A importância do Ritual

The Ritual

Meus Irmãos, saúdo-vos fraternalmente, em todos os vossos graus e qualidades.

A suspensão dos trabalhos presenciais por virtude da pandemia em curso, revelou-nos a falta que o Ritual, a execução do Ritual, nos faz. É essa a natureza humana: muitas vezes só nos damos conta do que é importante quando o não temos. Mas não é sob esta perspectiva que escolhi expor a Importância do Ritual. Vou procurar incidir a nossa atenção sobre a razão por que o Ritual é importante, porque só tendo-se essa noção é que nos apercebemos completamente da importância do mesmo.

Começo por fazer uma afirmação que aparentemente não tem nada a ver com o tema e que é – como todas! – discutível, mas cujo mérito vos peço que julgueis apenas no final desta nossa conversa: a Maçonaria não se ensina, aprende-se!

Não quero com esta afirmação dizer que os mais experientes não devem partilhar com os mais novos o que aprenderam, o que sabem. Com esta frase, enfatizo que, em Maçonaria, o que é importante não é o que se transmite mas, antes, o que se apreende. Porque a experiência, a vivência, a personalidade do que transmite são diferentes das do que recebe. Assim, o que verdadeiramente interessa não é o que se ensina, se partilha, se transmite. O que importa é o que se aprende e, mais do que isso, o que se apreende, o que se interioriza. E aquelas e estas não são necessariamente – atrevo-me mesmo a dizer que raramente são – a mesma coisa. E, bem vistas as coisas, é inevitável que assim seja, pois, como já há pouco referi, o que transmite e o que recebe têm personalidades, vivências, capacidades, características diferentes. Assim, o que transmite tem necessariamente uma noção diversa do que aquele que recebe. Este, daquilo que é transmitido, receberá o que, na ocasião, estiver apto e pronto a receber, será tocado pelo que, no momento, o sensibilize. Em suma, o que ficará é o que ele aprende e apreende, não o que o que transmitiu julga que ensinou…

Não tenho, portanto, a pretensão de ensinar nada! Tenho apenas a esperança de que, da maçada a que agora vos submeto, cada um de vós retenha algo de útil.

Em meu entender, para uma correta abordagem da importância do ritual impõe-se que previamente distingamos entre Conhecimento e Sabedoria. O Conhecimento é tudo aquilo que aprendemos e estamos aptos a utilizar, quando necessitamos. A Sabedoria é algo mais profundo. Baseia-se, é um fato, nos conhecimentos que adquirimos. Mas reside na intuição, na capacidade adquirida de, relacionando tudo o que conhecemos, daí selecionar o que efetivamente importa, o que é adequado para um momento específico, uma situação concreta. Nem sempre aquele que tem mais conhecimentos é o que tem a sabedoria necessária para escolher a via justa, a palavra indicada, o gesto preciso, a atitude certa perante uma dada situação concreta. Numa muito grosseira aproximação, poderíamos dizer que a sabedoria resulta do conhecimento sublimado pela experiência. É através dos êxitos e fracassos na nossa escolha na utilização dos nossos conhecimentos que sublimamos o nosso Conhecimento em Sabedoria, que passamos do Conhecer ao Saber.

Memoriza-se e utiliza-se o que se conhece; desenvolve-se e internaliza-se o que se sabe.

O meio privilegiado para rápida aquisição de Conhecimento é o Estudo. Para se chegar à Sabedoria é preciso tempo e vivência. Mas há um meio para acelerar esse percurso, para induzir a Sabedoria: a utilização, execução e prática do Ritual. Se o Estudo é um meio de aquisição de Conhecimento, o Ritual é indutor de Sabedoria.

Com efeito, o Estudo estimula, faz funcionar, desenvolve a Inteligência Racional. Mas o Ritual, a sua prática, esse, estimula e desenvolve a Inteligência Emocional. E esta é bem mais profunda do que aquela, pois combina o conhecimento, o raciocínio, com a Intuição. O que estudamos pode não nos tocar e dar-nos apenas, pela memorização, a ferramenta necessária para agir. Mas só o que nos toca, nos emociona, efetivamente guardamos para saber como utilizar a ferramenta. A ferramenta é útil, mas saber utilizá-la pela melhor forma é indispensável…

Para entendermos porque e como o Ritual e o seu exercício estimulam a nossa Inteligência Emocional e, logo, induzem a obtenção de Sabedoria, devemos ter presente que, nos primórdios da Humanidade, quando ainda não tinha sido inventada a escrita – e muitas e muitas gerações de humanos viveram sem que houvesse escrita… -, a aquisição de conhecimentos e o acesso à Sabedoria processavam-se através da Tradição Oral. Era exclusivamente por essa via que os mais velhos e os mais experientes transmitiam o que sabiam aos mais novos e sem experiência.

Não havia então propriamente aulas, nem escolas. Os mais velhos e experientes diziam o que tinham aprendido, executavam perante os mais novos os gestos que era necessário fazer, repetiam, uma e outra vez, e faziam repetir muitas e muitas vezes, as palavras, os gestos, os atos de que dependiam, tantas vezes, a alimentação, a segurança e a sobrevivência, não só individuais como do grupo.

Ora, repetir uma e outra vez as mesmas palavras, para transmitir as mesmas noções, executar muitas e muitas vezes os gestos e as ações adequados para a obtenção dos resultados pretendidos mais não é do que… executar um ritual! Um Ritual é um conjunto de palavras, gestos e atos proferidas e executados sempre da forma similar.

Então, nos primórdios da Humanidade, aprendia-se e vinha-se a saber através da repetida execução de rituais. Era pelo que se via, pelo que se ouvia, pelo que se executava, pelo que exaustivamente se repetia, que se entranhava em cada um o que fazer e como fazer para obter alimento, para garantir segurança, para melhorar e curar maleitas, para adquirir o conforto possível.

Os rituais aprendidos e executados propiciavam, assim, a sabedoria necessária para sobreviver e viver o melhor possível.

O cérebro humano foi portanto, desde muito cedo, formatado em primeiro lugar para reagir aos estímulos visuais e auditivos.

Só mais tarde, muito mais tarde, o cérebro humano adquiriu a capacidade e habilidade de decifrar o código da escrita. A criação da escrita foi um avanço civilizacional imenso. Permitiu registar o que se tinha por importante, aquilo que anteriormente tinha de ser adquirido e mantido à custa de repetições. A escrita e a habilidade de a utilizar permitiram à Humanidade um meio mais fácil de registar e dar acesso ao Conhecimento. O cérebro humano naturalmente adquiriu, assim, também a capacidade de adquirir Conhecimento através da escrita, da leitura, do estudo.

Mas tenhamos presente que a camada mais profunda do nosso cérebro é, desde sempre, estimulada auditiva e visualmente e por execuções ritualizadas do que se pretende transmitir. A aquisição de Conhecimento através da escrita, da leitura, do estudo é uma habilidade mais recentemente adquirida, logo, mais superficial no nosso cérebro.

Não nos enganemos: o estudo, a aquisição de Conhecimento pelo estudo, dá trabalho. Esse trabalho é recompensado pelo desenvolvimento da nossa Inteligência Racional, pela habilidade de memorizar, de relacionar, de aplicar. Mas é apenas a Razão que é aplicada e fortalecida.

Para se desenvolver, para se utilizar a Inteligência Emocional, a que nos permite, quantas vezes sem sabermos como, intuitivamente, dizer a palavra certa, executar o gesto adequado, efetuar a ação necessária sem termos de longamente pesar os prós e os contras, sem necessitarmos de fazer exaustivas análises e cálculos, para isso temos de recorrer às camadas mais profundas do nosso cérebro – e essas desde o início dos tempos foram estimuladas pelo que se via e ouvia, pelo que se repetia uma e outra e muitas vezes, pelo que se ritualizava.

Por isso afirmo que o Ritual é o indutor de mais rápida passagem do Conhecimento à Sabedoria, acelerando o que só a Experiência, a Vida vivida, os erros cometidos e as vitórias alcançadas nos permitiria atingir, não fora ele.

Meus Irmãos: até agora tenho sempre falado de Ritual, sem adjetivar e, sobretudo, sem utilizar o adjetivo maçônico.

Porque o ritual, penso tê-lo demonstrado, existe desde sempre e desde sempre aumenta a capacidade humana de discernir, em suma, de saber. E não há “o “ ritual, há muitos rituais, respeitando a muitos momentos, ocasiões e atividades. Existem, bem o sabemos, rituais religiosos. Mas também de outra natureza, uns mais solenes e utilizados em ambiente de Poder ou de significado social, outros mais simples, íntimos até. Atrevo-me a dizer, por exemplo, que todos os casais com algum tempo de ligação criam os seus rituais próprios, indutores de segurança, conforto e manutenção da relação afetiva. 

Uma categoria de rituais que merece referência é o ritual que podemos denominar de grupal, o que marca, define e corporiza a integração de alguém num determinado grupo. Aí não está em causa a aquisição ou consolidação de conhecimentos ou o acesso a sabedoria, mas simplesmente o estabelecimento de uma união grupal, a que o neófito passa a aceder.

Todo o ritual é importante, precisamente porque correspondendo à mais antiga e natural forma de a Humanidade processar a aquisição de conhecimentos, ganhar e manter confiança, obter conforto e segurança. Não é assim porque queremos que seja, assim é porque a nossa evolução como espécie o determinou. Talvez algo grandiloquentemente, pode-se afirmar que a Civilização se alicerça em rituais. 

Mas os Rituais Maçônicos, esses, partilhando com os demais a mesma natureza de meios indutores de aquisição de Sabedoria, têm ainda uma valência própria, quiçá não exclusiva, mas seguramente que identitária.

Os rituais maçônicos têm uma tríade de caraterísticas, duas delas já referidas e uma terceira que podemos considerar própria. Os rituais maçônicos assumem a natureza de indutores de Sabedoria, são também, particularmente nos rituais de Iniciação e de Aumento de Salário, rituais grupais, mas também assumem a natureza de explanação e aprofundamento de Princípios e Valores.

Esta uma especificidade não negligenciável. Os vários rituais dos diferentes ritos maçônicos apresentam-nos e definem-nos Valores e Princípios a que os maçons devem corresponder. Não estão aqui em causa conhecimentos a interiorizar. Estão, diretamente, aspectos e referências morais a seguir, a cumprir, a divulgar.

