Diferenças entre Ritual de Emulação e Rito de York

Permitam-me compartilhar com vocês alguns pontos que diferem rito de ritual, para auxiliar na melhor compreensão do vocábulo “Ritual de Emulação” que, ao contrário do que dizem alguns, não tem nada a ver com “Rito de York” ou “Rito de Emulação”.

Muitos Irmãos confundem ou pensam que o Ritual Emulação é um rito. E que esse rito é o Rito de York. Acontece que não é. Eis que, na verdade, não se trata de um rito, mas sim de um ritual pelo qual é demonstrado e expressado por meio de dramatizações ritualísticas.

Na Grande Loja Unida da Inglaterra (GLUI) o vocábulo “Rito” não existe. Ou seja, é inominado. Os ingleses não consideram um rito, eles consideram rituais (Emulation, Bristol, Stability, Taylor’s, Logic, West End, etc…). Todos os diversos Rituais Ingleses pouco diferem-se uns dos outros, uma palavrinha aqui, outra palavrinha lá. Mas a Loja usada por todos são iguais, nisso não há diferença.

É plenamente entendível, pois, o que eles praticam é a Maçonaria, na sua mais pura origem, pois, como é cediço, o Ritual Emulação serviu de base para praticamente todos os demais ritos existentes no mundo (foi a base principal do Rito Brasileiro). Para se ter uma ideia, a união das duas Grandes Lojas Inglesas deu-se em 1813, mas antes disso, em 1797 já era fundado o Rito de York (Thomas Webb), e antes disso por volta de 1717 já haviam reuniões nos Trabalhos de Emulação, ou seja, a forma pura de Maçonaria. Este Ritual era praticado pelas Lojas sob a égide da Grande Loja de Londres, chamada pejorativamente de “Loja dos Modernos”. No entanto, era a mais antiga que a “Loja dos Antigos”.

Só por curiosidade, os mais antigos Rituais originais do Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA), amplamente difundido no Brasil, são de 1804, de origem francesa, e não têm nada a ver com o que se pratica no Brasil e em outras partes do mundo.

O que é Rito?

O vocábulo “Rito”, como um substantivo masculino, é derivado do latim ritus. Designa o cerimonial próprio de um culto, determinado pela autoridade competente; seu significado clássico é: “Uma prática, um costume aprovado; ou conjunto de normas e práticas que se faz com regularidade” (Ir. Sérgio Cavalcante – Rito York).

Rito vem a ser uma coletânea de rituais, onde o verdadeiro Rito de York é constituído por quatro corpos devidamente distintos uns dos outros, mas de forma hierárquica, a saber: Graus Simbólicos, Graus Capitulares, Graus Crípticos e Ordens de Cavalaria.

Da mesma forma o Rito Escocês Antigo e Aceito, onde se tem os graus simbólicos e mais 30 graus acima, numa hierarquia própria do Rito.

No Ritual Emulação isso não existe. Ou seja, há apenas os rituais dos graus simbólicos, e as Ordens Superiores são ordens totalmente independentes, e não há obrigação de iniciar esta evolução. Depois do grau de Mestre o Irmão escolhe como vai se aperfeiçoar.

Tanto são independentes de Rito que são abertas a qualquer outro Irmão de um Rito qualquer, desde que já tenha sido Elevado (Exaltado) a Mestre.

Então, apesar de erroneamente chamarem nossos trabalhos de “Rito de York” hoje sabemos que não é, mas sim Ritual de Emulação. O verdadeiro Rito de York está sedimentado no norte e nordeste do Brasil, e os Irmãos de lá não gostam nada desta confusão, pois eles praticam o verdadeiro Rito de York, fundado pelo Irmão Thomas Smith Webb, em 1797.

O que é Ritual?

Ritual, como um adjetivo, derivado do latim (ritualis), designa o que é relativo a ritos. Como substantivo masculino, designa o livro que contém a ordem e a forma de uma determinada cerimônia, e das dramatizações e representações ritualísticas, ou seja, é um conjunto de regras e/ou normas estabelecidas para a liturgia das cerimônias maçônicas. Sempre existiram os rituais, inicialmente através das tradições e de forma oral, posteriormente, com o passar dos anos por escrito, mas isto não tirou a tradição inglesa de nas reuniões da Loja praticar o Ritual de forma decorada. Pode-se concluir claramente, sem qualquer dúvida, que ritual é totalmente diferente de rito.

O que é o Rito de York?

Para se entender a definição do que é o “Rito York” e a sua origem, é necessário voltarmos um pouco no passado. O Rito York é baseado nos antigos rituais remanescentes da Antiga Maçonaria que era praticada no começo do século XVIII  pela Loja dos Antigos.

Referidos Rituais eram praticados pelos Maçons da “Grande Loja dos Antigos”, fundada no ano de 1751 por Maçons irlandeses, que haviam sido impedidos de entrar na Grande Loja de Londres (Loja dos Modernos), fundada no ano de 1717.

