Virtude

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Na busca incessante do significado da Virtude me deparei com livros e artigos de dois filósofos, Aristóteles e Santo Agostinho, que me deram boa base para o desenvolvimento deste trabalho.

A Virtude, segundo o dicionário, é

“O que expressa boa conduta; em conformidade com o correto, aceitável ou esperado; segundo a religião, a moral, a ética etc.”

Segundo Santo Agostinho,

“A definição mais acertada e curta de Virtude é a que diz que ela é ordem do amor” (Agostinho, 1961, p. 330).

A Virtude, segundo Aristóteles, é “uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, a virtude encontra e escolhe o meio termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania.”

A Virtude, segundo a maçonaria, “é a disposição da alma que nos induz à prática do bem.”

Mas, que relação podemos estabelecer entre os conceitos desses pensadores? O que realmente fazemos para nos aperfeiçoar intelectualmente através da prática da Virtude?

Aristóteles nos ensina que a Virtude se divide em moral e intelectual. A Virtude intelectual é gerada por natureza, nasce e cresce graças aos resultados do ensinamento e da educação, e a Virtude moral não é gerada em nós por natureza, é sim o resultado do hábito que nos torna capazes de praticar atos justos. Ele classifica a Virtude como o meio termo entre dois vícios, ou seja, a justa medida em que o excesso ou a deficiência culminam em vício de suas ações. Já Santo Agostinho, define a virtude como um hábito que faz o bem, ou, as ações do homem conforme a natureza que, voltadas ao bem, o conduz a um fim.

Tanto Santo Agostinho como Aristóteles entendem que a Virtude é gerada em nós por natureza, já está no interior do ser humano e se cria dentro do homem apenas o meio para o hábito de se praticá-la. Mas, para Santo Agostinho, a Virtude só pode existir no homem se este viver conforme o Amor (uma vida em Deus), através da graça concedida por Ele, e é esse Amor a maior virtude que o homem pode ter.

Nesses dois conceitos acredita-se que a finalidade da virtude é o “bem supremo”, que para Aristóteles é a felicidade da Humanidade e, para Santo Agostinho, é o Amor.

Acredito que eu possa ser um exemplo de como agir para se aperfeiçoar intelectualmente. Ainda profano, não sabia trabalhar a Pedra Bruta, por isso ao passar pela Câmara de Reflexão, observando os símbolos que ali estavam, fui levado a refletir e procurar respostas no meu “eu interior”. Nessa busca pelo aperfeiçoamento intelectual é necessário o aprimoramento de meus conhecimentos; na jornada para meu aprimoramento moral devo pautar meu comportamento pela prática da Virtude, e assim encontrar “a Pedra Filosofal”, no seu mais puro significado, dentro de mim. Para isso preciso trabalhar, e estar sempre na constante e incessante construção de templos à virtude, usando o maço e o cinzel para lapidar a Pedra Bruta, pois somente desbastando as asperezas da vida profana que deixei de lado quando renasci como Aprendiz, sendo justo e comedido, usando a medida justa da Régua de 24 polegadas para estar dividindo meu dia e praticando retamente minhas ações, na busca por uma vida virtuosa.

Mas, qual a Virtude que, no nosso dia a dia, no nosso convívio e relacionamento interpessoal, buscamos realmente e quais as Virtudes esperadas de um maçom?

No meu entendimento, não devemos praticar uma ou outra Virtude, mas sim todas possíveis a cada situação apresentada em nossa vida, para que tornemos o nosso meio um pouco melhor a cada dia, seja como maçom, como cidadão ou como pessoa comum. Nosso trabalho tem como objetivo melhorar o mundo, e a prática das Virtudes é o caminho para chegarmos lá.

Segue alguns exemplos de Virtudes que ao meu temos que praticar mais e mais:

  • A Justiça: Virtude que nos faz dar a cada um, o que lhe corresponde, que deve fazer-se de acordo com o direito e a razão. A Justiça é o apoio do mundo e a injustiça é a origem e manancial de todas as calamidades que o afligem.
  • A Prudência: Virtude que faz prevenir e evitar as faltas e perigos, a que nos faz atuar com sobriedade, discrição, moderação e previsão.
  • A Temperança: Virtude que modera os apetites e as paixões, e trabalhar com moderação, sobriedade e continência.
  • A Humildade: Virtude de assumir e reconhecer os erros próprios.
  • A Caridade: Virtude que atua como extrema sensibilidade aos sofrimentos alheiros. É o AMOR FRATERNAL, muitas fezes confundido com a filantropia.

Mesmo com pouco tempo em nossa Sublime Ordem, percebo que em muitos casos esses conceitos parecem não ser corretamente assimilados por todos, seja por desconhecimento de seus significados, ou por estar o irmão ainda em seu processo de lapidação.

Acredito eu que, após iniciados, nós maçons devemos buscar o crescimento intelectual e o aprimoramento moral, e isso exige tempo, estudo e dedicação, para que a cada dia nos tornemos melhores em todos os sentidos, e para que, um dia, nossas paixões e vícios sejam enterradas nas masmorras que nos propusemos a cavar.

O Maçom deve ser escolhido para ser Iniciado não por motivos profissionais, familiares ou de amizade, mas sim por ser o profano reconhecido Maçom em sua essência, encontrando nele as virtudes que tanto valorizamos.

“A Virtude é um hábito do bem, ao contrário do hábito para o mal ou o vício” Santo Tomás de Aquino

Autor: Davidson Dionizio de Oliveira
ARLS Pioneiros de Ibirité, 273 – GLMMG
Oriente de Ibirité, Minas Gerais

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Referências

ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001

https://www.maconaria.net/virtudes-e-vicios/

https://www.maconaria.net/sobre-as-virtudes-maconicas/

https://www.maconaria.net/v-i-t-r-i-o-l/

https://www.significados.com.br/virtude/

https://www.dicio.com.br/virtude/

https://blog.cancaonova.com/seminario/virtudes-e-vicios-em-santo-agostinho/

https://sentadonalua.wordpress.com/2012/07/12/a-etica-de-santo-agostinho-frente-a-etica-aristotelica/

http://iblanchier3.blogspot.com/2018/06/virtude-virtudes-e-bons-costumes.html

http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/019e2.pdf

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Santo Agostinho – Trivium e Quadrivium (Parte II)

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O ensino do Trivium e do Quadrivium, a linguagem e a História na proposta de educação agostiniana – (Parte II)

A importância da linguagem

Em seu artigo Agostinho e a Educação Cristã: um olhar da História da Educação, Oliveira (2008) destaca alguns aspectos elencados por Santo Agostinho para a formação do cristão, entre os quais a linguagem e necessidade do conhecimento da escrita e das letras.

Ao apresentar um roteiro de como se tornar cristão, Agostinho nos brinda com um verdadeiro programa de estudos, necessários, em nosso entender, para qualquer aprendizagem e que independe da época em que o estudo se realiza. O autor destaca a importância da linguagem, do conhecimento da escrita, portanto, das letras, da necessidade do aprendizado do cálculo, de se entender a música, de se conhecer as instituições nas quais e para quais se realizam determinados estudos, de se conhecer a língua na qual o estudo está sendo realizado. Dentro deste aspecto, destaca a precaução necessária em relação às traduções. Do ponto de vista agostiniano, saber a língua no qual o texto foi escrito é condição para o bom entendimento da mensagem contida no mesmo (OLIVEIRA, 2008, p. 6).

Vários autores destacam que, ao se manifestar a respeito da linguagem, Santo Agostinho levanta questões que ultrapassam sua concepção religiosa, a exemplo da importância que a leitura, o conhecimento de línguas, a precaução com as traduções têm para a obtenção ou produção do conhecimento.

A importância da linguagem decorre do fato de que é esse meio de comunicação humana que faz das Escrituras um modo de aproximação de Deus para com o homem: pelo que está expresso em suas obras, os homens podem atingir a inteligibilidade de Deus.

Assim, quanto maior for a capacidade das pessoas de usarem a linguagem, melhores suas condições de se apropriar dos sentidos e ensinamentos contidos nos textos bíblicos. Por conseguinte, as conversões ocorrerão de maneira mais consciente. Na verdade, Agostinho apresenta diversos aspectos que julga serem elementos essenciais para se compreender as palavras contidas nas Escrituras. A nosso ver, apresenta, de fato, um roteiro de como se deve proceder para ser cristão. Do seu ponto de vista, a conversão é um processo de aprendizagem. No seu tempo, em geral, não se nascia cristão, mas se tornava, pela aceitação da doutrina (OLIVEIRA, 2008, p. 6).

Assim, com os recursos da linguagem, como metáforas, alegorias, comparações, diálogos com perguntas e respostas didaticamente organizados, os mestres articulariam os dois conhecimentos, os das ciências e as verdades divinas, levando os discípulos a entender as coisas espirituais. Por meio da linguagem comparativa, o próprio Agostinho trata de temas abstratos estabelecendo relações com outras situações concretas ou com objetos conhecidos pelos seus ouvintes. O próprio Agostinho utiliza muitas comparações no decorrer da sua obra para levar os leitores a entender conceitos complexos e abstratos por meio de assuntos conhecidos.

Em seu livro A Trindade, ele explica que, tendo como finalidade levar os homens a entender os princípios divinos: “[…] a Escritura, no seu modo de expressar, acomoda-se aos costumes humanos, pois fala a criaturas humanas (Santo Agostinho, A Trindade, L. I, cap. 12, § 23)”.

Nessa acepção, a linguagem é o principal instrumento de transmissão do conhecimento. Por meio dela, o ensino se efetivaria entre os indivíduos e se difundiria na sociedade.

Em seu De Magistro, quando tratou da necessidade de conhecer o significado e o conceito das palavras, o fez com vistas a que elas pudessem ser utilizadas adequadamente no ensino.

Nessa obra, a função da fala é abordada por meio de um diálogo com Adeodato, seu filho, que aos dezesseis anos contribuiu com as ideias que foram registradas.

Uma das ideias que Agostinho discutiu é a necessidade de se ter claro o que pretende quando se fala, ou seja, o autor discutiu a questão da intencionalidade da linguagem (AGOSTINHO, De Magistro), detalhando a significação da palavra e enfatizando a necessidade de pensar no que queremos ensinar quando falamos. Ou seja, de seu ponto de vista, não se trata de ensinar apenas palavras, mas também o que elas significam, o conteúdo que elas transmitem e, por isso, ele discute também a questão dos signos.

Na medida em que a linguagem estabelece a comunicação entre as pessoas, ele considerava que o conhecimento dos signos constituía-se em elemento potencial de aprendizagem. Da mesma forma que a palavra que se profere pode ser percebida pelo ouvido, a palavra escrita apresenta-se como um sinal para os olhos, despertando na mente o que se percebe com os ouvidos.