Os rituais maçônicos, ao promoverem Princípios e Valores, apelam diretamente às caraterísticas básicas do cérebro humano. Os princípios e Valores expostos, facultados, não se destinam a ser meramente apreendidos pela Inteligência Racional, através do estudo e da aquisição de conhecimentos. Procura-se atingir a Inteligência emocional, o âmago da personalidade de cada um e aí efetuar as modificações inerentes a esses Princípios e Valores.

Busca-se a aceleração do processo. Em vez da mera aquisição pela Inteligência Racional e posterior enraizamento através da experiência, busca-se a inserção direta e eficaz na mente do maçom, atingindo o que o Ritual, desde os primórdios da Humanidade toca: a Inteligência Emocional, logo as profundezas do ser que cada um de nós é. Não se semeia, para que porventura nasça e cresça. Planta-se para que, no mais curto espaço de tempo, haja frutos. 

Os rituais maçônicos destinam-se assim, para além da integração de indivíduos em grupos, a propiciar a modificação de cada um, através da interiorização de Princípios e Valores morais, que devem nortear a conduta de cada um,

Expostos de forma ritualizada, muitas vezes repetida, encenada e praticada, tais Princípios e Valores entranham-se diretamente no âmago essencial de cada um, assim propiciando o seu aperfeiçoamento.

Este processo de aperfeiçoamento não é imediato. É demorado, é evolutivo, depende de patamares.

É por isso que é um erro pensar-se que, sabido o ritual, aprendido a executar o mesmo com perfeição, o nosso trabalho está terminado.

Posso garantir-vos, com base na minha experiência de mais de 30 anos de maçom, que não é assim que funciona.

Decorar o ritual, executá-lo na perfeição, são ainda tarefas do Intelecto, da Inteligência Racional. O que importa é senti-lo, vivenciá-lo, apreender aqui e ali algo de novo, algo que nos chama agora a atenção e em que não reparamos antes. Porque esse é o processo de entranhamento das noções transmitidas pelo ritual, esse é o processo de passagem do Conhecimento à Sabedoria.

Se há algo que verdadeiramente aprendi com os nossos rituais é que se está sempre a aprender algo de novo com os mesmos. Em mais de trinta anos de Maçonaria, já repeti, já executei, já vi serem repetidos, já vi serem executados, os nossos rituais centenas de vezes. Nunca me incomodei com a repetição. Nunca deixei de me concentrar na sua execução. E, trinta anos passados, ainda me sucede que subitamente encontro algo de novo, apesar de ser o mesmo ritual que pratico e a que assisto ao longo deste tempo.

Tal sucede por uma simples razão: encontro numa ocasião aquilo que então estou preparado para encontrar. As palavras, os gestos, os atos, são os mesmos desde o princípio. Mas antes eu não compreendera aquele particular significado, porque ainda não estava preparado para tal. Porque tive de seguir uma evolução, compreendendo aqui algo que mais tarde me permitiu perceber aquilo, que me modificou e levou a entrever aqueloutro pormenor, num processo evolutivo permanente.

É para isso que serve o nosso ritual. Porque o ritual maçônico não é um simples ritual igual a todos os outros que a Humanidade segue. O ritual maçônico é um meio de Construção e Aperfeiçoamento de Nós.

É esta a sua importância!

Autor: Rui Bandeira

Fonte : A Partir da Pedra

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Cowans: os pedreiros sem a palavra – Capítulo II

Geeks Forever: Creepypastas : A MÁGICA

Os cowans nas exposérs e nos rituais maçônicos

A etimologia da palavra cowans preencheu muitas páginas da historiografia inglesa e pouquíssimas páginas, para não mencionar quase nenhuma, em francês.

Embora isso se deva talvez ao fato de o termo ter sido traduzido para o francês de uma maneira muito diferente, e sua singularidade como tal ter sido ocultada de uma maneira que a maioria dos dicionários maçônicos em uso, apesar de ser um termo amplamente usado em inglês na Maçonaria operativa e especulativa em seus primórdios, na bibliografia francesa, dificilmente esse fato é levado em consideração.

Revisando os dicionários em uso como, por exemplo, o Dictionary of Freemasonry, de Daniel Ligou, ou a Enciclopédia de Saunier, nem mesmo a prolífica Irene Mainguy trazem o termo em suas publicações. Quem o faz são Boucher e Bayard, mas acrescentando as citações já expostas sobre a loja de Kilwinning.

Apenas o dicionário de Solange Sudarkis[1] é um pouco mais explícito. Esta autora nos remete às Constituições de Anderson de 1738, cujas palavras são retomadas por Laurence Dermott no Ahiman Rezon. Estendendo-se a autora do repertório em sua entrada ao que já foi exposto neste artigo, sem se aventurar em nenhuma outra novidade.

Nesta busca pela etimologia, há quem nos leve de volta às origens gregas para nos dizer que daí vem uma expressão semelhante que significa algo como “cachorro”. Continuando com essas andanças, existem aqueles que acabam diante da Revista de Maçonaria que, em seu volume 1, cita o Cavaleiro Ramsay quando fala sobre An Inquire Concerning Cowans; e sem sair do solo inglês, a pena de Sir Walter Scott cita os referidos operativos em seu romance Rob roy:

Ela não valoriza um Cawmil Mair como Cowan, e você pode dizer a Mac Callum More que Allan Iverach disse que sim.

É isso que alguns documentos repetem uma e outra vez, mas é preciso dizer que esse conjunto de contribuições dificilmente nos tira da roda gigante da repetição de citações, muitas delas tendo como base o que já foi bem escrito por Mackey, ou pelo próprio Joseph Fort Newton[2].

Quem vem em nosso auxílio neste árduo desbaste entre fontes primárias é, como quase sempre, o grande aluno do fenômeno maçônico, Henry Carr[3], que nos oferece mais pistas sobre tal termo, pelo menos para seguir adiante.

Os cowans nas Antigas Obrigações (Old Charges)

Analisei a etimologia do termo e sua adequação nos campos profissionais relacionados ao mundo da cantaria e, é claro, seu atrito socioprofissional devido a diferentes mudanças nos setores profissionais, e não vejo que manifestem uma atenção especial nas diversas regulamentações socioprofissionais do século XVI ao XVIII, ou seja, nas Antigas Obrigações (Old Charges).

Pode-se dizer que sua presença em tais textos é mínima, como nos mostra o prestigioso pesquisador da chamada Escola Autêntica, Henry Carr, que escreve que a presença dos cowans é notada em dois manuscritos, o Dumfries No. 4 e o Wilkinson.

O primeiro deles, de 1710, em sua lenda do Ofício, nos expõe outra variante do termo: cowin e em cujo texto se insere nesta frase:

The Assembly Itim that no master masson shall make any mould square or Rule to any Layer or cowin Itm that no mg within or without a loge shall set a lay mould of stone or other ways without».[4]

A tradução francesa se apresenta assim:

Item, nul maître maçon ne fabriquera aucun gabarit, equerre ou regle pour un poseur ou un cowan. 

Que viria a ser traduzido para o português assim:

Nenhum Mestre Maçom fabricará qualquer modelo, esquadro ou régua para alguém que se passa por (se apresenta), ou que não tem qualidades (finge) ou um cowan.

No Prefácio do referido manuscrito fala-se “das obrigações de todos os maçons verdadeiramente qualificados”. Assim, fazendo-se uma distinção entre maçons qualificados e os “outros”, deve se referir, portanto, aos cowans, que além disso qualifica como trabalhadores temporários.

O segundo documento é o manuscrito Wilkinson de 1727, que Harold Wilkinson da Loja Pomfret nº 360 encontrou em 1946 entre os documentos de seu falecido pai Samuel Blaze Wilkinson (1851-1931). E, portanto, ele carrega seu nome.

O manuscrito Wilkinson parece representar um ritual anterior a exposér de Prichard, e parece não haver evidências de que ele tenha sido praticado em qualquer Loja de Northampton, onde foi encontrado. Tampouco se pode afirmar, certamente, por razões que explicaremos mais adiante, que o documento fosse escrito em data anterior ao que se diz. Este evento, como o resto da história, foi publicado por Knoop e Jones em sua resenha sobre tal manuscrito[5].

Em resumo, cowan é um termo que, primeiramente, vem do campo profissional rural, isto é, de uma guilda no amplo mundo do trabalho em pedra, mas que estava fora das questões regulatórias e da articulação das corporações de ofício. Não parece que eles tivessem regulamentos ou qualquer organização, pelo menos os historiadores não o incluem como tal.

Sabemos tangencialmente e por fontes das próprias corporações de ofício que esses trabalhadores, por diferentes razões, eram exógenos ao classismo da cantaria, uma vez que eram trabalhadores que não tinham a etiqueta das distintas organizações corporativas (irmandades, guildas, corporações, etc.), onde seus membros tinham diferentes formas de aceitação e reconhecimento (palavras e toques) que faltavam a esses trabalhadores rurais que não podiam, portanto, valer-se da ajuda fraterna das diferentes organizações do Ofício.

Isso que, em princípio, não deveria ter maior importância, pois os dois setores não estavam em concorrência conforme já foi dito, quando a pressão trabalhista os levou a se mover, alguns em direção a áreas rurais com a construção de igrejas, e outros em direção a cidades para reconstrução delas, como foi o caso de Londres. Isso demonstra que um terceiro significado estava emergindo, de maneira depreciativa, fazendo os cowans rurais parecerem intrusos.

Os cowans no ritual maçônico inglês

Por outro lado, como eu já disse, o termo cowan não merece muito mais atenção do mundo sócio trabalhista da cantaria no território inglês, uma vez que as fortes estruturas e regulamentos assumiram a situação como uma consequência da estratificação sócio trabalhista, e assim podemos entendê-la quando não encontrar na barafunda de manuscritos regulatórios (Antigas Obrigações) nada mais do que um número muito pequeno de citações.

Sem descurar o declínio das guildas operativas, paralelamente, a questão dos cowans passou a um segundo plano.

Em vez disso, com o surgimento da Maçonaria especulativa a partir de 1717 e a chegada das exposérs publicadas nos tabloides ingleses, bisbilhotando os trabalhos do ritual maçônico que naquela época era um produto de alta demanda entre o público em geral, e esse termo estava vinculado principalmente ao âmbito profissional sob várias acepções: maçons rurais, pedreiro de muros, maçom sem reconhecimento ou pedreiro temporários etc., leva a uma nova acepção, e os famosos cowans começam a aparecer, atribuindo-lhes ou assimilando-os a novos termos como: leigos que pretendem entrar nas lojas, eles também são descritos como intrusos, e um pouco mais tarde eles são denunciados como espiões.

