Anais do Colégio Invisível – XIII – As Catedrais

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XIII

As Catedrais

No artigo “Teologia Negativa” mencionei alguns dos problemas causados ​​por pessoas que pensam que sabem alguma coisa sobre Deus: pessoas, não como Dionísio, o Areopagita, João Escoto Erígena, ou Meister Eckhart, que insistiam que Deus é indescritível, mas dos teólogos positivista “tão propensos a discutir uns com os outros”. Talvez o problema realmente venha do fato de usar palavras tão inadequados para essa finalidade porque refletem a construção gramatical e limitações da consciência racional no lado esquerdo do cérebro. Este ensaio olha na direção oposta, o único legado da Idade Média que quase todo mundo pode aplaudir: as catedrais góticas.

Se você já viajou para uma das cidades da Europa, com uma grande catedral, você teve a experiência de ter visto primeiro a catedral, de longe, antes da cidade aparecer. Ela supera qualquer outra contribuição humana para a paisagem, e o contraste foi ainda maior no momento em que foi construído. As torres e pináculos apontando para o céu como um símbolo da aspiração de Deus. Mas também poderia ser visto como pára-raios, atraindo influências celestes a partir do éter para a terra. De qualquer maneira, a Catedral, com o seu grande tamanho e altura sobrenatural, parece surgir em algum lugar entre o céu e a terra.

Em termos quantitativos, as catedrais góticas são tão incríveis como as Pirâmides. Na França, por noventa anos de 1180-1270, foram construídas 80 catedrais e quase 500 abadias. Toda a economia do país estava comprometida com essas obras. A única comparação com tal fato hoje seria com a corrida armamentista, pela qual os povos dos países do Terceiro Mundo sofreram tanto. Mas uma catedral também gerava dinheiro, atraindo comerciantes para as feiras nos feriados da Igreja, e as hordas de peregrinos atraídos pelas relíquias. Em vez de ser santuário silencioso ou a armadilha para turistas de hoje, o local estava cheio de vida real, servindo como bazar, escola, tribunal, intercâmbio de experiências, e até mesmo dormitório.

Mas aqui estamos interessados ​​no aspecto qualitativo, e nas catedrais góticas como prova de sabedoria oculta que tem sido transmitida ao longo dos séculos. Tal projeto requer o esforço de toda a comunidade, mas o conceito original não é criado através de um debate democrático, nem o seu design. Eles exigem o conhecimento e o poder da imaginação criativa especializada por vezes chamamos de “gênio”.

Qual era a finalidade de uma catedral gótica? Era um veículo especialmente preparado para conduzir as almas para o céu. Aqueles que a conceberam e aqueles que a utilizaram, consideravam muito mais importante o mundo invisível que o mundo dos sentidos. Sem esse conjunto de prioridades, nunca teriam investido tanta energia na adoração de relíquias, no costume de peregrinação, e as generosas doações para a causa santa. A catedral foi para eles uma recompensa temporária a sua devoção. Dominar o mundo material, físico e econômico, como os  arranha-céus de Wall Street, também oferecia (ao contrário destes) um prazer antecipado das alegrias do céu.

Dionísio, o Areopagita, o cristão platônico que fundou a escola de “teologia negativa”, também foi uma luz metafísica. Apesar de o próprio Deus ser uma obscuridade três vezes desconhecido, quando da criação do universo a primeira aparição é a luz divina. Os primeiros capítulos do Gênesis e do Evangelho de João são claros sobre isso. Para Dionísio, a luz que conhecemos na Terra é eco sensível mais claro dessa primeira criação. A luz divina brilha do Pai e flui para nós, enchendo-nos com a memória das coisas que estão acima e guiando-nos de volta para a unidade com Deus.

Hoje, as catedrais góticas podem parecer escuras, iluminadas apenas pelas suas janelas. Mas em comparação com o estilo românico anterior, elas foram inundadas de luz. Isso podemos agradecer a Suger, abade de Saint-Denis, que reconstruiu sua própria abadia em meados do século XII, quando foi arrebatado pela luz mística de Dionísio, dando início ao estilo gótico. Suger tinha a intenção de encher o edifício com a substância mais divina que existe. Ele escreveu: “brilhantemente brilha o que multiplica o brilhante esplendor é o nobre trabalho através do qual brilha uma nova luz” – este último também referindo-se a Cristo, a Luz do Mundo.

A iluminação gótica não foi a pureza branca preferimos hoje, mas as cores do arco-íris que os avanços na fabricação de vidro haviam tornado possível. Pela primeira vez na história, as pessoas foram capazes de experimentar efeitos em grande escala de luz direta na cor, ao contrário da luz refletida a partir do pinturas, flores, etc. Experimentos de terapia de luz modernos mostram que esta exposição tem um efeito físico e psicológico definitivo. Hoje, alguém mais sensível que visite as catedrais percebe tal fato com facilidade. Como eles poderiam parar de pensar sobre a Nova Jerusalém, com suas paredes feitas de doze diferentes pedras preciosas, iluminado pela luz do Cordeiro?

Antes que as paredes das catedrais góticas começassem a subir, norte da França já abrigava uma escola de filosofia espiritual única no seu gênero, a Escola da Catedral de Chartres. Eram leitores de Dionísio e Erígena, e também de Platão e dos neoplatônicos, isso antes do afluxo de manuscritos gregos que somente ocorreria  na Renascimento. No Timeu de Platão leram sobre como o cosmos foi criado, não pela luz, mas pelo poder do número e da geometria. Timeu, falando na maior parte do diálogo foi um pitagórico, e expõe a perspectiva de sua escola: os meios da criação são os números matemáticos e formas geométricas. Os elementos e tudo derivado deles torna-se possível através de sua combinação. Os filósofos de Chartres tinham quase tanto respeito pelo mito da criação de Platão como pelo do Gênesis. A ideias de Platão tinha a vantagem de ser um sistema racional, que o homem poderia compreender; isso fazia de Deus um ser racional. Além disso, o Livro da Sabedoria tinha dito: “Você criou todas as coisas em número, peso e medida.” Então, Deus, o Pai era às vezes representado nos manuscritos como o Geômetra, traçando o cosmos com uma compasso. O Mistério da Trindade, disse um mestre de Chartres, é como um triângulo equilátero, outra imagem comum em manuscritos e pinturas. Engenhosamente acrescenta que a relação de Jesus com o Pai é como o primeiro número quadrado, 1 x 1 = 1: permanecendo na unidade.

A geometria e o número são os primeiros princípios de qualquer construção, até mesmo uma simples cobertura do jardim. Para ser construída deve ter uma forma e ter suas medidas planejada. As catedrais – e isso inclui as romanas e bizantinas, não apenas as góticas –  são o supremo esforço humano para imitar Deus através da imposição de geometria e número na matéria. Elas são princípios matemáticos tornados visíveis, tangíveis e habitáveis. Se pode dizer o mesmo dos templos egípcios, gregos e romanos, e de todas as estruturas sagradas em todo o mundo.

Há dois aspectos fundamentais na matemática dos edifícios sagrados. O primeiro é o aritmético, que consiste em escolher um módulo (p. Ex. Do pé) e seus múltiplos (p. Ex. Os quadrados que formam o plano horizontal). Os construtores de catedrais às vezes escolhiam os números para o seu valor simbólico. Na catedral de Chartres, por exemplo, as dimensões principais, expressas pelas unidades da época, correspondentes à gematria de palavras como “Beata Virgem Maria Mater Dei” (Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus). Ninguém sabia disso desde que foi feito pelo arquiteto até sua redescoberta por John James em 1970. Mas isso não tem importância para o pensamento platônico, assim não importa para mim conhecer todos os ajustes que fazem trabalhar o meu carro ou o meu computador. A catedral “funciona” precisamente porque é bem feita.

