O Simbolismo da Roda – Capítulo 4 (1ª Parte)

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A Tradição Hermética

A tradição hermética deriva de seu nome, nada menos que de Hermes, deus grego, o Mercúrio romano, e sobretudo do mítico Hermes Trismegisto, todos eles instrutores e educadores dos homens, mensageiros dos deuses, personagem que aparece em quase todas as tradições sob distintas formas, como emissário ou intermediário entre céu e terra, sempre vinculado com o que voa, por isso costuma-se representá-lo com atributos alados. Deste modo se o relaciona com audições, recepções e transmissões de mensagens. Quer dizer, com doutrina[54], ciência, sabedoria e revelação. A palavra tradição deve significar, de certa forma, o mesmo que o anterior[55], por isso a expressão “tradição hermética” possa parecer uma redundância, se não se quisesse destacar, pelo aditamento desta última palavra, uma nítida origem revelada -como também assinalar uma circunstância histórico-cultural referente, de modo específico, ao ocidente e às origens de sua civilização. Por outra parte, o termo que nos ocupa é também claro assim que indica uma via de conhecimento determinada, relacionada com os mistérios menores, chamados também mundo ou plano intermediário, no caminho iniciático, expressando, além disso, a ideia da escuridão e silêncio, inerentes a este caminho, referindo-se igualmente a sua natureza misteriosa.

A tradição hermética é, pois, uma forma da tradição unânime, universal e primitiva -adequada à roupagem histórica e à mentalidade de certos povos e certos seres- que se manifestou aqui e ali, conformando e organizando a cultura e a civilização. O deus Hermes é solidário com o Toth egípcio[56],posto que, como ele, representa sabedoria e interpretação hermenêutica, e virtudes de profecia, atribuídas também a Enoch e a Elias artista -patrono da alquimia-, arrebatados ambos ao céu em um carro de fogo (veículo francamente solar) e dos quais se diz que não estão mortos, mas sim vivos, como outros personagens análogos de distintas tradições, dos quais se aguarda sua segunda aparição ao fim dos tempos, assim como os cristãos esperam a parusia do mestre Jesus, rei dos judeus, Cristo Rei, que encarna em forma humana, para nos revelar a verdadeira vida: transmissão que o converte em salvador e redentor. Historicamente não é muito difícil de advertir que os mitos e símbolos esotéricos egípcios, judeus, greco-romanos, cristãos, árabes e mediterrâneos em geral conformam um conjunto que se pode relacionar diretamente com os povos ocidentais; e que esta influência espiritual, embora não tome formas religiosas, é indiscutivelmente válida pela pureza de sua origem, e pelo desenvolvimento concatenado de transmissão, protagonizado por sábios, profetas, guerreiros e “artistas”. Isto não exclui que o conjunto de ensinos ao que nos referimos seja perfeitamente solidário com outros de distintas épocas e latitudes, e até idêntico a eles, além dos disfarces formais. No caso particular que nos ocupa -o do emissário divino que reúne em si a possibilidade unificada do que repta e do que voa, da terra e do ar, que devem ser separados para complementar-se adequadamente através da paixão e do amor-, este fato é claro e probatório da unidade arquetípica de todas as tradições, já que esta oposição-conjunção acha-se manifestada em toda parte. O que nos interessa agora é destacar que as ciências e artes que foram chamadas de “tradição hermética” têm uma origem comum, que se manifestam historicamente ao longo da vida do Ocidente, e que se expressam por intermédio de uma série de disciplinas e trabalhos, mitos e símbolos, que constituem um código coerente, suscetível de ser transposto a todos os códigos e sistemas tradicionais, pois na verdade elas expressam e se propõem o mesmo: revelar um conhecimento oculto, permitindo desta maneira a conquista do verdadeiro estado humano, o ser original, que todo homem perdeu pela queda, e que o coloca em uma situação infra-humana com respeito a si mesmo, motivo pelo que tem que restaurar seu verdadeiro Eu, que se acha oculto em seu interior, tão somente vivo em forma potencial, e que deve atualizar, pela memória de si e a lembrança do arquétipo original, com fé e amor, graças à doutrina tradicional, conhecida neste caso com o nome de hermetismo. Que lhe permite RE-nascer[57] ao estado autenticamente humano, frente ao qual os estados inferiores[58] aparecem como sonhos, ou ensaios, ou projetos ilusórios, ou mera tolice, por não dizer estúpida vaidade.

