
Introito
É sabido que os primeiros dez livros das Confissões são devotados em sua maior parte a contar a história de Agostinho, sua infância, sua vida interior e seus conflitos espirituais, sendo os três livros seguintes dedicados a uma meditação sobre as primeiras palavras do Gênesis[1]. Também se sabe que é no primeiro desses três livros subsequentes, por ocasião de uma reflexão sobre o verbo criador, que Agostinho enfrenta o problema do tempo. Assim, ainda que Agostinho se ocupe da temporalidade ou a mencione em outros escritos, é nas Confissões onde trata da problemática do tempo com mais profundidade. Por isso é que o nosso interesse aqui recairá sobre elas; e porque se trata de longe da fonte mais estudada por todos aqueles que se ocupam do tempo[2].
A concepção que Agostinho sustentou nas Confissões acerca da temporalidade sempre suscitou atenção. Não somente pela influência que exerceu sobre o mundo cristão ocidental, mas também e sobremaneira pela clareza com que Agostinho expôs a questão e pela forma em que soube respondê-la. O que nos concerne aqui, não obstante, não é tanto a sua resposta quanto as questões que provoca. Numa palavra: o que mais nos interessa aqui é a própria questão. Para bem compreendê-la, porém, não é menos importante destacar como e por que o Bispo de Hipona chega a levantá-la; por que precisa respondê-la, como a responde e até que ponto essa resposta é relevante para uma investigação filosófica acerca da essência do tempo. Neste sentido, dividiremos a exposição em três momentos. No primeiro, tentamos mostrar como Agostinho chega a deparar-se com o problema do tempo; no segundo, oferecemos uma interpretação da resposta que ofereceu à pergunta pela essência do tempo; finalmente, no terceiro, apresentamos algumas conseqüências que se nos afiguram dignas de menção.
Deus, o tempo e a eternidade
De início Agostinho enfrenta uma objeção de caráter herético: o que fazia o criador antes da criação? À primeira vista, a questão parece ociosa; mas não o é. A questão levanta um grave problema: se Deus “fazia algo” antes de criar o mundo e todas as coisas, então a criação seria “posterior” aos afazeres da divindade neste hipotético e preliminar estado em que o criador não era ainda o artífice de todas as coisas. Dito de outro modo: se Deus porventura tivesse feito algo “antes”, Deus teria feito coisas antes e depois; a saber, estaria submetido à ordem do tempo e seria temporal. Não seria um ser eterno. Por conseguinte, Agostinho precisa responder à objeção, salvando assim a eternidade de Deus e Sua diferença face a todas as coisas criadas.
O mesmo problema aparece sob outro aspecto. Se Deus é o criador, como ele criou? As escrituras sagradas dizem que ele criou com a palavra. Bastou-lhe pronunciar o verbo divino para que todas as coisas fossem criadas. Novamente surge uma dificuldade: as palavras são sucessivas, pois ao serem ditas, ocorrem de acordo com uma seqüência na qual primeiro vêm a ser e depois deixam de ser[3]. Mas se Deus é um ser eterno, um ser que criou com seu mero verbo, como fez então para que este não fosse um verbo de palavras sucessivas, temporais, finitas?[4] Ou melhor, como Deus, que é eterno, pode gerar todas as coisas pela palavra, que é sucessiva?
Note-se que em ambos os casos, para responder às objeções, Agostinho precisa separar Deus e Sua ação divina do mundo das coisas temporais, porque o Criador deve agir e ser diferente de todas as coisas criadas. Deve ser eterno e deve criar desde a eternidade, a qual não pode sofrer mudança, por carecer de começo e de fim[5]. Deus deve ser então diverso de tudo que é temporal. Mas, como?
Para pensar sobre a essência peculiar da divindade Agostinho conta com as escrituras. É a partir delas que medita sobre a eternidade de Deus e a diferença radical entre Ele e as criaturas. Deus — diz Agostinho — não pode fazer nada antes da criação, porque antes da criação não há nenhum “antes”: o tempo e todas as coisas temporais são simultâneos ao primeiro ato da criação[6]. O nascimento do tempo coincide com o primeiro segundo da criação. Deus cria o tempo — e a pergunta pela anterioridade, que é uma pergunta “temporal”, só faz sentido após o ato divino da criação. Isto é compreensível, se Deus é de fato criador e eterno.