O segundo aspecto da matemática é a geometria sagrada, que usa as ferramentas do compasso e esquadro, enquanto a aritmética usa o ábaco. A aritmética dita as dimensões, a forma geométrica; portanto, é responsável pela engenharia da construção. Se sustentará? Esta foi a principal preocupação dos arquitetos góticos, que, obedientes à metafísica da luz, sempre abriram suas paredes para cobrir áreas mais amplas com vidros coloridos. O arco com dois centros ou arco apontado foi o seu mais notável de recurso para reforçar a sua segurança. O traçado da roseta era seu júbilo, que exibiu seu virtuosismo nas divisões simbólicas do círculo.

A geometria pode ser transposta, em certa medida com a aritmética, isto é, de uma certa maneira pode ser atribuído dimensões definidas. Mas, em parte, para além do número mensurável. Um dos problemas mais fascinantes da matemática da antiguidade foi a incapacidade de chegar a uma expressão aritmética para as coisas mais fáceis de desenhar, como o círculo ou a diagonal de um quadrado, ou a expansão infinita da Seção de Ouro. Essas proporções irracionais também têm o seu lugar na concepção das catedrais, e ainda mais por ser tão evidente na concepção do cosmos.

Até agora, a catedral foi calculada para ser um reflexo de inteligência matemática de Deus, e um receptáculo para a sua primeira criação da luz. Era necessário algo mais para completar o efeito: a catedral deve ser feita também para produzir o som. Assim, as três faculdades principais da mente, o olho e o ouvido poderiam estar presentes.

Eu não pretendo sugerir que um pequeno grupo de músicos sentou-se para determinar que tipo de música seria adequado para o novo estilo arquitetônico, em analogia com o Mestre maçons e cristãos platônico sem dúvida inventou a estrutura do edifício. Mas há uma sincronicidade agradável no fato de que eles estavam lançando as bases para todas as futuras músicas europeias durante este período, quando o estilo Gótico estava desenvolvendo. O que distingue a arte musical europeia do resto da música do mundo é o grau em que temos explorado a harmonia: o soar simultâneo de um ou mais tons. A primeira tentativa, totalmente bem sucedida, reunindo duas melodias simultâneas estava em Notre-Dame de Paris por volta de 1160. Por “bem sucedida” significa que os compositores de Notre Dame criaram um repertório de música harmônica que se tornou popular. Ela se espalhou por toda a Europa e serviu de base e inspiração para o desenvolvimento do novo século. Uma linha clara pode ser traçada de lá para a música clássica que todos nós conhecemos.

Por que é importante a harmonia? A músico Pitágoras dirá que é porque através dela que podemos perceber as proporções com que o cosmos é criado. Você pode escrever os cinco primeiros números, 1 2 3 4 5: isso é aritmética. Você pode construir estruturas baseadas nessas dimensões: isso é geometria. Mas se você toca cinco cordas, cujos comprimentos são em relação 1 2 3 4 5 e ouvir um acorde! A harmonia é o número tornado audível. Algumas combinações numéricas produzem melodias; outras dissonâncias. E da tensão entre os dois surge toda a nossa música.

Algumas pessoas sustentam que os edifícios com proporções harmoniosas são acusticamente melhores do que aqueles que não são bem desenhados. A acústica das catedrais góticas, e também das inúmeras igrejas menores construídas de acordo com os mesmos princípios, é mais apropriada para a música dos tempos antigos, era harmonicamente simples e destinada para vozes sem acompanhamento instrumental. A música romântica instrumental (com todo o respeito à escola do órgão francês) soa caótica nessas catedrais. A razão para o sucesso da música antiga parece ser porque estes edifícios intensificam as harmonias naturais que estão presentes em cada tom. Um simples par de vozes cantando sozinho uma das representações da missa de Leonin, o primeiro compositor de Notre-Dame, são cobertos com um rico buquê de harmonias que enchem todo o edifício. Nada mais era necessário para completar a atmosfera intencionalmente espiritual.

A catedral gótica era um deleite para os sentidos. Eu disse pouco sobre como era também foi um prazer para a mente, enquanto os vitrais retratam milhares de figuras bíblicas, cada um com sua própria história. Tampouco mencionei as esculturas que repetiam no exterior do edifício os temas que os vitrais mostravam no interior. Eu não disse nada da missa, o mistério central da liturgia cristã, com sua mágica transubstanciação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo. Para um crente, o milagre da catedral em toda a sua vastidão e beleza, não era nada em comparação com o milagre diário que acontecia em seus altares. Há também o tema tão amado pelos modernos redescobridores do gótico : o rosto feminino da divindade representada pela Virgem Maria, cujo culto em um santuário como Chartres é como um renascimento dos cultos à deusa do mundo antigo. Com tudo isso junto, podemos ver como as sementes lançadas por poucos cristãos platônicos, auxiliados por alguns especialistas em arquitetura e harmonia, cresceram para se tornarem um dos maiores ornamentos da civilização que o mundo já conheceu.

Se houver um Colégio Invisível trabalhando para iluminar o mundo, esta pode ter sido sua maior conquista. Não só serviu a elite e aos iniciados, mas a qualquer indivíduo, tocando cada um no nível apropriado, desde uma certa superstição em que não podemos acreditar hoje, passando por todos os graus de harmonização religiosa, até as alturas misticismo devocional. Anteriormente foram chamadas de veículo preparado para conduzir as almas para o céu. Tudo isso vale mesmo se houver apenas o céu que nós fazemos na Terra.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: Luiz Marcelo Viegas

Fim da série Anais do Colégio Invisível

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Anais do Colégio Invisível – XII – O Caminho Interior

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XII

O Caminho Interior

Os membros do Colégio Invisível não constituem uma ordem nem um tipo de círculo ou conciliábulo no sentido corrente, mas sua “colegialidade” existe em um plano mais elevado. Não se conhecem nem atuam de comum acordo, mas uma comunidade espiritual os une.

É um fato evidente que, nas esferas mais elevadas da mística, as experiências dos que provêm de diferentes religiões e grupos étnicos tendem a confluir, por exemplo, em uma auto identificação com a Divindade e em uma inexpressável certeza que transcende as imagens e palavras que aqui abaixo formam barreiras. Uma vez que tais experiências também transcendem a percepção de tempo, espaço e causalidade, talvez não importe quando e onde viveram essas pessoas. Não é um grupo que se reúne, mas um número de canais separados, abertos para a Vontade Divina, que desse modo realizam necessariamente seu labor na Terra.

Não há garantia de que a “Vontade Divina” seja única e uniforme para todas as pessoas e para todos os tempos. Aparentemente é muito mais provável que se regozije com a variedade e, nos atreveríamos dizer, com o conflito. Pois não há nada como o conflito para concentrar nossas intenções e fortalecer nossa determinação. É provável que os Sábios concordem de maneira sublime nas cortes celestiais, mas são tudo, menos uniformes, em suas personalidades terrenas. Tampouco parecem estar acostumados a se agrupar, como se fazê-lo fosse para eles quase uma perda de esforços. Ao contrário, semeiam grandes árvores solitárias, de distintas espécies, que protegem e hospedam individualmente inumeráveis criaturas menores, e provêm sementes que podem ou não chegar a ser tão grandes quanto eles.

Uma árvore dessas foi Jacob Boehme (1575-1624), o sapateiro de Görlitz, que criou o nexo histórico entre os místicos do Reno (Meister Eckhart, Suso, Tauler, etc.) e os teósofos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Os escritos de Boehme são atualmente de muito difícil leitura, mas a sua existência brilhou como um farol através das obscuras épocas do “iluminismo” secular. Tratava-se de um artesão e pai de família – não de um pastor, um monge, um cardeal ou um aristocrata – que foi eleito para desentranhar mistérios muito profundos, e que não viveu apenas a crença que era conveniente para sua posição social, mas viveu a lúcida consciência de Deus. O exemplo de Boehme demonstrou que o Cristianismo poderia ser mais do que ética e Escrituras (ainda que ele fosse um grande conhecedor delas), e mais que ritos, estética e sacramentos. Poderia ser uma realidade interior mais real que tudo o que existe no mundo e mais preciosa que tudo o que o mundo podia ensinar. Tal como ele mesmo diz, referindo-se à sua grande experiência de 1600:

“Nesse quarto de hora vi e aprendi mais do que se tivesse estudado muitos anos em uma universidade… Pois percebi e reconheci o Ser de todos os seres”.