Estas disciplinas, ou veículos, levam o aprendiz através do mundo intermediário e o colocam defronte ao tabernáculo, no coração do templo, no eixo, que igualmente comunica com a cripta ou caverna, o país subterrâneo dos mortos, ou melhor, no interior do sacrário, de onde poderá iniciar sua ascensão vertical, para a cúpula ou a sumidade, que simbolizam a saída do templo ou do corpo, o supracósmico ou o supra-humano. Faz tempo que recebeu as águas batismais. Inclusive já se liberou das provas do labirinto das formações. Convertido agora, pela comunhão solar, no Rei do Mundo, o aspirante poderá então ser absorvido inteiramente na função sacerdotal e escapar da cosmogonia, que lhe revelou, utilizando sua identificação com ela como um suporte vivo de transmutação inefável. Ofício de guerreiros e cavaleiros, também o é de sábios e artistas, quer dizer, de astrólogos e alquimistas, e inclui a mestria no conhecimento. Não pouco é este conhecimento, no caso da astrologia e da alquimia, disciplinas que conformam o hermetismo ou a tradição hermética -os mistérios menores da Antiguidade-, pois se referem respectivamente ao conhecimento do céu e da terra, constituindo ambas o saber da cosmogonia completa, a ciência dos ciclos e a ciência das transmutações: a “arquitetura” experimentada em forma direta[59].

Historicamente se pode detectar em numerosos pontos da cultura ocidental a aparição de correntes de ideias, crenças, sistemas e pontos de vista herméticos, quer dizer, esotéricos, dentro do exoterismo de tal ou qual período determinado. Se nos ativermos à cronologia cristã, estes acontecimentos ideológicos aparecem não só em determinados momentos históricos -conformando períodos inteiros, como na Idade Média europeia-, mas também constituem os antecedentes de certos personagens e fatos científicos, filosóficos, históricos, literários, e até a origem de todo um código, como no caso da astronomia e da matemática. Convém, pois, situar-se em algum segmento mais ou menos claro e computado do devir temporal e avaliar uma amostragem de acontecimentos culturais-históricos, a fim de ilustrar esta exposição, que não pretende ser um estudo histórico ou sociológico.

Podemos nos localizar então na Alexandria do século III de nossa era e observar a multidão de ideias, concepções e personagens, tradições e culturas -inclusive a hindu e a budista-, que confluem ali, constituindo uma verdadeira encruzilhada de caminhos, um ponto de concentração de uma série de energias análogas, vindas de várias e diferentes direções, as quais têm que conformar posteriormente as diversas facetas de nossa cultura. Naquelas datas e lugar podemos encontrar o cristianismo dos primeiros padres convivendo com o gnosticismo, ambos de origem oriental. [Podemos encontrar] o pensamento grego, em particular o neoplatonismo -que surge como uma constante ao longo da história do Ocidente- misturado com a tradição hebraica, e com os fragmentos de civilizações como a caldaica, a egípcia, as do Irã, e outras, algumas delas perdidas ou esquecidas por nós. Não tentaremos, tampouco, neste ensaio, dar uma visão mais ou menos clara destes fatos, nem sequer brindar com um panorama. Remetemos o leitor à numerosa bibliografia a respeito, obra de autênticos especialistas. Desde nosso ponto de vista, destacamos estas coordenadas espaço-temporais, como lugar de reunião e posterior expansão das ideias da Tradição Unânime, da filosofia perene e universal, da doutrina, que chegaram a nós com o nome de tradição hermética. É também muito interessante sublinhar que estas ideias, através dos séculos, mantiveram-se vivas até nossos dias. E não só sobreviveram simplesmente, mas também constituíram, e ainda constituem, a trama invisível de certos acontecimentos revivificadores da história do homem ocidental, sem a qual esta história, e este homem, teriam desaparecido já há muito tempo.

O andaime de ideias ao qual estamos nos referindo, há de permanecer mais ou menos incólume e ser considerado como a sabedoria sempre oculta e esquiva, mas presente na vida pública da cidade e do povo -como uma herança cultural imperecível-, até aproximadamente o século XVII. E seguirá constituindo a medula cultural da Europa. Mas, a partir de então os valores mais profundos, postos em crise pelo mal chamado “humanismo”, degradar-se-ão até a negação de toda possibilidade de tradição e doutrina, o desconhecimento de qualquer esoterismo, e a ignorância total referente ao que se entende por iniciação[60]. Passou-se, então, à profanação do sagrado e à dessacralização da vida e da realidade, por isso tudo começa a ser empírico e insignificante[61].