Mas, mesmo assim, ainda é um problema sério compreender como Ele pôde ter criado com a palavra — pois toda palavra é sucessiva e sua existência é temporal. É de supor, portanto, que o verbo criador possa não ser da mesma natureza que as palavras finitas que conhecemos. Agostinho diz que a palavra do verbo divino é uma palavra pronunciada eternamente. Tratar-se-ia de uma ação “coeterna”- i.é, de uma ação que é simultânea a sua eternidade. O que significa que o ato da criação é extemporâneo, atemporal[7].
Essa resposta, evidentemente, não satisfaz o leitor moderno. Como não satisfez a outra, a saber, que Deus não podia fazer nada antes da criação, porque se o fizesse, a criação teria ocorrido no tempo, e então não seria uma criação ex nihilo, posto que teria sido precedida por algo anterior[8].
Nenhuma das duas respostas nos satisfaz porque adivinhamos a suposição de um dogma: a diversidade essencial entre o “Criador” e o mundo das “criaturas”, entre a eternidade divina e a finitude temporal. E no entanto elas nos ajudam, em algum sentido; mesmo que não aceitemos o dogma. Pois face à questão que nos ocupa, a da essência do tempo, agora compreende-se melhor como Agostinho chega a encará-la: precisa mostrar que o tempo é diferente da eternidade para afirmar que o verbo divino não poderia ter sido temporal; precisa mostrar que a eternidade de Deus não se coaduna com a mudança sucessiva que corrompe todas as coisas para afirmar que a pergunta pelos afazeres divinos antes da criação se baseia num mal-entendido.
É assim que Agostinho se vê obrigado a tratar da natureza do tempo — sempre em oposição à eternidade. Curiosamente, opondo, do mesmo modo que Aristóteles, a eternidade do que é divino à constante fugacidade do vir a ser das coisas sujeitas à geração e à corrupção, mas sendo que aqui se trata não apenas de um primeiro motor imóvel, mas de um criador.
O problema do tempo
A primeira coisa que caracteriza o âmbito do tempo, é que as coisas criadas se transformam e estão sujeitas a mudanças[9]. A corruptibilidade, o desgaste e o envelhecimento evidenciam a fugacidade, a transitoriedade do mundo criado. Numa palavra: sua imperfeição. Pois para Agostinho, como para Aristóteles, só pode mudar o que carece de algo, justamente tendo em vista alcançar sua perfeição, sua plenitude[10]. A eternidade da divindade, em contrapartida repousa incessantemente em seu presente imutável e infinito[11].
Esta diferença radical configura a pressuposição básica de tudo que virá depois: o caráter intrinsecamente mutável das coisas temporais face ao caráter essencialmente isento de transformação que signa a onipresença do criador[12]. Por aí reaparece agora a dicotomia entre o tempo e a eternidade, mas também uma ideia mais antiga (já presente de algum modo na arcana sentença de Anaximandro)[13], segundo a qual não há tempo sem coisas que nele se transformem, nem coisas que se transformem fora do tempo. Assim, do casamento indissolúvel entre tempo e mudança (caro a Platão, mas muito mais a Aristóteles) vem decorrer o fato de que tudo que não é eterno tenha um começo e um fim; e passe, sucessivamente. Pois “passar” não é senão a ocorrência no tempo de um ser que muda, que deixa de ser algo ou modifica alguma parte para alterar-se e tornar-se outro, ou para simplesmente definhar e desaparecer. Do mesmo modo, ainda, decorre daí uma outra conseqüência, desta vez no que diz respeito à divindade: sendo Deus eterno, deve permanecer imutável em sua eternidade, que por isso só pode ser definida como um presente absolutamente incapaz de passar. Não como um tempo infinitamente prolongado, tanto em direção ao passado como ao futuro, posto que tempo implica mudança, e esta tem começo e fim. Um tempo infinito ainda seria temporal; uma eternidade impotente, porque sujeita às vicissitudes do trânsito. Um presente absoluto, porém, seria digno de onipresença do Criador. Esse sim poderia definir a eternidade agostiniana, porque seria completo, absoluto, e não careceria de nada.
