de informações sem nem mesmo precisar de fios. Não queremos saber dos detalhes, mas nos achamos verdadeiros homens das cavernas quando não encontramos sinal para o celular ou quando a internet está lenta devido a algum problema técnico ou mesmo por causa do mal tempo, já que a umidade e as descargas elétricas presentes na atmosfera podem distorcer o sinal, que é transmitido por ondas.

Já nascemos num mundo pronto e até você ganhar certo grau de determinação e consciência pouca coisa poderá ser mudada através de suas atitudes, ainda que em um espaço limitado de abrangência, restrito ao seu convívio social. As mudanças ocorrem sim, mas o que a história da humanidade nos mostra é que os movimentos revolucionários são frutos de anos de lutas e conquistas, galgadas por pessoas que possuíam o mesmo ideal, que não desistiram devido ao fato do mundo já estar pronto quando nasceram. Esses homens queriam mudar as coisas, alterar o que, até então, parecia ser o certo a ser feito (e não poderia ser alterado), mas que, muitas vezes, favorecia o interesse de uma pequena parcela de pessoas, em detrimento da condição de vida de uma grande parcela de indivíduos, que viviam na miserabilidade.

Sobre o fato das leis já existirem quando nascemos e que elas são colocadas a nós de forma obrigatória, a isso dá-se o nome de “heteronomia”. É uma característica da lei, que impõe ao destinatário o seu cumprimento, independentemente da vontade do indivíduo. Pouco importa se você concorda ou não com o fato de uma prática ser considerada crime ou se acha injusto pagar tributo para o governo. Se não obedecer a lei (no primeiro caso, o deixar de fazer, e, no segundo, o dever de efetuar o pagamento) você sofrerá as penalidades cabíveis.

A heteronomia funciona como um processo de interiorização do dever da lei. Inicialmente, os indivíduos obedecem à lei por medo do castigo, por não quererem sofrer as penalidades. Depois de certo tempo, esses indivíduos passam a perceber que o cumprimento da lei trará benefícios para a coletividade. Nesse sentido, a vontade individual dá lugar ao que é bom para todos. Passa-se de um estado egoísta para uma consciência baseada nos princípios e valores morais que justificam a aplicação da lei e sua devida aceitação pelas pessoas.

Assim, mesmo que, inicialmente, o cumprimento da lei cause estranheza, o segundo patamar, o da aceitação, reflete que, ainda que um indivíduo ache injusto pagar imposto ao governo, este passa a refletir que se ninguém pagasse imposto não seria possível o Estado por em prática as políticas necessárias para a melhoria da qualidade de vida da população.

Agora, a reflexão e o questionamento se esses impostos são abusivos e/ou não estão tento a destinação correta é uma correta linha de pensamento, que passa a assimilar o teor da lei, que não é beneficiar um seleto grupo de pessoas (como políticos e empresários corruptos ou a elite da sociedade), mas que o fim último da lei é a segurança jurídica, que inclui o conceito de qualidade de vida para todos os cidadãos.

Será que podemos relacionar a heteronomia a um tipo de prisão ou cerceamento de vontade? Para Jean-Jacques Rousseau, importante filósofo, escritor, teórico político e compositor suíço, notável influenciador dos ideais iluministas, o homem se encontra preso. É dele a frase “O homem nasce livre, e, em toda parte, encontra-se acorrentado”.

Mas a qual homem Rousseau estava se referindo? Ele se referia ao homem do século XVIII. A questão da heteronomia pode ser abordada aqui em função de a sociedade daquela época ter aceitado um fato que causa horror e repúdio em nossos dias: homens que nasceram livres sendo escravizados por outros homens. Não somente uma escravidão pela etnia (como ainda ocorria na época), mas pelo trabalho e pelas regras impostas pela própria sociedade.

Rousseau teve vários de seus livros banidos pela Igreja Católica por apresentarem conceitos religiosos pouco convencionais, como a ideia de que a verdadeira religião vinha do coração e que as cerimônias e liturgias não eram importantes. Mas foram as ideias políticas que lhe trouxeram grandes problemas e perseguição.

A ideia de que o homem é livre ao nascer, mas se encontra preso na sociedade, presente na sua obra “O contrato social”, publicado em 1762, questiona a causa dos indivíduos viverem sob o julgo da sociedade ao abandonarem o “estado de natureza”, onde se encontravam livres e iguais.

Não é difícil entender o porquê das ideias de Rousseau terem tido grande reverberação nos movimentos revolucionários. Rousseau se tornou um grande inspirador do movimento iluminista francês, que desejava quebrar as correntes que a classe rica havia imposto à população pobre. Pessoas morriam de fome enquanto a classe rica gozava de uma vida de luxo as custas do trabalho dos pobres.

É pouco provável que Rousseau, que faleceu quase uma década antes da Revolução Francesa vir à tona, concordasse com as atrocidades que foram praticadas pelos líderes do movimento. Na verdade, para o filósofo suíço, o homem é naturalmente bom e, provavelmente, viveríamos num certo grau de reciprocidade amigável se vivêssemos numa floresta à base dos nossos próprios recursos. É o que ele chama de “estado de natureza”, bastando sermos realocamos para um ambiente como as cidades para que tudo comece a dar errado.

Fora do estado de natureza, o homem busca, a todo custo, dominar os outros e ser o centro da atenção dos demais indivíduos. Por viver em sociedade, sentimentos como ganância e inveja e o desejo de manipular os outros invadem o ser humano. Na natureza, os homens seriam fortes, saudáveis e livres, mas a civilização corrompe o homem.