Thomas Smith Webb, é considerado como se fosse o organizador e fundador do Rito York, ou seja, o “pai” do Rito . Ele nasceu em 30 de outubro de 1771, em Boston. Foi iniciado na Loja do Sol Nascente, em Keene, New Hampshire, aos 19 anos. No ano de 1797, ele pesquisou, catalogou, organizou e codificou todos os rituais antigos e fez um conjunto de 13 (treze) rituais, de forma condensada, em um monitor e denominou-os de “Rito York”, em homenagem a cidade de York , pois em suas pesquisas foi tida como berço da Maçonaria no mundo, ou seja, a cidade onde se tem os registros mais antigos de reuniões maçônicas.

Ritual de Emulação

O Ritual de Emulação foi aprovado oficialmente pela Grande Loja Unida da Inglaterra (GLUI) em 1813, e foi criado um comitê curador do Ritual, chamado de Emulation Lodge of Improvement for Master Masons (Loja Emulação para Aperfeiçoamento de Mestres Maçons). Esse comitê é o responsável pela edição e publicação do Ritual de Emulação, com plena autorização da GLUI, respeitando os princípios gerais impostos pela mesma.

Por isso o Ritual de Emulação é como se fosse um monitor que contém o conjunto de práticas consagradas pelo uso e costume, e que assim se devem de forma invariável em momentos determinados. Ou seja, é o cerimonial propriamente dito.

Na Inglaterra, compete às Lojas a regulamentação das formas de ritual, reservando-se, a GLUI, o direito de intervir em qualquer Loja Inglesa que adote formas ou modificações estranhas a prática do ritual conforme ensinado desde 1813, ou algo que venha a se opor aos princípios gerais estabelecidos. Pois, segundo o Art. 155 do Livro das Constituição da Grande Loja Unida da Inglaterra, esta liberdade é concedida, mas também limitada. Em tradução livre:

155. Os membros presentes de qualquer Loja, devidamente reunida, têm o direito inalienável para regular os seus próprios procedimentos, desde que eles estejam de acordo com as leis gerais e regulamentos do Ofício (ou da Ordem); contudo, um protesto (reclamação, denúncia) contra qualquer resolução ou procedimento que seja contrário às leis e aos costumes do Ofício e com a finalidade de reclamar ou atrair uma autoridade maçônica maior, pode ser feito, e tal protesto será anotado no Livro de Atas, se o Irmão que faz o protesto assim solicitar.”

Assim, existem na Inglaterra, diversas formas de rituais, conforme já foi citado, pois a Grande Loja não legisla sobre a forma de ritual adotado por suas Lojas, mas sim sobre os princípios gerais da Ordem, e nenhum ritual pode ser contrário a isso.

Autor: Fábio Mendes Paulino
ARLS “MA’AT – Verdade, Justiça e Retidão”, n.º 3669
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A busca pelo Sagrado: o Mito do Herói e os ritos de passagem

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Eu saí da minha terra Me deu lição verdadeira Por ter sina viageira Coragem num tá no grito Com dois meses de viagem E nem riqueza na algibeira Eu vivi uma vida inteira E os pecado de domingo Saí bravo, cheguei manso Quem paga é segunda-feira Macho da mesma maneira Estrada foi boa mestra (Capoeira do Arnaldo – Paulo Vanzolini)

O rito de passagem ou de iniciação é um rito que marca a transição de um status social ou sexual a outro. Ritualmente reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. Assim como no nascimento, o rito de passagem exige o desprendimento, esforço, sacrifício. Em algumas culturas tais ritos são acompanhados de escarificações e privações[1].

Em 1909, Otto Rank (1884-1939) pesquisador, psicanalista, colaborador e colega de Sigmund Freud, em sua obra Der Mythus von der Geburt des Helden (O Mito do Nascimento do Herói) analisa os mitos de Sargon, Moisés, Karna, Édipo, Paris, Telephus, Perseu, Gilgamesh, Cyrus, Tristan, Romulus, Hercules, Jesus, Siegfried e Lohengrin. Em sua análise ele destaca símbolos recorrentes a todos esses mitos, tais como a água, a luta para nascer, mesmo contra toda adversidade, e a vitória do herói.

Otto Rank ressalta que para compreender os mitos é necessário adentrar no reino da imaginação.

“Numerosos investigadores têm enfatizado que a compreensão da formação do mito requer o retorno para a sua derradeira fonte, a faculdade da imaginação individual”[2].

A compreensão do mundo imagético é essencial para compreender o mito e para Otto, a fonte do mundo imagético é a criança.

Comentando sobre o livro de Otto Rank, O Mito do Nascimento do Herói, concorda que todos nós somos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. Esta é uma enorme transformação, e certamente, um ato heroico, caso fosse praticado conscientemente[3].

Os mitos são frutos dos dramas infantis, segundo Otto Rank. No caso do mito do herói, este decorre do drama do incesto. O filho se rebela contra o pai para conquistar o amor da mãe. Esta é a tese do seu mentor, Sigmund Freud, que irá chamar de complexo de Édipo.

A rebelião do filho contra o pai pode não ser apenas para conquistar a mãe, pode ser também para conquistar a sua independência. A eliminação do ego infantil é a maior das lutas na passagem do jovem para o adulto. Os embates internos são muito mais difíceis e complicados do que combater outro ser humano.