O que mais diferencia a teosofia cristã da tradição – principalmente católica – da mística é que, como caminho experimental, se dirige tanto ao intelecto como às emoções. Não precisa de aspecto emotivo e tampouco de seu próprio erotismo espiritual, mas também penetra nas atividades da metafísica e da cosmogonia. Talvez possa ser desnecessário saber como funcionam as partes da alma e do espírito humanos que fazem as diferentes hierarquias angelicais, ou quão complicado é o próprio ser de Deus. Não obstante, alguns são naturalmente inquisitivos e não se contentam quando lhes dizem “não te metas naquilo que não te diz respeito e deixa estas questões em mãos de quem as entendem”. A mensagem de Boehme é esta: “Eu as entendo porque as vi, as senti e as fui”. Se o homem é capaz disso, por que não utilizarmos nosso divino dom cognitivo em lugar de nos escondermos sob uma ignorância disfarçada de humildade?

A teosofia leva o princípio protestante à sua conclusão suprema. O “sacerdócio de todo crente” e o direito a indagar nas Escrituras se elevam do sermão e do estudo bíblico até transcendentais experiências e iluminações. Tampouco faltam teósofos católicos, como Louis-Claude de Saint-Martin ou Franz von Baader, que também cansados da complacência e negligência na qual sua religião se havia afundado, tomaram Boehme como seu mestre.

O aspecto intelectual da teosofia vai além de meramente satisfazer a curiosidade: é uma Gnose, ou seja, a integração consciente do ser humano com sua própria natureza transcendente. Fiel ao princípio hermético (“como é acima, é embaixo”), o Deus que Boehme descobre é também ele mesmo que se descobre como ser divino. Seu Deus é um processo angustioso e dinâmico no qual o Imanifesto dá a conhecer a si mesmo. As sete qualidades que este processo cria geram o cosmos com todas as suas variedades e sua evolução cíclica e igualmente agonística. Por conseguinte, as contradições e os conflitos que bem conhecemos têm suas raízes não só na rebelião de Lúcifer e na queda do Homem, mas também no próprio ser de Deus. Participamos no processo como indivíduos, como raça humana e como Natureza.

“Efetivamente, Deus se acha tão perto de ti que o nascimento da Sagrada Trindade se efetua ou opera inclusive em teu coração, sim, as três Pessoas foram geradas na plenitude em teu coração, inclusive Deus Pai, Filho e Espírito Santo” (Aurora 103).

“De maneira que cada um chega a ser um Cristo (ou um Ungido) a partir desta deificada raiz que se abre dentro de sua própria alma.” (Jane Leade)

A ortodoxia evita com razão estas expressões pelo dano que podem causar às almas débeis e sugestionáveis. Mas, assim como todos os Sábios se encontram no topo da montanha, essas expressões são o lugar no qual, como Boehme bem sabia, se encontram juntos o Cristianismo e a Kabbalah, o Hermetismo e a Alquimia, aos quais podemos somar o Sufismo, o Hinduísmo dos Upanishads e o Budismo Mahayana.

O físico Basarab Nicolescu também demonstrou o paralelismo que existe entre o sistema de Boehme e a física pós-quântica. Não lhe parece inconcebível que o olho espiritual possa revelar verdades fundamentais sobre a natureza das coisas, que os cientistas ainda estão descobrindo de maneira mais vagarosa e unidimensional. Nicolescu reclamou em voz alta e com clareza para que se reconheçam os valores metafísicos produzidos pela teosofia e pela física moderna, junto com uma ciência ética e uma nova Filosofia da Natureza. A Natureza dos teósofos não é um impulso automático nem cegamente evolutivo, mas um ser consciente e – o que resulta bastante estranho – uma parte do homem, pela qual ele é responsável.

Os princípios tratados na cosmologia de Boehme, da mesma forma que na física, são poucos e fixos, e apresentam números simples. Mas o modo com que operam aqui embaixo não foi determinado ainda, como também não o foi o destino deste particular experimento humano e natural. O fato é que a ciência acaba de pôr potenciais ferramentas de destruição e transmutação nas mãos de seres luciferinamente ignorantes. Há alguma possibilidade de iluminá-los ou essa será outra criação que fracassará? O cientista consciente tem que ser pessimista, mas o teósofo sabe que, qualquer que seja o destino deste planeta, o indivíduo ainda tem a possibilidade de conseguir nesta vida o que Boehme chama de “novo nascimento”.

Os seguidores de Boehme na Alemanha e Holanda, França, Inglaterra e Pensilvânia são um brilhante fio da Gnose que atravessa a desolado paisagem religioso de princípios da história moderna. Alguns deles são solitários, como Saint-Martin, enquanto outros formaram estreitos círculos, como o de John Pordage e Jane Leade em Londres. Johan Georg Gichtel, de Amsterdam, que foi um dos mais criativos exegetas de Boehme, criou uma “Sociedade dos Trinta”, dispersa em várias cidades. Todos os nomeados não foram meros estudantes, pois fizeram suas próprias experiências teosóficas através da qual confirmaram as de Boehme. Outra modalidade foi a da comunidade quase monástica de Conrad Beissel, que chegou ao Novo Mundo em 1720 e cujos belos e austeros edifícios ainda estão em pé em Ephrata, Pensilvânia.

Em princípio, o caminho do teósofo cristão é uma senda estritamente interior, sem necessidade de que outros o saibam. Não há relatos sobre quantas almas sinceras o percorreram com ou sem a ajuda de Jacob Boehme. Não obstante, é razoável perguntar-se até onde o outro tópico deste ensaio – a Alquimia – também é uma senda interior.

Em muitos aspectos, a Alquimia e a Teosofia são paralelas, se é que não idênticas em sua intenção; mas seu vocabulário imaginal é diferente. A teosofia cristã espera, e recebe experiências no mundo imaginal que se revestem de figuras bíblicas e símbolos: a Trindade, Lúcifer, Cristo, a Virgem Sophia, etc. Os dramatis personae da alquimia consistem mais de metais e minerais (Mercúrio, Enxofre, Sal, Magnésio, Antimônio, Prata, Ouro, etc.), uma coleção de animais e aves (Dragão, Leão, Sapo, Águia, Pelicano, Peru Real, etc.) e uma quantidade de figuras da mitologia clássica (os sete deuses e deusas planetários, mais Hércules, Atalanta, Osíris, etc.). Com segurança, na alquimia houve “roupagens” cristãs (e também judaicas e islâmicas), tal como a teosofia de Boehme tem uma “roupagem” alquímica, mas seus princípios e metas foram estabelecidos independentemente de Moisés e antes de Cristo.

A literatura alquímica se propõe a ensinar como devem ser trabalhadas as substâncias físicas, e um primeiro nível interpretativo de seus símbolos constitui um código pré-científico de procedimentos químicos. Os historiadores da ciência mostraram que os textos alquímicos ensinam como se deve fazer, por exemplo, para extrair ouro de minerais compostos valendo-se do antimônio. Mas, especialmente desde 1600, coincidindo com a teosofia de Boehme e movimentos afins, os textos alquímicos se tornaram, aparentemente, cada vez menos químicos. Autores como Heinrich Khunrath, Cessare della Riviera e Thomas Vaughan estão claramente menos interessados no trabalho de laboratório do que em uma alquimia espiritual.