Segundo Horn (2006), esse aspecto do pensamento era tão inovador, que o autor foi considerado um precursor da concepção semiótica.

Um ponto que se destaca por todo o pensamento agostiniano sobre a filosofia da linguagem é a tese de que palavras representam sinais. Parece residir aqui uma inovação digna de nota, diante dos seus predecessores, razão pela qual repetidamente se afirmou que Agostinho é o patrono de uma concepção semiótica (de teoria dos sinais) da semântica, ou, ainda, da teoria do significado linguístico (cf. Coseriu, 1969; Eco, 1984 apud HORN, 2006, p. 6-7).

Horn (2006) informa ainda que essa definição de linguagem aparece em outras obras de Agostinho anteriores ao De Magistro:

Agostinho dispõe de uma série de observações interessantes e modos de visão originais sobre o fenômeno da linguagem. A sua intenção, contudo, não reside no desenvolvimento de uma filosofia sistemática da linguagem. Ao fundo, encontra-se, antes, a sua pretensão teológica de comprovar a presença de uma realidade divina no nosso falar e pensar. Apesar desse interesse de conhecimento incomum, pode-se atestar a Agostinho que a sua ocupação com filosofia da linguagem alcança, nas diferentes fases biográficas, um nível absolutamente respeitável. Possuímos, primeiramente, um tratado juvenil com o título De dialectica, que se ocupa com algumas questões de filosofia da linguagem e de teoria dos sinais, e sabemos que existiu um tratado surgido simultaneamente, De grammatica, o qual, porém, já cedo se perdeu (HORN, 2006, p. 6).

Segundo Horn, para se entender o que Agostinho pretendia com a definição das palavras como sinais, é necessário considerar uma importante distinção: a palavra como um sinal que representa (substitui) o objeto e como um meio de comunicação, de conhecimento.

Poucos anos depois da sua redação, no escrito De magistro, do ano de 389, Agostinho já se apóia muito claramente nessa definição, quando define palavras (verba) como sinais (signa) (2,3). Sem dúvida, para entender corretamente a concepção ali contida, tem-se de diferenciar entre duas funções, nas quais as palavras podem aparecer como sinais (cf. De magistro, 2002). (HORN, 2006, p. 7).

Assim, a primeira função estaria relacionada ao campo da semântica:

Por um lado, pode-se ter em vista uma função substitucional (nisso pensamos nós contemporâneos, via de regra): palavras designam algo, na medida em que elas, como sinais, estão por esse algo como que ‘a modo de substituição’. Assim a palavra ‘mesa’ designa o objeto mesa, na medida em que ela, como fonema (sinal sonoro) ou como grafema (sinal escrito), está para uma mesa no mundo das coisas físicas (HORN, 2006, p. 7).

Na segunda, os sinais têm um sentido constitutivo do conhecimento e, segundo o autor, é com essa acepção que Agostinho considera a palavra em suas orientações sobre o ensino.

Por outro lado, palavras podem ser tomadas como sinais num sentido ainda mais geral, a saber, constitutivo do conhecimento. Palavras abrem para nós novos conteúdos de saber, na medida em que formam o veículo de uma exposição, de uma narrativa ou de uma argumentação oral ou escrita. Palavras desvelam à ouvinte ou ao leitor algo novo; elas apresentam a ela ou a ele algo até então não-sabido. É esse segundo significado que Agostinho tem em vista com a sua tese do caráter de sinal das palavras, e não uma teoria de semântica. Palavras são sinais, não primariamente em sentido substitucional-semântico, mas sim em sentido constitutivo do conhecimento (HORN, 2006, p. 7).

Mammì (2000) assinala que Agostinho atribui a existência de signos à necessidade de comunicação entre os homens.

Os signos linguísticos nascem da impossibilidade de as almas humanas comunicarem-se diretamente entre si, após a queda no pecado; sua função é ensinar conceitos ou transmitir vontades. Em síntese, a linguagem é um instrumento que permite que as almas ajam uma sobre outra (p. 347).

Nesse sentido, na medida em que visava o ensino, era essa a função das palavras que Agostinho usava amplamente. Para ele, sua importância advinha do sentido que elas poderiam transmitir ao ouvinte. Pelas palavras se estabeleceria uma comunicação entre a contemplação individual interior e o outro.

Para Mammì (2000) a comunicação por meio das palavras, em Agostinho, assumiu proeminência na ação de uma alma sobre outra, porque elas contêm a possibilidade de ensinar, de convencer, enfim, de transformar as atitudes pagãs em atitudes cristãs.

Acrescentamos aqui um aspecto destacado por Mammì (2000) no pensamento de Agostinho: sua concepção de que as palavras têm função mnemotécnica de chamar à mente os conteúdos da consciência.

Ao que ensina é primordial ter domínio da palavra para utilizá-la, ou seja, tendo em vista a finalidade básica da linguagem, ensinar pressupõe o uso da palavra com conhecimento do seu significado. Seu uso adequado resulta na compreensão, por parte do destinatário, da mensagem que se quer transmitir; já seu uso indevido implica distorções e equívocos na mensagem, os quais comprometem a eficácia do ensino.

Ressaltando esta questão, podemos pensar que o uso adequado da linguagem é inerente ao livre-arbítrio, uma vez que este possibilita ao ser humano fazer as escolhas apropriadas também no que se refere ao uso das palavras, especialmente quando se ensina.

Diante do fato de que a arte da palavra pode persuadir para o bem ou para o mal, Agostinho fez, em A Doutrina Cristã, a seguinte pergunta: “por qual razão as pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se engajar ao serviço da verdade?”

Assim, Santo Agostinho discutiu o porquê de se utilizar a arte da eloquência por tê-la como relevante na aplicação em persuadir o que considerava como verdadeiro. “Eis o que constitui o talento da palavra ou da eloquência: os princípios e preceitos dessa arte unidos ao empenho engenhoso da linguagem, especialmente exercitada a realçar a riqueza do vocabulário e do estilo” (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, Liv. IV, cap. 3,§ 1).

Os jovens, segundo Santo Agostinho, deveriam aprender essa arte em estudos à parte, conforme a disponibilidade que tivessem. Os mais ocupados com o serviço da Igreja poderiam assimilar a eloquência lendo ou estudando os bons oradores nas obras eclesiásticas e principalmente nas Escrituras.

É intrínseco ao ser humano, dotado da razão e da possibilidade de usá-la, distinguir a função das palavras, bem como conhecer o que elas significam. Nesse sentido, Santo Agostinho destacou a superioridade do conhecimento conceitual em relação ao morfológico.

O desconhecimento dos signos próprios, para Santo Agostinho, era um fator que comprometia a compreensão, mas também o era o dos signos figurados, muito utilizados nas Escrituras. “Ora, há duas causas de incompreensão do texto da Escritura. A verdade encontra-se oculta por signos desconhecidos ou por signos de sentido figurado. Com efeito, os signos são ou próprios ou figurados” (AGOSTINHO, L. II, cap. 10, § 15). Esses signos figurados consistiam em expressões da vida cotidiana utilizados para o ensino de outra significação. Segundo o autor, para alcançar a compreensão das passagens de sentido alegórico, era necessário, primeiramente, o conhecimento das palavras em seu sentido próprio.

Assim, para conhecer o sentido próprio e figurado das palavras, de forma a aprofundar a compreensão das Escrituras, era necessário ao estudioso latino conhecer o grego e o hebraico, verificando também a validade das traduções.

Para combater a ignorância dos signos próprios, o grande remédio é o conhecimento das línguas. Os conhecedores da língua latina, a quem pretendemos instruir neste momento, necessitam, para chegar a conhecer a fundo as divinas Escrituras, de duas outras línguas, a saber, o grego e o hebraico. Elas lhes permitirão recorrer aos exemplares mais antigos, no caso em que há infinita variedade de traduções latinas lhes traga alguma dúvida (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 11, § 16).

O contato com os textos originais permite verificar que a mesma palavra pode ter significados diferentes nos distintos idiomas. Esse desconhecimento prejudicaria a compreensão do sentido originalmente proposto.

Por isso, ele aponta as vantagens do estudo comparativo das diversas traduções latinas, o que também poderia auxiliar a compreensão dos textos sagrados: “A diversidade de traduções, contudo, tem sido mais ajuda do que obstáculo à compreensão do texto, isso ao se tratar de leitores não negligentes. De fato, o exame de muitos códices, com frequência esclarece certas frases obscuras (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 12, § 17)”.

Além dessas questões teóricas a respeito da linguagem, o autor descreve várias estratégias de retórica, que poderiam ser utilizadas no ensino cristão. Nesse sentido, a conversão de Agostinho proporcionou-lhe um imenso campo de trabalho. Os conhecimentos que trouxe do passado, dos critérios que os antigos haviam produzido foram direcionados para a formação de indivíduos, os quais não apenas fariam parte da sociedade que principiava a se formar, mas se tornariam seus dirigentes. E o fizeram fundamentados na educação cristã e no conhecimento historicamente produzido pela humanidade.

As normas que ele elaborou para orientar o estudioso das Escrituras na compreensão da mensagem cristã tornaram-se profícuas naquela sociedade que carecia de ser instruída nas letras, na fé e na civilização. Tratava-se de auxiliar os que sabiam menos a compreender as Escrituras e ensiná-las.

A importância do conhecimento e do ensino da História para a educação

Nesse sentido, a mensagem a ser transmitida perpassava pelo conhecimento da história, apresentado por Agostinho como uma forma de retomar princípios, conceitos e ensinar aos homens como agir diante das circunstâncias. Para Santo Agostinho,

[…] todos os informes que a ciência chamada história nos oferece sobre o sucedido nos tempos passados nos são de grande ajuda para compreendermos os Livros santos, ainda quando forem aprendidos fora da Igreja, em vã erudição (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 29, § 42).

A história, portanto, mesmo que não fosse aprendida como parte da formação cristã, constituía um instrumento para a formação da memória e da identidade do indivíduo na contemplação das Escrituras.

O conhecimento e os argumentos históricos permeiam as obras e os discursos de Agostinho. Com base no conhecimento histórico que ele tinha, pôde articular suas análises e seus argumentos nessa perspectiva.

Outro aspecto que Santo Agostinho destaca são as instituições humanas, que, para ele, se referem ao conhecimento histórico e literário produzido pela humanidade. A primeira vista, poderíamos pensar no acesso restrito a essas obras. No entanto, elas não foram desprezadas, antes se tornaram em fundamentos teóricos para os cristãos chegarem a uma compreensão mais aprofundada do ensino contido nas Escrituras. Deveriam, inclusive, segundo o autor, ser aprendidas de memória.