Em sua obra, Rousseau desejou encontrar uma solução para que as pessoas vivessem juntas e fossem livres da mesma forma que seriam na natureza, ao passo que também obedeceriam às leis impostas pelo Estado. Impossível ou não e ainda que a ideia de liberdade não comungue com as regras da sociedade, que são como verdadeiras correntes que impedem os homens de fazerem o que bem intenderem, Rousseau apontou uma saída: a vontade geral.

Assim como a heteronomia parte de um pensamento e um querer egoísta e evolui para a assimilação do bem maior (para o que seja melhor para a coletividade), a vontade geral propõe que os indivíduos devem abrir mão de muitas liberdades individuais em prol da comunidade. Nesse sentido, deve haver leis que restrinjam o comportamento das pessoas.

Para Rousseau, as ideias de liberdade e obediência às leis estatais se complementavam. Quando os indivíduos agrupam-se em sociedade, acabam por formar um tipo de pessoa, em que cada cidadão faz parte de um todo bem maior em relação à individualidade de cada um. Para o filósofo, as pessoas seriam livres na sociedade quando estivessem sob o julgo de leis que, verdadeiramente, refletissem a vontade geral, a vontade desse corpo formado pelos cidadãos, e não a leis que beneficiassem somente uma parcela da coletividade.

Nesse contexto, o legislador teria a função de criar um sistema que permitisse que os indivíduos se mantivessem livres de acordo com a vontade geral, ao invés de buscarem suas próprias realizações as custas da perda da liberdade de outros. A verdadeira liberdade, para Rousseau, seria viver num grupo de cidadãos que procuram agir de acordo com o interesse da coletividade, em que os desejos pessoais convergissem para o que fosse melhor para todos e que as leis evitassem que pessoas agissem de forma egoísta.

E para os que não desejassem seguir o “contrato”? Eles seriam forçados a isso! Seriam forçados a serem livres! Parece contraditório, mas para Rousseau não era. O indivíduo é forçado a ser livre quando é livre de sua própria vontade mesquinha e egoísta, quando é levado a pensar no que é melhor para todos, pois, já que vivemos em sociedade, se cada um pensar somente em si o resultado será o extermínio das relações e instituições sociais tal como conhecemos.

Assim, tal como a ideia de heteronomia, a ideia de vontade geral pressupõe a assimilação de que os homens, para viverem em sociedade, devem aceitar as regras que lhe são impostas. Em contrapartida, essas leis devem refletir o anseio do Estado em praticar o que é melhor para todos. Quando as leis representam ou favorecem a um grupo restrito de pessoas, é aceitável que a própria sociedade, como um único corpo, admita movimentos revolucionários que objetivam resgatar o ideal de bem comum e segurança jurídica para todos, tal qual anticorpos combatem um corpo estranho presente no organismo que deseja alterar o estado normal de funcionamento do corpo humano.

Autor: Francisco Renato Silva Collyer

Francisco é Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Direito Público, Ciência Política, Direito Ambiental e Educação Ambiental. Graduado em Direito e Sociologia. Possui cursos de formação complementar nas áreas de Direito, Filosofia, Sociologia, Ética, Meio Ambiente e Gestão. Professor nas áreas de Direito (com ênfase em Direito Empresarial, Tributário e Administrativo), Logística e Ética Profissional.

Fonte: jus.com.br

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Teorias da Conspiração: da Revolução Francesa às fake News do Whatsapp

Política mundial Revolução mundialO texto no topo da imagem diz: “Política mundial Revolução mundial”. O texto na parte inferior diz: “A Maçonaria é uma organização internacional pertencente aos judeus com o objetivo político de estabelecer o domínio judeu através da revolução mundial”. O mapa, decorado com símbolos maçônicos (templo, quadrado e avental), mostra onde ocorreram revoluções na Europa desde a Revolução Francesa em 1789 até a Revolução Alemã em 1919. Fonte: Wikipédia.

Elas existem há muito tempo e desafiam a ciência e a lógica. Mas hoje, as Teorias da Conspiração ganham nova velocidade de propagação graças às novas tecnologias e o reforço das fake News.

Atualmente, as pessoas são constantemente bombardeadas por teorias conspiratórias absurdas sobre diferentes eventos diretamente de seus smartphones e computadores pessoais.

Especialistas de diversas áreas do conhecimento explicam que a Terra é esférica, ou melhor, elipsoide; que a humanidade realmente chegou à Lua e que as vacinas são estatisticamente seguras; que as pirâmides foram construídas pelos seres humanos, que o covid-19 [1] é uma doença potencialmente letal etc. Contudo, para muitos, nada disso parece ser suficiente. Os mitos persistem independentes da ciência e da lógica.  

Na verdade, aqueles que creem em “teorias alternativas” e conspiratórias têm justamente aí uma confirmação de suas verdades, e não uma refutação. O fato de cientistas, de professores universitários, em suma, dos especialistas contestarem essas crenças é para o teórico da conspiração apenas a confirmação de que realmente há uma conspiração oculta e maligna para esconder a verdade e que eles, os especialistas, fazem parte dela. Como dizia a famosa e longeva série de TV Arquivo X, “Eu quero acreditar”.

Esse artigo pretende discutir o que são “teorias conspiratórias” e a relação que existe hoje entre essas teorias e as chamadas fake News. Conforme veremos, o encontro das duas está por trás da disseminação do discurso de ódio  (hate speechI) no espaço público e promovem a deterioração da política e da democracia.

O que são “teorias conspiratórias” ?

As teorias da conspiração são objeto de investigação de um vasto campo de estudos e pesquisas nos Estados Unidos e na França, países onde já se produziram centenas de artigos e livros em diferentes áreas do conhecimento, particularmente na História e Filosofia.