Desta diferença entre o presente que sempre passa e o presente sempiterno arranca toda a análise de Agostinho. Um é pura completitude; o outro diz respeito a algo incompleto que procura sua plenitude, e por isso recai na esfera da mudança.
A mudança, entretanto, é pensada por analogia ao problema do mal. Se é verdade que Agostinho define o mal como privação do bem[14], também é verdade que pensa a mudança como privação de perfeição; perfeição cujo correlato é o devir temporal. “O tempo —nos revela- não corre em vão”[15]. As coisas belas “nascem e morrem, e nascendo começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição, e uma vez perfeitas, começam a envelhecer, e morrem”[16]. E “embora nem tudo chegue à velhice, tudo perece. Logo, quando nascem e esforçam-se por existir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para não existir. Essa é sua condição…[17].
Isto que Agostinho diz sobre a brevidade da beleza terrena, aplica-se à brevidade de todas as coisas temporais. Passam e morrem; crescem e desaparecem; surgem e somem com a fugacidade de uma estrela cadente. São temporais: “passam para dar lugar a outras”[18]. Passam e transcorrem no tempo, sucedendo-se umas às outras. Mas, afinal, o que é o tempo? “Se ninguém mo pergunta, eu o sei; mas, se mo perguntam, e quero explicá-lo, não sei mais nada” — confessa Agostinho[19].
Sua confissão, porém, nos diz aquilo que todos sabemos: cremos saber o que é o tempo, mas no fundo ignoramo-lo. Contemplamos o calmo curso das horas nos ponteiros do relógio, falamos de um “ontem”, de “hoje” e de um “amanhã”; de “antes”, de “agora” ou “depois”. Cremos saber e entender o que é o tempo. Mas, se no-lo perguntarem, se perguntamos a nós mesmos o que é realmente o tempo, veremos que de fato não o sabemos.
As coisas mudam através do tempo, numa sucessão de instantes que advêm e passam, desdobrando-se em pretérito, presente e porvir, enquanto que a eternidade permanece simultânea e sempre presente[20]. O futuro vira presente e o presente passa e deixa de ser presente para tornar-se passado: “Se o presente, para ser tempo, deve unir-se ao passado, como podemos declarar que existe, se não pode existir senão deixando de existir? (…) o que nos autoriza a afirmar que o tempo existe é a sua tendência a deixar de existir”[21]. Dizer que as coisas mudam sucessivamente é dizer que elas passam do futuro ao presente e afundam no passado. O fato de o presente virar passado é aquilo que o distingue do presente sempre eterno. Pois justamente porque muda não pode o presente ser todo presente. Somente a eternidade é sempre toda presente. A “sucessão dos tempos é feita de uma multidão de instantes que não podem correr simultaneamente (…) todo passado e futuro tiram sua existência e curso do eterno presente (…) a eternidade, que não é futura, nem passada, determina o futuro e o passado…”[22].
Todavia, se o que define a existência do tempo “é sua tendência a deixar de existir”[23], e se todo presente deixa de sê-lo para tornar-se passado, como é que se pode apreender o tempo? Além disso, o que é que mantém as coisas temporais em constante mudança, em busca de sua perfeição, senão aquela perfeição do presente eterno? Parece que o passado e o futuro, que se transforma em presente, e logo em passado, tiram sua existência da eternidade. Agostinho parece sugerir, assim, uma certa preeminência do presente sobre o passado e sobre o futuro, uma vez que o passado já não é mais e o futuro ainda não é[24]. Numa palavra: o futuro e o passado são como que um não-ser, uma vez que o ser só cabe ao presente, à atualidade a partir da qual definimos o futuro para diante e o passado para trás. A persistência do presente, por onde passa o fluido dos instantes, advêm do futuro e se perdem no passado, parece fundar-se em última instância na eternidade. Como se houvesse um ponto de contato absoluto e inefável entre o tempo e o que está fora do tempo — o portal do presente. A insistência do presente, onde sempre estamos situados, opera como um reflexo da eternidade divina. O presente pontual, o agora instantâneo, também passa — mas o constante presente, o leito por onde passa o rio da sucessão dos instantes, fica ancorado. Ela não passa: bem antes, é nele que tudo se passa.