O princípio da alquimia espiritual estabelece que as substâncias representem elementos existentes no homem e no mundo espiritual, e os procedimentos têm lugar dentro de sua alma. Eis aqui alguns exemplos: o alambique ou o crisol é o complexo psicofísico humano, e o laboratório é o mundus imaginalis, o universo real, mas que não é físico, no qual têm lugar as transmutações espirituais. O fogo é o esforço interior e deliberado que se efetua durante a meditação, o qual pode chegar a induzir uma sensação de calor, e sua regulação se realiza mediante controle da respiração, como na yoga. A purificação do material requer agora um controle além do normal da mente (= a “fixação do Mercúrio”), mas o trabalho real de transmutação ocorre só então. Corre-se um perigo verdadeiro: que o recipiente rache presumivelmente por esgotamento físico ou nervoso. O operador enfrenta em cada etapa forças opostas às quais deve dominar ou, caso contrário, deve retroceder, e tentar de novo. Como no cosmos de Boehme, estes são seres reais que procuram afastá-lo de sua meta; e, ao mesmo tempo, formam parte dele mesmo. É necessário fazer heroicos esforços e vencer múltiplos temores para manter “intacta” nossa matéria ao longo da obra, ou seja, persistir nesta busca interior que põe o buscador em situações absolutamente inimagináveis para um estranho. O ouro que finalmente fica no crisol é o Ser do herói totalmente transformado que liderou a batalha e ganhou. É também a Panaceia Universal porque é a cura de todos os males que são produto da mortalidade. Para quem em seu coração (para citar a Boehme) “operou a Sagrada Trindade”, a morte não pode ser nada mais que um acidente químico.

C. G. Jung contribuiu revitalizando a alquimia perante o público ilustrado e a livrou de ser uma nota de pé de página na história da química. Sem interessar-se na alquimia operativa, mostrou que os processos descritos podiam ser interpretados como tendo lugar – de maneira simultânea ou exclusiva – no psíquico ou na alma. Não obstante, a “integração da personalidade” segundo Jung, apenas parece equivaler à espantosa meta anteriormente descrita, ainda que pudesse se tratar de um sábio requisito prévio.

Quase simultaneamente com o estudo de Jung sobre a alquimia, houve um protesto contra a tendência muito “internalizante”. Os escritos do misterioso Fulcanelli foram a origem disso, ainda que ninguém saiba onde estava seu laboratório e que fez realmente ali, e nem sequer quem foi ele. Não obstante, a França se converteu no centro de um novo interesse pela alquimia operativa.

Depois da segunda guerra mundial, o Frater Albertus (Riedel) e Jean Dubuis, fundador dos Filósofos da Natureza, romperam com os centenários hábitos obscurantistas e secretos, e ensinaram os processos espagíricos em modernos laboratórios. Deixaram de lado o objetivo de transmutar “chumbo” em “ouro”, entendido isso tanto espiritual como materialmente, e estabeleceram metas mais acessíveis, especialmente a preparação de medicamentos. Os novos alquimistas trabalham com substâncias físicas, mas com conhecimento das forças sutis (planetárias, elementais e, inclusive, angelicais) e com o efeito do operador sobre o material. De modo reverso, o processo espagírico se reflete, ao estilo de Jung, na alma do operador.

Aqui não faz sentido o princípio científico universal de que o experimento deve ser reproduzível: as coisas não funcionarão se a pessoa carecer da “virtude” requerida. Tampouco existe uma rígida divisão entre o corpo e a alma, que se acham estreitamente vinculados pelo princípio de correspondência. É de suma importância uma atitude reverente para com a Natureza. Se existe uma vanguarda da ciência do futuro – a única classe de ciência que podemos sustentar – essa vanguarda está aqui.

Aqueles que propõem diferentes classes de alquimia são psicologicamente diferentes entre si e, como tais, é pouco provável que concordem em seus respectivos métodos. Os que trabalham com substâncias físicas o fazem porque isto lhes agrada, mas, igualmente, o processo de transmutação humana pode avançar sem o tempo, o espaço e os gastos de um laboratório bem equipado. Do contrário, o pobre Jacob Boehme não teria ido longe. Não obstante, se é que podemos dar crédito ao que lemos, não é extraordinário que as receitas químicas do Egito alexandrino, quando interpretadas de um modo funcionam no laboratório, e quando de outro, proporcionam uma guia confiável na senda teosófica?

Efetivamente, é extraordinário que a mente moderna, tão brilhante em física e química, seja tão ignorante enquanto ao mundo interno e imaginal. Quase enternece esta fé que as pessoas têm de que o mundo material é o único real, e todo o resto seus epifenômenos. Mas, o que ocorreria si invertêssemos as coisas e sugeríssemos que o mundo interno precede o externo? E que a imaginação, em lugar de vir após um acontecimento, o precede? E que vemos as estrelas pela única razão de que nesse momento compartilhamos de sua perpétua criação? Então, os estados mentais e imaginais seriam os que teriam precedência, seguidos pelos procedimentos químicos. Como pessoas normais sub-evoluídas só somos capazes de perceber e viver em um mundo normal e sub-evoluído, e este é o mundo que a ciência conhece. Mas, aparentemente, é provável que uma vez que dominássemos os estados conscientes sobrenormais, passaríamos a viver em um mundo sobrenormal com leis distintas das da física clássica. Isto explicaria as curas milagrosas atribuídas a Cristo e a outros, e até a transformação do chumbo em ouro.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – XI – O Dilema Filosofal

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XI

O Dilema Filosofal

Em todas as gerações, uns poucos, mais do que “crer”, conheceram algumas respostas para as grandes questões da humanidade. Seu saber é, evidentemente, difícil de transmitir para o resto de nós, mas seu brilho e sua certeza operam certamente como um farol e uma recordação do que um homem ou uma mulher podem ser. Eles ocupam seu lugar em uma sociedade ordenada e tradicional; como Catarina de Siena ou Nicolau de Cusa, impõem respeito a reis e papas, e fixam um modelo de santidade e sabedoria ao qual o clero aspira (se é que não enlouquece de ciúmes). Mas, o que fazer quando o equilíbrio espiritual do mundo se despedaça como ocorreu no século XV com o cisma do Oriente e Ocidente e a influência do humanismo; no século XVI, com a Reforma, a Contrarreforma e as Guerras Religiosas; e, no século XVII, com a caça às bruxas, a Guerra dos Trinta Anos e a revolução científica?

As evidências apontam em duas direções. Alguns Sábios, nos bastidores, se empenharam em curar e renovar a sociedade. Outros trabalharam para iluminar os indivíduos. Os primeiros se destacaram no rosacrucianismo, no começo do século XVII; os últimos, dos quais nos ocuparemos no próximo artigo, na alquimia e a teosofia.

O “dilema filosofal” de nosso título consiste em optar por um desses dois campos operativos: pelo político ou pelo pessoal. Ou podemos dizer assim: “É possível dar um remédio para o estado da humanidade em seu conjunto, ou seu estado é tão crítico que isso só é possível no plano individual”?

Não é preciso ser muito sábio para que esta pergunta nos perturbe. Respondê-la exige uma sondagem de nossas mais profundas convicções sobre a natureza humana e sobre o lugar que o homem ocupa sobre a terra. Por exemplo, cremos que a vida na Terra é o simples prelúdio de uma vida muito mais importante que começa depois da morte? Se é assim, as condições sociais deste vale de lágrimas são um assunto secundário e, inclusive, uma distração. Cremos, como a maioria dos cristãos, que todos têm uma alma individual e imortal ou, como alguns pagãos, que a imortalidade pessoal só é ganha com titânicos esforços? Existe uma clara diferença entre a existência material e a existência espiritual, ou o corpo e a alma formam parte de um continuum que nossa falsa percepção divide? Devo me preocupar com a humanidade em seu conjunto, ou devo me preocupar com minha própria salvação, deixando o resto nas mãos da Divina Providência? Sou uma unidade à parte, dono de minha própria história espiritual, um estrangeiro ou exilado nesta terra (este é o ponto de vista gnóstico), ou pertenço a uma tribo, uma raça ou uma espécie com uma macro-história de evolução passada e futura?