Para o pesquisador estadunidense Michael Barkun, as teorias conspiratórias seriam explicações sobre eventos ou processos baseadas na “crença de que uma organização formada por indivíduos ou grupos esteve ou está agindo secretamente para alcançar fins malignos”. 

Já para o historiador francês Pierre-André Taguieff, essas teorias conspiratórias seriam baseadas na “visão de mundo dominada pela crença de que todos os eventos no mundo humano são desejados, realizados como projetos e que, como tais, revelam intenções ocultas – ocultas, porque malignas”. Ainda segundo Taguieff as teorias da conspiração seriam baseadas em quatro princípios: nada acontece acidentalmente; nada é o que parece ser; tudo é ligado, mas de forma oculta; e, tudo que acontece é o resultado de intenções ou vontades ocultas.

Olho da Providência - símbolo dos Illuminati“O “Olho da Providência”, ou “o olho que tudo vê de Deus”. O símbolo, presente na nota de 1 dólar, foi considerado por alguns como evidência de uma conspiração envolvendo os fundadores dos Estados Unidos e os Illuminati”. Fonte: Wikipedia.

Mark Fenster, por sua vez, afirma que a teoria da conspiração é uma teoria sobre o poder que realiza um “reconhecimento errôneo” (misrecognition) das relações de poder. Por exemplo, ao invés de reconhecer o papel econômico, ideológico e político das classes sociais em luta durante a Revolução Francesa, especialmente a ação revolucionária da burguesia, a teoria da conspiração de Barruel e de Robinson acusa o grupo Illuminati de, através da Maçonaria, agirem de forma consciente e planejada através de uma conspiração maligna para destruir a religião católica e a monarquia francesa. O complexo processo político e social da Revolução Francesa é reduzida, assim, a ação de um poder irrefreável e consciente, quase sobrehumano.

Resumindo, poderíamos dizer que a teoria da conspiração (conspiracy theory) é uma explicação sobre eventos sociais, especialmente políticos, baseada na crença de que por trás de todos os atos humanos há a ação dissimulada e maligna de indivíduos e grupos que lutam para dominar o mundo. Essas teorias baseiam-se na crença religiosa de que a realidade é dominada por uma luta eterna entre o bem e o mal. Apesar de frequentemente ser formatada em uma narrativa aparentemente racional e até científica, esse tipo de “teoria” não está sustentada em pesquisa baseada na coleta e análise crítica de todas as informações e explicações disponíveis, na formulação de hipóteses e, finalmente, na proposição de uma teoria. Ao contrário, ela usa e abusa de diferentes “falácias lógicas”, isto é, argumentos falsos, mas com a aparência de verdadeiros.

Essas falsas teorias ocultam os grupos e classes que realmente dominam as relações sociais na sociedade e, ainda criam discurso de ódio [2] contra determinados grupos (judeus, comunistas, “esquerdopatas”, petralhas etc.) transformando-os em bodes expiatórios, acusando-os de serem aqueles que efetivamente dominam o mundo ou conspiram para conquistá-lo.

Quando surgiram as “teorias da conspiração” ?

Elas surgem com a própria modernidade capitalista. Durante a Revolução Francesa são publicados dois livros, do padre francês Augustin Barruel (1741-1820) e do cientista escocês John Robison (1739-1805), que têm em comum a “teoria da conspiração” de que a revolução burguesa que assentou as bases ideológicas, políticas e sociais da sociedade burguesa francesa e europeia da modernidade, na verdade seria uma ação orquestrada secreta e ardilosamente pela Maçonaria para destruir a monarquia e a Igreja católica francesa e europeia.

Afirmam ainda que por trás do “complô maçônico” estaria uma sociedade ainda mais secreta, os Illuminati, que estaria no núcleo mais oculto da conspiração. Essas duas obras receberam diversas edições e traduções para diferentes línguas ainda na primeira metade do século XIX e deixaram marcas na cultura política antirrevolucionária ocidental. Ao longo do século XIX, surgem outras teorias conspiratórias que terão papel importante no período.

No século XX, as teorias conspiratórias foram uma importante ferramenta ideológica de luta contra os setores progressistas da sociedade, vistos como ameaças à própria civilização. A Revolução Russa de 1917, por sua vez, suscitou um processo de criação de novas teorias conspiratórias pela síntese e atualização das “teorias” do passado com um livro recém lançado que acusava os judeus de organizarem uma conspiração para dominar o mundo, o Protocolo dos Sábios de Sião. Por exemplo, a “conspiração maçônica-judaico-bolchevique” disseminada nos anos 1920 e 1930 por intelectuais conservadores e reacionários como Nesta Webster (1876-1960) e Léon de Poncins (1897-1975), e que foi amplamente divulgada pela propaganda nazista ao longo dos anos 30 e durante a Segunda Guerra Mundial.

Segundo Jeffrey Herf , “quando, no meio da Segunda Guerra, Hitler e seus aliados fizeram o salto da perseguição ao extermínio de massa, deram como justificativa a retaliação à conspiração judaica, a qual responsabilizavam por começar e intensificar uma guerra de extermínio contra a Alemanha”. No pós-guerra, essa teoria da conspiração foi reelaborada para a contenção política e ideológica da União Soviética e dos partidos comunistas, no que viria a ser conhecido como anticomunismo.

Nos anos 1990, com o fim do “socialismo real” surgiu nos Estados Unidos a virulenta e agressiva “teoria da conspiração” do “marxismo cultural” que acusava os marxistas da Escola de Frankfurt de desenvolverem ideias de defesa dos direitos humanos dos negros, das mulheres, dos homossexuais etc. Essa teoria da conspiração requentava o anticomunismo da Guerra Fria e a conspiração judaico-bolchevique do entreguerras, acusando os marxistas alemães da “Escola de Frankfurt” migrados da Alemanha fugidos do nazismo, de quererem destruir os valores da sociedade estadunidense, isto é, o patriarcado, a religião, a ordem política etc. O fato de vários desses marxistas serem de origem judaica corroborava, para alguns de seus defensores, essa teoria da conspiração.