Assim, nos chegam as diferentes exposérs nos jornais da época, que dada sua semelhança, fazem com que seu conteúdo nos ofereça certas garantias de que o que elas nos dizem corresponde a uma realidade na qual quase todas coincidem mais ou menos[6].

Uma dessas exposérs, a A Mason’s Confession (Confissão de um maçom) de 1727, que reuniu as cerimônias dos maçons especulativos daqueles primeiros anos, traz em sua primeira citação:

immediately after that oath, the administrator of it says, you sat down a cowan, I take you u Mason. (Imediatamente após o juramento, o presidente diz: aqui chegastes como cowan (profano) e eu te aceito como maçom).[7]

Uma frase que não deixa de ser surpreendente, pois pode ser interpretada como uma mão estendida a quem, depois de procurar um lugar na vida, a encontra com essa ajuda de ser aceito como maçom. Mas estamos falando da época especulativa, dez anos haviam se passado desde a fundação da Grande Loja, e não estamos mais falando de um profano, mas de um cowan. O que o autor de Confissão nos quer dizer com esta frase?

Que ainda pesava a herança operativa no seio da nova proposta especulativa. É uma possibilidade.

Outra citação que já conhecemos em parte é esta:

Q. How high should a mason’s siege be? A. Two steeples, a back, and a cover, knee-high all together. ——N.B. One is taught, that the cowan is taught, that the cowans stage is built up of whim stones, that it may so on tumble down again; is taught, that the cowans siege is build-up of whim stones, that it may soon tumble down again; and it stands half out in the lodge, that his neck may be under the drop in rainy weather to come in at his shoulders, and run out at his shoes».[8]

Um assento, um local … mas onde? O texto está se referindo à parte externa da loja, naquele ponto em que o último trabalhador, talvez o cowan, não estava sob o abrigo da Loja e, portanto, exposto a intempéries que lhe fustigavam todo o corpo. É possível que seja isso.

Por outro lado, nas Constituições de Anderson, o autor não foi sensível a essa questão em seu texto de 1723, cuja ausência não chamaria a atenção, se não fosse pelo fato de que quinze anos depois, na revisão de 1738, ele introduziu esta frase:

Os maçons livres e aceitos não permitirão aos cowans trabalhar com eles, e eles não serão empregados a menos que haja uma necessidade urgente…

Cabe então perguntar por que Anderson levanta essa questão de “necessidade urgente”, justamente naquele momento, 1738 …? Essa necessidade foi justificadamente invocada em 1666, após o incêndio em Londres, que fez com que chegassem à capital inglesa as mais variadas guildas de pedreiros.

Um pouco antes da modificação andersoniana, foi publicada a talvez mais importante exposér dentro desse panorama de rituais maçônicos, e ligada ao setor dos Modernos. Trata-se da obra de Prichard, Maçonaria Dissecada (1730) em que o termo que nos interessa aqui surge em várias ocasiões. Vejamos então as citações:

A certa altura do catecismo clássico dos trabalhos rituais, o Venerável Mestre pergunta ao Aprendiz Aceito onde ele se situa e este responde:

Apr: Ao norte.

VM: Qual é o seu dever?

Apr: Manter afastados todos os cowans ou bisbilhoteiros (eaves-droppers)

VM: Se um cowan for capturado, como ele deve ser punido?

Apr: Colocando-o sob os beirais da casa em tempo chuvoso até que a água entre por seus ombros e saia pelos seus sapatos.[9]

É aqui que se aprecia o vínculo que se faz entre os cowans como “bisbilhoteiros”, (eavesdroppers), que é exatamente o termo de correlação. Mas, para que se perceba como esses termos desaparecem ou se deformam com as traduções, naquela já mencionada de Renato Torres, neste caso da chamada Maçonaria Dissecada, ele traduz “To keep off Cowans and Eves-droppers”, como “Afastar profanos e bisbilhoteiros.”

Como se pode ver, os rituais e os catecismos valem-se das mesmas fontes, pelo menos em relação a algumas questões, pois mostram as coincidências entre as duas exposérs: A Mason’s Confession e a Maçonaria Dissecada.

Também aparece um pouco mais adiante, quando a VM continua com o catecismo:

P. Qual era a altura da porta da Câmara do Meio?

R. Tão alta que um cowan não conseguiria cravar um alfinete.

A resposta, digamos, está na tradução da seguinte frase do catecismo, pelo menos em relação à tradução francesa, quando diz:

Ela é tão grande que uma manobra (manoeuvre) não podia cravar um alfinete (épingle).

E comento que tal explicação está na tradução porque, por um lado, manouevre, geralmente traduzida como manobra e, como me explica o maçonólogo Joaquim Villalta, esse termo deveria ser traduzido como “peão” ou “mão de obra”, para se encaixar no entendimento mais adequado da frase, inclusive entendendo o termo “Pin” como prego, ou seja, um cravo pequeno e fino. Mas, no entanto, a frase na realidade, no idioma original em inglês, é “So high that a Cowan could not reach to stick a Pin in”, ou seja, que não existe manobra alguma, apenas a versão livre francesa de cowan[10].

Por sua parte, Laurence Dermott também dedica a eles várias citações em sua Bíblia constitucional, como é o Ahimam Rezon (1751) para os Antigos, onde ele escrevia sobre esses pedreiros marginais como “When sinful Cowans were grooving in the tide, the Mason Ark triumphantly did ride”.[11]

Pecaminosos… Por qual razão o seu trabalho nas áreas rurais, construindo muros, era repreensível ou imoral? Quando, na realidade, os irlandeses que constituíam a Grande Loja dos Antigos eram geralmente da mais baixa classe social de Londres, ou pelo menos assim eram considerados, incluindo o próprio pai fundador.

Laurence Dermott se deixa resvalar ladeira abaixo quando indica que nobres ricos podem contratar bons maçons e não cowans. Tinha ele medo da concorrência?

When Men of Quality, Eminence, Wealth, and Learning, apply to be made, they are respectfully accepted, after due Examination; for such often prove good Lords (or Founders) of Work, and will not employ Cowans when true Masons can be had; they also make the best Officers of Lodges, and the best Designers, to the Honour and Strength of the Lodge; nay, from among them the Fraternity can have a Noble Grand Master; but those Brethren are equally subject to the Charges and Regulations, except in what more immediately concerns Operative Masons»[12]

Aqui, Dermott repete o que Anderson disse em 1738:

But Free and Accepted Masons shall not allow Cowans to work with them, nor shall they be employed by Cowans without an urgent Necessity; and even in that Case they must not teach Cowans, but must have a separate Communication; no Labourer shall be employed in the proper Work of Free-Masons.[13]

A seção dedicada ao telhador (Tyler) se determina:

BROTHER V. W.: You are appointed Tiler of this Lodge, and I invest you with the implement of your office. As the sword is placed in the hands of the Tiler, to enable him effectually to guard against the approach of cowans and eavesdroppers, and suffer none to pass or repass but such as are duly qualified, so it should admonish us to set a guard over our thoughts, a watch at our lips, post a sentinel over our actions; thereby preventing the approach of every unworthy thought or deed, and preserving consciences void of offense toward GOD and toward man.[14]

Mas nas Constituições dos Antigos, Ahiman Rezón, a palavra cowan aparece cerca de catorze vezes e novamente em Tubal Kain.

Outros textos rituais seguem linhas semelhantes, seja de uma forma muito definida, como já vimos ou retirando certas assimilações.

No Guia de maçons escoceses de 1829:

P. Quem são aqueles a quem você chama cowans?

R. Aqueles que não são maçons.[15]

Mais adiante, se pergunta:

P. Um maçom pode seguir sendo um Cowan?

R. Aquele homem que ingressa por mera curiosidade, para ganhar posição social ou vantagens nos negócios, o falso maçom é o verdadeiro cowan, uma fonte sutil de problemas dentro do corpo do Ofício, que certamente afetará a vida da Irmandade. se não se tiver cuidado.[16]

A pergunta que poderíamos fazer é: por que se segue em 1829 assimilando a questão dos falsos maçons aos cowans? E não apenas isso. Como é possível continuar mantendo-os como fonte de diversos problemas, e isso não é feito falando diretamente de profanos que desejam ingressar na Maçonaria?

Em geral, essas são perguntas que os historiadores não se fizeram, mas que dificilmente foram objetivadas, e a possível resposta que temos para essa tendência dos maçons de manter as analogias antigas dentro dos rituais que nos podem parecer um tanto estranha e até pouco compreensível, mas explica o conteúdo e o continente, embora no final o que resta de tudo isso, e se torna muito evidente, é o interesse em assemelhar o termo cowan a uma série de atitudes reprováveis.

Nesse sentido o ritual Duncans’ Masonic Ritual and Monitor (1866) se expressa deste modo:

Q. Brother Tyler, your place in the Lodge. (Irmão Guardo do Templo Qual é o seu lugar na loja?)

A. Without the inner door. (Fora da porta interna)

Q. Your duty there? (Qual é o seu dever ali?)

A. To keep off all cowans and eavesdroppers, and not to pas o repas any but are duly qualified and have the Worshipful Master´s permission. (Manter afastados todos os profanos e bisbilhoteiros, e não deixe passar ninguém devidamente qualificado e sem a permissão do Venerável Mestre.)

Nesta linha que marca muito uma parte da ritualidade inglesa dos Antigos, mesmo quando a unificação de 1813 com os Modernos e os Antigos a tenha deixado para trás, e eles haviam se imposto uma normalização ritual através da implosão de ritual padronizado para esta nova fase, como é o ritual Padrão de Emulação, e onde se pode ver que em um ritual como o Duncan, o chamado Tyler (Guarda do Templo), localizado fora da loja, apresenta como missão, espada na mão, garantir que nenhum cowan ou intruso entre na loja.

A esse respeito, dos cowans surgiu um dilúvio de versos e canções satíricas, como a de Gavin Wilson, poeta e maçom da loja St. David no. 36 de Edimburgo, que em 1788 em suas canções satíricas apresenta os cowans como tolos que, pretendendo obter o Palavra de Maçom, podem ser enganados de mil e uma formas[17].