No século XVI houve na Europa três correntes doutrinais principais, encarregadas de livrar as pessoas do incômodo que essas questões causavam. Os católicos eram aconselhados a deixar pesadas questões teológicas nas mãos da Igreja, como representante da vontade de Deus na Terra, e a viver virtuosamente seguindo seus ensinamentos. Ao contrário, Martinho Lutero sustentava que todos tinham direito de buscar suas próprias respostas, mas que Deus as havia colocado nas Escrituras de maneira inequívoca. Os seguidores de João Calvino se esmeravam em dividir à humanidade em grupos predestinados, integrados pelos salvos e pelos condenados, e confiavam em que sua conduta e sua sorte lhes demonstrassem que se encontravam entre os primeiros. Em meados daquele século, as três facções se odiavam de morte, enquanto os judeus, que aguardavam pacientemente o seu Messias, faziam todo o possível para ficar fora desse fogo cruzado.

Será sempre um mistério como a religião, cujos principais mandamentos são o amor a Deus e o amor ao próximo, chegou a uma situação tão crítica. Não obstante, pode-se achar uma pista nas crenças enxertadas na temática evangélica. Qual o estoico ou platônico ilustrado que pôde, alguma vez, ter levado a sério a doutrina da predestinação ou da transubstanciação, da infalibilidade das Escrituras, ou da compra de indulgências para encurtar nossa estadia no Purgatório? Qual o cristão reflexivo que pôde deixar de duvidar de semelhantes coisas? Jamais ficou mais bem demonstrado o axioma segundo o qual quem não se sente seguro de suas próprias crenças costuma reagir com dogmática agressividade.

A primeira solução grande e contundente do dilema filosófico foi a de Inácio de Loyola, que fundou a Companhia de Jesus em 1540. O método dos jesuítas pegou o touro pelos chifres. No plano pessoal, preparou seus membros com o uso da imaginação ativa (ver o capítulo VIII desta série) para convertê-los em decididos guerreiros defensores de Cristo e da fé católica. A dúvida não tem espaço no final dos Exercícios Espirituais; aquilo que ensinaram o discípulo crer, ele agora sabe, e uma fé irremovível o prepara inclusive para o martírio.

Os jesuítas se propunham, no plano coletivo, a converter o mundo inteiro à fé católica. Devido ao fato de que eram mais inteligentes que algumas outras ordens, compreendiam que era melhor fazer isso com sigilo que com violência e fogueira. Por esse motivo, os jesuítas ensinavam celebrando a glória e variedade do mundo criado por Deus. Apoiando-se na natural curiosidade dos jovens, estimulavam os efeitos teatrais (que são um ramo da imaginação) e as ciências aplicadas. Em tempos de liberalidade religiosa, até os protestantes enviavam seus filhos às escolas dos jesuítas. Os missionários de Inácio, que integraram a primeira organização de caráter mundial, aprenderam os idiomas e as religiões de seus países anfitriões, e logo adaptavam convenientemente suas estratégias para convertê-los. Às vezes quase “chegavam a ser autóctones” à medida que se infiltravam, e seus informes são uma fonte valiosíssima de caráter histórico-etnográfico. Mas sempre dominava a firme vontade de se levar a cabo uma única intenção; e se utilizou isso, dizem os críticos dos jesuítas, para justificar meios duvidosos e sinistros. Também nos perguntamos se tem alguma validade o “conhecimento” obtido mediante os Exercícios Espirituais, ou se é apenas uma fanática sobre estimulação de respostas receitadas para questões eternas.

Apenas podemos comparar a poderosa ordem jesuíta com as combinações caseiras de alguns amigos que lançaram o movimento Rosacruz no segundo decênio do século XVII. Não obstante, os dois tratados, a Fama e a Confissão dos Irmãos da Rosa-Cruz, caíram no fértil solo de uma Europa ávida de alimento espiritual que estivera por cima e além do que as igrejas tinham que oferecer. Assim foi que se criou um novo mito, o de uma irmandade secreta de sábios iniciados que autenticamente desejavam o melhor para a humanidade e que, nos bastidores, trabalhavam para gerá-lo. Eram muitas, e ainda o são, as pessoas que creem nisso.

Os manifestos rosa-cruzes circularam em manuscritos desde 1611 e logo apareceram impressos em 1614 e 1615, seguidos em 1616 por seu complemento, a novela fantástica as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz. Os manifestos tratavam os temas míticos de um viajante que leva para a Europa os ensinamentos secretos do Oriente, da sepultura de seu cadáver e de sua sabedoria, e da abertura de sua abóbada cento e vinte anos depois, a fundação de uma ordem de sábios que, após viajarem incógnitos pelas nações como médicos que curavam o corpo, também se empenharam em curar a alma da Europa; e em anunciar que já era tempo de renascer.

Os escritos rosa cruzes são produto de um meio luterano com influências de Paracelso e da alquimia. Afirmam que os Irmãos obtiveram sua sabedoria de duas fontes: da Bíblia e do Livro da Natureza, e conclamam o mundo a agir da mesma maneira. A hierarquia católica não é considerada e não ligam para a condenação eterna. As Bodas Químicas combina a teosofia cristã com o culto de Vênus como Deusa da Natureza e patrona da alquimia. A epopeia do ressurgimento pagão, a Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco Colona, exerceu forte influência sobre este texto.

A iniciativa rosacruz pertence ao movimento conhecido como Pansofia (literalmente, “sabedoria total”). Combina as ciências naturais com as sobrenaturais, e seu propósito é melhorar o mundo. John Dee foi um dos fundadores da corrente pansófica, e instou os artesãos ingleses a estudar matemática, em prol de um maior domínio da técnica, e logo prosseguiu seus próprios estudos “conversando com os anjos”. Paracelso fez outro tanto, e sua concepção acerca de uma Natureza viva, impulsionada pelas influências celestiais e sensível à alquimia, combinou-se com um sólido conhecimento do herbanário, da química e das Escrituras. Praga foi um campo fértil para a Pansofia; ali o Imperador Rodolfo II (que reinou de 1576 até 1611), permitiu toda a diversidade religiosa e estimulou todas as artes e ciências, especialmente as de caráter Hermético.

A genialidade do grupo rosacruz, deliberada ou não, consistiu em acertar os ingredientes de um mito durável. O paroxismo final das Guerras Religiosas, a Guerra dos Trinta anos (1618-1648), interrompeu esse mito, mas não o extinguiu. Os rosa cruzes podiam se fazer passar nos países protestantes como uma espécie de ordem jesuítica oposta: sem repressões nem dogmas, e acessível aos poderes ocultos que tanto assustavam as Igrejas. Não obstante, a Pansofia também chegou a ser contraria ao que era científico, no sentido de que ofereceu uma opção ante uma ciência que era cada vez mais positivista e materialista.

Um bom exemplo do dilema filosofal é a corrida de Elias Ashmole (1617-1692). Interessado, desde a sua juventude, nas ciências ocultas, especialmente na astrologia, iniciou como advogado e servidor público de futuro. Mas, havendo servido a Carlos I, teve que passar os anos seguintes na obscuridade. Durante quinze anos estudou a fundo as ciências naturais, especialmente alquimia, medicina e botânica; e também tópicos próprios de antiquários: heráldica, genealogia, numismática e história das ordens cavalheirescas. Em 1660, com a ascensão de Carlos II, Ashmole se dispôs novamente a ser um servidor público e se converteu em uma espécie de Mestre de Cerimônias da monarquia. Escreveu uma extensa história da Ordem da Jarreteira, dirigiu seus ritos e exerceu sua autoridade em todo assunto atinente à tradição e à ordem hierárquica.