“Os rituais das primitivas cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino.”[4]

Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas tão intensas a ponto de provocarem uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. O embate mental independe do sexo, ou seja, é tão difícil para o menino quanto para a menina fazer a transição para o adulto. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo.

A independência é conquistada quando o jovem se desprende da dependência dos pais. O primeiro passo para a independência é à oposição a ordem vigente e todo herói começa como um rebelde.

“O próprio herói, como demonstrado pelo desprendimento dos pais, começa sua carreira em oposição à geração mais velha. Ele é ao mesmo tempo um rebelde, um renovador e um revolucionário. Entretanto, todo revolucionário é originalmente um filho desobediente, um rebelde contra o pai.”[5]

A oposição é um dos passos para encontrar a individualidade, mas não é o fim. Apesar da redundância, a auto-superação faz parte do “heroísmo do herói”. Isso nem sempre acontece, mas costuma fazer parte do processo.

A jornada do herói é mais profunda do que qualquer rebeldia, vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade.

Para Campbell, a façanha do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa jornada que ultrapassa o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se um círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual, pois o jovem evolui de uma posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto-responsabilidade, na passagem se morre e renasce. Esse é o motivo básico do périplo universal do herói[6].

Arnold Van Gennep (1873-1975) é um dos mais importantes folcloristas e etnógrafos franceses. Ele cunhou o termo “ritual de passagem”. Fez um estudo sistemático dessas cerimônias e dedicou uma obra a elas, “Les Rites de passage” (Os Ritos de passagem – 1909).

Van Gennep identificou três fazes nos ritos de passagem:

  • A separação, o desprendimento dos pais e do ego infantil;
  • A margem, seria a busca da autonomia, ou seja, buscar despertar as qualidades do adulto;
  • Agregação, a aquisição do domínio de si, quando o jovem retorna não mais como criança, mas como adulto.

Essa mesma estrutura está presente nos mitos de heróis e não é por acaso. Segundo Campbell, todo rito é uma encenação mítica[7]. A epopeia mítica é reproduzida no rito, somos transportados do mundo profano para o sagrado, do sobrenatural.

Para Durkheim, o sobrenatural é uma noção tida geralmente como característica de tudo que é religioso. Entende-se por isso toda a ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso entendimento; o sobrenatural é o mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível. A religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensamento claro[8]. Ora, seguindo essa ideia de Durkheim, o mundo imagético do ser humano faria parte do sobrenatural, pois escapa à ciência e também não faz parte do pensamento claro e, sendo parte do sobrenatural, seria objeto de estudo das religiões.

Durkheim afirma que a única forma segura e confiável de aquisição do conhecimento é a razão, quanto a isso, Bachelard discorre que o raciocínio não é a única forma de aquisição do conhecimento e fará a sua Fenomenologia Poética que abarca também a sensibilidade. O que escapa a Durkheim é que o raciocínio permite, sem dúvida, analisar os fatos, compreender a relação existente entre eles, mas não cria significado. Para que a criação ocorra, é necessário imaginar[9]. Os mitos têm um aspecto pedagógico, mas, sobretudo, eles atuam no mundo imagético, dando um sentido à vida.

O próprio Durkheim percebe a necessidade humana de criar sentido à vida, remetendo ao aspecto simbólico, imagético do ser humano, ainda que com certo desdém e que deve ser mantido à distância:

“Os homens foram obrigados a criar para si uma noção do que é religião, bem antes que a ciência das religiões pudesse instituir suas comparações metódicas. As necessidades da existência nos obrigam a todos, crentes e incrédulos, a representar de alguma maneira as coisas no meio das quais vivemos, sobre as quais a todo momento emitimos juízos e que precisamos levar em conta em nossa conduta. Mas como essas pré-noções se formaram sem método, segundo os acasos e as circunstâncias da vida, elas não têm direito a crédito e devem ser mantidas rigorosamente à distância do exame que iremos empreender. Não são os nossos preconceitos, as nossas paixões, os nossos hábitos que devem ser solicitados como os elementos da definição que necessitamos; é a realidade mesma que se trata de definir.”[10]

A posição de Durkheim de reprimir o aspecto imagético do ser humano para alcançar a “verdade pura” é um dos pressupostos do pensamento científico, nascido da Revolução Científica, movimento do século XVII, que separou a Ciência da religião, especificamente das interpretações Teocêntricas da Igreja Católica. O problema é que o cientificismo foi predominante na sociedade ocidental e “rotulou” os mitos, chamando-os de “mentiras” que se contam para crianças. A razão foi dissociada da sua verdadeira fonte, o mito. Nessa busca pelo racional o sentimento foi abafado e o ser humano ficou dividido. As consequências desse movimento darão origem à diversas crises contemporâneas, tanto individuais, quanto sociais. Em nossa sociedade os ritos perdem importância, porque são vivências profundamente emotivas e na maioria dos casos, pouco ou nada lógicos.