Por sua vez, o prestigiado Makey apresenta, quando narra como Robert Jamieson, em sua busca por possíveis derivações do termo, se coloca diante da alocução que termina com o termo “cachorro” (talvez ligando o fato de que os escritores bíblicos haviam exposto precisamente o cão como uma imagem de desprezo) e, a partir dessa acepção a que chega Jamieson, este o coloca em relação à língua sueca, para concluir a caracterização dos cowans como Kujon ou Kuzhhjohn que significa: “tolo”.

Continua…

Autor: Victor Guerra
Tradução: José Filardo

Fonte: BIBLIOT3CA

Publicado originalmente em: ritofrances.net/

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Notas

[1] – Dictionnaire vagabond de la pensée maçonnique. Éditions Dervy. 2017

[2] – The Builders. A Story and Study of Masonry. Grand Lodge of Iowa. 1914.

[3] – The Early Masonic Catechisms. Quatuor Conorati Lodge nº 2076. 1975.

[4] – MS. on two lines withgo owl.

[5] – https://hermetismoymasoneria.com/s13doc2a.htm.

[6] – Révaguer, Marie-Cécile. Les âges de la vie pour le franc-maçon britannique du XVIIIe siècle In: Les Âges de la vie en Grande-Bretagne au XVIIIe siècle. Presses Sorbonne Nouvelle, 1995.

[7] – En la traducción de Renato Torres, para el libro: Catecismos Masónicos (1696-1750). Edito Pardes. Este traduz a frase como: Você sentou-se como um cowan, eu lhe ergo como um pedreiro.

[8] – P. – Qual deve ser a altura de um assento de maçom?  R. – Duas agulhas de campanário, um encosto e um teto, todos à altura do joelho. Nota- É ensinado que o assento de um cowan é feito de pedra vulcânica para que afunde rapidamente. E está localizado metade na loja, metade do lado de fora, para que o pescoço do cowan fique sob o beiral do telhado em tempo chuvoso e que a água lhe penetre por entre seus ombros e saia pelos seus sapatos.

[9] – O ilustrador W. Hogarth, em 1730, parodia esse curioso castigo em sua obra Night . Ver: Mulvey-Roberts, Marie. Hogarth on the Square: Framing the Freemasons. Journal for Eightieth-Century Studies. Vol. 23. 2003.

[10] – (Nota do Tradutor) Os Cowans, apesar de qualificados como pedreiros, não eram assim considerados pelas corporações, que os consideravam apenas “mão de obra” a ser contratada em caso de emergência. O que pode ter ocorrido é o tradutor francês interpretar a palavra cowan como mão de obra e ao grafar “main d’oeuvre”, escreveu “manoeuvre”, gerando assim uma distorção no entendimento da frase original em inglês.

[11] – “Quando os pecaminosos Cowans sucumbiam à maré, a Arca do Mason triunfante subiu.”

[12] – “Quando homens de qualidade, eminência, riqueza e aprendizado solicitam serem recebidos, eles são respeitosamente aceitos, após o devido exame; porque eles frequentemente provam ser bons Senhores (ou Fundadores) do Trabalho e não empregarão Cowans quando podem ter verdadeiros maçons; eles também são os melhores Oficiais da Loja, e os melhores Desenhistas, para a Honra e Força da Loja; mais que isso, de entre eles a fraternidade pode ter um Nobre grão-mestre; mas esses Irmãos estarão igualmente sujeitos aos Cargos e regulamentos, exceto no que concerne mais imediatamente aos Maçons Operativos.”

[13] – “IRMÃO VW: Fostes nomeado Tyler (guarda do templo) desta Loja e eu vos invisto com a ferramenta de seu ofício. À medida que a espada é colocada nas mãos do guardo do templo, para efetivamente permitir que ele se proteja contra a aproximação de cowans e espiões, e não permita que alguém passe ou repasse, a menos que esteja devidamente qualificado. Com isso se quer nos advertir a colocar guardar um guarda sobre nossos pensamentos, vigilância em nossos lábios, uma sentinela em nossas ações; evitando assim a abordagem de qualquer pensamento ou ato indigno e preservando as consciências sem ofender a DEUS e ao homem.”

[14] – A este respeito, há uma nota que diz Le Parfait Maçon – Pro-phanus significa fora do Templo, e o profano designa quem não entrou em seu Portal janua. O termo inglês Cowan designa qualquer estranho à guilda que não possua a Palavra, já que se tratava de um leigo, um espião ou um pedreiro ou um aprendiz que não foi recebido maçom (http://helmantica182.org/wp-content/uploads/2016/01/Lecturaspyg.pdf)

[15] – Contém uma nota que nos remete às Constituições Anderson de 1738

[16] – http://mvmm.org/c/docs/eng/wilson.html

A Evolução da Lenda Hirâmica na Inglaterra e na França (Parte II)

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Nessa segunda parte do trabalho, Dr. Snoek irá abordar como  Pritchard, e outras exposures subsequentes do século XVIII, narram o desaparecimento do Mestre Construtor e todos os esforços empenhados para encontrá-lo.

Para ter acesso ao texto clique no link abaixo e digite a P∴P∴ de M∴ (a primeira letra é maiúscula; a última letra é “m”):

https://opontodentrocirculo.com/2017/05/31/a-evolucao-da-lenda-hiramica-na-inglaterra-e-na-franca-parte-ii/

A Evolução da Lenda Hirâmica na Inglaterra e na França (Parte I)

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Em um trabalho profundo e provocativo intitulado “O que se perdeu no Terceiro Grau?”, o Dr. Snoek afirmou que os ritos maçônicos que conhecemos hoje sofreram muitas mudanças. A primeira delas foi a ampliação de dois para três graus na década de 1720, e em segundo lugar a introdução da Lenda de Hiram, exposta pela primeira vez por Samuel Pritchard em outubro de 1730.

Em seguida, ele se referiu a algo muito curioso: Pritchard e todas as exposures subsequentes do século XVIII, declaravam que Hiram foi enterrado no Sanctum Santorum do Templo de Jerusalém. No entanto, tal ato teria sido proibido por contaminar o Santuário.

Segundo o Dr. Snoek, os maçons do século XVIII identificavam Hiram com o próprio Yahveh, que teria ditado as dimensões do Templo ao Rei David antes que o trabalho fosse realizado por seu filho Salomão.

Ele apresentou uma série de ilustrações que mostram como as exposérs continentais tinham o nome de Yahveh sobre o ataúde de Hiram no Terceiro Grau.

Ainda de acordo com o Dr. Snoek, esta identificação do candidato com o Construtor do Templo e, portanto, por analogia com Yahveh, é familiar aos historiadores da religião como uma “união mística“, onde o praticante tenta se unir misticamente à divindade. Em seguida passou à revista dos acontecimentos de 1813, quando o nosso ritual atual foi criado, e concluiu que as práticas modernas romperam o funcionamento dos trabalhos das duas Grandes Lojas, a Antiga e a Moderna.

Essa alteração fundamental para os três graus, removeu os aspectos místicos da Maçonaria do século XVIII, em uma aparente tentativa de tornar as cerimônias mais aceitáveis aos membros não-cristãos e com um sabor mais adequado ao gosto do século XIX.

Para ter acesso ao texto clique no link abaixo e digite a P∴P∴ de M∴ (a primeira letra é maiúscula; a última letra é “m”):

https://opontodentrocirculo.com/2017/05/22/a-evolucao-da-lenda-hiramica-na-inglaterra-e-na-franca-parte-i/

Incenso e Altar dos Perfumes no REAA

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Um irmão escreveu a Pedro Juk a seguinte questão:

Estimado Pedro Juk, surgiu-me uma dúvida quando estava lendo o Informativo JB News de número 1359, onde outro irmão pergunta sobre o uso do incenso em Loja. O Irmão respondeu que não está previsto o uso do incenso no REAA, sendo portanto proibido. Foi ai que surgiu a minha dúvida. Para que serviria o Altar dos Perfumes que fica no Oriente? Ao meu entender seria para colocar uns incensos, umas essências para perfumar a Loja. Não fazer uma cerimônia de incensação, mas apenas deixar um incenso perfumando a Loja. Pode por gentileza sanar essa minha dúvida.

Considerações

Pois é meu Irmão, esse Altar no simbolismo do Rito não serve realmente para nada. Existem três possibilidades de o mesmo ter permanecido no Oriente da Loja sem qualquer utilidade.

A primeira possibilidade talvez tenha sido quando das já extintas Lojas Capitulares, cujas particularidades do mobiliário e decoração se distinguiam do simbolismo.

Houve tempo, já no século XIX, que essas Lojas Capitulares englobavam no Grande Oriente da França e os seus seguidores também o simbolismo, isto é: do primeiro Grau até o décimo oitavo Grau. Quando esse sistema foi extinto, ficando apenas o simbolismo com o Grande Oriente e os demais com o Supremo Conselho, algumas particularidades capitulares acabariam por permanecer no básico maçônico (três primeiros graus), como é o caso do Oriente elevado e da balaustrada.

Assim existe a possibilidade de que o Altar dos Perfumes tenha sido também um elemento do outro sistema (o capitular) que acabara permanecendo onde não deveria ter sido conservada.

Já a segunda possibilidade está na cerimônia de Sagração do Templo, cujo costume acabou se generalizando no Brasil com uma mesma ritualística através de um mesmo ritual especial e específico por Obediência para todos os ritos nela praticados, inclusive inserindo caracteres desconhecidos para alguns sistemas ritualísticos. Daí talvez dessa cerimônia de Sagração, onde é pertinente o uso desse Altar apenas na oportunidade em que o Templo é consagrado já que a Sagração de um Templo se faz tão-somente uma só vez, acabaria permanecendo esse móvel no Oriente da Loja simbólica escocesa, porém sem apresentar qualquer significado, já que os seus rituais simbólicos (Aprendiz, Companheiro e Mestre) não preveem com ele qualquer prática ritualística.

Quanto à última possibilidade, que eu particularmente entendo como bastante provável, é a do simples “enxerto” no escocesismo simbólico de uma cerimônia de incensação, cuja característica e tradição pertencem a outro rito.

Como o Rito Escocês tem sido tratado como uma verdadeira “colcha de retalhos”, nada mais comum que certos rituais equivocados e ultrapassados tenham por seus autores associado uma cerimônia de incensação com seus turíbulos e incensos e, obviamente não podendo faltar o Altar dos Perfumes.

Deste modo, em se tratando do simbolismo escocês, como esse Altar só é usado na consagração do espaço, não demoraria muito a aparecer a invenção do tal acendimento de incenso na Loja. Destarte, unindo o útil ao agradável, apareceria o elemento fumígeno com o seu respectivo suporte de apoio – o Altar.