Ashmole era como um chefe druida ou um Pontifex Maximus, nascido fora de época, sobretudo porque cada decisão sua era regida pela astrologia horária. Seu trabalho constituiu um monumento ao conceito tradicional e hierárquico de uma sociedade ordenada, governada por um rei ungido. Mas longe de ter visão estreita, era também um voraz colecionador de antiguidades e objetos curiosos de todo o mundo, tanto naturais como artísticos. Como o jesuíta Atanásio Kircher, que armou sua coleção etnográfica com a contribuição de missionários, Ashmole foi fundador de um dos primeiros museus. Também foi membro fundador da Sociedade Real. Em conformidade com o ideal pansófico de educação universal, doou suas coleções à Universidade de Oxford, que estariam posteriormente à disposição do público como o Ashmolean Museum.

Os sábios como Ashmole não são necessariamente piedosos ou santos, nem compartilham sempre dos ideais morais e igualitários correntes. Não se trata de quem tem razão ou não: fazem o que têm que fazer, porque veem com mais claridade e profundidade que o resto de nós. E talvez sirvam a deuses distintos dos nossos.

No século XVIII apareceu uma nova ordem Rosacruz. O primeiro que a descreveu foi “Sincerus Renatus” (Samuel Richter) em 1710, ficando institucionalizada em meados daquele século. Diferentemente da original, esta “Ordem da Rosa-Cruz de Ouro” era totalmente pública, e alguns de seus membros, encabeçados pelo Rei Frederico Guilherme II, da Prússia, exerciam efetivamente o poder. Da mesma forma que os demais “déspotas ilustrados” de seu tempo, viram com bons olhos a liberdade religiosa e algumas liberdades civis para as massas. Quanto aos seus próprios membros, a ordem empregava um detalhado sistema de rituais, graus, títulos e símbolos com os quais ascendiam os degraus da iniciação. A alquimia e, inclusive, uma sorte de evocação mágica despertavam muito interesse.

O novo rosacrucianismo abandonou suas polêmicas com o papa e sua igreja, que haviam sido características na Confissão original e, com o espírito do novo século, abriu suas portas tanto aos católicos como aos protestantes de diversas denominações. Manobrando entre os riachos gêmeos da religião sectária e o cientificismo, evitou a rivalidade existente entre ambos que, segundo a limitada descrição dos historiadores, caracterizou o Século das Luzes.

A Rosa-Cruz de Ouro estava estreitamente conectada com o ala mais hierárquica e cerimonial da Franco-Maçonaria, cuja história também ilustra nosso tema. Sabe-se que Elias Ashmole foi o primeiro iniciado em uma loja maçônica como membro não-operativo que se tem noticia. Isto ocorreu em 1646. Não parece difícil entender por que essa loja o atraiu. Segundo a lenda, tal como estudos recentes tendem a confirmar, quando a ordem dos cavaleiros Templários foi suprimida, e seu Grão Mestre, Jaques de Molay morreu, em 1307, na fogueira, alguns cavaleiros fugiram a Escócia e conservaram ali viva, secretamente, a tradição dos Templários. Naturalmente, tiveram que interromper o trabalho público que os havia convertido nos primeiros banqueiros internacionais e que assegurava que quem peregrinasse para a Terra Santa chegaria sãos e salvos. Por uma compreensível afinidade, se aliaram com a corporação escocesa de maçons e arquitetos, cujos mitológicos ofícios remontavam ao mais famoso de todos os edifícios da antiguidade, o Templo de Salomão. A corporação utilizou lendas sobre o templo e seus construtores para seus ritos iniciáticos e como recurso alegoricamente moralizador. Por exemplo, comparavam ao ser humano com uma pedra bruta e sem forma, recém-tirada da pedreira, a qual devia ser entalhada, modelada e polida para ser digna de ocupar seu lugar no edifício terminado. Implicitamente, a sociedade é um templo em processo de edificação.

As três iniciações, de Aprendiz, Companheiro e Mestre são, na Franco-Maçonaria tradicional, ritos quase sacramentais que produzem uma transformação na pessoa. Operam não só mediante alegorias (que consiste em substituir os nomes das coisas), mas também mediante símbolos. Um símbolo não tem significado único, como a Estátua da Liberdade: tem múltiplos significados e serve de elo entre os planos da realidade. Por exemplo, o piso com os quadrados brancos e negros do tabuleiro de damas, utilizado em alguns rituais maçônicos, não só significa a mistura do bem e do mal no mundo, mas também as duas forças complementares com as quais o cosmos foi criado. Estas forças se manifestam como a expansão e a contração, o dia e a noite, o homem e a mulher, e muitos mais pares de opostos. Conseguir compreender isso efetivamente é chegar a entender como o “Grande Arquiteto do Universo” opera desde o topo até o fundo de sua criação. Isso encerra também um profundo ensinamento sobre o bem e o mal.

Junto às ordens iniciáticas e hierárquicas, se desenvolveu outra espécie de Franco-Maçonaria, em compasso com as correntes secularizantes, progressistas, otimistas e igualitaristas. Para este modo de pensar, cujas raízes não reconhecidas se achavam nos Evangelhos, os obstáculos à fraternidade universal eram uma Igreja que ainda queria se aferrar a seu poder temporal, e as monarquias absolutistas. Algumas lojas, devido a sua reserva, sigilo e vastas ramificações, foram caldo de cultivo de livres-pensadores e, posteriormente, naquele mesmo século, de revolucionários. Por esta razão, periodicamente eram fechadas e proibidas pela lei, tal como ocorreu com os jesuítas. Ambos os movimentos representavam um fanatismo intolerável para quem procurava manter a sociedade em um frágil equilíbrio.

No início do século XIX, o ala socialmente progressista da Franco-Maçonaria havia substituído a ala iniciática e hierárquica, o que gerou várias ordens mágicas e maçônicas marginais. Por conseguinte, na atualidade, rosa cruzes e franco-maçons trocaram virtualmente suas posturas originais. Enquanto os rosa cruzes de 1614 queriam renovar o mundo, os grupos modernos que navegam nominalmente sob sua bandeira não têm repercussão social, mas brindam os indivíduos, por meio do ocultismo, de ensinamentos e práticas de aprimoramento pessoal. Enquanto a primitiva Franco-Maçonaria foi cavalheiresca e iniciática, agora é secular e filantrópica, sem perspectiva de transformação pessoal que vá além do plano ético. Sua influência, nos Estados Unidos de América, se acha diluída entre muitas outras fraternidades cujo conteúdo tradicional é ainda menor. Em resumo, os filósofos que deveriam se ver obrigados a nos reger ou, pelo menos, a ser o poder por trás do trono, fizeram suas malas e partiram.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – X – Os Novos Deuses

Imagem relacionadaApollo and Daphne, Nicolas Poussin, 1625

X

Os Novos Deuses

No final do século XIII, a tentativa de impor uma civilização cristã na Europa estava consumada. As catedrais góticas e as igrejas irradiavam sua influência sobre cada comunidade, grande ou pequena. As ordens mendicantes como os franciscanos não só pregavam o Evangelho, mas passavam sua vida compartilhando a pobreza de seus mais humildes ouvintes. As universidades floresciam com um plano de estudos realizado sobre as Sete Artes Liberais (Gramática, Lógica, Retórica, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) coroado pela Teologia. Os cultos aos santos e às suas relíquias, com peregrinações aos seus santuários, eram fruto de interminável variedade e interesse, e de um reconhecimento para com os espíritos do lugar. Uma crescente devoção pela Virgem Maria oferecia um enfoque feminino para o amor e a oração que até então era ausente no monoteísmo. Poucas pessoas na Europa tinham alguma dúvida acerca da existência do Céu, do Purgatório e do Inferno e de como ir a parar em cada um desses lugares.