No Brasil, essa teoria conspiratória tem no ideólogo Olavo de Carvalho um de seus principais divulgadores. O movimento “Escola sem Partido” (ESP) que se dedica a atacar a obra de Paulo Freire, os professores e a Universidade pública tem sua base ideológica na teoria da conspiração do “marxismo cultural”.  Até agora, o ESP não teve sucesso em mudar a legislação, mas contaminou o ambiente educacional brasileiro, não apenas no Ensino Básico, mas também na Universidade[3]. Isso contribui para que nos últimos anos os professores tenham se tornado alvo de discurso de ódio que chega às vezes a agressões verbais e físicas.

Teorias da Conspiração e Fake News

As notícias falsas veiculadas na Internet frequentemente ajudam a divulgar ampla e maciçamente teorias conspiratórias. A conexão entre as duas é tão forte que, não raro, muitas teorias da conspiração assumiram hoje uma forma noticiosa, ou seja, são socialmente disseminadas como notícias e recebidas como explicações legítimas sobre eventos políticos.

As teorias conspiratórias são parte importante do conteúdo divulgado pelas fake news que, assim, popularizam essas teorias. Além disso, a importância crescente das fake news no debate público ajuda a criar um ambiente propício à disseminação e à aceitação das teorias conspiratórias como uma explicação legítima dos eventos políticos e sociais. Não são poucas, hoje, por exemplo, notícias falsas que afirmam ter os chineses criado o novo coronavírus em laboratório.

A Exposição antibolchevique denunciando uma conspiração judaico-maçônico-comunista internacional na França ocupada pela Alemanha nazista (1942).A Exposição antibolchevique denunciando uma conspiração judaico-maçônico-comunista internacional na França ocupada pela Alemanha nazista (1942). Fonte: Bundesarchiv Bild 183-2004-0211-500, Frankreich, Antisemitismus.

Uma das estratégias dos disseminadores deste tipo de conteúdo é enviar uma grande enxurrada de fake news e teorias conspiratórias simultaneamente em diferentes mídias e canais a fim de entulhar o debate público realizado na Internet com mentiras e ataques verbais, não deixando espaço para o surgimento de um debate baseado em troca e confrontação de informações e ideias – essa tática é chamada de firehosing.

Desafios para o século XXI

No século XXI, o aprofundamento da crise da democracia representativa liberal e dos partidos políticos de esquerda tradicionais, a popularização da Internet, o surgimento e o crescimento das redes sociais, a precarização do trabalho e das condições de vida da classe trabalhadora, a falta de expectativas de superação das crises políticas, econômicas e sociais do capitalismo, a sofisticação dos órgãos de repressão policial e política e das ferramentas de monitoramento e controle oferecidos pela Internet e pelas ferramentas digitais, especialmente a partir de 2008, criaram um ambiente de deterioração do espaço público, da política e da democracia.

Nessas condições, as teorias conspiratórias tornaram-se um elemento ideológico ainda mais importante, cada vez mais sustentado pelas fake news e pelo discurso de ódio espalhado pelos diferentes grupos políticos das direitas. Infelizmente, as teorias conspiratórias tornaram-se parte integrante do senso comum.

Nos últimos anos,  as direitas no Brasil, especialmente a extrema-direita de perfil ideológico fascista e próximo a alt-right internacional, tomaram de assalto o debate político nacional e importantes cargos no Executivo e Legislativo; em grande parte com o uso sistemático de ferramentas de disseminação massiva de notícias falsas, discurso de ódio (hate speech), ideias autoritárias e teorias da conspiração, e assim trabalham diuturnamente para criar as condições para a instauração de seu projeto autoritário.

Autor: Ricardo Figueiredo de Castro

Fonte: Café História

Ricardo é Professor Associado de História Contemporânea no Instituto de História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É filiado ao GT “Direitas, história e memória” e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO) do IH/UFRJ. Tem experiência na área de História Social e Política, com ênfase em Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: História política brasileira do século XX, com ênfase nas esquerdas brasileiras (comunistas, socialistas, trotskistas, principalmente). Trabalha também com a história política e cultural das direitas, com ênfase no Negacionismo do Holocausto e no Conspiracionismo (Conspiracy Theory). É autor, no Café História, do artigo “Negacionismo do Holocausto”, publicado em 2014.

Notas

[1] – O ministro das Relações Exteriores Eduardo Araújo postou no blog “Meta Política 17 – contra o globalismo” um artigo intitulado “Chegou o Comunavírus” onde escreve: “O Coronavírus nos faz despertar novamente para o pesadelo comunista”. Acesso em 28/04/2020.

[2] – “(…) fala, escrita ou comportamento, que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em quem eles são, ou seja, com base em sua religião, etnia, nacionalidade, raça, cor, descendência, gênero ou outro fator de identidade”. United Nations strategy and plan of action on hate speech. p. 6. Disponível aqui.

[3] – Os dois ministros da Educação do governo Bolsonaro até o momento em que esse texto foi escrito são crentes confessos da existência de uma conspiração marxista que controla a Universidade pública brasileira.

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Referências Bibliográficas

BARKUN, Michael. A culture of conspiracy: Apocalyptic Visions in Contemporary America. Berkeley: University of California Press, 2003.

BERLET, Chip. Toxic to democracy: conspiracy theories, demonization & scapegoating. Sommerville (MA): Political Research Associates, 2009. Disponível em: https://www.politicalresearch.org/sites/default/files/2018-10/Toxic-2D-all-rev-04.pdf  Acesso em 20/05/2020. p.3.