Segundo Gilbert Durand em sua obra L’Imagination Symbolique a postura Científica de negar o mundo Imagético é reducionista, não contempla o ser humano de forma integral, razão e sensibilidade. Não percebe que a razão nasce do Imaginário. A própria Ciência é uma Hermenêutica, uma construção mítica, que Durand irá chamar de hermenêutica redutora em contraste com as hermenêuticas instaurativas.

“A mais evidente depreciação dos símbolos que nos apresentam a história de nossa civilização é certamente aquela que se manifesta dentro dos atuais cientistas do cartesianismo. Certos, como escreveu excelentemente um cartesianista contemporâneo, não é porque Descartes recusa de fazer uso da noção de símbolo. Mas que o único símbolo para o Descartes da terceira meditação, é a consciência, ela mesma a imagem e semelhança de Deus.”[11]

A vida imagética tem um sentido próprio, mais abrangente do que a razão e quando tenta reduzi-la ao ato concreto em si, parte de seu sentido se perde.

“…na linguagem, se a escolha do signo é insignificante porque este último é arbitrário, já não acontece o mesmo com o domínio da imaginação em que a imagem – por mais degradada que possa ser concebida – é ela mesma portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária.”[12]

De todos os cientistas, os Físicos são os que mais buscaram explicar a realidade tendo por base o pensamento científico. A Física Newtoniana afirmou que a realidade era concreta, absoluta e permanente. Esse pensamento perdurou durante séculos, até o aparecimento de Einstein e sua Teoria da Relatividade, quando demonstrou que o espaço e o tempo não são absolutos, eles podem ser contraídos ou expandidos, contrariando a lógica de espaço e tempo absolutos de Newton.

Nossa noção de realidade foi ainda mais afetada com as descobertas dos físicos quânticos. Estes descobriram que a matéria, aparentemente tão sólida, é constituída em seu âmago por átomos, que por sua vez são em sua maior parte enormes espaços vazios. Os elementos constitutivos do átomo têm propriedades que contradizem a razão: têm comportamento dual onda-matéria, efeitos de tunelamento, são regidos por uma incerteza intrínseca que obriga a representá-los em termos de probabilidades, entre outros efeitos que ferem o bom senso. Na frase célebre do físico quântico Niels Bohr: “Se a mecânica Quântica não lhe chocou, é porque você ainda não a entendeu.” Os físicos quânticos estão demonstrando que a realidade em sua essência não é nem lógica, nem sólida, não existindo essa concretude sonhada pelo cientificismo, pensamento que será retomado pelos cientistas do imaginário.

Na teoria do Imaginário, a realidade é interpretada, criada a partir dos mitos, ou seja, é imagética. Segundo Juremir Silva, todo imaginário é real. Todo real é imaginado. O homem só existe na realidade imagética. Não há vida simbólica fora do imaginário. O mesmo já tinha sido percebido por Jacques Lacan no que se refere à sexualidade. Tudo acontece no imaginário: sexo, preconceitos…. O concreto é empurrado, impulsionado e catalisado por forças imagéticas. Nisso não se esconde um velho idealismo, travestido de novo, em função de uma renovação de terminologia, mas transparece uma constatação antropológica: o ser humano é movido pelos imaginários que engendra. O homem só existe no imaginário[13].

A frase célebre do Buda Sidarta Gautama de que nós fazemos a nossa própria realidade, será amplamente aceita na teoria do Imaginário. A realidade não é fruto dos fatos, mas das interpretações que damos a estes. Da mesma forma a eficácia do ritual, não está no ato em si, mas do sentido que damos a ele, sua força vem da crença no transcendente. O que nos remete a noção de sagrado e profano.

Para Durkheim, o sagrado e o profano são dois mundos que nada têm em comum.

“Não existe na história do pensamento humano um outro exemplo de duas categorias de coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas uma à outra. A oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum.”[14]

Durkheim explana que o homem nasce no mundo do profano e a sua passagem para o mundo do sagrado se dá por meio do ritual de passagem. Em que ele irá morrer no mundo do profano para renascer no mundo do sagrado. É o mito da morte e ressurreição do herói. A passagem para ele implica numa completa metamorfose.(grifo do blog)

“Ora, essa mudança de estado é concebida, não como o simples regular desenvolvimento de germes preexistentes, mas como uma transformação totius substantiae. Diz-se que, naquele momento, o jovem morre, que a pessoa determinada que ele era cessa de existir e que uma outra, instantaneamente, substitui a precedente. Ele renasce sob uma nova forma. Considera-se que cerimônias apropriadas realizam essa morte e esse renascimento, entendidos não num sentido simplesmente simbólico, mas tomados ao pé da letra.”[15]

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) retoma a ideia de divisão no rito de passagem, mas descarta a ideia do transcendente ou do sagrado e analisa sob uma ótica prática, social. Os ritos de passagem teriam uma função social, a de separar os iniciados dos não-iniciados. Bourdieu propõe que os ritos de passagem deveriam ser chamados de ritos de legitimação, ou ritos de consagração ou ritos de instituição. Porque não é a passagem que importa, mas sim, a instituição da ordem estabelecida, que obriga o indivíduo a viver segundo as expectativas sociais ligadas à sua categoria[16].