No passado, sistemas comparáveis de crenças e controle social perduraram por milhares de anos, como testemunham as civilizações da China, Egito, Peru e as da Europa dos construtores megalíticos. Em todos os casos conhecidos a hierarquia estava encabeçada por um rei sagrado, a quem os seletos membros serviam de ordem administrativa. Eles possuíam conhecimentos científicos e cosmológicos que incorporaram nos monumentos de pedra e, sem dúvida, em outras formas mais efêmeras. A vida das massas estava estruturada com base em rituais e obrigações religiosas, que se transformavam, gradual e insensivelmente, na lei e ordem secular.

Assim era na Idade Média. Idealmente, o Sacro Imperador Romano era o rei sagrado cuja autoridade era respeitada por todos os governantes regionais. A hierarquia da igreja, ajudada pelas ordens monásticas, proporcionou o aparato administrativo. Mas, diferentemente das velhas teocracias, nem bem este edifício havia sido concluído, rachaduras começaram a aparecer em sua estrutura. Claro que há indivíduos aos quais pode se atribuir culpa pela autodestruição da civilização cristã. Mas, fazendo uma retrospectiva, parece impossível perceber valores eternos em uma idade que alguns designam com o termo hindu Kali Yuga ou, segundo o esquema cíclico grego, Idade de Ferro. Nada parece durar por muito tempo.

O século XIV começou sua triste história de decadência com a dissolução brutal da Ordem dos Cavaleiros do Templo, e a terminou com a rivalidade entre dois papas. Logo viria o cisma final entre as igrejas Católica e Ortodoxa, depois a Reforma e a Contrarreforma, as Guerras Religiosas, o chamado Iluminismo e o desconsolador e desalmado estado conhecido como a Modernidade. Mas essa história não é a que nos interessa. Estamos procurando traçar a influência daqueles que sempre zelaram pelo estado espiritual de nossa civilização, e não os encontraremos de um lado ou de outro dessas disputas.

As imagens, os símbolos, mitos e arquétipos são o que verdadeiramente designam uma cultura, mais que a teologia e a fé em coisas invisíveis. Na Idade Média, estes coincidiram; no Renascimento, se separaram, e os séculos XV e XVI viram uma troca de revolucionárias dimensões no imaginário europeu. As imagens cristãs não desapareceram, mas acoplaram a elas um grupo de imagens rivais, renascidas da antiguidade greco-romana, com as quais conviviam de má-vontade.

Uma vez, na Siena medieval tardia, uma estátua romana de Vênus foi desenterrada. Isto aconteceu em 1345, em uma época na qual o nu não era utilizado gratuitamente na arte, mas só quando o realismo requeria, como nas representações de Adão e Eva. A estátua, exemplo do cânone clássico de beleza, foi montada sobre um pedestal na praça e foi admirada pelo povo. Mas os dois anos que se seguiram, foram cheios de catástrofes para a cidade. Temendo que sua idolatria houvesse ofendido a Deus e à Virgem, os piedosos sieneses baixaram a sua Vênus e a desfizeram em pequenos pedaços, que enterraram. Este instrutivo relato, contado por Titus Burckhardt em seu livro sobre Siena, ilustra a natureza ambígua das imagens do mundo pagão: eram tremendamente atrativas, mas traziam consigo um sopro de enxofre. Havia uma forte tradição teológica de que os deuses pagãos eram apenas os demônios caídos do bando de Satã, que haviam se divertido antes da vinda de Cristo inventando falsas religiões para ludibriar a humanidade.

No século seguinte o perigo foi esquecido. A adulação à Antiguidade se difundiu por todas as partes e os modelos greco-romanos foram ansiosamente imitados por escultores, pintores, arquitetos, poetas, dramaturgos e filósofos. Mas estes artistas não pararam de produzir obras sobre temas sagrados, como sabe qualquer um que já se aborreceu com as intermináveis virgens com seu menino dos museus de arte italianos. Não obstante, uma crescente moda na vida secular, que começou com as artes decorativas e se estendeu à escultura e arquitetura, favoreceria os temas clássicos. Logo, eles se tornaram a norma, junto com a educação em latim e grego, preferida pelos humanistas. As casas da aristocracia foram adornadas rapidamente com a iconografia da Metamorfose de Ovídio e da Eneida de Virgílio, com deuses e deusas pagãos, e, coisa que não carece de significado, com figuras desnudas.

Imagine-se a diferença entre passar os impressionáveis anos da infância vendo a iconografia da igreja e os Livros de Horas, e crescer entre paredes pintadas com os Amores de Júpiter e os Trabalhos de Hércules! Não importava que os mitos clássicos fossem conhecidos como pura ficção e suas divindades consideradas, no melhor dos casos, como alegóricas: as imagens eram poderosas e memoráveis. Uma razão para isso é que, pela primeira vez em muitos séculos, o erotismo havia se tornado um tema aceitável para as artes visuais. Isso continuaria assim através da hipocrisia puritana do século XIX, quando os temas clássicos serviram de pretexto para que os artistas pudessem continuar, sem ser molestados, com sua prática favorita de retratar corpos sensuais desnudos.

Ainda que a imaginação cristã e pagã coabitassem nas oficinas dos artistas, destinadas, respectivamente, ao uso sagrado e ao secular, os usuários devem ter percebido sua incompatibilidade. Alimentada principalmente na mente inconsciente, esta incompatibilidade explodiu em fervor religioso, fanatismo e conflito, como se as verdadeiras crenças das pessoas tivessem que ser protegidas a todo custo. E, verdadeiramente, os valores cristãos estavam sob fogo, pois poucos (e menos ainda os papas e cardeais do Renascimento) escolheriam voluntariamente o caráter abnegado dos Evangelhos em detrimento das coloridas e heroicas virtudes de Hércules, Enéas e dos romanos históricos.

Se o Renascimento constituiu um avanço ou retrocesso em comparação com a era medieval é uma pergunta à qual se pode responder segundo o gosto pessoal e os dogmas de cada um. A escola tradicionalista (Guénon, Coomaraswamy, Schuom, Burckhardt, etc.)[1] viu o Renascimento, com todas as suas glórias, como o princípio do fim da civilização europeia, devido o abandono aos princípios sagrados. Seguramente, para os camponeses, trabalhadores de ofício e serventes, que constituíam a maioria da população da Europa, o colapso da síntese medieval foi o primeiro passo da sua degradação, desde os seres humanos com a esperança do céu, ao proletariado urbano e, finalmente, aos consumidores.

Isso basta quanto aos efeitos exotéricos dos novos deuses. No campo esotérico, tiveram um efeito igualmente revolucionário.

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No segundo artigo, já citado, intitulado “Zoroastro”, mencionava Jorge Gemistos Pleton, enviado de Mistra ao Concílio de Florença em 1438-39, e sua noção de uma antiga teologia ensinada por uma cadeia de iniciados pré-cristãos. Entre os presentes de Pleton aos florentinos, segundo D. P. Walker, estava o canto dos hinos Órficos às divindades clássicas. Com isso, Pleton plantou a semente que Marcílio Ficino, tradutor das obras de Platão, Plotino e Hermes Trismegisto, cultivou com um efeito espetacular na tradição mágica europeia.

A magia de Ficino foi acrescentada a uma tradição existente de magia medieval que, por sua vez, havia derivado de origens árabes, tais como o famoso manual de evocação dos espíritos chamado Picatrix. A ideia fundamental era a doutrina das correspondências, que ensina que tudo no universo corresponde a outras coisas em níveis mais altos ou mais baixos de ser. Assim, por exemplo, o corpo humano corresponde às doze constelações do zodíaco, que regem seus doze órgãos principais. Os sete planetas têm sua correspondência no reino mineral como os sete metais, enquanto que no reino vegetal são regidos por distintas plantas e assim sucessivamente. O princípio da magia natural consiste em que, manipulando algo em um determinado nível, são atraídas as influências daquilo que lhe é correspondente em outro nível. Dessa maneira, para dar um exemplo simples, usar um anel de ouro atrai as nobres qualidades do Sol, enquanto que uma pulseira de cobre atrai as influências amáveis de Vênus.