Daí também inventar-se-ia até a tal “chama votiva” que deveria ficar acesa sobre o dito altar em alusão à presença do “Criador”, como se já não existisse o Delta que é um dos mais importantes símbolos que relembra a presença da “Divindade”, seja ela de concepção teísta, ou deísta.

Como pelo exposto no Rito Escocês tradicionalmente não existem esses procedimentos, os atuais rituais simbólicos do GOB não mencionam qualquer prática litúrgica que envolva o Altar dos Perfumes e outras ações dele derivadas, contudo o dito ainda equivocadamente permanece identificado como mobiliário na planta do Templo.

O ideal seria mesmo suprimi-lo no rito em questão, senão a sua presença acabaria dando margem, por exemplo, ao juízo como aquele emanado pela vossa respeitável pessoa: “Ao meu entender seria para colocar uns incensos, umas essências para perfumar a Loja. Não fazer uma cerimônia de incensação, mais apenas deixar um incenso perfumando a Loja”.

O ideal seria mesmo suprimi-lo no rito em questão, senão a sua presença acabaria dando margem, por exemplo, ao juízo como aquele emanado pela vossa respeitável pessoa: “Ao meu entender seria para colocar uns incensos, umas essências para perfumar a Loja. Não fazer uma cerimônia de incensação, mais apenas deixar um incenso perfumando a Loja”.

Autor: Pedro Juk

Fonte: JB News, nº 1463

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O que quer dizer “Em Loja”?

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Meus irmãos, quando o Venerável diz “Em Loja”, no Rito Escocês Antigo e Aceito, da Grande Loja Maçônica de Minas Gerais, ele quer dizer que a partir desse momento os trabalhos estão abertos para se realizar a preparação e verificação de toda as condições para início dos trabalhos ritualísticos.

Ou seja, vamos fazer os trabalhos introdutórios e a partir de agora todos que se levantarem devem fazê-lo à ordem e, cruzando o eixo do templo, fazer sinal ou reverência ao Delta.

Devemos estar a partir desse instante bem atentos e deixar de fora nossas preocupações profanas, inclusive o apego ao celular.

O Venerável, a partir desse instante, comanda a verificação da inviolabilidade do templo. Verifica se a loja possui os irmãos necessários para início dos trabalhos. Esse número de irmãos deve ser, no mínimo, de sete irmãos mestres, pois só os mestres podem ocupar cargos, e o Chanceler, através do Livro de Registro de Presença, é o responsável por comunicar se há o número necessário de mestres presentes.

O Venerável também lembra e checa com cada oficial as suas obrigações.

O segundo Diácono, além de atender ao Primeiro Vigilante, deve observar se os obreiros estão com postura Maçônica, ou seja, os braços e pernas não podem estar cruzados e a coluna deve estar ereta com as mãos sobre os joelhos.

Ao Primeiro Diácono cabe cumprir as ordens do Venerável Mestre e dar atendimento no Oriente quanto a movimentação de decretos, atas a serem assinadas, entre outros.

Portanto, se temos o Primeiro e Segundo Diácono para auxiliar no Oriente e Ocidente, para que sobrecarregar o Mestre de Cerimônias?

O Venerável pede então ao Chanceler para nos lembrar os objetivos de nossa Ordem, e solicita também ao Primeiro Vigilante que nos recorde porque estamos reunidos.

Após esta introdução, o Oficiante vai abrir o Livro da Lei, invocando o auxílio de nosso criador para que o Venerável declare a loja aberta e os trabalhos em plena força e vigor.

Ao final dos trabalhos quem fecha a Loja é o Primeiro Vigilante, mas todos continuam à Ordem. Só após o Venerável declarar que a Loja está fechada e os trabalhos encerrados podemos desfazer o sinal e vamos jurar que tudo quanto se passou e não possa ser revelado será guardado em silêncio. Tudo que for bom para o mundo profano, e não afete os segredos de nossa Ordem, pode sim ser revelado.

Sei que parece óbvio, mas muitas vezes podem ocorrer dúvidas sobre esses simples, mas fundamentais procedimentos, dúvidas que acometem principalmente os Aprendizes, e foi com o objetivo de auxiliá-los a execução desta prancha.

Autor: Antônio José da Silva

Antônio José é Mestre Instalado, membro da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, vice-presidente da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, membro da Loja de Pesquisas Quatuor Coronati Pedro Campos de Miranda, e também um grande incentivador do blog.

René Guénon e a Maçonaria (Parte II)

Abundando no dito, Guénon assinala[6] a similitude que existe entre as palavras “secreto” (secretum) e “sagrado” (sacratum), adicionando que “se trata, tanto num como em outro caso, daquilo que está posto aparte (secernere), reservado, separado do domínio profano”. E prossegue: “igualmente o lugar consagrado é chamado templum, cuja raiz tem (que se reencontra no grego temnô, cortar, separar, de onde temenos, recinto sagrado) expressa também a mesma ideia; e a ‘contemplação’ se vincula ainda a esta ideia por seu caráter estritamente ‘interior’ “. Estas palavras nos levam a considerar o papel fundamental que na tradição Maçônica desempenha a Loja, o Templo ou “recinto sagrado” que segundo a fórmula ritual tem de estar “a talher”, isto é “separado” e “posto aparte” da realidade relativa, e portanto ilusória, do mundo profano, significando esta palavra, profano, o que literalmente está “fora do templo” (profanum). Mas ademais, a Loja, o Templo maçônico, representa uma verdadeira síntese da ordem universal (da Cosmogonia) e, por conseguinte, um modelo simbólico sumamente importante cuja estrutura o maçom tem de conhecer perfeitamente, formando assim parte integrante do próprio ensino iniciático.

A Loja é consubstancial à Ordem Maçônica, pois não se deve esquecer que as origens da mesma se remontam à construção do Templo de Jerusalém, ou de Salomão, ao que a própria Loja reproduz em seu esquema essencial. Ademais, é na Loja, dentro do “recinto sagrado”, onde se cumprem todos os trabalhos rituais, e este é o motivo de que a Loja também seja considerada como um “Ateliê”, recordação sem dúvida alguma dos tempos operativos, mas que continua sendo um termo ainda válido para quem a iniciação e seu processo é o exato equivalente da “Arte Real” ou “Grande Obra”. Em efeito, Guénon afirmou em várias ocasiões que o mais importante na Maçonaria é a execução do ritual, que é o verdadeiro trabalho maçônico, em primeiro lugar porque o rito não é senão o próprio símbolo em ação e, portanto, não está separado da ideia que conforma ao símbolo: é essa mesma ideia manifestando-se, e é por isso que é o veículo de transmissão da influência espiritual ou supra-individual. E em segundo lugar, e como conseqüência disso, porque essa ação está realizada sempre conforme a ordem, ou seja, conforme as próprias leis do cosmos, pois esta palavra, cosmos, em grego significa precisamente “ordem”, que é por verdadeiro a tradução exata do sânscrito rita, idêntica evidentemente à palavra rito[7]. Cosmos, ordem e rito (é dizer o símbolo em ação) são então três termos equivalentes, daí a necessidade de que o gesto ritual seja executado o mais perfeitamente possível, porque desta maneira se entra em correspondência direta com a Harmonia universal[8].

A Maçonaria mesma se identifica e é una com essa Harmonia, e para seus membros ela é “a Ordem”, entendida claro está, como sinônimo da própria Ordem cósmica, como se, efetivamente, não fora senão uma emanação direta dela. Naturalmente isto não é privativo só da Maçonaria, pois o mesmo poderia dizer-se de todas as organizações iniciáticas e tradicionais. Mas na Maçonaria, pelo fato de derivar de uma tradição de construtores, que entendiam o cosmos como uma arquitetura, e a arquitetura como uma imitação do modelo cósmico, essa relação com a ordem universal se faz mais evidente e está em sua própria razão de ser. Ademais, a denominação de Grande Arquiteto dado ao princípio espiritual sob a inspiração do qual se realizam todos os trabalhos e ritos maçônicos, é motivo mais do que suficiente para que não caiba a menor dúvida a respeito. E é esse Princípio, que Guénon identifica com o Viswakarma indiano, ou o “Espírito da Construção Universal[9], o que é transmitido, ou ao menos seu germe ou semente virtual, no rito da iniciação Maçônica, e o que está “presente” sempre na execução do rito quando este, como se disse antes, é uma “ação feita conforme a ordem”. Esse espírito se concebe como uma “luz”, e o desenvolvimento do germe espiritual implantado pela influência iniciática, se verá como uma “iluminação” progressiva da consciência humana[10], iluminação que é análoga “à vibração original do Fiat Lux que determina o começo do processo cosmogônico por meio do qual o ‘caos’ das possibilidades será ordenado para devir o ‘cosmos’ “. A “iluminação” iniciática, que é um “segundo nascimento”, opera então o mesmo efeito no ser que a ação da Palavra ou Verbo divino ao projetar o Fiat Lux no caos ou matriz primigênia, de onde nasce igualmente o mundo. Dito caos, Guénon em certo modo o assimila às “trevas exteriores” do estado profano, de onde procede ao recipiendário antes de sua entrada no Templo, entrada que será para ele, em efeito, uma passagem “das trevas à luz”. Existe, por tanto, todo um conjunto de correspondências e analogias entre o processo cosmogônico e o processo iniciático, “e assim a iniciação é verdadeiramente, segundo um caráter por outro lado muito geral dos ritos tradicionais, uma imagem de ‘o que foi feito no começo'”[11].

Segundo esse “caráter geral”, além do rito propriamente iniciático, a “imagem do que foi feito no começo” a Maçonaria a repete no ritual de abertura da Loja, abertura que é sem dúvida alguma um ato cosmogônico e, por conseguinte, uma fonte de ensino simbólico inestimável para entender o sentido da própria iniciação[12]. Em efeito, até o momento de sua abertura a Loja permanece em “trevas”, ou num “caos” potencial que será progressivamente “alumiado” e “ordenado” pela ação do rito, ação que determinará a criação de um espaço e um tempo sagrados, pois a energia do símbolo terá sido plenamente atualizada, passando a ser a Loja então “um lugar muito alumiado e muito regular”, expressão Maçônica que se seguiu conservando, e da que Guénon diz que representa “uma recordação da antiga ciência sacerdotal que regia a construção dos templos”[13]. Dita ciência é a Geometria, à que os operativos identificavam com a própria Maçonaria, pois a arte da construção, isto é a arquitetura, constitui o desenvolvimento das ideias contidas nas formas geométricas, entendidas estas em seu aspecto puramente qualitativo, que é o que sempre teve na Maçonaria e em todas as tradições. Não é então por casualidade que nesta o Grande Arquiteto receba também o nome de “Grande Geômetra do Universo”.