Os ritos têm uma função social ligados à praticidade da vida, mas tentar explicar a sociedade apenas pela praticidade ou função social é esquecer que a sociedade é fruto dos mitos que engendra. Como já tinha observado Max Weber:

“Cada tentativa de explicação [do racionalismo ocidental] deve, reconhecendo a importância fundamental do fator econômico, levar em consideração, acima de tudo, as condições econômicas. Mas, ao mesmo tempo, não se deve deixar de considerar a correlação oposta… As forças mágicas e religiosas e as ideias éticas de dever nelas baseadas têm sempre, no passado, entre as mais importantes influências formativas de conduta.”[17]

Weber dedicará sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo para demonstrar como a influência de certas ideias religiosas afetou o desenvolvimento de um  espírito econômico[18]. As ideias religiosas que Weber se refere, são os mitos que aquele grupo criou e a que seguem. A razão, os atos conscientes são dependentes dos mitos que a norteiam. O mito nasce do Imaginário, e este tem uma significação própria, independente da razão.

O Desencantamento do Mundo, conceito de Max Weber, abordado em sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo também contribuiu para o enfraquecimento dos ritos de passagem. O desencantamento do mundo é a perda da crença no sobrenatural e na magia. Os ritos de passagem tornaram-se mais um mero reconhecimento do esforço desprendido pelo indivíduo do que o veículo de transformação interior.

“Tão grande processo histórico no desenvolvimento das religiões – a eliminação da magia do mundo, que começara com os antigos profetas hebreus e, juntamente com o pensamento científico helenístico, repudiou todos os meios mágicos para a salvação como sendo superstição e pecado, atingindo aqui [nos Calvinistas] a sua conclusão lógica.”[19]

A salvação não virá por milagre, ação do sobrenatural, mas pelo esforço próprio, o ascetismo protestante, que prioriza as obras materiais em oposição ao metafísico.

“Para o católico, a absolvição de sua Igreja era a compensação para as suas próprias imperfeições. O sacerdote era um mágico que fazia o milagre da transubstanciação e que tinha em suas mãos as chaves da vida eterna… Ele distribuía redenção, esperança de graça, certeza de perdão, garantindo assim o relaxamento daquela tremenda tensão à qual o calvinista estava condenado por um destino inexorável, que não admitia mitigação. Ele não poderia esperar o perdão pelas horas de fraqueza…”[20]

As perdas da crença no sobrenatural e na magia mudaram não apenas a nossa percepção do mundo, mas também a forma como lidamos com ele, com o outro e com nós mesmo. Mudou as nossas concepções míticas.

“Uma vez que o ascetismo se encarregou de remodelar o mundo e nele desenvolver seus ideais, os bens materiais adquiriram um poder crescente e, por fim, inexorável sobre a vida do homem, como em nenhum outro período histórico.”[21]

A perda da função imagética de nossa sociedade dessacralizou os ritos de passagem, dos quais, desembuídos do seu sentido primordial, restam apenas a forma ou formalidade.

A perda do sentido do rito de passagem pode estar no fato de não haver marcas definidas da transição do jovem para o adulto, como assinala Martine Segalen:

“A razão profunda do desaparecimento desses rituais também diz respeito ao fato de a idade da juventude não ser mais conquistada de repente, como outrora. A passagem se estende indefinidamente, sem que seja possível marcar com clareza um ‘antes’ e um ‘depois’, uma vez que os momentos de se adquirir o direito à sexualidade, à independência econômica e residencial e, mais amplamente, ao estatuto de adulto não coincidem mais.”[22]

Mircea Eliade, em sua obra O Sagrado e o Profano, fala que para o homem moderno o nascimento, o casamento e a morte não passam de acontecimentos de âmbito individual ou familiar, com a exceção de celebridades ou chefes de Estado. Numa perspectiva a-religiosa da existência, todas as passagens perderam seu caráter ritual, quer dizer, nada mais significam além do que mostra o ato concreto de um nascimento, de um óbito ou de uma união sexual oficialmente reconhecida[23].

Nas sociedades antigas os ritos de passagem eram um grande evento. Por exemplo, a união sexual era sagrada. A iniciação sexual dos gregos se dava nos templos e eles chamavam o casamento de télos, a consagração, e o ritual nupcial assemelhava-se ao dos mistérios nos templos. Os egípcios e o maias eram iniciados nos templos através das sacerdotisas, que na Grécia se chamavam Hieródulas e em Roma, Vestais. Nessas sociedades os jovens eram conduzidos aos templos para sua iniciação sexual.

As iniciações dos nossos índios Tupinambás se constituíam de rituais dolorosos em que toda a tribo participava. Este é um ponto importante, mesmo que as provas nos rituais sejam difíceis e dolorosas, a tribo (no sentido de grupo), e inclusive entidades sobrenaturais, acompanham o neófito, que é assistido em sua passagem. A participação da tribo significa: “Você não é o primeiro, nem será o último, essa passagem é difícil e estamos aqui para lhe ajudar, agora você terá que ser forte”. Se o neófito conseguir vencer as provas do ritual, significa que ele está pronto para assumir as suas novas responsabilidades.