Toda essa parte de instituições humanas que são convenientes para as necessidades da vida, os cristãos não têm razão nenhuma para evitá-la. Eles devem, bem ao contrário, à medida de suas precisões, dedicar-se a seu cumprimento e aprendê-las de memória (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 26, § 40).

Finalmente, devemos considerar a consciência desse autor em relação ao seu tempo histórico. Várias são suas referências a fatos históricos, quando se tratava de se posicionar diante dos problemas e buscar explicações e soluções para eles. Por esse meio, ele se contrapunha àquelas explicações que considerava insuficientes para responder aos problemas enfrentados naquele período de transição.

Recorrer à história produzia condições de apreensão de princípios e valores que deveriam permanecer e daqueles que deveriam ser transformados por hábitos fundamentados na proposição cristã que confrontava os costumes pagãos.

Ao estabelecer a relação com o conhecimento do passado, entendemos que Santo Agostinho ofereceu parâmetros para situar historicamente tanto a prática formativa, quanto os conteúdos programáticos que deveriam ser preservados, difundidos, com vistas à produção do conhecimento que os cristãos assumiriam, em virtude da desarticulação política do referido período.

Em síntese, Agostinho foi um autor que dedicou grande parte de sua vida ao estudo das Escrituras e à difusão da educação cristã. Ao fazê-lo, elaborou orientações para o ensino, discutiu os conhecimentos teóricos que deveriam ser ensinados, bem como as estratégias para se ensinar corroborando com a educação do medievo, na medida em que seus postulados permaneceram norteando a educação no ocidente durante séculos.

FINIS

Autora: Maria Rita Sefrian de Souza Peinado

Fonte: Imagens da Educação

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Referências

AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad. Ir.Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. AGOSTINHO. A Trindade. Trad. Agustinho Belmonte. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005. AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. 17. ed. São Paulo: Paulus, 2004. AGOSTINHO. De Magistro. Trad. Angelo Ricci. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. DURKHEIM, E. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HORN, C. Agostinho: teoria lingüística dos sinais. Veritas, Porto Alegre, v. 51, n. 1, mar. 2006, p. 5-17. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/1879/1400>. Acesso em: 08/11/09. LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
MAMMÌ, L. Canticum Novum. Música sem palavras e palavras sem som no pensamento de
Santo Agostinho. Estudos Avançados, 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142000000100020&lang=pt>. Acesso em: 14 nov. 2009. NUNES, R. A. da C. História da educação na Idade Média. São Paulo: EPU, 1979. OLIVEIRA, T. Agostinho e a Educação Cristã:
um olhar da História da Educação. Notandum , 17, jul-dez. 2008. Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand17/terezinha.pdf>. Acesso em: 05/09/11.

Santo Agostinho – Trivium e Quadrivium (Parte I)

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O ensino do Trivium e do Quadrivium, a linguagem e a História na proposta de educação agostiniana – (Parte I)

Ao eleger o conhecimento do Trivium e do Quadrivium como necessários à compreensão e ensino das Escrituras, Santo Agostinho (354-430) marca a educação medieval com a preservação do conhecimento produzido na Antiguidade. A linguagem como instrumento de ascendência sobre as pessoas não se limitaria ao âmbito da religião, uma vez que a orientação agostiniana ocupou preeminência na educação em função das condições institucionais e políticas decadentes no Império Romano, estendendo suas influências no período medieval. Por meio de uma análise que leva em consideração os aspectos históricos, sociais, políticos do período, bem como a formação educacional de Agostinho, as fontes, algumas obras do autor e a historiografia revelam a influência e extensão da proposta de educação cristã para a formação do homem por meio do ensino. Nesse sentido, a teorização sobre a linguagem, o conhecimento da história sagrada e secular se constituem como fundantes à educação pela argumentação e por princípios e conceitos comunicados.

Tendo como eixo norteador a premissa metodológica de que os projetos de educação e de ensino das diferentes épocas correspondem às diferentes necessidades sociais, no decorrer
deste trabalho, procuramos situar Agostinho no universo histórico, intelectual, religioso e familiar de sua época. Ao analisar os aspectos particulares da vida, bem como da formação de Santo Agostinho em face dos aspectos gerais da sociedade, percebemos que algumas questões desse contexto foram abordadas pelo autor e destacadas pela historiografia que o estudou. Pudemos reiterar, com base nesses historiadores, que a ênfase de Agostinho sobre alguns aspectos de sua educação familiar e cultural, bem como o cuidado com que ele se dirigia aos seus ouvintes e aos leitores de suas obras relacionavam-se às características peculiares de um período de transição.

Conforme destacamos, nos chamaram a atenção as circunstâncias resultantes das migrações dos nômades e da desagregação política do Império Romano. Nas quais percebemos que sua proposta de educação que contempla muitas questões relativas ao ensino, emergia das necessidades que os tempos e a demanda impunham. O atendimento dessas necessidades somente poderia ser realizado por pessoas que tivessem condições culturais e religiosas para tal. Ao ensinar seus discípulos, Santo Agostinho preparou-os para formar outros; assim, juntamente com a evangelização, o conhecimento e a cultura se difundiam entre os povos nômades e remanescentes romanos.

Um aspecto da vida desse autor que nos incita a refletir é a necessidade que sentiu de se recolher em uma pequena propriedade rural para se dedicar exclusivamente ao estudo e à meditação das Escrituras. Lá ele estudava, meditava, escrevia e compartilhava com seus amigos os resultados de seus esforços. Embora esse recolhimento tenha durado por um período de aproximadamente três anos, entre sua conversão ao cristianismo e o período em que foi aclamado presbítero, conforme o costume, essa experiência permaneceu como um ideal formativo tanto no estilo de vida que levou desde então, quanto eu seus preceitos e instruções sobre o ensino. Antes, de se converter, Agostinho teve amante, oscilou entre várias filosofias, ou seja, conhecia o mundo e apreendeu em seu tempo as circunstâncias em que vivia o ser humano. Enfim utilizou todo o seu conhecimento previamente alcançado para esmiuçar sua análise sobre os diferentes temas de que tratou. Ele transmitiu seu conhecimento por meio de seus escritos, livros, cartas, diálogos e sermões, de modo que seu exemplo permaneceu nas Igrejas em que seus discípulos eram os responsáveis, pois esses também tinham a responsabilidade de formar outros cristãos.

Suas reflexões sobre o ensino ultrapassaram o âmbito de uma simples proposição e se tornaram práxis educativa. O próprio autor atuava em uma escola organizada na proximidade da sede episcopal.

Após sua conversão ao cristianismo, Santo Agostinho dedicou-se ao ensino, educando os clérigos em sua residência, proporcionando-lhes o conhecimento e formação religiosa. ‘Conta Posídio que Santo Agostinho, quando bispo, educava os clérigos na sua residência, onde eram instruídos e recebiam alimentação e roupa’ (NUNES, 1979, p. 108).

Conforme Nunes (1979), os livros desse autor tornaram-se manuais lidos na Idade Média pelos padres, que seguiam suas orientações e seus ensinamentos ao ensinar nas escolas paroquiais.

As escolas paroquiais exerceram essa função formadora, elas funcionavam na igreja matriz da paróquia ou na casa paroquial, com o intuito de preparar os candidatos ao sacerdócio com instrução mínima necessária ao desempenho sacerdotal. A escola episcopal alojava-se na igreja catedral ou na residência do bispo. A igreja tornou-se a única educadora daqueles tempos, pois era a única instituição que tinha condições e meios para educar e instruir (NUNES, 1979, p. 103).

Foi desse ponto de vista que procuramos identificar as diretrizes gerais da educação cristã que ele defendeu em algumas de suas obras. Para além delas, fomos identificando, no processo de leitura e análise, alguns aspectos de sua proposta que podem ser considerados como elementos educacionais que ultrapassam os limites de uma formação cristã datada e, ultrapassando fronteiras de espaço, de tempo, inclusive fronteiras culturais, permanecem como um legado para outras épocas, especialmente para o pensamento educacional do Ocidente. Nesse sentido, a contribuição de Agostinho permaneceu pela proposição de um ensino que contemplava não somente a formação ideológica religiosa, mas os conhecimentos produzidos pela humanidade. A proposta de Santo Agostinho era, portanto, uma proposta de erudição por parte daqueles que se dispunham a ensinar e a cristianizar os povos.

Seus postulados vigoraram por gerações no período medieval e têm permanecido na cultura ocidental. Em alguns aspectos mais timidamente, em outros mais vividamente.

Entre tantos aspectos, pontuamos que, em sua proposta de formação do cristão, ele valorizou a postura de quem ensina.

O percurso formativo e a vida de dedicação aos estudos proporcionaram a Agostinho a condição de pensar que a formação do cristão passaria pela necessidade do conhecimento de leitura e de escrita. Por isso, ao defender ferrenhamente a necessidade de os cristãos compreenderem as Escrituras, ele identificou os conhecimentos essenciais e os meios a ser
utilizados para formar aqueles que formariam outros cristãos.

Por isso, nosso objetivo é analisar alguns aspectos do ensino valorizados por Santo Agostinho, na expectativa de que despertem novas reflexões, frisando que todos esses conhecimentos, de seu ponto de vista, deviam ser incutidos nos homens para que eles tivessem mais condições de se aproximar do pensamento divino.

A Adoção do Trivium e Quadrivium

O primeiro deles é a eleição dos conhecimentos do Trivium e do Quadrivium como necessários para a compreensão e divulgação das Escrituras.

Para Santo Agostinho, a compreensão das Escrituras pelo estudioso pressupõe o saber ler e
escrever e também o conhecimento do Trivium e do Quadrivium. O Trivium, composto pelas disciplinas: gramática, dialética e retórica, é um conjunto de conhecimentos que abrange desde a forma da escrita, o significado das palavras, a lógica do pensamento até ao uso da linguagem que deveria ser escolhida para comunicar e ensinar o que se compreendeu. Esta linguagem, segundo a perspectiva da retórica, obedece a formas de estilo, a métodos para se alcançar o fim desejado – a comunicação, ou seja, o ensino.

Em sua análise dos campos de conhecimento do Trivium na educação medieval, Durkheim afirma que:

O trivium tinha por objetivo ensinar a própria mente, isto é, as leis às quais obedece ao pensar e expressar seu pensamento, e, reciprocamente, as regras às quais deve sujeitar-se para pensar e expressar-se corretamente. Tal é, com efeito, a meta da gramática, da retórica e da dialética. Esse triplo ensino é, pois, totalmente formal. Manipula unicamente as formas gerais do raciocínio, abstração feita de sua aplicação às coisas, ou com o que é ainda mais formal do que o pensamento, ou seja, a linguagem (DURKHEIM, 1995, p. 52).