Em efeito, a geometria é a ciência Maçônica por excelência[14], estreitamente relacionada com a ciência dos números, pois a geometria é realmente o corpo do número, mas o número considerado não como cifra, que só serve para o cômputo quantitativo, senão como ideias de ordem metafísica que, ao se manifestarem, organizam a Inteligência ou estrutura invisível do cosmos, gerando sua dinâmica interna ou Alma universal, e com ela o Rito cósmico e a possibilidade da vida sob todas as formas em que esta se expressa. Falar de número é falar, como pensavam os pitagóricos, de uma energia ou força em ação, de um poder divino que, ao plasmar-se na substância receptiva do mundo e do homem, atualiza-a e a faz inteligível, isto é, ordena-a ao conjugar e harmonizar suas partes dispersas. E já que falamos dos pitagóricos (cuja herança afirma Guénon passou à Maçonaria medieval através dos Collegia Fabrorum romanos), devemos dizer que para eles o Deus geômetra era o próprio Apolo hiperbóreo, Deus da Luz primigênia do qual Platão diz que “geometriza sempre”, pois com seus raios luminosos “mede” a totalidade da manifestação universal, extraindo o cosmos do caos.

Neste sentido, Guénon nos diz no terceiro capítulo do “reino da quantidade e os signos dos tempos”, titulado “Medida e manifestação”, que esses raios equivalem às middoth da Cabala (que significam precisamente “medidas” em hebraico), assimiladas aos atributos e nomes divinos, “afirmando-se que Deus criou os mundos graças a elas, o que por outra parte se relaciona precisamente com o simbolismo do ponto central e das direções do espaço. Também poderíamos recordar a este respeito a frase bíblica na que se afirma que Deus tem ‘disposto de todas as coisas em número, peso e medida'”[15]. Segundo isto a manifestação corpórea, ou o mundo físico, deve tomar-se como um símbolo de toda a manifestação universal, pois de outra maneira esta (a manifestação universal) deixaria de ser representável, ou seja, não poderia ser simbolizada de nenhuma maneira, o que evidentemente é impossível, pois a lei de analogia e de correspondência (lei que constitui a chave do símbolo) atua em todos os níveis e planos da manifestação, relacionando-os uns com outros, gerando assim o discurso da existência. O próprio pensamento humano é analógico, e é precisamente essa qualidade a que lhe permite aceder e compreender, a seu nível correspondente, as realidades superiores.

É então por isso que o espaço físico se toma como um símbolo da própria ordem cósmica, e esse espaço é realizado e medido em toda sua extensão pelas seis direções, equivalentes simbolicamente às middoth ou atributos divinos e aos “raios luminosos” do Apolo hiperbóreo, todos eles partindo de um centro, que no caso da representação geométrica é um ponto, e no mundo espiritual é o “Coração ou Centro do Mundo”, ou seja Deus mesmo ou a Unidade primordial. A Loja, que é, voltamos a repetir, uma imagem do cosmos, não se “atualiza” até o momento em que se “acendem as luzes”, as quais, efetivamente, a fazem passar das “trevas à luz”. Todo isto é importantíssimo no simbolismo maçônico, ao que, como estamos tentando explicar aqui, Guénon restituiu sua autêntica dimensão iniciática e esotérica. O mesmo nos diz num capítulo dos símbolos fundamentais da ciência sagrada, concretamente em “O simbolismo solsticial de Jano”, que a estrutura da Loja está formada a partir da cruz de três dimensões, dimensões cuja “longitude é ‘de Oriente a Ocidente’; sua largura, ‘de Meio-dia ao Setentrião; sua altura, ‘da Terra ao Céu’ (o zênite); e sua profundidade, ‘da superfície ao centro da Terra’ (o Nadir). Por outra parte, continua Guénon, diz-se que ‘na Loja de São João (assim é como se denomina a Loja Maçônica) elevam-se templos à virtude e se cavam masmorras ao vício’[16]; estas duas ideias de ‘elevar’ e ‘escavar’ se referem às duas dimensões verticais, altura e profundidade, que se contam segundo as metades de um mesmo eixo que vai do ‘zênite ao nadir’, tomadas em sentido mutuamente inverso; essas duas direções opostas correspondem, respectivamente, a sattwa e a tamas (enquanto a expansão das duas dimensões horizontais corresponde a rachaduras), ou seja às duas tendências do ser, para os Céus (o templo) e para os Infernos (a masmorra)”. Como se diz nos manuais de instrução Maçônica (cuja leitura e meditação Guénon recomendava praticar assiduamente como apoio ao trabalho interior), essas dimensões provam que a Maçonaria é universal, e por tanto também a Loja, que ao ser “alumiada” pela luz que está em seu interior (luz acordada e veiculada pelo rito), foi “aberta” às influências espirituais, ficando constituída segundo o modelo do cosmos. Essas direções, em efeito, determinam três espaços simbólicos análogos aos três planos cósmicos: o Inframundo, a Terra e o Céu, os que a sua vez se relacionam com os três graus iniciáticos de aprendiz, companheiro e mestre, respectivamente. Por tanto, se como se afirma nos rituais, a Loja é “justa e perfeita”, é, entre outras razões, porque ela reflete o equilíbrio e a harmonia universal, e porque a seis direções da cruz tridimensional mais seu centro somam sete, ao que todas as tradições consideram como o número cosmogônico por antonomásia; com ele se acaba a criação e se resume em si mesma como nos indica o Gênesis, e é ao mesmo tempo o número dos planetas tradicionais, e o das sete sefiroth de “construção cósmica” da Árvore da Vida cabalística.

A questão do sentido qualitativo das direções do espaço Guénon a aborda muitas vezes ao longo de sua obra, mas muito especialmente no simbolismo da cruz, que é um livro de uma importância capital para quem lhe interesse conhecer a ciência da geometria desde o ponto de vista tradicional e sagrado, e desde depois para os maçons realmente interessados no conhecimento de sua Ordem deve representar uns dos textos fundamentais de investigação simbólica, suprindo assim, em grande medida, a carência doutrinal em que vive sumida a Maçonaria desde faz já vários séculos[17]. Aquela frase que estava no frontispício de entrada à escola platônica: “Que ninguém entre aqui se não é geômetra”, poderia estar perfeitamente na entrada do templo maçônico, pois, como diz Guénon, os ensinos que nessa escola se davam não podiam “ser compreendidos verdadeira e efetivamente mais do que por uma ‘imitação’ da atividade divina”, o que em linguagem maçônica equivale ao cumprimento dos planos “traçados” pelo Grande Arquiteto ou Grande Geômetra do Universo.

Sobre estes planos, e seu cumprimento efetivo no ser, vejamos o que nos diz Guénon no cap. XXXI de Aperçus…, titulado “Do ensino iniciático”: “No fundo se todo processo iniciático apresenta em suas diferentes fases uma correspondência, seja com a vida humana individual, seja com o conjunto da própria manifestação vital, particular ou geral, ‘microcósmica’ ou ‘macrocósmica’, esta se efetua segundo um plano análogo ao que o iniciado deve cumprir em si mesmo, para realizar-se na completa expansão de todas as potências de seu ser. Trata-se sempre e em todo lugar dos planos correspondentes a uma mesma concepção sintética, de tal maneira que eles são em princípio idênticos, e, ainda que são diferentes e indefinidamente variados em sua realização, procedem de um ‘arquétipo’ único, plano universal traçado pela Vontade suprema que é designada simbolicamente como o ‘Grande Arquiteto do Universo’.

“Por conseguinte, todo ser tende, conscientemente ou não, a realizar em si mesmo, pelos meios apropriados à sua natureza particular, aquilo que as formas iniciáticas ocidentais, apoiando-se sobre o simbolismo ‘construtivo’, denominam o ‘plano do Grande Arquiteto do Universo’, e a coincidir por isso, segundo a função que lhe pertence no conjunto cósmico, à realização total desse mesmo plano, o qual não é em soma senão a universalização de sua própria realização pessoal. É neste ponto de seu desenvolvimento, quando um ser toma realmente consciência desta finalidade, que começa para ele a iniciação efetiva, que deve lhe conduzir por graus, e segundo sua via pessoal, a esta realização integral, que se cumpre, não no desenvolvimento isolado de certas faculdades especiais, senão no desenvolvimento completo, harmônico e hierárquico, de todas as possibilidades implicadas na essência deste ser”.

Continua…

Autor: Francisco Ariza
Tradução: Igor Silva

Notas

[6]Aperçus…, cap. XVII.

[7] – “Os ritos iniciáticos” e “O rito e o símbolo”, Ibid.

[8] – Esta é uma das razões pelas que a assistência periódica à Loja é um dos principais deveres de um maçom.

[9] – Ver “Maçons et charpentiers”, em Etudes sul a Franc-Maçonnerie et lhe Compagnonnage II. No mesmo volume, no artigo “A propos du Grand Architecte de L’Univers”, Guénon também assimila ao Grande Arquiteto com o Adam Kadmon da Cabala e o Homem Universal do sufismo islâmico. Também é muito significativo o que diz a respeito do hierograma do Grande Arquiteto (formado pelo Tetragrama Iod, He, Vau, He, o nome inefável de Deus) e o de Allah, constituído por outro Tetragrama “cuja composição hieroglífica designa netamente o Princípio da Construção Universal”, adicionando em nota “que as quatro letras que formam em árabe o nome de Allah equivalem respectivamente à régua, ao esquadro, ao compasso e ao círculo, este último sendo substituído pelo triângulo na Maçonaria de simbolismo exclusivamente retilíneo”.

[10] – “Em tua luz vemos a luz”, Salmos, 36, 10.

[11]Aperçus…, cap. XLVI, “Sobre duas divisas iniciáticas”.

[12] – O ritual de abertura da Loja se complementa com o ritual de clausura ou fechamento da mesma. Isto se simboliza com o “apagar das luzes”, que se concentram assim no ponto primordial de onde emanaram. Este duplo movimento de expansão (abertura) e concentração (fechamento), é análogo ao espir e aspir, criação e dissolução geradas pelo ritmo (rito) universal.