Mas será mesmo que o futuro e o passado não existem? Não fazemos previsões, não guardamos expectativas acerca do futuro? Não contamos histórias que nos lembram fatos acontecidos no passado? Ainda que o futuro não exista, porque ainda não é, não existe de algum modo em nossas esperanças, como uma sorte de antecipação? E ainda que o passado não exista, porque já se foi, não existe em nós a memória das coisas e dos eventos passados?[25] Só podemos dizer que o presente existe, enquanto passa e deixa de ser, ou, de alguma maneira, ainda podemos admitir a existência do passado e do futuro, mesmo que esta possa ser diferente do modo de ser do presente?
Apesar de ter dito que só existe o presente, enquanto passa, Agostinho se vê obrigado a admitir que em alguma medida, o futuro e o passado também existem[26]. Como isto é possível? É que nós medimos o tempo, comparamos a duração de um período de tempo com outros. Assim, por exemplo, dizemos que a guerra dos trinta anos foi longa — trinta anos! — mas menor que a guerra dos cem anos. Mas, como medir o passado, se ele não mais existe? E contudo, de fato, medimo-lo. O que medimos, porém, é mesmo o passado? Não, o que medimos é o que do passado perdura em nossa memória. O passado enquanto passado já era, mas podemos medi-lo enquanto evocamos as imagens que deixou na lembrança. O mesmo se passa com o futuro: não podemos medi-lo em si mesmo, posto que ainda não veio a ser, mas podemos invocá-lo em nossa consciência e calcular nossas expectativas. O que medimos, assim, não é o tempo passado nem o tempo o futuro em si mesmos, porquanto eles não existem, mas sim a memória e a esperança dos mesmos em nossa consciência. Enquanto passam, porém, tornam-se presentes. E o presente não tem duração alguma[27]. Medimos no entanto “o tempo que passa”; medimo-lo “quando o sentimos passar”[28]. De tal maneira que “quando o tempo passa, pode ser percebido pela consciência e medido[29]. Assim, medimos o passado e o futuro, que em si mesmos não existem, quando os tornamos presentes a partir de lembranças e pressentimentos[30]. A bem dizer, não existem propriamente o presente, o passado e o futuro, mas o “presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, porque essas três espécies de tempo existem em nosso espírito, e não os vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança”[31].
Porém Agostinho não se contenta com essa conclusão, ainda que muitos se contentem com ela e considerem que resume a teoria agostiniana do tempo. Sugere além disso que o tempo, enquanto passa, é medido em analogia com o espaço. Diz-se que um lapso é o duplo, ou o triplo, ou a metade daquele outro lapso de tempo, ou um quarto deste, ou menor, ou maior, etc. Mede-se sempre, por conseguinte, “espaços de tempo”[32]. E aqui surge uma outra questão: em que lugar medimos o tempo que passa quando o medimos através de representação de espaços de tempo?[33]. A sua resposta ainda não é oferecida. Antes Agostinho nos lembra que não só medimos a duração dos tempos como também a duração dos movimentos a partir do tempo. Medimos o tempo com base numa analogia especial, e simultaneamente medimos o movimento com base no tempo. O tempo, como em Aristóteles, aparece definido agora como a medida do movimento, como a medida da duração dos movimentos dos corpos[34]. Trata-se do argumento que serve tradicionalmente para negar a identificação entre tempo e movimento: o tempo não é o movimento, porque o movimento é que se dá sempre no tempo[35].