As regras da lógica deviam fazer parte da formação do estudioso das Escrituras, não apenas com o objetivo de articular discussões para enganar o adversário, mas para convencer da verdade, que, para Santo Agostinho, era a verdade contida nas Escrituras. Ao discorrer sobre “os conhecimentos relativos não aos sentidos do corpo, mas à razão ou potência intelectiva da alma”, ele destaca a ciência do raciocínio (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 32, § 48).

A ciência do raciocínio é de muitíssimo valor para penetrar e resolver toda espécie de dificuldades que se apresentam nos Livros santos. Só se há de evitar o desejo de discussões (libido rixandi) e certa ostentação pueril de enganar o adversário (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 32, § 48).

Assim, ele distingue as diferentes formas do raciocínio.

Uma coisa é conhecer as regras do silogismo e outra conhecer a veracidade das sentenças. Pelas primeiras, aprende-se o que é deduzido logicamente, o que é deduzido ilogicamente e o que repugna à razão. A dedução lógica é esta: “Se ele é orador, é homem”. A dedução ilógica: “Se ele é homem, é orador”. E a dedução que repugna à razão: “Se ele é homem, é quadrúpede” (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 35, § 52).

As disciplinas do Trivium, portanto, constituíam, na perspectiva do autor, um instrumento para se chegar a conclusões lógicas ou ilógicas, verdadeiras ou falsas. Essa forma de raciocínio, esse conhecimento, deveria ser utilizado no exame das Escrituras.

E quando cada um tiver encontrado tudo o que aprendeu de proveitoso em outros livros, descobrirá muito mais abundantemente aí. E o que é mais, o que não aprendeu em nenhuma outra parte, somente encontrará na admirável superioridade e profundidade destas Escrituras. […]. Bem munido por essa formação e não estando mais paralisado por signos desconhecidos, o leitor manso e humilde de coração, submisso ao jugo de Cristo, carregado com um fardo leve, fundado, enraizado e edificado na caridade, poderá lançar-se ao exame e à discussão dos signos ambíguos das Escrituras, sobre os quais, no próximo livro, eu me preparo a discorrer, conforme o Senhor se dignar me inspirar (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 43, § 63).

Nesse sentido, o Trivium, como parte do ensino e da aprendizagem do cristão, tinha a função de formar seu pensamento por meio da ciência do raciocínio e esclarecer os diferentes aspectos da linguagem, os quais lhe abririam a possibilidade de interpretar as Escrituras.

Para Santo Agostinho,

[…] a ignorância da natureza das coisas dificultaria a interpretação das expressões figuradas, quando estas se referissem aos animais, pedras, plantas ou outros seres citados frequentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 17, § 24).

Segundo ele, para a compreensão eficaz das Escrituras, o estudioso deveria passar, necessariamente, pelo conhecimento das coisas, da ciência do raciocínio e das instituições
humanas, dominar os sentidos das palavras e dos signos, conhecer outras línguas, entre outros aspectos importantes do conhecimento.

Dessa maneira, tão importantes como os conteúdos do Trivium, são os conhecimentos do Quadrivium, que consistem num conjunto de conhecimentos objetivos e abstratos de aritmética, geometria, música e astronomia, os quais também eram úteis, segundo Santo Agostinho, à compreensão das expressões referentes a essas artes utilizadas nas Escrituras
como objeto de comparações a fim de alcançar o entendimento das coisas espirituais e, consequentemente, a rejeição das ficções supersticiosas.

A astronomia teria como objeto de estudos a ciência dos astros, da natureza e de seu poder. Santo Agostinho alertava, porém, que não se deveria utilizar esse conhecimento para tirar prognóstico de horóscopos, como faziam os genetlíacos, hoje chamados astrólogos. Em lugar de fazer conjecturas exatas para o tempo futuro, calcular o curso dos astros ou da lua, dizer qual a fase dentro de um período passado ou futuro, a astronomia era importante para desvelar o sentido das Escrituras como ciência dos astros criados por Deus. Assim, ele combatia um hábito característico do paganismo.

Quanto à importância da aritmética, Agostinho afirmava que a ignorância dos números impedia a compreensão de expressões figuradas ou simbólicas empregadas nas Escrituras. O mesmo vale para as noções musicais. Segundo ele, tanto a música quanto os números eram colocados em lugar de honra em muitas partes das Escrituras.

A música, nesse contexto, não deveria ser entendida como a arte do canto, mas como a disciplina que estabelecia as relações da música com a aritmética, com a harmonia dos astros e com as leis da acústica.

Segundo Oliveira (2008)

Assim, para Santo Agostinho, a leitura, a matemática, a natureza, a música, o conhecimento das línguas e a memória tornam-se condição primeira para a conversão do cristão. O cristão deve ser antes de tudo um ser que consegue entender e interpretar os escritos sagrados pelo conhecimento e não somente pela fé. O cristão também deve entender as relações sociais de cada tempo presente vivido pelos homens, pois são elas que imprimem os signos do conhecimento. É exatamente por isso que o autor chama a atenção para as mudanças que ocorrem de uma dada sociedade para outra (p. 6).

Nesse sentido, para Agostinho, os conhecimentos que compunham as disciplinas do Quadrivium eram pré-requisitos à formação do cristão.

Para Durkheim (1995), em sua análise sobre os campos de conhecimento, o Quadrivium

[…] era um conjunto de conhecimentos relacionados com as coisas. Seu papel era tornar conhecidas as realidades externas e suas leis, leis dos números, leis do espaço, leis dos astros, leis dos sons. Assim, as artes que abraçava eram chamadas artes reales ou physica (1995, p. 52).

É importante destacar que se atribuía um sentido alegórico às quatro disciplinas. Procurava-se um significado oculto nos números, nos astros. Desse modo, as disciplinas do Quadrivium ofereciam um conjunto de conhecimentos externos, necessários à compreensão das ilustrações ou de expressões figuradas dos Livros Santos.

Um homem fala com tanto maior sabedoria, quanto maior ou menor progresso faz na ciência das Santas Escrituras. E eu não me refiro ao progresso que consiste em ler bastante as Escrituras ou aprendê-las de cor, mas do progresso que consiste em compreendê-las bem e procurar diligentemente o seu sentido (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. IV, cap. 5, § 7).

Assim, percebemos que a proposição agostiniana para a difusão do cristianismo passaria pelo conhecimento do Trivium e do Quadrivium, já que, como as Escrituras foram escritas em linguagem humana, era necessário utilizar a ciência das coisas terrenas para explicar os princípios abstratos da religião.

Gilson (2001) destaca a importância com que os Padres e Agostinho, em particular, consideravam a cultura clássica, especialmente as “[…] artes liberais, bastante apropriadas ao uso da verdade e ainda alguns preceitos morais muito úteis” (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, Livro II, cap. 41, § 60). Elas seriam uma forma de o homem melhor interpretar as sagradas Escrituras.

Para compreender o texto todos os recursos das artes liberais eram requeridos, isto é, toda a erudição enciclopédica de Varrão: história (II, 28); geografia, botânica, zoologia, mineralogia, astronomia (II,29); medicina, agricultura, navegação(II,30); a dialética, tão útil para discutir as questões colocadas pela Escritura (II, 31-35); enfim, a aritmética, com suas diversas aplicações às figuras, aos movimentos e aos sons (II, 38). Mas achar-se em condições de compreender as Escrituras não é tudo, é necessário, além disso, saber falar a seu respeito. É aqui que intervém a Retórica, à qual é consagrado todo o livro IV da obra: porque os cristãos podem e devem ensiná-la, quais os deveres de um professor de retórica cristão e como os autores sacros uniram a eloquência à sabedoria. Que satisfação para Agostinho pensar que as Escrituras realizam, assim, o ideal de Cícero! Aliás, ele cita-o expressamente ao descrever o gênero de estilo e de eloquência que convém ao cristão; ele se entrega a uma exegese em regra de texto do Orator, 29, para explicar como, em que sentido o orador cristão pode observar os preceitos aí contidos, e essas discussões não eram, para ele, simples debates acadêmicos, já que, expulsa do fórum e confinada às salas de escola desde Júlio César, a eloquência vinha de reencontrar um público e retomar vida nas igrejas. Ambrósio, Cipriano, Agostinho não reivindicavam a tarefa de conduzir o povo ao bem comum da Cidade terrestre, mas acaso não eram os guias do imenso povo da Cidade celeste em peregrinação até Deus? (GILSON, 2001, p. 209).

Assim, imbricado na cultura clássica, Agostinho fundamenta o corpo teórico que daria a sustentação à compreensão e à difusão da doutrina cristã.

Le Goff (2007) destaca o fato de essa escolha de conteúdos feita por Agostinho ter permanecido até o século XII e XIII, o que, de nossa perspectiva, implica a permanência do conhecimento elaborado na Antiguidade.

Entre as escolhas culturais essenciais que o cristianismo medieval fez, em primeiro lugar, e sobretudo está a das classificações científicas e dos métodos de ensino. Transmitida por um retórico latino cristão do século V, Marciano Capella, a classificação e a prática das artes liberais dominam o ensino medieval. Divididas em dois ciclos, o do trivium, ou artes da palavra (gramática, retórica e dialética) e o do quadrivium, ou artes dos números (aritmética, geometria, música e astronomia), estas artes recomendadas por Santo Agostinho vão, nos séculos XII e XIII, fornecer o fundamento do ensino universitário na faculdade propedêutica dita faculdade de artes (LE GOFF, 2007, p. 26).

Em A Doutrina Cristã fica evidente o papel do conhecimento clássico na formação intelectual dos cristãos, tendo em vista que estes deveriam ensinar outros cristãos, reforçando, assim, o entendimento que continuava motivando o desenvolvimento do trabalho intelectual nas igrejas, nos mosteiros, nas escolas paroquiais e episcopais.

Nessa corrente, A Doutrina Cristã se tornou manual de educação e de ensino para a sociedade medieval, uma vez que nele Agostinho deu nova roupagem às leituras das Escrituras. Diferindo de Tertuliano, por exemplo, que no segundo século, não concordava que os cristãos ensinassem as letras, por considerá-las saber pagão. Nesse aspecto, as orientações agostinianas foram adotadas nas escolas paroquiais e nas dos mosteiros por conter a concepção de educação cristã e por definir o conjunto de disciplinas que deveria ser ensinado. Os escritos dos padres e dos monges, posteriores ao século V, evidenciam o conhecimento da proposição agostiniana.