[13]O Rei do Mundo, cap. III.

[14] – Na Maçonaria operativa, a geometria era a “quinta” ciência, pois ela ocupa o quinto lugar na enumeração das sete artes liberais. Ver a este respeito “A letra G e o Svástica”, em Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada.

[15] – Número, peso e medida se correspondem com os pilares maçônicos da Sabedoria, a Força e a Beleza.

[16] – Sobre a teoria indiana dos três gunas (tamas, rajas e sattwa) remetemos ao cap. V de O Simbolismo da Cruz. Também o cap. VIII de A Roda, uma imagem simbólica do cosmos, de Federico González.

[17] – Nesta obra Guénon recolhe alguns ensinos do esoterismo islâmico e da tradição indiana relativas à metafísica da geometria que pudessem ser de grande utilidade para a investigação em profundidade do simbolismo maçônico.

A Circunvolução e a 47ª Proposição de Euclides

O objetivo deste trabalho é dar início a uma exploração abrangente da filosofia subjacente à Maçonaria, investigando algumas nuances de doutrinas que, aos olhos deste autor, estão implícitas na Maçonaria, e oferecendo explicações para alguns símbolos e cerimônias maçônicos. A questão específica a ser explorada neste trabalho é: qual é a relação entre a prática da circunvolução e a 47º proposição de Euclides?

Circunvolução é a prática de “… circular em torno de uma coisa ou de uma área de reverência …”[1]. Na Maçonaria, circunvolução envolve a realização de um circuito em torno da Loja, mantendo a mão direita em direção ao altar. O Monitor oficial da Grande Loja do Texas dispõe que “durante a circulação no recinto da Loja, os cantos devem ser esquadrinhados conforme a antiga tradição da “quadratura do alojamento”. Além disso, o Monitor prevê que o neófito durante a iniciação deve ir até o canto nordeste da Loja três vezes durante a circunvolução, o Companheiro durante a passagem fará isso quatro vezes, e o Mestre está sendo exaltado o fará cinco vezes. Estes números, que são utilizados na “quadratura da Loja”, serão importantes para esta discussão.[2]

A proposição 47 do primeiro livro dos Elementos de Euclides, também conhecida como “Teorema de Pitágoras”, permanece como um dos principais símbolos da Maçonaria, embora seja pouco discutido e menos compreendido hoje. Esse fato é o mais infeliz, uma vez que a proposição 47 bem pode ser o símbolo e a verdade principais sobre os quais a Maçonaria é edificada.

Os símbolos são usados na Maçonaria para ensinar. Nas Constituições” de Anderson, de 1723, ele afirma que “…O Grande Pitágoras, foi o autor da Proposição 47 do primeiro livro de Euclides, que, se devidamente observada, é o fundamento de toda a Maçonaria, sagrada, civil e militar ….”[3]. Assim, no início da Maçonaria especulativa tal como a conhecemos, a proposição 47 foi considerada como contendo ou representando a verdade na qual a Maçonaria se baseia e a base da própria civilização.

Hoje, a proposição 47 é, de certa forma, considerada em todas as lojas de todas as jurisdições. O “Monitor” do Texas inclui aquilo que ele chama de 47º problema” nas informações relativas ao grau de Mestre Maçom. O Monitor defende que a proposição de Euclides 47 foi escolhida para nos ensinar a sermos “amantes das artes e das ciências em geral”[4]. Essa informação está redigida de forma quase idêntica ao texto sobre a proposição 47 que está incluído no “Manual Maçônico do Alabama”, publicado em 1918, elaborado pelo meu avô[5]. É também a mesma linguagem incluída nos mais antigos manuais e monitores, e é consistente com as informações fornecidas nas Constituições”de 1723.

A crença geral sobre a importância e o significado do 47 parece ter sido radicalmente alterada desde 1723. O 47 parece ter sofrido uma perda de status, uma vez que era reconhecido como a essência da  Maçonaria, passando a ser considerado como uma simples lembrança de que a arte e a ciência são importantes e devem ser respeitadas. Essa alteração na nossa visão do 47 reflete um declínio em nossa compreensão da verdadeira natureza da Maçonaria.

A chave para entender o significado do 47 é seguir as palavras de Anderson e observá-las corretamente. Para isso, precisamos primeiro ir ao 47 para -lo. A 47ª Proposição de Euclides foi estabelecida no Livro Um de seus “Elementos”. Os “Elementos” são compostos de treze livros, cada um contendo várias proposições geométricas, e constituem a obra que é a contribuição de Euclides para a história das ideias[6].

A proposição 47 diz que “Nos triângulos retângulos, o quadrado do lado oposto ao ângulo reto é igual aos quadrados dos lados que contêm o ângulo reto.” Os leitores podem se lembrar de ter aprendido esta regra na aula de geometria da escola, formulada assim: “Em um triângulo retângulo, onde A e B são os lados do triângulo, e C é a hipotenusa, A ao quadrado, mais B ao quadrado é igual a C ao quadrado.”

Dado que existem 48 proposições geométricas apenas no Livro Um dos “Elementos”, e um total de, pelo menos, 465 em todo o trabalho, deve-se perguntar “o que há na proposição 47 que a torna singularmente importante para a Maçonaria?”

Para responder a essa questão, devemos primeiro olhar para a história da proposição dentro do contexto da história da geometria. Embora Euclides tenha incluído a proposição 47 em seu livro, ele não a descobriu. Como o “Monitor”, afirma, Pitágoras e/ou um  de seus seguidores, recebem geralmente o crédito pelo desenvolvimento da proposição. De fato, entre os matemáticos, a proposição 47 é chamada de “Teorema de Pitágoras”. Os estudiosos, desde a época de Anderson, descobriram que os antigos babilônios tinham conhecimento da 47 bem antes dos gregos. Além disso, pode muito bem ter sido um aluno de Pitágoras que a descobriu. No entanto, é Pitágoras que o mundo aplaude pela descoberta.

Pitágoras foi um grego eoniano que se mudou para Crotona, no sul da Itália, e lá fundou uma sociedade com fins filosóficos, religiosos e políticos. Pouco se sabe, com precisão, da doutrina do pitagorismo, devido a uma regra de sigilo. Acredita-se que ele e seus seguidores tinham como filosofia o uso da razão e da observação para obter a compreensão do universo. A utilidade dessa filosofia era fornecer um meio para alcançar a salvação da alma. Uma vez que se pensava que o principal aspecto da Divindade era um completo entendimento de todas as coisas, então, ao usar a filosofia para entender as coisas, o homem se aproximaria da Divindade e, ao longo de inúmeras vidas, poderia ganhar, ele mesmo, um pouco dessa Divindade. Em essência, então, Pitágoras e seus seguidores acreditavam que, o entendimento completo deste mundo resultante do exercício da razão e da observação, levaria a uma perfeição do espírito e à realização da salvação[7]. O descobridor do Teorema de Pitágoras fez uma conexão entre a geometria e Deus, e nós sabemos que a proposição 47 desempenhou um papel-chave no seu pensamento.

O Monitor da Grande Loja do Texas, entre outras autoridades maçônicas, sustenta que Pitágoras foi um Mestre Maçom. Caso se defina Mestre Maçom como qualquer um que esteja familiarizado com a geometria e que muito admira e utiliza a razão humana, então Pitágoras e muitos outros antigos poderiam ser chamados de maçons. Por outro lado, não há nenhuma evidência que suporte tal afirmação e, assim, podemos descartá-la com segurança. Nós também podemos ignorar a afirmação constante das Constituições de Anderson de 1723, de que Pitágoras, ou Peter Gower como os ingleses às vezes o chamavam, gritou “Eureka” ao descobrir o teorema. O famoso grito de “Eureka” foi, na realidade, dado por Arquimedes ao descobrir o método para determinar a pureza do ouro[8]. Como outros fizeram em épocas anteriores, os grupos e instituições da Idade Média criaram lendas que reivindicavam para si heranças antigas. Estudiosos medievais, em Paris, por exemplo, formularam a sua lenda de translatio studii, onde sustentavam que o aprendizado se originou com os antigos hebreus, depois passou para o Egito, depois para Atenas, em seguida, para Roma e, finalmente, chegou a Paris. Aqueles estudiosos concebiam-se, assim, como herdeiros de uma tradição antiga de aprendizado.

Os reis alemães que se autodenominavam “Imperadores do Sacro Império Romano” justificavam a adoção desse título tão sublime com base na tradição de que a sua dignidade imperial fora recebida do Império Romano. Esta tradição é conhecida como translatio imperii[9]. Em tal companhia, a Maçonaria não pode ser condenada por formular as suas próprias lendas, atribuindo-se uma longa história e uma gloriosa tradição.

Como vimos acima, a proposição 47 de Euclides foi desenvolvida como parte de um sistema filosófico-religioso que envolve a deificação da razão. A elevação da razão acima das demais vias de conhecimento foi desenvolvida, pela primeira vez, no mundo grego. “A suprema contribuição dos gregos foi prestar atenção, empregar e enfatizar o poder da razão… Se as civilizações anteriores e posteriores encaravam a natureza como caprichosa, arbitrária e aterradora, e sucumbiam à crença de que a magia e os rituais propiciavam forças misteriosas e temíveis, os gregos se atreveram a olhar a natureza face a face. Atreveram-se a afirmar que a natureza era racional e objetivamente concebida através da matemática, e que a razão do homem, principalmente através da ajuda da matemática, poderia entender esta concepção. O espírito grego rejeitou as doutrinas tradicionais, causas sobrenaturais, superstições, dogmas, autoridade e outras amarras do pensamento e tomou para si o desafio de lançar a luz da razão sobre os processos de natureza … Euclides é o exemplo perfeito do poder e das realizações da razão”[10].

Assim, os conceitos envolvidos na geometria e a ideia da razão humana estão indissociavelmente ligadas. Concede-se à geometria euclidiana o crédito de ter ensinado à humanidade os princípios do raciocínio correto. “… A geometria euclidiana é a mãe da ciência da lógica”[11]. A conexão entre o uso da proposição 47 como um símbolo pela Maçonaria e a importância da geometria para a razão é importante na medida que a igreja católica romana atacou a Maçonaria por elevar a razão acima da fé.

O papa Pio IX, em sua encíclica Qui Pluribus, de 9 de novembro de 1846, atacou aqueles que “põe a razão humana acima da fé e que acreditam no progresso humano.” Essa encíclica foi considerada um ataque à Maçonaria. Assumindo-se que haja alguma verdade em caracterizar a Maçonaria dessa forma, a proposição 47 de Euclides assume um componente ideológico que é tão importante para a Maçonaria quanto a sua aplicação prática o é para a construção.