FENSTER, Mark. Conspiracy theories: secrecy and power in American culture. Minneapolis: University of Minesota, 1999.

HERF, Jeffrey. Inimigo judeu: propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. São Paulo: EDIPRO, 2014. p.331.

HOPE NOT HATE. The International Alternative Right: an explainer. Disponível em:  https://www.hopenothate.org.uk/wp-content/uploads/2019/07/Alt-Right-report-SHORT-2019-v1.pdf Acessado em: 20/04/2020.

JAMIN, Jérôme. “Anders Breivik et le « marxisme culturel » : Etats-Unis/Europe”. Amnis. Revue de civilisation contemporaine Europes/Amériques, no 12 (1o de julho de 2013). https://doi.org/10.4000/amnis.2004.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Tudo sobre todos: redes digitais, privacidade e venda de dados pessoas. São Paulo: Edições SESC, 2017. [E-book]

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas. São Paulo: Edições SESC, 2019. [E-book]

TAGUIEFF, Pierre-André. L´imaginaire du complot mondial: aspects d´un mythe moderne. Paris: Mille et Une Nuit, 2006. p.54.

Maçonaria e Antimaçonaria: Uma análise da “História secreta do Brasil” de Gustavo Barroso – Parte IV

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2.3 – A narrativa antimaçônica: o “complô revolucionário”

Para entendermos como a narrativa antimaçônica assumiu uma nova feição na virada do século XVIII para o XIX, é preciso antes analisar o processo de galvanização do mito do “complô jacobino-revolucionário”. Em seu livro Pensando a Revolução Francesa, François Furet demonstrou que a interpretação histórica em termos de uma “conspiração maçônica” para o episódio de 1789, ou seja, da vontade consciente dos homens, é ao mesmo tempo superficial e banal. Entretanto ao analisar a obra de Augustin Cochin, reconheceu que a franco-maçonaria foi a expressão típica e inevitável da “opinião filosófica”, uma nova forma de poder que não assumia suas restrições, e cuja função era tecer as solidariedades e a disciplina de uma hierarquia a partir de um recrutamento baseado na opinião[76].

Assim, se a Maçonaria é tão importante no mundo histórico e conceitual de Augustin Cochin[77], isso não decorria, como no caso do abade de Barruel, do fato de ela ser o instrumento de uma conspiração contra o Antigo Regime, mas sim por encarnar, de maneira exemplar, a química do “novo poder”, transformando o social em político e a opinião em ação. A partir da Maçonaria, o que Cochin chama de “espírito de sociedade” substituiu o “espírito de corpo” do velho reino. Esse “espírito social” invadiu toda a nobreza, os parlamentos, as corporações, difundindo a ideologia da “vontade do povo”. Instaurou-se a religião do consenso, a crença em um poder que emanaria da própria sociedade livre de qualquer peso. Nesta perspectiva, a Revolução para Cochin não foi apenas uma batalha social ou uma transferência de propriedade. Ela inaugurou uma forma de socialização baseada na comunhão ideológica e manipulada pelos aparelhos. Seu modelo abstrato são as sociedades de pensamento que prosperaram no fim do Antigo Regime, particularmente a franco-maçonaria a mais elaborada delas[78].

Conforme salientou Michel Vovelle, a Maçonaria é, na opinião de Cochin, o molde da nova forma social, destinada a reproduzir muitas outras, capaz de reunir outros públicos e veicular outros consentimentos, mas submetida à mesma lógica a da “democracia pura”. Por isso, segundo o autor, para melhor entender o fenômeno do jacobinismo é preciso antes perceber que existia, na Europa do Antigo Regime, uma infinidade de formas de sociabilidade masculina que se exprimiam através de confrarias de devoção estabelecidas desde a época medieval. Cochin viu na sociabilidade do Iluminismo, na forma em que ela se apresentou nas sociedades de pensamento e nas Lojas maçônicas, e na ficção de igualdade que regia as relações entre os membros, a matriz do que se tornaria a “máquina” jacobina[79].

Desta forma, as origens do jacobinismo estariam vinculadas, sobretudo às “redes de confrarias de devoção”, profanas ou devotas, a exemplo das caridades maçônicas. Assim o jacobinismo, por conseguinte seria devedor tanto da Maçonaria e das sociedades de pensamento, quanto das heranças mais longínquas de sociabilidade profana ou devota. Antes da Revolução, por exemplo, muitas Lojas foram locais de reflexão e até mesmo de engajamento militante, com a iniciativa da fundação de numerosos clubes[80].

Vovelle também informa que os jacobinos tiveram, desde os primeiros anos da Revolução, a preocupação de dar uma definição de si mesmos, como eles se viam e como desejavam ser vistos. Mas, para o autor, foi do campo da contra-Revolução que eles foram denunciados, não pelo que representavam de novo e de inédito, mas por serem ao mesmo tempo os herdeiros e os agentes de um complô tramado por filósofos, protestantes e franco-maçons contra a monarquia e a religião. Esta tese foi desenvolvida pelo abade Lefranc com o título de: Le voile leve pour les curieux, ou les secrets de la Révolution révélés à l’aide de la Franc-Maçonnerie (O Véu levantado pelos curiosos ou os segredos da revolução revelados com a ajuda da Franco-Maçonaria) e depois, em 1792, por Boyer de Nîmes[81].