Uma vez que Agostinho considerava que o domínio do conhecimento clássico fornecia subsídios para o conhecimento das coisas espirituais e propiciava condições de aprimorar a
fé, ele defendia que o homem cristão fizesse uso do pensamento racional, no qual a linguagem tinha papel fundamental. Por isso, em item específico, vamos analisar a importância que ele deu à linguagem, ao conhecimento das línguas e aos sinais como instrumentos de entendimento e comunicação.

Continua…

Autora: Maria Rita Sefrian de Souza Peinado

Fonte: Imagens da Educação

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O conceito filosófico de tempo e a régua de 24 polegadas

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O presente artigo aborda a questão da régua de 24 polegadas e o conceito filosófico do tempo, buscando afirmar que o instrumento conferido ao aprendiz maçom contém diversos elementos de contemplação dos filósofos gregos. O artigo ressalta que o maçom, ao usar a régua como um instrumento cotidiano pode obter “tempo” para a vida maçônica e familiar, evitando-se a ausência em ambos os ambientes.

A questão do Tempo

A maioria das pessoas, lógico supor, admite uma compreensão intuitiva do tempo. Pra essa maioria o tempo é algo ao mesmo tempo cotidiano, empírico, científico, fácil e complexo, poético e assustador, sentimental ou frívolo.

Falamos do ontem, do hoje e do amanhã. Referenciamos no passado de nossas vidas, para hoje planejarmos e pensamos no futuro de nossas famílias. Enfim, existe um tempo que passa ao mesmo tempo em que outros passam o tempo.

Para muitos o passado como tempo é história e o futuro especulação. O hoje e o agora não existem, sendo apenas uma referência de segundos entre o passado e o futuro.

Deus é, diriam alguns, logo não existe passado ou futuro na mente de Deus. Talvez por isso Santo Agostinho tenha escrito em suas Confissões:

O que é o tempo? Se ninguém pergunta, sei o que ele é; mas se alguém me pergunta e tento explica-lo, já não sei mais.” (SANTO AGOSTINHO, 1997).

Poderíamos, partindo da premissa acima, considerar que o tempo é algo ou objeto de difícil definição, podendo apresentar diversos conceitos e abordado de formas diferentes, dependendo do ramo da ciência, seja arte, geometria, biologia, astronomia, matemática, física, sociologia ou filosofia.

Não se pretende neste artigo uma abordagem sobre cada um desses aspectos, mas apenas demonstrar que o simbolismo da régua de 24 polegadas, em especial no Rito de York, possui profunda atualidade filosófica sobre o que concerne ao tempo.

A régua de 24 polegadas na Maçonaria

A primeira observação que fazemos é quanto às características básicas da régua, um instrumento simples, milenar, que nos ensina, de uma forma mais simples ainda, o caminho direto entre dois pontos, dois destinos. Com a régua medimos um seguimento do infinito. Uma parte de nossa vida. A retidão que buscamos.

Após a cerimônia de iniciação maçônica, no primeiro grau da Ordem, o Aprendiz Maçom recebe uma régua, ou é instado a pensar sobre a utilidade de “uma régua de 24 polegadas”, que, devidamente dividida em três partes iguais, deve remetê-lo a adequar a utilização do tempo cotidiano. A Maçonaria a adota porque simboliza o dia com suas vinte e quatro horas, exigindo dos maçons uma adequada utilização das horas do dia.

No campo maçônico, a graduação nela colocada de vinte e quatro polegadas, serve para mensurar o tempo, as vinte e quatro horas do dia, em que o homem deve distribuir suas atividades. No Rito de York, a “cautela” ganha importância na vida do maçom. Associar, portanto, a cautela à régua de 24 polegadas nos parece ser um bom caminho para explorarmos o conceito de tempo.

Um maçom deve usar, no cotidiano de sua existência, as 24 polegadas como representação de 24 horas, divididas em três partes de 8 horas: descanso, trabalho e solidariedade.

Assim deve, de certa forma, dividi-las entre suas atividades matinais, nem sempre realizadas, como sua primeira refeição diária, às vezes esquecida. Outras horas dedicadas ao seu trabalho; à necessária recreação, muitas das vezes não considerada; suas reflexões, em geral pouco ou mal aproveitadas; e o merecido repouso, como nos prega a mensagem maçônica. E as outras oitos horas servindo a Deus ou a algum necessitado.

Filosoficamente, poderíamos dizer tratar-se de um caminho entre a norma e a ordem, entre o que se quer fazer e o que se deve fazer, entre o passional e o racional, entre a direção da ponta do malho ao topo do cinzel. Indica a própria construção do homem, a lapidação de sua forma mais bruta em busca da perfeição (RAGON, 2005).

O exercício na separação de cada tempo, dando o ritmo necessário para cada etapa, faz com que o homem evolua, cresça, se realize e desenvolva habilidades que de outra forma poderia pensar ser impossível realizá-las.

A constante assertiva de muitos maçons contemporâneos de que “não tem tempo”, quer para ir à Loja ou realizar atividades de filantropia, demonstra uma não utilização dos princípios maçônicos sobre a administração do tempo (ALCÂNTARA FILHO, 2012).

Segundo os conceitos filosóficos do simbolismo maçônico, “tempo obtido” seria uma vitória pessoal, inigualável, uma capacidade de autogestão, ou a pura demonstração da vontade, de responsabilidade e do reconhecimento de si própria. Um caminho que se propõe reto é íntegro e honesto. Cada nova ação proposta deverá ser bem estudada, analisada, e, para ser edificada, basta incluí-la nos intervalos de cada ponto de nossa régua, utilizando para isso os princípios éticos que envolvem a liberdade, a igualdade e a fraternidade (BAYARD, 2004).

No campo simbólico, junto ao malho e o cinzel, a régua forma um conjunto de ferramentas, ou instrumentos, que devem ser usados pelo Aprendiz em seu trabalho, como diz o ritual do Rito Escocês Antigo e Aceito. Já no Rito de York, mais antigo que esse, a régua de 24 polegadas está associada ao “martelo de corte”, um instrumento muito mais apropriado ao trabalho no “desbastar” da Pedra Bruta.

De qualquer forma, a régua era usada pelos maçons operativos, aqueles que remontam das lendas míticas aos construtores de templos, para executar um trabalho de precisão na construção, medindo, delineando, ajustando o traçado ou limites do corte de uma determinada pedra para uma construção específica.

O Tempo: primeiros conceitos

Aristóteles (1995), em sua obra “Physique IV, Tratado do Tempo”, faz uma reflexão sobre a realidade física do tempo, aquela que é medida pelos relógios, dando inclusive a impressão que descarta o tempo psicológico, demonstrando que o tempo é uma ilusão. Para ele, o momento presente, como “instante”, não pode existir para o homem, pois não pode ser percebido instantaneamente, como no sonho (BURNET, 1994).

Ele formula uma questão-chave:

O tempo poderia existir sem a alma e o pensamento, que são os verdadeiros sujeitos de toda a medição?” (218b).

Depois de uma análise desta questão, ele mesmo formula a resposta afirmando que isso poderia ser válido para todas as coisas, menos para o tempo e o movimento.

As respostas acima seriam analisadas séculos depois por Santo Agostinho. Mas, retornando a Aristóteles, podemos ressaltar a definição de seu objeto:

O tempo, se não é o próprio movimento, é seu número calculado, isto é o resultado da medição” (219). Assim ganhamos consciência do tempo pelo fato do movimento representar uma sucessão contínua, definida como um antes e um depois, ou seja, “O tempo é o número do movimento conforme o antes e o depois.” (219b).

Lógico que já evidenciamos esses conceitos aristotélicos no simbolismo da régua de 24 polegadas, no sentido de podermos medir numericamente um espaço de movimento menor (ciclo de oito horas) durante um dia (três ciclos de oito horas).

Analogamente, no item 223-b da mesma obra, Aristóteles diz que “a locomoção circular (o movimento dos astros no céu) é a melhor medida, porque seu número é o mais conhecido”, o que também remete a simbolismo maçônico do Rito Escocês.

Heidegger (2012), ao citar Platão, afirmou que o tempo nasceu quando um ser divino colocou ordem e estruturou o caos primitivo. O tempo tem, portanto, de acordo com Platão, uma origem cosmológica. Ele procura estabelecer a distinção entre o “ser” e o “não ser”. O mundo do “ser” é fundamental e não está sujeito a mutações. Ele é, portanto, eternamente o mesmo. Este mundo, entretanto, é o mundo das ideias, apreensível apenas pela inteligência e pode ser entendido utilizando-se a razão. O mundo do “não ser’’ faz parte das sensações, que são irracionais, porque “dependem essencialmente de cada pessoa” (LUCE, 1994).

O domínio do tempo estaria nesse segundo mundo, assim como tudo o que se observa no universo físico, tendo assim uma importância menor. Talvez possa ser dito que, para Platão, o tempo essencialmente não existe, uma vez que faz parte do mundo das sensações.

O Tempo da Alma

Platão (2002), em Timeu, afirma que o “deus quis que todas as coisas fossem boas”. Portanto, para ele, esse deus:

[…] teve a ideia de criar uma espécie de imagem móvel da eternidade, e, enquanto organizava o céu, criou à semelhança da eternidade imutável em sua unidade, uma imagem em eterna evolução, ritmada pelo número; e é isto que chamamos de tempo. À constituição do tempo, ele combinou o nascimento dos dias, das noites, dos meses e do ano (Platão. Timeu e Critias ou Atlântida, 2002).

Esses princípios mostram a universalidade do ensino simbólico da Maçonaria, em especial na régua de 24 polegadas, pois o ciclo se repete, a cada 8 medições numéricas, num ciclo ininterrupto de 3 medições. Ou seja, a cada hora, a cada dia, mês e ano. Enfim, a régua e os conceitos platônicos nos remetem a nossa própria vida e eternidade.

Santo Agostinho (op. cit) oferece-nos outra reflexão sobre o tempo onde ele opõe a eternidade imóvel num eterno presente e o tempo que passa. Para ele o “Verbo” eterno é o criador de todos os tempos em que a criação pode ocorrer. E no capítulo XIII afirma que não havia tempo antes que o tempo existisse, mostrando que o futuro não existe ainda, o passado já não existe mais e presente vai desaparecer a medida que o tempo avança, sendo portanto efêmero.

Outra contribuição de Agostinho é que do tempo “psicológico” de Aristóteles constrói a ideia de tríade:

[…] passado-presente-futuro que não existem em atos, mas nas representações de nossas mentes, e se existem nas representações de nossas mentes, eles o fazem na forma presente, pois é no presente que concebemos ou imaginamos o futuro e nos recordamos do passado (cap. XVII)”. (ABRÃO & COSCODAI, 1999).