Não que não tenha ocorrido anteriormente -ou, inversamente, que na escuridão atual não exista a luz-, mas estamos nos referindo agora ao tom particular de um determinado ciclo. Este ciclo que tratamos, é, em termos gerais, o da cultura chamada ocidental. E está, como todo ciclo, encadeado a outro, que a sua vez o está a um terceiro, e assim sucessivamente. Mas isto não é tudo: cada ciclo é um fragmento de outro maior e cada uma de suas partes pode ser um ciclo completo em si, com seus sistemas de subciclos, e deste modo indefinidamente. Tudo são ciclos dentro de ciclos, e a história exemplifica -de maneira alarmante às vezes- esta complexidade tão sutil como emaranhada. Mas a doutrina aparece em cada um deles, de uma ou outra maneira, por momentos brilhando intensamente, em outros declinando, ou escondida na escuridão, no coração de uns poucos. A tradição hermética esteve presente no Ocidente desde suas origens históricas e ideológicas, manifestando-se através de distintos grupos, pessoas ou instituições. Não nos referimos exclusivamente à filosofia grega, Pitágoras e Platão[62], Plotino e Porfírio, Proclo, nem à soteriologia dos romanos (Virgílio, Apuleio), tampouco aos verdadeiros gnósticos, nem aos primeiros pais da Igreja, mas sim queremos destacar o enorme amontoado de hermetistas ocidentais cristãos e esoteristas judeus e islâmicos, que tanta influência tiveram sobre os construtores da Idade Média e entre alquimistas, rosa-cruzes e algumas ordens cavalheirescas de diferentes tipos, das quais deriva a Maçonaria, organização iniciática nascida historicamente no século XVIII, embora de origens muito mais antigas -inclusive míticas-, que felizmente permaneceu até a data, embora desgraçadamente seja quase desconhecida, até para os próprios integrantes de seus quadros, em razão da degradação cultural cíclica, que se dá em todas as ordens e lugares, cada vez mais progressiva e veloz, e que tem feito à verdade tão mais misteriosa e secreta, como se se tivesse retirado realmente ao interior de si mesma e se tivesse que procurá-la, ou tirarmo-nos os véus psicológicos que nos ocultam isso de nós mesmos. Entretanto, a Maçonaria segue outorgando a iniciação em suas lojas maçônicas e esta é perfeitamente válida, dado que se trata da transmissão regular de uma influência espiritual. São muitas as lojas maçônicas que na Europa e América estão trabalhando muito seriamente e são muitos os adeptos que revitalizam os valores originários.

Com respeito ao ocidente moderno, podemos aceitar que as tradições religiosas que atualmente o conformam e que estão presentes em maior grau em sua cultura, são a judaica, a cristã e a islâmica, ou seja, denominadas as “do Livro”. O judaísmo tem em sua religião sua própria tradição e certos rabinos se dedicam à cabala, às relações entre letras, palavras e números, ao estudo, ao rito e à meditação. Quanto ao Islã, sua parte exotérica e seu esoterismo estão muito pouco diferenciados. Religião do deserto, é vivenciada de forma individual, e suas práticas, totalmente interiores, não precisam de imagens e nem de ritos complicados. O sufismo, é sabido, é a expressão do esoterismo islâmico. Quanto ao cristianismo, e mais especificamente ao catolicismo, diremos que muitos de seus membros pertenceram em diferentes épocas a ordens herméticas de esoterismo cristão. Papas, arcebispos, bispos, cardeais, singelos abades, ou párocos, ou humildes monges, encarnaram o conhecimento. E não só entre os doutores e os sábios da Igreja, mas também entre seu Santos e seus mártires, começando pelos apóstolos. Só nos bastará mencionar alguns nomes, dentro do esoterismo cristão, que provam a continuidade e a importância deste, não só quanto à Igreja como instituição e ao catolicismo como religião se refere, senão assim que representa historicamente as raízes mesmas do pensamento ocidental. Assim, por exemplo, deveríamos começar por Orígenes e os primeiros pais da Igreja, para continuar com o cristianismo ortodoxo do Oriente[63], falar do monaquismo na Irlanda, de São Bento e a constituição das diversas ordens de monges religiosos, para passar a São Bernardo, ao Císter e à cavalaria, mencionando nada menos que a Dionísio Areopagita no século V, e também a Santo Agostinho, para chegar a Alberto Magno, São Tomás de Aquino, e ao Mestre Eckhart. Neste ponto, é importante a aparição de um ambiente iniciático, o dos místicos de Munique, que foi para o Eckhart o mesmo que a ordem dos Fedeli d’Amore para Dante. Do mesmo modo, deveríamos nos recordar dos artistas medievais (Nicolas Flamel, Basílio Valentino, Bernardo Trevisano) e do hermetismo cabalístico cristão: Raimundo Llull, Nicolas de Cusa, Marsílio Ficino e Pico de la Mirandola. Também de Jacob Boehme, Cornelio Agripa, Francesco Zorzi; e dos magos elisabetanos, até Robert Fludd e os mencionados rosa-cruzes.