Entretanto, foi a abade Augustin de Barruel, entre 1797-1799, que ajudou a popularizar o mito do complô revolucionário, através da publicação de Mémoires pour servir à l’históire du jacobinisme (Memórias para servir à história do jacobinismo). Em suas memórias, Barruel fazia referências às sociedades secretas de caráter maçônico, sobretudo àquela conhecida como os Iluminados da Baviera, fundada em 1776 em Ingolstadt por J. A. Weishaupt (1748-1830). Segundo o autor, a Alemanha tinha muito apreço pela difusão da cultura, e todas as cidades de alguma importância possuíam uma ou mais sociedades de leitura e diversas gazetas. As Lojas maçônicas, por exemplo, eram numerosas e bem implantadas: estima-se seu número entre 250 ou 300, ou seja, em torno de 30000 membros, divididos bastante uniformemente no país[82].

Conforme sugerimos na introdução, Barruel foi o mais importante difusor da narrativa antimaçônica na virada do século XVIII para o século XIX. Para o clérigo, a gênese e a conduta da Revolução Francesa eram essencialmente atribuíveis às maquinações da franco-maçonaria. Uma maquinação dirigida neste caso por uma seita particular, a dos Iluminados da Baviera, que se havia infiltrado e apoderado do controle da Ordem maçônica. Assim, de modo fantasioso, Barruel transformou a preparação da subversão revolucionária em fruto da atividade secreta das Lojas maçônicas. Deste modo, os acontecimentos de 1789 seriam atribuíveis às maquinações maçônicas, o resultado final duma longa conspiração tramada desde a época dos Templários.

Nessa revolução francesa, escrevia Barruel, tudo, até os seus crimes mais pavorosos, tudo foi efeito da mais perversidade, já que tudo foi preparado, conduzido por homens que eram únicos a ter o fio das conspirações longamente urdidas em sociedades secretas, e que souberam escolher e acelerar os movimentos propícios aos complôs.[83]

Sua obra corporificava a ideia de que o segredo maçônico é a maior evidência das ações maléficas dos maçons. O maçom seria adestrado por uma “verdadeira pedagogia do segredo”, os homens do complô eram antes de tudo “instruídos para esconder-se”. Além disso, o aprendizado da espionagem era um dos aspectos iniciais da educação do maçom que fazia de tudo para controlar os meios de comunicação, em todos os países. Ao controlar as informações, a Ordem estenderia seus tentáculos sobre o conjunto do corpo social[84].

A prática das senhas, o uso dos sinais convencionados de reconhecimento, o manejo dos códigos cifrados periodicamente renovados consagram sua iniciação. “Todas as instruções”, esclarece ainda Barruel a propósito dos Iluminados da Baviera, “transmitiam-se ou em uma linguagem iniciática, ou por um código especial ou por vias secretas, temendo que um falso irmão ou mesmo que um maçom estranho à inspeção do Grande-Oriente se misturasse aos verdadeiros adeptos sem ser conhecidos, havia uma palavra de ordem especial, mudada todos os semestres e regularmente enviada pelo Grande-Oriente a toda loja de sua inspeção…[85]

Esses textos e imagens que criavam o mito da “Conspiração maçônico-jacobina” estavam inseridos dentro de um encadeamento de fatos que explicavam as causas sem precedentes da Revolução Francesa. Ao mesmo tempo, o caráter secreto da Maçonaria – a maior evidência das ações conspiratórias – ajudou a galvanizar no imaginário francês uma imagem atemorizante da Maçonaria[86].

Benimeli demonstrou que após a Revolução Francesa, o mito das seitas e a grande conspiração constituíram a essência do pensamento reacionário e foi utilizado também como uma das defesas mais eficazes para a perseguição e repressão do liberalismo nascente. O mito do complô revolucionário tinha como ponta de lança a Maçonaria, acusada de planejar um império em escala mundial[87].

No que tange ao mundo luso-brasileiro, o crescimento da narrativa antimaçônica, acompanhou um quadro de aversão à cultura francesa, motivado, sobretudo, pelos desdobramentos da política napoleônica que resultou na transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro e na invasão de Portugal pelas tropas francesas.

Tornou-se frequente aparecer na imprensa régia textos que “revelavam” o perigo do jacobinismo escondido na atuação da Maçonaria.

O Jacobinismo estivesse reduzido a um estado de inação, muito perigoso seria pensar o estar ele aniquilado. (…) Hipóteses desta qualidade são inteiramente incompatíveis com o espírito, e gênio do Jacobinismo, no qual a turbulência é o mais essencial ingrediente; pois ele é em tudo vigilante, e cheio de atividade; quando for conquistado de um modo, ele por outros acha seu restabelecimento; os seus caminhos são tão inumeráveis como retorcidos: a maquinação enorme de suas traças é igual ao extenso grau de sua desesperação; e a sua astúcia em iludir, para não ser descoberto o seu sistema, é excedida pela atrevida malignidade, que mostra no seguimento de seu plano; há-de mesmo tomar a máscara da lealdade, quando lhe convenha, para recuperar a boa forma, e caráter que tem perdido, ou quando necessitar promover o seu interesse imediato. Bem podemos estar persuadidos desta verdade: Que preciso é destruí-lo, (isto é, o Jacobinismo) ou ele se esforçará em destruir-nos.[88]

Deste modo, toda uma literatura política contra-revolucionária, desenvolveu-se em Portugal, de que as figuras de proa são, J. Morato e José Agostinho de Macedo[89].

O discurso político contra-revolucionário processa-se através de uma linguagem envolvente que recorre à “palavra-choque”, a palavra que desencadeia imediatamente a imagem requerida e que, por conseguinte, dispensa da parte do receptor a reflexão e a crítica. Neste sentido, maçom se tornou sinônimo de jacobino, igual a partidário dos franceses, igual a traidor. Portanto, a narrativa antimaçônica, por um lado, mobilizou setores significativos da sociedade portuguesa contra o “elemento perturbador” que, naquele contexto era visto como o invasor e, por outro, viabilizou várias medidas violentas contra os ditos “traidores”[90].