A humanidade tem necessidade de medir o que ela concebe como tempo. A régua de 24 polegadas expressa essa necessidade. Portanto, deve ser dividida em 3 partes iguais, pois aqui o tempo se apresenta como número e, como todos os números, indicando quantidade – quer de tempo ou de horas – não passa de um produto prático de pensamento.

Considerações Finais

A natureza do tempo tem sido um dos maiores problemas desde a antiguidade, quer no que concerne a medição, passagem, fluidez, linearidade ou circularidade, se divino, cósmico ou meramente físico.

Acredita-se cada vez mais que ele é uma das propriedades gerais do pensamento humano ou uma se suas exterioridades e que, para a compreensão e entendimento de nossa humanidade, precisa ser dividido em três dimensões lineares: o passado, o presente e futuro.

Sabemos que devemos a máxima de “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio” a Heráclito (1988), que é o filósofo da transformação e do movimento perpétuo. Conceito que reforça o princípio de que a divisão igual em 24 partes da régua, embora repetida cotidianamente pelos maçons, nunca terá o mesmo objetivo, pois se renova automaticamente, ao final de cada ciclo de 24 horas.

Mesmo sendo uma contraposição ao pensamento de Platão (op. Cit), que, ao defender um “ciclo mítico de eterno retorno”, onde o tempo era um movimento cíclico e assíduo, pois aquilo que acontecia no passado era repetido e retornava (VERNANT, 1992), a régua de 24 polegadas reafirma um conceito de que a repetição insensata de pensamentos e ações, diariamente, traz infortúnios.

Na perspectiva de Kant, o tempo é uma estrutura da relação do sujeito com ele próprio e com o mundo, uma forma “a priori” da sensibilidade, uma espécie de intuição pura e ao mesmo tempo, uma noção objetiva de observação e não extraído da experiência, ou seja, um dos limites para o conhecimento no plano da sensibilidade.

Independente do valor material, físico e matemático da medição do tempo, relacionando-o ao passado, presente ou futuro, a medida que o tempo se torna subjetivo ou psicológico, cada ser humano pode vivenciá-lo numa situação agradável, desagradável, lenta, rápida, penosa ou alegre. Conclui-se portanto que o homem, pela sua condição de mortal, é afetado por processos diferentes do que ocorrem no espaço infinito.

Há uma assertiva na Maçonaria brasileira de que “somos todos aprendizes”. Sendo assim, a régua de 24 polegadas, pelo menos teoricamente, nos acompanha sempre. Se seu simbolismo é usado junto à nossa capacidade mental de reter acontecimentos e imagens passamos a ter uma condição fundamental para as características fundamentais da vida social, o que inclui obrigatoriamente a necessidade de “tempo” para nós mesmos e para nossas famílias.

Autor: Luiz Franklin de Mattos Silva

Fonte: Revista Fraternitas in Praxis

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Referências Bibliográficas

ABRÃO, B.S.; COSCODAI, M.U. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. ALCÂNTARA FILHO, N. Irmãos, Ajudai-me a Abrir Loja. São Paulo: Madras, 2012. ARISTÓTELES. Physique IV, Traité du temps. Paris: Kimé, 1995. BAYARD, J. P. A Espiritualidade da Maçonaria: da Ordem Iniciática Tradicional às Obediências. São Paulo: Madras, 2004. BURNET, J. O Despertar da Filosofia Grega. Trad. M. Gama. São Paulo: Siciliano, 1994. HERÁCLITO. Fragments et Témoignages, Les Présocratiques. Paris: Gallimard, 1988. HEIDEGGER, M. Platão, o Sofista. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2012. LUCE, J.V. Curso de Filosofia Grega. Trad. M.G. Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. PLATÃO. Timeu e Critias ou Atlântida. Rio de janeiro: Hemus Editora, 2002. RAGON, J. M. Ritual do Aprendiz Maçom. 8ª Ed. São Paulo: Pensamento, 2005. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Rio de Janeiro: Editora Paulus, 1997. VERNANT, J. P. As origens do Pensamento Grego. Trad. I.B.B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 7ª ed., 1992.

Tempo e eternidade – Excurso sobre a concepção agostiniana de tempo

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Introito

É sabido que os primeiros dez livros das Confissões são devotados em sua maior parte a contar a história de Agostinho, sua infância, sua vida interior e seus conflitos espirituais, sendo os três livros seguintes dedicados a uma meditação sobre as primeiras palavras do Gênesis[1]. Também se sabe que é no primeiro desses três livros subsequentes, por ocasião de uma reflexão sobre o verbo criador, que Agostinho enfrenta o problema do tempo. Assim, ainda que Agostinho se ocupe da temporalidade ou a mencione em outros escritos, é nas Confissões onde trata da problemática do tempo com mais profundidade. Por isso é que o nosso interesse aqui recairá sobre elas; e porque se trata de longe da fonte mais estudada por todos aqueles que se ocupam do tempo[2].

A concepção que Agostinho sustentou nas Confissões acerca da temporalidade sempre suscitou atenção. Não somente pela influência que exerceu sobre o mundo cristão ocidental, mas também e sobremaneira pela clareza com que Agostinho expôs a questão e pela forma em que soube respondê-la. O que nos concerne aqui, não obstante, não é tanto a sua resposta quanto as questões que  provoca. Numa palavra: o que mais nos interessa aqui é a própria questão.  Para bem compreendê-la, porém, não é menos importante destacar como e por que o Bispo de Hipona chega a levantá-la; por que precisa respondê-la, como a responde e até que ponto essa resposta é relevante para uma investigação filosófica acerca da essência do tempo. Neste sentido, dividiremos a exposição em três momentos. No primeiro, tentamos mostrar como Agostinho chega a deparar-se com o problema do tempo; no segundo, oferecemos uma interpretação da resposta que ofereceu à pergunta pela essência  do tempo; finalmente, no terceiro, apresentamos algumas conseqüências  que se nos afiguram dignas de menção.

Deus, o tempo e a eternidade

De início Agostinho enfrenta uma objeção de caráter herético: o que fazia o criador antes da criação? À primeira vista, a questão parece ociosa; mas não o é. A questão levanta um grave problema: se Deus  “fazia algo” antes de criar o mundo e todas as coisas, então a criação seria “posterior” aos afazeres da divindade neste hipotético e preliminar estado em que o criador não era ainda o artífice de todas as coisas. Dito de outro modo: se Deus porventura tivesse feito algo “antes”, Deus teria feito coisas antes e depois; a saber, estaria submetido à ordem do tempo e seria temporal. Não seria um ser eterno. Por conseguinte, Agostinho precisa responder à objeção, salvando assim a eternidade de Deus e Sua diferença face a todas as coisas criadas.

O mesmo problema aparece sob outro aspecto. Se Deus é o criador, como ele criou? As escrituras sagradas dizem que ele criou com a palavra. Bastou-lhe pronunciar o verbo divino para que todas as coisas fossem criadas. Novamente surge uma dificuldade: as palavras são sucessivas, pois ao serem ditas, ocorrem de acordo com uma seqüência na qual  primeiro vêm a ser e depois deixam de ser[3]. Mas se Deus é um ser eterno, um ser que criou com seu  mero verbo, como fez então para que este não fosse um verbo de palavras sucessivas, temporais, finitas?[4] Ou melhor, como Deus, que é eterno, pode gerar todas as coisas pela palavra, que é sucessiva?

Note-se que em ambos os casos, para responder às objeções, Agostinho precisa separar Deus e Sua ação divina do mundo das coisas temporais, porque o Criador deve agir e ser diferente de todas as coisas criadas. Deve ser eterno e deve criar desde a eternidade, a qual não pode sofrer mudança, por carecer de começo e de fim[5].  Deus deve ser então diverso de tudo que é temporal. Mas, como?

Para pensar sobre a essência peculiar da divindade Agostinho conta com as escrituras. É a partir delas que medita sobre a eternidade de Deus e a diferença radical entre Ele e as criaturas. Deus — diz Agostinho — não pode fazer nada antes da criação, porque antes da criação não há nenhum “antes”: o tempo e todas as coisas temporais são simultâneos ao primeiro ato da criação[6]. O nascimento do tempo coincide com o primeiro segundo da criação. Deus cria o tempo — e a pergunta pela anterioridade, que é uma pergunta “temporal”, só faz sentido após o ato divino da criação. Isto é compreensível, se Deus é  de fato criador e eterno.

Mas, mesmo assim, ainda é um problema sério compreender como Ele pôde ter criado com a palavra  — pois toda palavra é sucessiva e sua existência é temporal. É de supor, portanto, que o verbo criador possa não ser da mesma natureza que as palavras finitas que conhecemos. Agostinho diz que a palavra do verbo divino é uma palavra pronunciada eternamente. Tratar-se-ia de uma ação “coeterna”- i.é, de uma ação que é simultânea a sua eternidade. O que significa que o ato da criação é extemporâneo, atemporal[7].

Essa resposta, evidentemente, não satisfaz o leitor moderno. Como não satisfez a outra, a saber, que Deus não podia fazer nada antes da criação, porque se o fizesse, a criação teria ocorrido no tempo, e então não seria uma criação ex nihilo, posto que teria sido precedida por algo anterior[8].

Nenhuma das duas respostas nos satisfaz porque adivinhamos a suposição de um dogma: a diversidade essencial entre o “Criador” e o mundo das “criaturas”, entre a eternidade divina e a finitude temporal. E no entanto elas nos ajudam, em algum sentido; mesmo que não aceitemos o dogma. Pois face à questão que nos ocupa, a da essência do tempo, agora compreende-se melhor como Agostinho chega a encará-la: precisa mostrar que o tempo é diferente da eternidade para afirmar que o verbo divino não poderia ter sido temporal; precisa mostrar que a eternidade de Deus não se coaduna com a mudança sucessiva que corrompe todas as coisas para afirmar que a pergunta pelos afazeres divinos antes da criação se baseia num mal-entendido.

É assim que Agostinho se vê obrigado a tratar da natureza do tempo — sempre em oposição à eternidade. Curiosamente, opondo, do mesmo modo que Aristóteles, a eternidade do que é divino à constante fugacidade do vir a ser das coisas sujeitas à geração e à corrupção, mas sendo que aqui se trata não apenas de um primeiro motor imóvel, mas de um criador.

O  problema  do  tempo

A primeira coisa que caracteriza o âmbito do tempo, é que as coisas criadas se transformam e estão sujeitas a mudanças[9]. A corruptibilidade, o desgaste e o envelhecimento evidenciam a fugacidade, a transitoriedade do mundo criado. Numa palavra: sua imperfeição. Pois para Agostinho, como para Aristóteles, só pode mudar o que carece de algo, justamente tendo em vista alcançar sua perfeição, sua plenitude[10]. A eternidade da divindade, em contrapartida  repousa incessantemente em seu presente imutável e infinito[11].