É irônico notar que o termo “Grande Arquiteto do Universo” tenha sido usado como um nome para Deus, no século XII, por clérigos católicos romanos estudiosos que se especializaram no ensino da geometria e da cosmologia. Eles conceberam Deus como o “Grande Arquiteto do Universosegurando o compasso do geômetra e, nas palavras da Escritura, ordenando “todas as coisas em medida e número e peso” (Sabedoria 11:20)[12]. Assim, a identificação maçônica de Deus com a geometria para a qual, declaradamente, a igreja católica romana cria objeções, é, de fato, uma invenção católica.

Deixando de lado o tema da proposição 47 como símbolo e a questão do seu significado religioso, voltamo-nos à sua aplicação prática no processo de construção e sua relação com o “esquadrejamento da loja”. O Teorema de Pitágoras é importante na construção, e uma das suas utilizações é o esquadrejamento de uma sala. Os construtores usam o teorema para esquadrejar os cantos dos cômodos, usando a relação dos números três, quatro e cinco. Três ao quadrado mais quatro ao quadrado é igual a cinco elevado ao quadrado. Assim, usando a proposição 47 de Euclides, um construtor irá marcar um dos cantos pretendidos de um cômodo, chamando-o de ponto A. Desse ponto A, seguirá com uma corda de 3 metros na linha da parede que pretende construir, ao final dos quais marcará o ponto B. Faz a mesma coisa, também partindo do ponto A, só que dessa vez seguindo com uma corda de 4 metros em direção pretensamente perpendicular à linha AB, marcando ao final o ponto C. Fará o acerto do ângulo reto movendo o ponto B, com a corda esticada a partir de A, até que ele fique exatamente a 5 metros do ponto C. Se a distância de A para B é exatamente cinco metros, é porque a hipotenusa prevista foi encontrada, ficando fácil, então, demarcar o ambiente retangular.

Aplicando o que sabemos sobre a 47ª proposição, podemos ver facilmente que, uma vez que o Aprendiz atinge o canto nordeste da loja três vezes, e que o companheiro quatro vezes, e que o Mestre cinco vezes durante suas respectivas circunvoluções, os candidatos terão, de fato, tal como indicado no Texas Monitor, realizado simbolicamente a “quadratura do alojamento”. Qualquer Maçom, depois de ter sido exaltado, reproduziu por circunvolução os números três, quatro e cinco, no canto mais significativo da Loja, o Nordeste, e, assim, mesmo sem saber, equacionou com o pés a fórmula que está contida na proposição 47, e assim, “esquadrejou a Loja”.

Dado o que sabemos sobre a crença pitagórica na natureza divina dos números, bem como a utilização do Teorema de Pitágoras em construções, a circunvolução da Loja, e do altar, na forma prescrita, assume um significado especial para os maçons. A resposta para a pergunta que iniciou e que é o foco deste trabalho é que a circunvolução e a 47ª proposição de Euclides estão de fato relacionadas.

Alguns talvez fiquem um pouco surpresos com a descoberta de uma relação que estava oculta, como a que foi descrita. Mas essas relações são encontradas com freqüência na Maçonaria. De fato, este autor vai um passo além, e afirma que há relações numéricas ocultas em muitos, senão todos, cerimônias e símbolos da Maçonaria, que ainda precisam ser descobertos. O desafio é perceber a importância dessas relações para nós como maçons e como elas ajudam a explicar a filosofia da Maçonaria.

A descoberta de uma filosofia global e coerente da Maçonaria exige uma metodologia especial. A metodologia que proponho é a mesma que foi utilizada por filósofos medievais na exploração crítica da teologia. Um breve olhar sobre esse método é instrutivo para os maçons modernos.

O termo summa refere-se a um tratado global que incorpora um método de análise de doutrinas. Este método de expor a doutrina de uma determinada disciplina foi desenvolvido por estudiosos da Idade Média, perto do começo da Maçonaria Operativa.

Na Idade Média, os juristas conhecidos como romanistas aplicavam o método dialético (questionar) à lei. Ao analisar o direito romano, particularmente o Código de Justiniano, eles escreveram tratados sistemáticos e abrangentes (summae) que se seguiam a ordem lógica da doutrina, ao invés da ordem literal do texto. Os summae continham discussões devidamente fundamentadas dos grandes temas jurídicos. Aqueles summae, formados pela aplicação da dialética à lei, forneciam uma síntese racional da jurisprudência.

O mesmo método foi utilizado pelos teólogos. A mais conhecida obra de São Tomás de Aquino foi intitulada Summa Theologica. Nesse trabalho, Aquino expôs a doutrina religiosa dividida em unidades chamadas artigos. Artigos criavam um único ponto doutrinário e seguiam um padrão definido de exposição. O tema do artigo era colocado como uma questão para provocar a discussão. Na primeira questão apresentada, o autor citava autoridades que se opunham à questão, e em seguida, propunha sua própria solução para a questão em pauta. Em seguida, o autor respondia aos argumentos contrários que havia apresentado antes. Por esta dialética de prós e contras, os conflitos entre as autoridades eram resolvidos. Com efeito, este método constitui a expressão formal da determinação de um juiz de uma disputa. A teologia começou, como a lei, a afastar-se da simples leitura do texto oficial, para o acompanhamento da razão interior de suas doutrinas.

Ao ajudar a estabelecer este método, o estudioso Abelardo relacionou 158 questões sobre as quais ele tinha encontrado opiniões abalizadas divergentes. Exemplos das perguntas encontradas são “Deve-se acreditar em Deus?” e “É admissível mentir?” Ele, então, recolhidos todos os textos abalizados com os prós e contras de cada questão, chamou seu livro de “Sic et Non” (favor e contra). Desafiou os seus leitores a conciliar as ideias expostas por meio do raciocínio dialético. Estabeleceu regras para harmonizar os conflitos. Enfatizou a necessidade de análise atenta dos significados das palavras. Abelardo não respondeu as perguntas, mas apenas desenvolveu o método para se chegar às respostas.

O estudo da Maçonaria exige uma metodologia semelhante ao estudo do direito e da teologia. Em todas estas disciplinas, textos antigos estão disponíveis e são assumidos como qualificados. Nos campos da teologia e do direito, homens trabalharam durante séculos e ainda estão trabalhando para desenvolver uma declaração de princípios, um alicerce sobre o qual os estudiosos futuros possam confiar para basear suas próprias pesquisas e conclusões. No caso da Maçonaria, no entanto, muitas pessoas têm escrito sobre sua história e símbolos, mas poucos têm escrito sobre as razões ocultas de suas doutrinas e cerimônias de uma forma que exponha amplamente a filosofia subjacente à Maçonaria. Muito pelo contrário, os maçons são convidados, em geral incentivados, a formar suas próprias opiniões pessoais sobre o significado da Maçonaria e seus símbolos. A função deste trabalho, e de outros textos que virão, é provocar a discussão em geral, com a intenção de convencer os maçons coletivamente a assumir o dever de desenvolver uma filosofia manifestamente abrangente que possa servir como base para a compreender e explicar a Maçonaria.

Ao concentrar a investigação e a discussão em pontos específicos da Maçonaria, podemos gerar, como subproduto, um interesse crescente na investigação maçônica. Alguns dos irmãos não participam ativamente das pesquisas maçônicas e da autoria de documentos porque eles desconhecem um tema importante sobre o qual escrever. Como conseqüência, temos, em alguns locais, muitos artigos sobre indivíduos maçons e sobre a história da Maçonaria, mas poucos sobre os aspectos da Maçonaria especulativa. Talvez seja hora de concentrar mais atenção no fato de que estamos engajados na Maçonaria especulativa. Ao fazê-lo, podemos encorajar os nossos irmãos ao estudo da Maçonaria.

Ao usar o método da dialética (para frente e para trás, pró e contra) para explorar conceitos maçônicos, talvez uma síntese de ideias divergentes sobre Maçonaria possa ser alcançada. Este método está em plena consonância com os princípios maçônicos, pois procura desenvolver uma explicação uniforme para os princípios da Maçonaria, “sobre a qual todos os homens possam concordar”, e o faz convidando todos os homens a discutir. Neste trabalho, propus um artigo de uma “Summa Masonica“. Em trabalhos futuros, espero abordar outras questões relativas a aspectos da Maçonaria.

Tendo proposto e respondido este primeiro problema, convido o leitor a apresentar contra-argumentos ou, melhor ainda, novos artigos de sua autoria.

Autor: Reid McInvale
Tradução: S. K. Jerez

Fonte: fdocumentos.com

Notas

[1] –  “Ao Redor”, Coil’s Masonic Encyclopedia, (Nova Iorque.: Macoy, 1961), 128.

[2]Monitor da Loja, Grande Loja do Texas, AF & AM (Waco, Tx.: Waco Printing Co., 1982), 16,46,74.

[3]Little Masonic Library, [rev.ed.], 5 Vols. (Richmond, Virginia: Macoy, 1977), 1:203-204

[4]Monitor da Loja, Grande Loja do Texas, AF & AM (Waco, Tx.: Waco Printing Co., 1982), 91-92

[5]Masonic Manual, Grand Lodge & F. A.M. do Alabama, (Birmingham, Alabama: Imprensa da Expedição Printing Co., 1918), 81.

[6]The Thirteen Books of Euclid’s Elements, vol. 11 de Grandes Livros do Mundo Ocidental, 54 vols. (Chicago: Encyclopedia Britannica, Inc., 1987), 28.

[7]Pitágoras e o pitagorismo, Encyclopedia of Philosophy, (Nova York: Macmillan Publishing Co. e da Free Press, 1967), 7:37-39.

[8] – “Eureka”,Webster’s Third International Dictionary, (Springfield, Massachusetts: Merriam-Webster Inc., 1981), 784

[9]Baldwin, John W., The Johns Hopkins University. A cultura escolar da Idade Média, 1000-1300, (Lexington, Mass: DC Heath and Co., 1971), 56.

[10]Kline, Morris., Matemática para a não-matemático, (Nova Iorque: Dover Publications, Inc., 1967), 15.

[11] – Ibid., 14

[12]Baldwin, John W., The Johns Hopkins University. A cultura escolar da Idade Média, 1000-1300, (Lexington, Mass: DC Heath and Co., 1971), 107.

 

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