Desta maneira poderíamos percorrer os ciclos das histórias particulares -inscritos em outros mais amplos- e estabelecer as legítimas vinculações e as relações insuspeitadas de todo tipo, entre diversos acontecimentos sem conexão aparente, que nos fariam ver e conhecer outra história. E esse é o valor que na verdade tem a história dos personagens e dos povos, o de poder ser tomada como um código de sinais significativos ou significantes, como um discurso salpicado aqui e acolá de detalhes reveladores. Uma linguagem criptográfica, que poderia nos dar uma espécie de espectro ou panorama -de enquadramento no tempo-, no qual lêssemos como em um livro aberto, o livro da vida, cuja leitura tem que nos levar à imortalidade através do conhecimento dos ciclos universais, análogos aos ciclos dos homens.

Continua…

Autor: Federico González
Tradução: Igor Silva

Notas

[54] – Não confundir com a estreiteza e com o fanatismo do dogmático.

[55] – Do latim tradere: transmitir.

[56] – A quem miticamente costuma-se atribuir a paternidade do código do Tarot. A ave Íbis é um de seus símbolos.

[57] – CO-nhecer = CO-nascer [NT: conforme o original espanhol “CO-necer = CO-nacer”]. Em francês é mais evidente: CO-naitre

[58]Infernus

[59] – Pensamos que não deve associar os mistérios menores com o budismo hinayana e os maiores com o mahayana. O hinayana designa o pequeno veículo e significa a via que o adepto, ou o monge, efetua por si e para si. O mahayana ou grande senda, é a realização que não se produz “até que a última erva seja redimida”, quer dizer, a que se alcançaria conjuntamente com todos os seres sencientes. Esta diferença não cabe entre os mistérios menores e os maiores. Tampouco os mistérios menores correspondem ao que se convencionou chamar “a via úmida” e os maiores, à “via seca”. Nem que os primeiros sejam lunares e os segundos solares. Os mistérios menores correspondem à totalidade da obra alquímica e à astrologia e, portanto, à via lunar; e a solar, à obra em branco e à obra em vermelho, às pequenas e às grandes viagens. Nos mistérios maiores, a ideia da viagem, e ainda a de movimento, carecem de sentido.

[60] – Alguns tomam especificamente o ano 1492 como encruzilhada deste fenômeno histórico. Efetivamente, nessa época se unifica a Espanha católica, descobre-se a América e são expulsos os mouros e os judeus (e inclusive os ciganos) da península Ibérica. Este tema exigiria um longo desenvolvimento, que em alguma oportunidade tentaremos.

[61] – Além do mais deve-se dizer que esta degradação também afeta à Tradição Hermética, que em muitos casos se degenerou em paródias e instituições pseudo-espiritualistas, ocultistas, teosóficas e em toda espécie de fraternidades e confrarias que usurparam determinados conhecimentos, rebaixando-os à trivialidade de sua leitura literal. O mesmo acontece com os nomes e terminologias da autêntica tradição, com os quais se comercializa em forma descarada, quando não “filantrópica”.

[62] – “Quem é Platão?”, perguntamo-nos várias gerações de leitores.

[63] – Ainda existe o esoterismo dentro desta forma tradicional, e não exclusivamente localizado no monte Athos.

Autor: ------

Contato: opontodentrodocirculo@gmail.com

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