Esta diferença radical configura a pressuposição básica de tudo que virá depois: o caráter intrinsecamente mutável das coisas temporais face ao caráter essencialmente isento de transformação que signa a onipresença do criador[12]. Por aí reaparece agora a dicotomia entre o tempo e a eternidade, mas também uma ideia mais antiga (já presente de algum modo na arcana sentença de Anaximandro)[13], segundo a qual não há tempo sem coisas que nele se transformem, nem coisas que se transformem fora do tempo. Assim, do casamento indissolúvel entre tempo e mudança (caro a Platão, mas muito mais a Aristóteles) vem decorrer o fato de que tudo que não é eterno tenha um começo e um fim; e passe, sucessivamente. Pois “passar” não é senão a ocorrência no tempo de um ser que muda, que deixa de ser algo ou modifica alguma parte para alterar-se e tornar-se outro, ou para simplesmente definhar e desaparecer. Do mesmo modo, ainda, decorre daí uma outra conseqüência, desta vez no que diz respeito à divindade: sendo Deus eterno, deve permanecer imutável em sua eternidade, que por isso só pode ser definida como um presente absolutamente incapaz de passar. Não como um tempo infinitamente prolongado, tanto em direção ao passado como ao futuro, posto que tempo implica mudança, e esta tem começo e fim. Um tempo infinito ainda seria temporal; uma eternidade impotente, porque sujeita às vicissitudes do trânsito. Um presente absoluto, porém, seria digno de onipresença do Criador. Esse sim poderia definir a eternidade agostiniana, porque seria completo, absoluto, e não careceria de nada.

Desta diferença entre o presente que sempre passa e o presente sempiterno arranca toda a análise de Agostinho. Um é pura completitude; o outro diz respeito a  algo incompleto que procura sua plenitude, e por isso recai na esfera da mudança.

A mudança, entretanto, é pensada por analogia ao problema do mal. Se é verdade que Agostinho define o mal como privação do bem[14], também é verdade que pensa a mudança como privação de perfeição; perfeição cujo correlato é o devir temporal. “O tempo —nos revela- não corre em vão”[15]. As coisas belas “nascem e morrem, e nascendo começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição, e uma vez perfeitas, começam a envelhecer, e morrem”[16]. E “embora nem tudo chegue à velhice, tudo perece. Logo, quando nascem e esforçam-se por existir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para não existir. Essa é sua condição…[17].

Isto que Agostinho diz sobre a brevidade da beleza terrena, aplica-se à brevidade de todas as coisas temporais. Passam e morrem; crescem e desaparecem; surgem e somem com a fugacidade de uma estrela cadente. São temporais: “passam para dar lugar a outras”[18]. Passam e transcorrem no tempo, sucedendo-se umas às outras. Mas, afinal, o que é o tempo? “Se ninguém mo pergunta, eu o sei; mas, se mo perguntam, e quero explicá-lo, não sei mais nada” — confessa Agostinho[19].

Sua confissão, porém, nos diz aquilo que todos sabemos: cremos saber o que é o tempo, mas no fundo ignoramo-lo. Contemplamos o calmo curso das horas nos ponteiros do relógio, falamos de um “ontem”, de “hoje” e de um “amanhã”; de “antes”, de “agora” ou “depois”. Cremos saber e entender o que é o tempo. Mas, se no-lo perguntarem, se perguntamos a nós mesmos o que é realmente o tempo, veremos que de fato não o sabemos.

As coisas mudam através do tempo, numa sucessão de instantes que advêm e passam, desdobrando-se em pretérito, presente e porvir, enquanto que a eternidade permanece simultânea e sempre presente[20]. O futuro vira presente e o presente passa e deixa de ser presente para tornar-se passado: “Se o presente, para ser tempo, deve unir-se ao passado, como podemos declarar que existe, se não pode existir senão deixando de existir? (…) o que nos autoriza a afirmar que o tempo existe é a sua tendência a deixar de existir”[21]. Dizer que as coisas mudam sucessivamente é dizer que elas passam do futuro ao presente e afundam no passado. O fato de o presente virar passado é aquilo que o distingue do presente sempre eterno. Pois justamente porque muda não pode o presente ser todo presente. Somente a eternidade é sempre toda presente. A “sucessão dos tempos é feita de uma multidão de instantes que não podem correr simultaneamente (…) todo passado e futuro tiram sua existência e curso do eterno presente (…) a eternidade, que não é futura, nem passada, determina o futuro e o passado…”[22].

Todavia, se o que define a existência do tempo “é sua tendência a deixar de existir”[23], e se todo presente deixa de sê-lo para tornar-se passado, como é que se pode apreender o tempo? Além disso, o que é que mantém as coisas temporais em constante mudança, em busca de sua perfeição, senão aquela perfeição do presente eterno? Parece que o passado e o futuro, que se transforma em presente, e logo em passado, tiram sua existência da eternidade. Agostinho parece sugerir, assim, uma certa preeminência do presente sobre o passado e sobre o futuro, uma vez que o passado já não é mais e o futuro ainda não é[24]. Numa palavra: o futuro e o passado são como que um não-ser, uma vez que o ser só cabe ao presente, à atualidade a partir da qual definimos o futuro para diante e o passado para trás. A persistência do presente, por onde passa o fluido dos instantes, advêm do futuro e se perdem no passado, parece fundar-se em última instância na eternidade. Como se houvesse um ponto de contato absoluto e inefável entre o tempo e o que está fora do tempo — o portal do presente. A insistência do presente, onde sempre estamos situados, opera como um reflexo da eternidade divina. O presente pontual, o agora instantâneo, também passa — mas o constante presente, o leito por onde passa o rio da sucessão dos instantes, fica ancorado. Ela não passa: bem antes, é nele que tudo se passa.

Mas será mesmo que o futuro e o passado não existem? Não fazemos previsões, não guardamos expectativas acerca do futuro? Não contamos histórias que nos lembram fatos acontecidos no passado? Ainda que o futuro não exista, porque ainda não é, não existe de algum modo em nossas esperanças, como uma sorte de antecipação? E ainda que o passado não exista, porque já se foi, não existe em nós a memória das coisas e dos eventos passados?[25] Só podemos dizer que o presente existe, enquanto passa e deixa de ser, ou, de alguma maneira, ainda podemos admitir a existência do passado e do futuro, mesmo que esta possa ser diferente  do modo de ser do presente?

Apesar de ter dito que só existe o presente, enquanto passa, Agostinho se vê obrigado a admitir que em alguma medida, o futuro e o passado também existem[26]. Como isto é possível? É que nós medimos o tempo, comparamos a duração de um período de tempo com outros. Assim, por exemplo, dizemos que a guerra dos trinta anos foi longa — trinta anos! — mas  menor que a guerra dos cem anos. Mas, como medir o passado, se ele não mais existe? E contudo, de fato, medimo-lo. O que medimos, porém, é mesmo o passado? Não, o que medimos é o que do passado perdura em nossa memória. O passado enquanto passado já era, mas podemos medi-lo enquanto evocamos as imagens que deixou na lembrança. O mesmo se passa com o futuro: não podemos medi-lo em si mesmo, posto que ainda não veio a ser, mas podemos invocá-lo em nossa consciência e calcular nossas expectativas. O que medimos, assim, não é o tempo passado nem o tempo o futuro em si mesmos, porquanto eles não existem, mas sim a memória e a esperança dos mesmos em nossa consciência. Enquanto passam, porém, tornam-se presentes. E o presente não tem duração alguma[27]. Medimos no entanto “o tempo que passa”; medimo-lo “quando o sentimos passar”[28]. De tal maneira que “quando o tempo passa, pode ser percebido pela consciência  e medido[29]. Assim, medimos o passado e o futuro, que em si mesmos não existem, quando os tornamos presentes a partir de lembranças e pressentimentos[30]. A bem dizer, não existem propriamente o presente, o passado e o futuro, mas o “presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, porque essas três espécies de tempo existem em nosso espírito, e não os vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança”[31].

Porém Agostinho não se contenta com essa conclusão, ainda que muitos se contentem com ela e considerem que resume a teoria agostiniana do tempo. Sugere além disso que o tempo, enquanto passa, é medido em analogia com o espaço. Diz-se que um lapso é o duplo, ou o triplo, ou a metade daquele outro lapso de tempo, ou um quarto deste, ou menor,  ou maior, etc. Mede-se sempre, por conseguinte, “espaços de tempo”[32]. E aqui surge uma outra questão: em que lugar medimos o tempo que passa quando o medimos através de representação de espaços de tempo?[33]. A sua resposta ainda não é oferecida. Antes Agostinho nos lembra que não só medimos a duração dos tempos como também a duração dos movimentos a partir do tempo. Medimos o tempo com base numa analogia especial, e simultaneamente medimos o movimento com base no tempo. O tempo, como em Aristóteles, aparece definido agora como a medida do movimento, como a medida da duração dos movimentos dos corpos[34]. Trata-se do argumento que serve tradicionalmente para negar a identificação entre tempo e movimento: o tempo não é o movimento, porque o movimento é que se dá sempre no tempo[35].

Ao negar-se a identificação entre tempo e movimento, parece-nos, prepara-se o caminho para uma compreensão em que o tempo é o tempo medido, o tempo cronológico que mede o movimento e o repouso. Por haver tempo no repouso, e por haver aceleração ou desaceleração de movimentos sem que mude o ritmo do tempo, é que tempo e movimento são vistos como coisas de natureza diversa[36]. Ao refletir-se sobre quem mede e onde mede, para retornar à pergunta acima, chega-se a uma resposta que é quase  a aristotélica: quem mede é a alma, e o lugar da medição é próprio espírito[37]. Se quem mede o tempo é a alma, talvez o tempo seja uma distensão da própria alma[38]. Ao passarem pelo palco do espírito, as imagens evocadas pela  memória e as imagens antecipadas pela espera estendem-se por um espaço de tempo : é justamente essa extensão que medimos, a saber, “o intervalo que separa um começo de um fim”[39]. Medimos o tempo como a distensão da memória, da atenção e da espera: “o espírito espera, está atento e se recorda”[40]. O presente mesmo carece de duração, porque é um instante que passa, mas perdura a atenção[41]. É a alma que desloca seu foco de atenção nas dimensões do atual, do pretérito e do ainda por vir: “é um ato presente de atenção que faz passar o que era futuro ao estado de tempo passado”[42]. Assim, “quanto mais se prolonga essa operação [de atenção], tanto menor se torna a espera e tanto maior a memória, até o momento em que a espera se esgota completamente, e, terminada, a ação passa inteiramente para a memória”[43].