Na opinião de Maria Ivone Crisóstomo de Ornellas de Andrade Castro, a ética maniqueísta do espírito contra-revolucionário, própria do período, foi veiculada por uma pedagogia da intolerância e de fundamentalismo religioso. Assim o conservadorismo, enquanto ideologia política, nascia da necessidade de se criar um fundamentado movimento de antagonismo ativo à ruptura política e à reposição dos valores tradicionais. Os realistas não podiam assistir passivamente à total ruína da estrutura da sociedade do Antigo Regime imposta pelas tropas napoleônicas. Este “espírito contra-revolucionário” encontrou nas palavras afiadas do padre José Agostinho de Macedo um de seus maiores difusores, pois Macedo no “apogeu da idade adulta, ao pisar o limiar do século XIX, transportou consigo os fantasmas do século que o viram nascer”[91].

O padre Macedo protagonizou de modo sui generis o movimento “anti-luzes”, na vertente teológico-filosófica, foi, portanto, testemunha oficial de uma visão de mundo apologético-conservadora, agente ativo deste universo pensante, em luta com a revolução da consciência. Para o padre Macedo, a Maçonaria foi a principal responsável pela subversão da doutrina do Trono e do Altar, por isso a violência contra a figura dos obreiros era legítima[92].

Nenhum Maçom foi atacado por mim em particular, e para a minha pública retratação, só é preciso uma coisa, a prova decisiva de que nesta sociedade se não ataca direta, ou indiretamente a Religião Católica. Este é o quadro da minha vida, e dos meus sentimentos, tão verdadeiros como é patente aos olhos do Altíssimo.[93]

Numa época em que o Império luso-brasileiro encontrava-se em estado predisposto à sublevação – fermento deixado pela primeira experiência liberal – este leitor da produção filosófica iluminista soube como ninguém servir-se desse conhecimento para arremeter contra as próprias Luzes, constituindo o melhor exemplo do anti-iluminista ou, melhor, do “iluminista paradoxal”[94]. Segundo a autora, nas obras de Macedo, o uso de uma “adjectivação rancorosa” contra a Maçonaria refletia o trauma das invasões francesas, condições mais do que suficiente para este “patriota soltar as Fúrias”.

A época da parenética simplesmente retórica ou hiperbólica deixara de ter sentido numa sociedade doravante confrontada com a urgência histórica: defesa da pátria e denúncia de inimigos de ideário (pedreiros-livres, sinônimo de liberais, afrancesados ou “jacobinos”). O sermão torna-se num discurso ideológico em defesa da doutrina do Trono e do Altar, dos valores nacionais, inscritos na monarquia tradicional. O sermonário político constitui, inequivocamente, um momento de fecundação da ideologia contra-revolucionária macediana.[95]

Consequentemente, o padre Macedo tornou-se um dos maiores difusores da narrativa antimaçonaria da língua portuguesa, sendo o pregador e o tradutor de boa parte da obra do abade Barruel dentre elas destaca-se, O Segredo Revelado ou Manifestação do Systema dos Pedreiros Livres, e Iluminados, e sua influência na fatal Revolução Francesa, Obra extrahida […] do Abbade Barruel, e publicada em Portuguez para confusão dos Impios, e cautela dos verdadeiros amigos da Religião, e da Pátria (1809-1812). Nas palavras de Macedo a Maçonaria era a causa fundamental de toda a Europa revolucionada. O Pedreiro-Livre é, desde 1808, o “mal absoluto”, por isso deveria ser declarado guerra contra estes, “liberais, afrancesados ou jacobinos”[96].

É preciso fazer um indispensável serviço à Religião, ao Trono, à Pátria e a boa razão, fazendo de todo emudecer esta importantíssima canalha, que com a sua estúpida ignorância, e involuntária malícia, quase são tão prejudiciais à sociedade civil como os malvados Pedreiros-Livres com o seu pestilencial veneno, e abominável sistema de depredação, e ruína universal de todas as Instituições sociais.[97]

De modo específico, tanto no Brasil quanto em Portugal, dezenas de obras contra-revolucionárias surgiram para denunciar a “Conspiração Maçônica”, sobretudo a partir de 1800. Em conformidade com esta ideia circularam vários impressos, dentre eles, as Considerações sobre a seita dos Pedreiros Livres produzido provavelmente entre 1803 a 1813:

Em todos os tempos se viram Libertinos que para estabelecerem seus danados sistemas procuraram apoiar-se com o número dos sectários a quem angariam ou […] ou promessas – os chamados Pedreiros Livres não são os que menos se tem distinguido neste gênero de proceder – Em todos os Países da Europa tem suas lojas e sociedades (inda que debaixo de um regulamento muito misterioso) assas conhecidos por todos – Já havia muito tempo que se falava haver também em Portugal desta espécie de gente e muito particularmente em Lisboa onde vagueia gente infinita e de todas as qualidades. Neste mês fermentou-se muito mais esta matéria, e fazendo-se queixas ao Governo se procedeu com todo o escrúpulo na inquirição deste ponto – o resultado ia sendo funesto pois que em breve se viram presos, e expulsos desta cidade para fora muitas pessoas gradas, e de diferentes hierarquias. […] Com estas providências circunspectas tudo se pacificou, e não se fala já em Pedreiros Livres, nem consta também que estes falem.[98]

Continua…

Autor: Luiz Mário Ferreira Costa

Fonte: Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.

Notas

[76] – FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. Trad. Luiz Marques e Martha Gambini. Rio de Janeiro: Terra e Paz. 1989. p. 180.