No passado, a iniciação sexual era acompanhada por toda a comunidade através dos rituais. Décadas atrás, era costume o pai levar seu filho para o prostíbulo e ficar do lado de fora esperando o resultado. Talvez essa não seja a melhor forma de fazer a passagem, mas o fato é que a figura paterna estava presente e acompanhava o jovem nessa iniciação. Após o seu primeiro encontro com a meretriz o jovem tornava-se adulto, mas não é o ato sexual em si que importa e sim as transformações psicológicas trazidas por ele e que, de certa forma, remonta ao mundo imagético, à criação mítica da imagem que cada um tem do que é ser jovem e do que é ser adulto. Afinal o que diferencia um jovem de um adulto? A partir daquele momento o jovem deixava o seu mundo infantil e adentrava no mundo dos adultos.

Em nosso tempo atual, não há um momento definido em que o jovem deixa o seu mundo adolescente para assumir o adulto. É possível manter apegos infantis mesmo depois de casado e com filhos. Em nossa sociedade contemporânea os jovens são deixados à mercê de si próprios para fazerem seu ritual de passagem sozinhos, quando quiserem, como se fosse algo natural. O peso psicológico dessa passagem é grande, as migrações de uma fase a outra não acontecem de forma natural. O resultado é que o a passagem acontece de forma banal e sem assistência. Nosso herói está sozinho e o sagrado foi banalizado.

Autor: André Miele Amado

Fonte: Associação Brasileira de História das Religiões

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Notas

[1] – Como retratam em suas obras os pesquisadores Arnold Van Gennep, Victor Tuner, Jacques le Goff, Philippe Laburthe-Tolra e Jean-Pierre Warnier

[2] – RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 66

[3] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg.132

[4] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg. 147

[5] – RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 95

[6] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg.131, 132

[7] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do mito, pg. 113

[8] – DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, pg. 5

[9] – PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação a Teoria do Imaginário, pg.12

[10]Ibid, pg.4

[11] – DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique, pg.23

[12] – DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas do Imaginário, pg.28

[13] – SILVA, Juremir Machado da. Tecnologias do Imaginário, pg.1

[14] – DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, pg.22

[15]Ibid, pg.23

[16] – SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos, pg.50

[17] – WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, pg.32

[18]Ibid, pg. 32

[19] – WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, pg. 83

[20] Ibid, pg. 91

[21] Ibid, pg.135

[22] – SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos, pg. 67

[23] – ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, pg. 151

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DURAND, Gilbert. “As Estruturas Antropológicas do Imaginário”. SP: Martins Fontes, 3° edição, 2002. DURAND, Gilbert. “L’imagination symbolique”. França: Presses Universitaires de France, 3 edição, 1976. PITTA, Danielle Perin Rocha. “Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand”. RJ: Atlântica Editora, 2005. DURKHEIM, Émile. “As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália”. SP: Martins Fontes, 3° edição, 2003. WEBER, Max. “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. SP: Martin Claret, 2006. CAMPBELL, Joseph. Bill Moyers. “O poder do mito”. SP: Palas Athena, 21° edição, 2003. SEGALEN, Martine. “Ritos e rituais contemporâneos”. RJ: FGV, 2002. SILVA, Juremir Machado da. “Tecnologias do imaginário: esboços para um conceito”. Texto integrante da pesquisa em desenvolvimento “Rede de idéias: tecnologias do imaginário e comunicação.” RANK, Otto. “The myth of the birth of the hero: a psychological interpretation of mythology”. Publicado no Nervous and Mental Disease Monograph Series No. 18, The Journal of Nervous and Mental Disease Publishing Company, New York,1914. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano; trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Ensaio Sobre as Origens dos Rituais e dos Graus Simbólicos – 5ª Parte

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Duas questões sobre o ritual. A palavra não aparece em nenhum dos estatutos e regulamentos das Grandes Lojas. Parece resultar daí a natureza dos “eventos” maçônicos descritos nos relatos fornecidos pelas “revelações”. Quanto à “coisa” ritual, isto é, à recitação das cerimônias, parece ter sido codificada no final do século XVIII, pelo menos na França.

A maior dificuldade encontrada no estudo dos rituais provém do fato que, até 1858, a sua impressão era proibida, e, portanto, todos eles são manuscritos, sem data e sem origem. A única edição impressa antes desta data foi a do Régulateur Maçon (1801) reproduzindo exatamente os rituais para o Rito Francês estabelecidos pelo Grande Oriente em 1782, mas que era desconhecida por este. A partir de 1800, uma série de “Thuileur”[13], que, do ponto de vista maçônico, era ilegal, apareceu sob a assinatura de maçons frequentemente proeminentes. Reconheçamos também que nenhum estudo “científico” da ritualística maçônica jamais foi realizado e que sua abordagem permanece delicada.

