
Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas
Que vieram como gotas de silêncio tão furioso
Derrubando homens entre outros animais
Devastando a sede desses matagais(Eternas ondas – Zé Ramalho)
No ano de 1986, li pela primeira vez o livro Admirável mundo novo. Escrito por Aldous Huxley em 1931, essa obra é considerada um dos clássicos da literatura do século XX. Recentemente, como parte das atividades de uma das disciplinas do curso de História da PUC-MG, revisitei a utopia distópica criada pelo escritor inglês e me chamou atenção algo que Huxley escreveu no prefácio da edição que está em minha biblioteca. Segundo ele, os totalitarismos antigos, baseados na repressão dos cassetetes e pelotões de fuzilamento, se mostraram ineficientes, sendo então um “estado totalitário verdadeiramente eficiente” aquele em que o líder máximo controlaria a população sem necessidade de coação, uma vez que seria formada por escravos amantes da servidão.
O “admirável mundo novo” narrado por Huxley, e os recentes acontecimentos observados em alguns países, me lembraram então do Discurso sobre a servidão voluntária escrito por Étienne de La Boétie e publicado após sua morte em 1563. Entre pontos importantes do Discurso destacamos dois: as crenças religiosas são frequentemente usadas para manter o povo sob dominação e obediência; e, o poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo. La Boétie também alerta que
“é o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios”.
Tal afirmativa me levou a alguns questionamentos: o que leva o povo a fazer tal escolha? O que pode proporcionar uma tal ilusão, capaz de entorpecer mentes que até então se acreditava serem livres?
Talvez a resposta possa ser encontrada naquilo que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman denominou como “modernidade líquida”, onde as instituições estão enfraquecidas, as relações são efêmeras e prevalece o individualismo. É possível que esse conjunto de características, somado à desilusão com instituições que, em certo ponto, falharam em cumprir o papel de garantidoras da estabilidade, tenham criado o ambiente ideal para essa nova onda de servidão voluntária. Nesse contexto ocorre o surgimento daqueles que apresentam-se como outsiders, e que, sabendo fazer uso do sentimento que toma conta de parcela significativa da população, utilizam-se de discursos carregados de ódio para incitar a divisão da sociedade entre “nós e eles”, através de uma rede estruturada que coloca em prática a estratégia de disseminação da desinformação, criação de pseudo-realidades, além do apoderamento de símbolos nacionais como forma de legitimar seu atos e suas falas aos olhos e ouvidos de cidadãos mais incautos .
Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano. De acordo com Siebert e Pereira (2020, p. 240), pós-verdade está “relacionado a circunstâncias em que os fatos influenciam menos a opinião pública do que apelos à emoção ou às crenças pessoais”. Portanto, se refere ao momento em que a verdade já não é mais importante como já foi. No mundo da pós-verdade valem mais as mentiras confortáveis do que as verdades inconvenientes. Se em Admirável Mundo Novo as crianças eram condicionadas durante o sono, hoje as pessoas, em suas redes sociais, passam por algo que poderíamos classificar como semelhante ao narrado na obra de Huxley, uma vez que, apesarem de estarem acordadas, são submetidas constantemente a processos de desconstrução dos fatos e de reinterpretação da realidade.
No cenário desconcertante em que grande parcela da sociedade permanece 24 horas por dia conectada em pelo menos uma das inúmeras redes sociais existentes, em que as informações – e a desinformação – são compartilhadas em segundos, passou a prevalecer a “verdade seletiva”. Vivemos tempos em que se leva em conta apenas o que convém; tempos em que o que é considerado verdade deve estar em sintonia com os interesses do que é pregado na bolha digital na qual o sujeito está inserido.
Fatos são distorcidos; provas são ignoradas; falas são reinterpretadas. Tudo pretensamente feito para o bem da família e da nação.