Ao negar-se a identificação entre tempo e movimento, parece-nos, prepara-se o caminho para uma compreensão em que o tempo é o tempo medido, o tempo cronológico que mede o movimento e o repouso. Por haver tempo no repouso, e por haver aceleração ou desaceleração de movimentos sem que mude o ritmo do tempo, é que tempo e movimento são vistos como coisas de natureza diversa[36]. Ao refletir-se sobre quem mede e onde mede, para retornar à pergunta acima, chega-se a uma resposta que é quase a aristotélica: quem mede é a alma, e o lugar da medição é próprio espírito[37]. Se quem mede o tempo é a alma, talvez o tempo seja uma distensão da própria alma[38]. Ao passarem pelo palco do espírito, as imagens evocadas pela memória e as imagens antecipadas pela espera estendem-se por um espaço de tempo : é justamente essa extensão que medimos, a saber, “o intervalo que separa um começo de um fim”[39]. Medimos o tempo como a distensão da memória, da atenção e da espera: “o espírito espera, está atento e se recorda”[40]. O presente mesmo carece de duração, porque é um instante que passa, mas perdura a atenção[41]. É a alma que desloca seu foco de atenção nas dimensões do atual, do pretérito e do ainda por vir: “é um ato presente de atenção que faz passar o que era futuro ao estado de tempo passado”[42]. Assim, “quanto mais se prolonga essa operação [de atenção], tanto menor se torna a espera e tanto maior a memória, até o momento em que a espera se esgota completamente, e, terminada, a ação passa inteiramente para a memória”[43].
Se com isso Agostinho responde à questão pela essência do tempo, é algo que se pode aceitar ou questionar. Pareceria ser filosoficamente mais profícuo, em todo caso, extrair algumas implicações da sua análise.
Algumas consequências
Do ponto de vista histórico parece impor-se uma conseqüência que não é tão trivial quanto parece: a de que Agostinho deve no mínimo tanto a Aristóteles quanto a Platão, se não mais. E desta surge uma outra: a de que a originalidade de Agostinho está muito mais no tratamento do que nas teses que defende. Mais especificamente, eu diria, sua originalidade consiste em problematizar o tempo. Ainda que sua análise seja uma conjunção admirável de teses judaico-cristãs e pagãs, a “descoberta” do enigma do tempo é que se constitui no meu entender como seu maior contributo a uma filosofia do tempo.
Do ponto de vista de uma abordagem estritamente filosófica do tempo, porém, na análise agostiniana existem elementos que merecem ser levados em consideração e elementos que podem ser deixados de lado sem prejuízo algum. Neste sentido, creio que existiriam outras três conseqüências que poderiam ser explorados tendo como alvo principal a elaboração de uma teoria filosófica sobre a natureza do tempo. Cada uma das três representa um elemento digno de menção numa investigação desta natureza, mas desde que tentados do ponto de vista dos princípios, o que significa dizer, em se tratando de Agostinho, que tais aspectos devem ser “dessacralizados”.
A primeira concerne a relação entre os conceitos de tempo e de eternidade. A pergunta é por que Deus não poderia ser eterno e existir no tempo ao mesmo tempo? Se pensarmos não na eternidade divina, mas no conceito de eternidade, nada nos impede de pensar a eternidade como um tempo infinito, mesmo que ele comporte mudança. A negação quase parmenídica da mudança para a eternidade só faz sentido do ponto de vista teológico da eternidade divina, que deve ser imutável[44]. Se a eternidade fosse um tempo infinito, o tempo nada mais seria do que um recorte no fluxo infindável da eternidade.
A segunda concerne uma dificuldade essencial a toda teoria subjetivista do tempo. Por um lado conjuga-se tempo e mudança, e diz-se que as coisas temporais mudam e que toda mudança ocorre no tempo. Mas quando se define o tempo em função da alma, do espírito ou de qualquer instância relativa à esfera da subjetividade ou da consciência, parece como se as coisas, que mudam elas mesmas, não fossem temporais – nega-se tacitamente a objetividade dos processos temporais. Para colocar a dificuldade em Agostinho: se o tempo é uma distensão da alma, o que dizer então das “coisas temporais”? Será que então não há tempo nas coisas, para além da sucessividade dos processos conscientes?
A terceira questão é a mais ampla e complicada. Agostinho posiciona-se dentro da tradição aristotélica: o tempo não é nem pode ser o movimento — antes o movimento das coisas ocorre no tempo. Mas o argumento não se resume a isso. A sua força de convicção baseia-se em duas alegações:
- O tempo não pode ser o movimento, porque há tempo no repouso;
- O tempo não pode ser o movimento porque a desaceleração ou a aceleração do movimento dos corpos não modifica o curso do tempo.