A abertura e fechamento da Loja só foram estabelecidos entre 1742 e 1760, e primeiramente na França. O Venerável Mestre da loja, e cujo título foi emprestado da Ordem dos Beneditinos, se fazia avisar pelos Vigilantes que ela iria ser aberta. Só ele estava coberto e retirava o chapéu na abertura, e, em seguida, o colocava de volta. Mas o “Trahi” de 1745 traz duas gravuras onde todos os assistentes estão cobertos. Então vinha a recitação do catecismo pelos oficiais. Em 1730, à pergunta “Sois maçom?”, o Vigilante respondia: “Me consideram como tal” seguido de “Onde se encontra o Primeiro Vigilante? Qual é o seu dever?”. E assim por diante, para cada um dos cargos. Os visitantes eram “telhados” (o termo parece já existir na época), duas vezes: antes de entrar e, em seguida, na Loja antes de ocupar o seu lugar. A presença de um profano, mesmo na sala dos passos perdidos, era relatada pela fórmula “chove”.

Na Inglaterra, no final do século, a reunião era interrompida por refrescos, anunciados por qualquer um dos vigilantes que deitava a coluneta no seu lugar, como já foi mencionado. O “trabalho” cessava, bebidas eram servidas, bem como, às vezes, a refeição. Em seguida, os “trabalhos” eram reiniciados com o erguimento da coluna. Não parece que naquele tempo a França conhecia este procedimento, substituído – pode-se dizer que com vantagens – pelas Lojas de Mesa e seu ritual particular. A partir de 1786, os trabalhos não tinham início sem que os Vigilantes tivessem pedido aos irmãos as palavras, sinais e toques. Também nesta data foi introduzida a leitura do traçado dos trabalhos anteriores e a adoção das observações do irmão Orador, um oficial que a Inglaterra ignora até hoje. O fechamento da Loja logo foi ritualizado como a abertura, porque numa se fazia a Cadeia de União – encontrada, pela primeira vez, em 1744 – e, na outra, se separavam sob o “Chant des apprentis”[14] que veio das Constituições de Anderson. Em 1760, “… no final de cada verso cantado, eles se juntavam as mãos cruzadas para formar uma cadeia, sacudindo-as para cima e para baixo, enquanto batiam com força a sola do pé no chão, o que causava surpresa para os de fora.”

Catecismo, benemerência e recepções eram a maior parte da atividade das Lojas. Mas, durante muito tempo, o banquete era ainda mais importante. Em 1750, foi instituída a leitura da história da Maçonaria, retomando um costume dos antigos operativos. A imaginação desenfreada e entusiasmada, ajudada pela proliferação anormal de Altos Graus, trazia alegria aos corações. Se formos admitir, a rigor, que o famoso discurso de Ramsay (1737) afirmando a influência dos cruzados sobre a origem da Ordem e sobre o desenvolvimento de seu simbolismo, tenha fornecido uma tese plausível para esta história (Émile Mâle demonstra a sua incontestável contribuição no domínio da arte), ficamos loucos diante de Deus instalando sua Loja pessoal, para si mesmo, antes mesmo de Adão constituir a dele para ser, sem dúvida, “o Centro da União”.

Ao contrário, o que não pode ser negado é a influência que as surpreendentes divagações dos Altos Graus do Escocismo em plena evolução tiveram no desenvolvimento da liturgia dos três graus simbólicos, em particular nas duas recepções – Aprendizes e Mestres – dois psicodramas que devem ser examinados em suas vicissitudes.

Em que os especulativos do século XVIII transformaram as recepções simples de Aprendiz das Lojas operativas e as também despojadas dos “Maçons Aceitos” do século XVII?

Damos a esta cerimônia o nome de Iniciação, mas ao longo de décadas ela tem servido como entrada ou recepção, não como iniciação. A palavra “iniciação” fez a sua aparição timidamente em 1801, no prefácio do “Régulateur Maçon” e apenas no caderno do Venerável, que reproduzia às escondidas do Grande Oriente e sob seu selo, os rituais do Rito Francês em sete graus e quatro ordens que ele havia estabelecido em 1786. Teria sido devido ao trabalho intitulado “Recherches sur les initiations anciennes et modernes” [15], publicado em 1781 pelo Irmão Jean Baptiste Claude Robin, membro da loja “Les Neuf Soeurs” do Oriente de Paris, e divulgado durante uma sessão memorável relatada por Dixemerie? Não se pode tomar ao pé da letra a frase “…os verdadeiros iniciados” encontrada em itálico (pág. 7 e 12) no texto de um panfleto anônimo publicado em Haia, em 1745, chamado “Le Tonneau jetté ou réflexions sur la prétendue découverte de l’Ordre des Francs-Maçons” [16] refutando a “l’Ordre des Francs-Maçons Trahi“, do abade Perau. Também é sintomático que a Convenção da Philalethes organizada em 1785-1787 pela Loja “Les Amis Réunis“, do Oriente de Paris, dedicada ao estudo da “ciência maçônica”, suas origens e seus objetivos, em nenhum momento tenha considerado uma pesquisa sobre as iniciações ou uma eventual reaproximação com os antigos “mistérios”. Só uma intervenção, feita pelo Irmão Westerholdt na sessão de 19 de abril de 1785, faz menção à sua “…alta antiguidade” e acrescenta: “… a Maçonaria, tendo uma analogia perfeita com as iniciações”. Mas este estímulo não trouxe nenhuma reação por parte de uma plateia composta pelos maçons mais proeminentes e os mais cultos de toda a Europa. De qualquer forma, a palavra “iniciação” só se tornou oficial, maçonicamente falando, em 1826 (Art. 217 da Constituição do Grande Oriente de França).