Se com isso Agostinho responde à questão pela essência do tempo, é algo que se pode aceitar ou questionar. Pareceria ser filosoficamente mais profícuo, em todo caso, extrair algumas implicações da sua análise.

Algumas consequências

Do ponto de vista histórico parece impor-se uma conseqüência que não é tão trivial quanto parece: a de que Agostinho deve no mínimo tanto a Aristóteles quanto a Platão, se não mais. E desta surge uma outra: a de que a originalidade de Agostinho está muito mais no tratamento do que nas teses que defende. Mais especificamente, eu diria, sua originalidade consiste em problematizar o tempo. Ainda que sua análise seja uma conjunção admirável de teses judaico-cristãs e pagãs, a “descoberta” do enigma do tempo é que se constitui no meu entender como seu maior contributo a uma filosofia do tempo.

Do ponto de vista de uma abordagem estritamente filosófica do tempo, porém, na análise agostiniana existem elementos que merecem ser levados em consideração e elementos que podem ser deixados de lado sem prejuízo algum. Neste sentido, creio que existiriam outras três conseqüências que poderiam ser explorados tendo como alvo principal a elaboração de uma teoria filosófica sobre a natureza do tempo. Cada uma das três representa um elemento digno de menção numa investigação desta natureza, mas desde que tentados do ponto de vista dos princípios, o que significa dizer, em se tratando de Agostinho, que tais aspectos devem ser “dessacralizados”.

A primeira concerne a relação entre os conceitos de tempo e de eternidade. A pergunta é por que Deus não poderia ser eterno e existir no tempo ao mesmo tempo? Se pensarmos não na eternidade divina, mas no conceito de eternidade, nada nos impede de pensar a eternidade como um tempo infinito, mesmo que ele comporte mudança. A negação quase parmenídica da mudança para a eternidade só faz sentido do ponto de vista teológico da eternidade divina, que deve ser imutável[44]. Se a eternidade fosse um tempo infinito, o tempo nada mais seria do que um recorte no fluxo infindável da eternidade.

A segunda concerne uma dificuldade essencial a toda teoria subjetivista do tempo. Por um lado conjuga-se tempo e mudança, e diz-se que as coisas temporais mudam e que toda mudança ocorre no tempo. Mas quando se define o tempo em função da alma, do espírito ou de qualquer instância relativa à esfera da subjetividade ou da consciência, parece como se as coisas, que mudam elas mesmas, não fossem temporais – nega-se tacitamente a objetividade dos processos temporais. Para colocar a dificuldade em Agostinho: se o tempo é uma distensão da alma, o que dizer então das “coisas temporais”? Será que então não há tempo nas coisas, para além da sucessividade dos processos conscientes?

A terceira questão é a mais ampla e complicada. Agostinho posiciona-se dentro da tradição aristotélica: o tempo não é nem pode ser o movimento — antes o movimento das coisas ocorre no tempo. Mas o argumento não se resume a isso. A sua força de convicção baseia-se em duas alegações:

  • O tempo não pode ser o movimento, porque há tempo no repouso;
  • O tempo não pode ser o movimento porque a desaceleração ou a aceleração do movimento dos corpos não modifica o curso do tempo.

A primeira coisa que cabe perguntar é se o tempo não poderia ser um caso especial do movimento, a saber, a mudança (o próprio Aristóteles diferenciou quatro espécies de movimento: geração e corrupção, aumento e diminuição, mudança de lugar e mudança). A resposta é não, se as alegações acima mencionadas forem verdadeiras ou não passíveis de questionamento. Mas, e se porventura fossem passíveis de questionamento? Será que o tempo não poderia ser pura mudança? Não podemos responder aqui a essa pergunta (já demos uma resposta preliminar em outra parte), mas podemos pelo menos oferecer três contra-argumentos às alegações agostinianas enraizadas na concepção aristotélica que defende ser impossível identificar tempo e mudança:

  • Até que ponto dizer que as coisas que se movem estão no tempo não é apenas um simples modo de falar? Não podemos dizer com sentido, assim como dizemos que os movimentos ocorrem no tempo,  que o tempo transcorre nas coisas que mudam? De resto, se as coisas e os movimentos ocorrem no tempo, não se pode dizer que o tempo é da ordem da alma, do espírito, ou da consciência, como Agostinho, e mais recentemente Kant, Husserl e toda a tradição da Fenomenologia;
  • Dizer que o tempo não é o movimento porque há tempo no repouso não é um bom argumento porque o repouso pode ser aparente (poderíamos ver repouso, em função da finitude de nosso aparelho cognitivo, onde na verdade existissem movimentos que não percebemos);
  • A aceleração ou desaceleração do movimento medido no tempo não muda o curso ou a velocidade do tempo medido que conhecemos de acordo com o padrão de referência temporal que usamos. Mas o padrão poderia ser mudado: se o sistema solar mudasse de velocidade, acelerando ou desacelerando, nosso ciclo temporal poderia não ter um ano de 365 dias nem um dia de 24 horas. Além do mais, toda medição é medição de alguma coisa; por que então quando falamos do tempo o confundimos com a sua medição, a saber, com o tempo cronológico dos relógios e barras de medida? Não será que o tempo é algo que subjaz ao tempo medido, precisamente aquilo que é medido? Tento um exemplo. A aceleração ou desaceleração das mudanças que observamos nos ciclos naturais de todos os corpos e seres,  parece,  poderiam modificar o curso do tempo: a duração de cada corpo e de cada ser depende dessas mudanças. Assim, a velocidade das transformações (por exemplo, do metabolismo) determina de fato a duração da vida de certos seres, por exemplo. Assim, a duração da pedra difere da tartaruga, e esta do homem. Não devemos dizer que nesse caso a velocidade das mudanças é mais acelerada nos seres cuja vida dura menos e é menos acelerada em seres ou coisas que duram mais? É só uma hipótese, ou melhor, uma analogia, mas sendo plausível basta como alternativa ao argumento tradicional acima referido.

Autor: Juan Adolfo Bonaccini

Fonte: Crítica na Rede

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Notas

[1] – John F. Callahan, Four Views in Ancient Philosophy, New York: Greenwood Ppress, 1968, p. 168.

[2] – Como bem me lembrou o colega Marcos Costa (UNICAP).

[3] – Confissões, XI, 6.

[4] – Ibidem, XI, 6-7.

[5] – Ibid. XI, 8.

[6] – Ibid. XI, 13-14, 30-31; XII, 9, 11-12.

[7] – Ibid. XI, 7. Cf. ib. XIII, 29.

[8] – Em XI, 10 o argumento refere-se à vontade divina de criar, que sempre deve ter existido, pois caso contrário ela teria início e seria no entanto precedida por um ato volitivo anterior, o que acarretaria mudança, e por isso sucessão, temporalidade.

[9] – Ibid. XI, 4; XII, 8.

[10] – Cf. ibid. IV, 10; VII, 12;  XI, 4;  XII, 11. Aristóteles, porém, vai pensar esta completude de modo diferente.

[11] – Ibidem, XII, 12.

[12] – Cf. ibid. I, 4. Vide também X, 6 e XI, 4  e 7.

[13] – Sobre isto veja-se meu ensaio “Sobre o tempo”, in: Princípios, Natal, 5/6 (1998),  p. 126-7. Cf. Confissões XII, 11.

[14] – Ibidem, III, 7.

[15] – Ibid., IV, 8.

[16] – Ibid., IV, 10. Cf. XI, 4.

[17] – Ibid., IV, 10.

[18] – Ibid., IV, 11.

[19] – Ibid., XI, 14.

[20] – Ibid., XI, 11.

[21] – Ibid., XI, 14.

[22] – Ibidem, XI, 11.

[23] – Ibid., XI, 14.

[24] – Ibid., XI, 14-15.

[25] – Curiosamente, a tese de que o futuro existe como expectativa, esperança ou antecipação, o presente como percepção atual ou atenta, e o passado como memória ou recordação do que já foi, não é de Agostinho. E digo curiosamente porque se costuma crer que a originalidade do tratamento dado por Agostinho ao problema do tempo reside na divisão entre o “presente do passado”, o “presente do presente” e “presente do futuro”, algo que Aristóteles já dissera com clareza em De memoria (449 b 25-27): “Memory is, therefore, neither perception nor conception, but a state or affection of one of these, conditioned by lapse of time. As already observed, there is no such thing as memory of the present while present; for the present is object only of perception, and the future, of expectation, but the object of memory is the past. All memory, therefore, implies a time elapsed; consequently only those animals which perceive time remember, and the organ whereby they perceive is also whereby they remember…” (“On Memory”, in: The Complete Works of Aristotle, ed. by J. Barnes, Princeton: New Jersey, Princeton University Press, 1984, Volume I, p. 716).

[26]Confissões, XI, 17, 21.

[27] – Ibid., XI, 15.

[28] – Ibid., XI, 6. Para atestar outra curiosidade: em XI, 27 Agostinho dirá que não medimos o tempo que passa, ainda que meçamos o tempo. E mais adiante, após ter dito que o tempo é “talvez” uma distensão da alma, diz que a impressão que as coisas nos deixam ao passar é o tempo — ou então não o medimos! Em XI, 29 diz ignorar a ordem do tempo. Assim, ainda que o tempo todo Agostinho forneça respostas, deixa-nos entrever o quanto hesita e oscila  em vários momentos  na afirmação de suas teses.

[29] – Ibid., XI, 16.

[30] – Ibid., XI, 18.

[31] – Ibid., XI, 20.

[32] – Ibid., XI, 21.

[33] – Ibidem.

[34] – Ibid., XI, 24.

[35] – Ibid., XI, 24. Cf. Aristóteles, Physica, IV, 11-12 218 b, 220 b.

[36]Confissões, XI, 24.

[37] – Ibid., XI, 26-27. Cf. Aristóteles, Physyca, IV, 14 223 a.

[38]Confissões, XI, 26.

[39] – Ibid., XI, 27.

[40] – Ibid., XI, 28.

[41] – Ibidem.

[42] – Ibidem.

[43] – Ibidem.

[44] – Ainda que essa tradição encontre pontos de contato na filosofia grega, não se pode esquecer que os gregos (tanto no Timeu como na Física) permitiram pelo menos um caso particular de movimento aos seres eternos, ou seja, o movimento circular. A idéia do “grande ano” que se repete eternamente no Timeu e muitas passagens da Física, da Metafísica e de outros textos aristotélicos são um bom exemplo disso.

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