[77] – Segundo Furet, o disparate absoluto, no que se refere a Cochin, é proposto por Aulard, segundo o qual a teoria de Cochin era somente uma nova versão da tese da conspiração franco-maçom na origem da Revolução Francesa. Ver: Idem, p. 179.

[78] – Idem, p.179.

[79] – VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismo. Trad. Viviane Ribeiro. Rev. Márcia Mansor D’Aléssio. Bauru: EDUSC, 2000. p. 71.

[80] – Idem, p.72.

[81] – Idem, p.70.

[82] – Na análise de Vovelle, Barruel defendia que a Ordem dos Iluminados representava o tronco maçônico sobre o qual teria se desenvolvido as sociedades secretas de vocação diretamente política. Ver: Idem, p. 126 – 127.

[83] – GIRARDET, Raoul. (op. cit), p. 33.

[84] – Idem, p.38.

[85] – Idem, p.34.

[86] – Idem, p.32.

[87] – FERRER BENIMELI, J. A. (op. cit), p. 11.

[88] – OS PEDREIROS-LIVRES, e os Illuminados, Que mais propriamente se deveriam denominar os Tenebrosos, De cujas Seitas se tem formado a pestilencial Irmandada, a que hoje se chama Jacobinismo. Lisboa: Imprensa Régia, 1809. 31 p. [BNL – SC 14626//15P

[89] – DIAS, Maria da Graça Silva. (op. cit), p. 402.

[90] – Idem, p.402.

[91] – CASTRO, Maria Ivone Crisóstomo de Ornellas de Andrade: José Agostinho de Macedo: um iluminista paradoxal. Lisboa: Colibri história, 2001. p. 163

[92] – Idem, p.166.

[93] – MACEDO, José Agostinho de. (op. cit),

[94] – CASTRO, Maria Ivone Crisóstomo de Ornellas de Andrade (op. cit), , .p. 37

[95] – Idem, p.69.

[96] – Idem, p.165.

[97] – CASTRO, Maria Ivone Crisóstomo de Ornellas de Andrade (op. cit), , .p126-127

[98] – CONSIDERAÇÕES sobre a seita dos Pedreiros Livres – Dietário do Mosteiro de São Bento de Lisboa (nov/1803 – jul/1812). página 52. [BNL – COD 732 – Reservados]

Qual é a origem do lema Liberdade – Igualdade – Fraternidade?

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A Maçonaria teve, historicamente, por lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade… Esta mentira deve ser refutada de uma vez por todas. Não! Maçonaria francesa, bem entendido, não impôs esse lema; ela pediu emprestado à República. Vamos explicar os detalhes.

Tradicionalmente, a Maçonaria não tem lema, mas máximas e aclamações. No século XVIII, os documentos maçônicos oficiais, as pranchas traçadas dos últimos trabalho são, geralmente, precedidas pela fórmula simples “Saúde, Força, União”.

A ideia de combinar Liberdade, Igualdade e Fraternidade se origina, aparentemente de um dos principais atores da revolução, a saber, Maximilien de Robespierre (1758-1794), que propôs em 27 de abril de 1791 à Assembleia Constituinte inscrever três palavras na bandeira e botões das Guardas nacionais; com o único propósito de prestar homenagem ao seu civismo e sua coragem.

A proposta de Robespierre não foi aprovada, bem como foi em vão a iniciativa tomada por Jean-Nicolas Pache, prefeito de Paris, em 21 de junho de 1793, de colocar de cartazes na cidade com a inscrição “Unidade e indivisibilidade da República, Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou a Morte”.

Também sem sucesso foi a inclusão das três palavras anteriormente citadas pelo redator da ata dos trabalhos de retomada das atividades da Grande Loja da França, em 24 de junho 1795, depois de um sono forçado de vários anos.

Voltemos a julho de 1791 para extrair de uma circular da Loja Mãe do Rito Escocês filosófico, São João do Contrato Social, essa afirmação:

Muitos séculos antes que Rousseau, Mably, Raynal tivessem escrito sobre os direitos humanos e tivessem jogado na Europa a massa de Iluminismo que caracteriza o seu trabalho, nós praticávamos em nossas Lojas todos os princípios de uma verdadeira sociabilidade. A igualdade, a liberdade, a fraternidade eram para nós os deveres mais fáceis de cumprir que nós afastamos cuidadosamente para longe de nós os erros e preconceitos que, por tanto tempo, trouxeram a infelicidade às nações.”

Será preciso, de qualquer maneira, esperar até 25 de fevereiro de 1848 até que Louis Blanc (1811-1882), então membro de um governo republicano provisório – e futuro maçom – fizesse inscrever a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade como divisa nacional na Constituição da Segunda República.

E não será até 10 de agosto do ano seguinte, ou seja, 1849, que ele será adotado como lema maçônico pelo Grande Oriente, antes de todas as potências francesas viesse a reclamá-lo por sua vez. Portanto, a César o que é de César; Reddite quae sunt Caesaris, Caesari.

Supondo, no entanto, que se, oficialmente, os maçons não podem contar com o fato de que eles foram os primeiros a fazer uso de um lema de renome internacional, eles podem, mesmo assim, afirmar que o inspiraram para a nação … Lembrando-se, principalmente que um secretário de Loja, em 07 agosto de 1793, em Lille, rubricou um diploma “em nome e sob os auspícios da Liberdade, Igualdade e Fraternidade”; diploma sobre o qual ele havia apagado a menção maçônica impressa: “em nome e sob os auspícios do Sereníssimo Grão-Mestre”. Isso cerca de 56 anos antes do advento da Segunda República.

Autor: Guy Chassagnard
Tradução: José Filardo

Fonte: REVISTA BIBLIOT3CA

© 2014 Guy Chassagnard – chassagnard@orange.fr- Todos os direitos reservados

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