A primeira coisa que cabe perguntar é se o tempo não poderia ser um caso especial do movimento, a saber, a mudança (o próprio Aristóteles diferenciou quatro espécies de movimento: geração e corrupção, aumento e diminuição, mudança de lugar e mudança). A resposta é não, se as alegações acima mencionadas forem verdadeiras ou não passíveis de questionamento. Mas, e se porventura fossem passíveis de questionamento? Será que o tempo não poderia ser pura mudança? Não podemos responder aqui a essa pergunta (já demos uma resposta preliminar em outra parte), mas podemos pelo menos oferecer três contra-argumentos às alegações agostinianas enraizadas na concepção aristotélica que defende ser impossível identificar tempo e mudança:
- Até que ponto dizer que as coisas que se movem estão no tempo não é apenas um simples modo de falar? Não podemos dizer com sentido, assim como dizemos que os movimentos ocorrem no tempo, que o tempo transcorre nas coisas que mudam? De resto, se as coisas e os movimentos ocorrem no tempo, não se pode dizer que o tempo é da ordem da alma, do espírito, ou da consciência, como Agostinho, e mais recentemente Kant, Husserl e toda a tradição da Fenomenologia;
- Dizer que o tempo não é o movimento porque há tempo no repouso não é um bom argumento porque o repouso pode ser aparente (poderíamos ver repouso, em função da finitude de nosso aparelho cognitivo, onde na verdade existissem movimentos que não percebemos);
- A aceleração ou desaceleração do movimento medido no tempo não muda o curso ou a velocidade do tempo medido que conhecemos de acordo com o padrão de referência temporal que usamos. Mas o padrão poderia ser mudado: se o sistema solar mudasse de velocidade, acelerando ou desacelerando, nosso ciclo temporal poderia não ter um ano de 365 dias nem um dia de 24 horas. Além do mais, toda medição é medição de alguma coisa; por que então quando falamos do tempo o confundimos com a sua medição, a saber, com o tempo cronológico dos relógios e barras de medida? Não será que o tempo é algo que subjaz ao tempo medido, precisamente aquilo que é medido? Tento um exemplo. A aceleração ou desaceleração das mudanças que observamos nos ciclos naturais de todos os corpos e seres, parece, poderiam modificar o curso do tempo: a duração de cada corpo e de cada ser depende dessas mudanças. Assim, a velocidade das transformações (por exemplo, do metabolismo) determina de fato a duração da vida de certos seres, por exemplo. Assim, a duração da pedra difere da tartaruga, e esta do homem. Não devemos dizer que nesse caso a velocidade das mudanças é mais acelerada nos seres cuja vida dura menos e é menos acelerada em seres ou coisas que duram mais? É só uma hipótese, ou melhor, uma analogia, mas sendo plausível basta como alternativa ao argumento tradicional acima referido.
Autor: Juan Adolfo Bonaccini
Fonte: Crítica na Rede

Está gostando do blog, caro leitor? Saiba que só foi possível fazermos essa postagem graças ao apoio de nossos colaboradores. Todo o conteúdo do blog é disponibilizado gratuitamente, e nos esforçamos para fazer de nossa página um ambiente agradável para os públicos interessados. O objetivo é continuar oferecendo conteúdo de qualidade que possa contribuir com seus estudos. E agora você pode nos auxiliar nessa empreitada! Apoie nosso projeto e ajude a manter no ar esse que é um dos blogs maçônicos mais conceituados no Brasil. Para fazer sua colaboração é só clicar no link abaixo:
Notas
[1] – John F. Callahan, Four Views in Ancient Philosophy, New York: Greenwood Ppress, 1968, p. 168.
[2] – Como bem me lembrou o colega Marcos Costa (UNICAP).
[3] – Confissões, XI, 6.
[4] – Ibidem, XI, 6-7.
[5] – Ibid. XI, 8.
[6] – Ibid. XI, 13-14, 30-31; XII, 9, 11-12.