Nessas duas décadas iniciais do século XXI, um número considerável de atores políticos parece ter observado que Huxley provavelmente tinha razão quando escreveu como se poderia alcançar o “totalitarismo eficiente”. Assim, dedicam-se a implantar um novo modo de cooptar seguidores, desta feita sem se valerem do uso de cassetetes e pelotões de fuzilamento. Na retórica utilizada por estes personagens, o ontem trasveste-se de amanhã.
É imperativo, portanto, que as mentes livres, presentes nas forças e organizações progressistas, se levantem em defesa da Liberdade de escolhas, da Igualdade de direitos e da Fraternidade entre os homens. É nosso dever, uma vez que juramos respeitar a nossa Constituição e os Poderes constituídos, além do nosso comprometimento a trabalhar pelo bem da humanidade, nos posicionarmos contra pensamentos reacionários e negacionistas, que fazem uso daqueles que o filósofo árabe Al-Farabi chamou de servos por natureza, cooptados para desempenhar o ignóbil papel de multiplicadores de factoides, desinformação e ódio, produzidos pela máquina que sustenta os tresloucados em seus devaneios de poder. Para nós, o “novo normal” não pode se resumir a permanecer “sentado no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar” (SEIXAS, 1973).
Talvez o mundo não seja, nesses tempos atuais, tão admirável; com certeza o perigo que o ronda não é novo. Mas, continua sendo o nosso mundo, e seu futuro é nossa responsabilidade.
“Se o teu amigo vento não lhe procurar, é porque multidões ele foi arrastar.” (Eternas ondas – Zé Ramalho)
Autor: Luiz Marcelo Viegas
Texto apresentado na Academia Mineira Maçônica de Letras, em reunião realizada no dia 01/12/2020.
Nota
[1] – Trecho da letra de AmarElo, música composta por Emicida em 2019.
REFERÊNCIAS
AL-FARABI, O caminho da felicidade, 2002: p. 62-63.
AMARELO. Intérprete: Emicida; Pablo Vittar; Majur. Compositor: Emicida; Belchior. In: AMARELO. Intérprete: Emicida. Brasil: Laboratório Fantasma, 2019. CD, faixa 10.
COSTA, Ricardo. A crítica da crítica: algumas considerações sobre a resenha “Os nórdicos e a academia”, do Prof. Johnni Langer. Disponível em: https://www.ricardocosta.com/direito-de-resposta-ricardo. Acesso em: 27 nov. 2020.
CUNHA, Carolina. Zygmunt Bauman – o pensamento do sociólogo da “modernidade líquida”. 2017. Disponível em: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/zygmunt-bauman-o-pensamento-do-sociologo-da-modernidade-liquida.htm. Acesso em: 23 nov. 2020.
ETERNAS ondas. Intérprete: Zé Ramalho. Compositor: Zé Ramalho. In: ANTOLOGIA Acústica. Intérprete: Zé Ramalho. Brasil: BMG, 1997. CD 1, faixa 7.
HANCOCK, Jaime Rubio. Dicionário Oxford dedica sua palavra do ano, ‘pós-verdade’, a Trump e Brexit. El País. 17 nov. 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/16/internacional/1479308638_931299.html?rel=mas%E2%80%8B. Acesso em: 23 nov. 2020.
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Disponível em: https://opontodentrocirculo.com/2020/08/09/discurso-sobre-a-servidao-voluntaria/. Acesso em: 23 nov. 2020.
OURO de tolo. Intérprete: Raul Seixas. Compositor: Raul Seixas. In: KRIG-HA, Bandolo! Intérprete: Raul Seixas. Rio de Janeiro: Philips Records, 1973. Disco vinil, faixa 11.
SIEBERT, Silvânia; PEREIRA, Israel Vieira. A pós-verdade como acontecimento discursivo. Ling. (dis)curso, Tubarão, v. 20, n. 2, p. 239-249, ago. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ld/v20n2/1982-4017-ld-20-02-239.pdf. Acesso em: 23 nov. 2020.

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