Quando houve “iniciação” no sentido iniciático do termo? O máximo que se pode ser sugerir é que foi ao longo da década de 1780, após tentativas de codificação de rituais, feitas em primeiro lugar pelo Grande Oriente da França, em 1786, e também pelas Convenções de Lyon, em 1778, e de Wilhemsbad, em 1782, para o Rito Escocês Retificado.

Certamente havia “iniciação” antes desta última data. Mas isso só afetou os círculos de Lyon, cujo misticismo declarado era expresso sob a forma maçônica. Desde 1767, Willermoz e seus seguidores dedicaram, através de um sincretismo que combinou os sistemas de Saint Martin e Martinès de Pasqually, a implantar estranhas cerimônias ao mesmo tempo religiosas e mágicas, destinadas a devolver ao homem decaído a sua pureza original. Uma carta enviada a João Batista Willermoz por seu irmão Pierre Jacques, datada de 1768 e preservada em Lyon pela coleção W. 5471, diz “… queremos iniciá-lo na a hora certa”, mostrando que havia “iniciação”. Elas não eram restritas só aos Altos Graus, reservados para uma elite cuidadosamente escolhida e, portanto, muito pequena. Um documento altamente secreto, acessível a poucos eleitos, “L’Instruction des Grands Profès[17] último grau do Regime Retificado de Lyon, de 1778, publicado recentemente em um trabalho de Antoine Faivre sobre a obra de Le Forestier, confirma este fato (Lyon – Coleção W. 5475). Este tipo de cerimônias, deixando de fora aquelas muito diferentes, referem-se aos três graus simbólicos. No entanto, a seriedade e o rigor próprios da execução da cerimônia de Iniciação dos Altos Graus – rigor tornado necessário por seu lado mágico – leva a se pensar que ela contribuiu para fortalecer e estabilizar a liturgia das recepções de Aprendiz, Companheiro e Mestre, destinadas mais tarde a se tornarem iniciações.

O aspecto esotérico do ensinamento ministrado nas oficinas de vocação superior, dedicadas à busca do desconhecido e do secretismo que isso envolvia, necessariamente levou à sacralização do ritual em todas as suas modalidades. Ocorreu insidiosamente, poderíamos dizer pouco a pouco, e, assim, instaura o caráter “iniciático” das recepções dos três graus simbólicos. Mas então surge a pergunta: que tipo de iniciação?

Não há nada que o homem tenha criado que não seja em resposta a uma necessidade profunda de seu consciente e, mais ainda, de seu inconsciente. A universalidade no tempo e no espaço dos impulsos que o movem, ilustra o conceito de arquétipos inerentes a toda a espécie. Parece que estes últimos se impõem às várias formas de vida animal. A repetição contínua de atitudes, gestos, torna-se uma linguagem que se transforma, sem que percebam, em códigos especiais para cada um deles. No ser humano, o surgimento da palavra ocorreu pelo controle da voz, e o pensamento que se seguiu levou-o a uma tomada de consciência do mundo e de seus inúmeros perigos; a reflexão analógica e as práticas mágicas que disso resultarão, farão com que se unam. A eficácia destas últimas repousava sobre uma execução rigorosa do seu gestual. Nascia a ritualística, com seus rituais de todos os tipos. Sob múltiplas formas, ela tem continuado a se desenvolver, tanto nas relações sociais quanto no que se refere às abordagens do mundo não-manifestado, substância do “sagrado”.

A morte e o desaparecimento que ela implica deverão aparecer como o maior perigo a que o homem poderia ser submetido, daí sua ansiedade, a recusa de aceitar, e a esperança de sobrevivência em um além diferente. Portanto, a morte era apenas uma passagem que leva a um renascimento neste mundo não manifestado, mas pressentido, e que era domínio do sagrado. Uma passagem, como a do nascimento à vida, da infância para a adolescência, desta última para a masculinidade pelo exercício da sexualidade, tudo sacralizado durante cerimônias rituais. Sendo o rito a única forma de acessar a estes diferentes níveis de ser, todas as civilizações, da mais primitiva à mais sofisticada, sabiam, e ainda sabem, que estas práticas são mantidas em segredo porque espera-se que tragam um poder considerável para aqueles que são seu objeto.

Continua…

Autor: André Dore
Tradução: S. K. Jerez

Notas

[13] – Telhador

[14] – Cântico dos aprendizes

[15] – Pesquisas sobre as iniciações antigas e modernas (N.T.)

[16] – O tonel entornado ou reflexões sobre a alegada descoberta da Ordem dos maçons (N.T.)

[17] – A Instrução dos Grande Professos