[7] – Ibid. XI, 7. Cf. ib. XIII, 29.
[8] – Em XI, 10 o argumento refere-se à vontade divina de criar, que sempre deve ter existido, pois caso contrário ela teria início e seria no entanto precedida por um ato volitivo anterior, o que acarretaria mudança, e por isso sucessão, temporalidade.
[9] – Ibid. XI, 4; XII, 8.
[10] – Cf. ibid. IV, 10; VII, 12; XI, 4; XII, 11. Aristóteles, porém, vai pensar esta completude de modo diferente.
[11] – Ibidem, XII, 12.
[12] – Cf. ibid. I, 4. Vide também X, 6 e XI, 4 e 7.
[13] – Sobre isto veja-se meu ensaio “Sobre o tempo”, in: Princípios, Natal, 5/6 (1998), p. 126-7. Cf. Confissões XII, 11.
[14] – Ibidem, III, 7.
[15] – Ibid., IV, 8.
[16] – Ibid., IV, 10. Cf. XI, 4.
[17] – Ibid., IV, 10.
[18] – Ibid., IV, 11.
[19] – Ibid., XI, 14.
[20] – Ibid., XI, 11.
[21] – Ibid., XI, 14.
[22] – Ibidem, XI, 11.
[23] – Ibid., XI, 14.
[24] – Ibid., XI, 14-15.
[25] – Curiosamente, a tese de que o futuro existe como expectativa, esperança ou antecipação, o presente como percepção atual ou atenta, e o passado como memória ou recordação do que já foi, não é de Agostinho. E digo curiosamente porque se costuma crer que a originalidade do tratamento dado por Agostinho ao problema do tempo reside na divisão entre o “presente do passado”, o “presente do presente” e “presente do futuro”, algo que Aristóteles já dissera com clareza em De memoria (449 b 25-27): “Memory is, therefore, neither perception nor conception, but a state or affection of one of these, conditioned by lapse of time. As already observed, there is no such thing as memory of the present while present; for the present is object only of perception, and the future, of expectation, but the object of memory is the past. All memory, therefore, implies a time elapsed; consequently only those animals which perceive time remember, and the organ whereby they perceive is also whereby they remember…” (“On Memory”, in: The Complete Works of Aristotle, ed. by J. Barnes, Princeton: New Jersey, Princeton University Press, 1984, Volume I, p. 716).
[26] – Confissões, XI, 17, 21.
[27] – Ibid., XI, 15.
[28] – Ibid., XI, 6. Para atestar outra curiosidade: em XI, 27 Agostinho dirá que não medimos o tempo que passa, ainda que meçamos o tempo. E mais adiante, após ter dito que o tempo é “talvez” uma distensão da alma, diz que a impressão que as coisas nos deixam ao passar é o tempo — ou então não o medimos! Em XI, 29 diz ignorar a ordem do tempo. Assim, ainda que o tempo todo Agostinho forneça respostas, deixa-nos entrever o quanto hesita e oscila em vários momentos na afirmação de suas teses.
[29] – Ibid., XI, 16.
[30] – Ibid., XI, 18.
[31] – Ibid., XI, 20.
[32] – Ibid., XI, 21.
[33] – Ibidem.
[34] – Ibid., XI, 24.
[35] – Ibid., XI, 24. Cf. Aristóteles, Physica, IV, 11-12 218 b, 220 b.
[36] – Confissões, XI, 24.
[37] – Ibid., XI, 26-27. Cf. Aristóteles, Physyca, IV, 14 223 a.
[38] – Confissões, XI, 26.
[39] – Ibid., XI, 27.
[40] – Ibid., XI, 28.
[41] – Ibidem.
[42] – Ibidem.
[43] – Ibidem.
[44] – Ainda que essa tradição encontre pontos de contato na filosofia grega, não se pode esquecer que os gregos (tanto no Timeu como na Física) permitiram pelo menos um caso particular de movimento aos seres eternos, ou seja, o movimento circular. A idéia do “grande ano” que se repete eternamente no Timeu e muitas passagens da Física, da Metafísica e de outros textos aristotélicos são um bom exemplo disso.
Curtir isso:
Curtir Carregando...