As fontes árabes também falavam da magia operada através de agentes conscientes, anjos ou demônios, cujas categorias são ordenadas segundo as leis de correspondência e aos quais se pode dar ordens mediante o ritual apropriado. Mas os perigos de negociar com demônios (que poderiam até assumir a personalidade de anjos) faziam desta uma atividade igualmente arriscada tanto para cristãos quanto para muçulmanos.

A afluência da antiga literatura filosófica e da sabedoria grega expandiu muito estes horizontes. Para Ficino, que não era um ingênuo diletante, os tratados herméticos e os escritos de Plotino esclareciam muitas coisas obscuras, como o mecanismo pelo qual a magia natural funciona. Uma vez mais, a chave era a imaginação. Era a energia imaginativa que abria a conexão entre um nível e outro, e quanto mais forte atuasse, mais certeiros seriam os resultados. O combustível com o qual funcionava era Eros (o amor ou o desejo), e a substância na qual seria impresso era o Spiritus, ou espírito sutil que penetra em todo o universo material.

Baseando-se nestes princípios, Ficino desenvolveu um tipo de magia planetária na qual o mago se rodeava de cores, olores, substâncias e música do tipo correspondente ao planeta cujas influências desejava atrair. Estes captariam as influências através de suas próprias correspondências e o ajudariam na concentração intensa de sua vontade e imaginação. Um ponto de discussão entre os magos do Renascimento era se o planeta deveria ser concebido como um objeto puramente natural, ou como um ser animado, provavelmente um anjo.

Poderia suscitar-se a questão de que, se o desejo da pessoa é lícito, por que não simplesmente rezar a Deus ou aos santos para isso? Executar uma operação mágica parece, para o crente conservador, um insulto à eficácia da oração e à Sabedoria de Deus, que pode atendê-lo ou não. O mago poderia argumentar que a magia é simplesmente uma operação no mundo natural, que opera com o conhecimento especializado da criação de Deus e que, portanto, não é mais ímpia que a agricultura. Além de tudo, os agricultores não seguem a recomendação de Cristo: “Não penseis no amanhã”, mas dependem de seu conhecimento das leis da Natureza e atuam em conformidade com elas. Mesmo quando o mago se dirige a um espírito ou anjo, isso é pior que fazer uma oração comum para um santo?

Como no caso da síntese medieval (ver artigo “As Artes da Imaginação”) a nova imaginação pagã do Renascimento operava em dois níveis, o exotérico e o esotérico. Os novos palácios e jardins, pinturas, esculturas, objetos decorativos, gravuras e livros, que eram a antítese das catedrais góticas e a arte cristã medieval, estavam sob domínio público. Ninguém podia evitar a influência do novo ambiente imaginal, e poucos queriam fazê-lo, já que abria os sentidos ao Eros da beleza terrena. Inadvertidamente, os europeus se tornavam platônicos: enquanto a corrente cristã principal desdenhava a beleza natural e a atração erótica, a filosofia de Platão as abraçava, como o primeiro sinal das asas sobre as quais a alma se elevaria, eventualmente, ao conhecimento da beleza intelectual.

Nos círculos mais esotéricos dos humanistas muito educados era igualmente impossível evitar a sedução da filosofia clássica e o desafio inerente que isso apresentava para a visão cristã do mundo. A linhagem de sábios pagãos de Pleton, adotada por Ficino e pelos humanistas florentinos, abriu uma visão do passado mais distante que era muito diferente do estreito sectarismo do Velho Testamento. Os egípcios, babilônios, persas, gregos e romanos já não eram classificados como gentios, fora do rebanho dos eleitos, mas como filhos de Deus, cada um dotado da sabedoria apropriada a seu tempo e lugar. Os recém-descobertos textos clássicos podiam ser explorados para fins de instrução e não apenas por curiosidade e para aprimorar o uso do latim e do grego.

Os habitantes das velhas cidades europeias ainda vivem no meio da evidência dessa imaginação dual; a catedral gótica e as igrejas de um lado, e os palácios do Renascimento com sua iconografia contrária, do outro. É uma rica – muito rica – combinação, mesclando duas visões de mundo que, com todos os esforços bem intencionados para reconciliá-las, continuam sendo um enigma sem solução na história da consciência. Moisés e Homero; César e Cristo; gostemos ou não, estas são as raízes gêmeas de nossa herança espiritual.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Nota

[1] – Nota do tradutor. O autor se expressa desta maneira de acordo com a fachada da escola “tradicionalista” manipulada por Schuon e seus seguidores. Este erro é comum nos Estados Unidos e, em geral, na língua inglesa. Assim também em Alan Watts: ver o prefácio de A arte de Ser Deus, e outros autores. Ver igualmente SYMBOLOS Nº 11-12, 1996, págs. 253 e ss. Guénon, segundo seus próprios termos, se negou a ter discípulos e recusou a paternidade de qualquer escola.

Anais do Colégio Invisível – IX – A Tradição Platônica

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IX

A Tradição Platônica

Espera-se que a visão de um cosmos ordenado em hierarquias e unido por amor esteja perto da realidade das coisas. Na revista Lapis Nº 3, David Fideler descreveu a mecânica espiritual de tal universo e sua celebração na arte do Renascimento. Essa visão é a essência da tradição platônica. Como veremos, provê tanto de uma estrutura metafísica para a filosofia, como de pautas para uma vida cívica e pessoal.

A metafísica platônica tem como premissa a existência de um “mundo de Formas” que é a matriz de onde surge o mundo material. Estas Formas, longe de serem imaginárias, são mais reais do que aquilo que a maioria das pessoas toma, equivocadamente, por realidade. Poderíamos chamá-las de arquétipos: trata-se de coisas como a Unidade, a Justiça, a Bondade e a Beleza, que vemos debilmente refletidas no que conhecemos dessas qualidades.

Conforme foi se desenvolvendo a tradição platônica, as Formas foram identificadas com os deuses e deusas da religião pagã. Para os neoplatônicos, os seres pessoais que as pessoas adoram são na realidade as Formas com as quais sentem um parentesco natural. Entre estes e a matéria se estende uma cadeia de seres intermediários – semideuses, espíritos, etc. – que também participam de Formas causais e têm um papel no governo do mundo. O cosmos inteiro é uma hierarquia, suspensa de modo piramidal do Uno e suas emanações arquetípicas.

Como sabemos isso? Outro princípio platônico é que o semelhante é conhecido pelo semelhante. Para conhecer a matéria deve-se ter um corpo físico. Para conhecer as coisas imateriais, deve-se ter uma alma. Para conhecer as Formas, deve-se ter um intelecto superior que seja semelhante a elas. Assim, o indivíduo é um microcosmos do todo.

Mas, na maioria de nós, estes órgãos de Conhecimento não estão totalmente desenvolvidos. A maior parte do que conhecemos nos chega através dos sentidos e é distorcida por nossas opiniões; assim, só temos uma vaga noção do que é. O conhecimento superior e mais exato começa com a mente, e continua até o ponto de ter uma percepção direta das Formas através do intelecto impessoal. Quem empreende esta viagem de desenvolvimento pessoal é um filósofo: “um amante da Sabedoria”.

O Mito da Caverna de Platão (República, Livro 7) descreve o que acontece com as pessoas que têm êxito no desenvolvimento destes graus superiores de percepção. Os seres humanos se parecem aos prisioneiros em uma caverna, forçados a ficar sentados olhando um muro.  Por trás deles estão os operadores do sistema da caverna, que utilizam a luz de uma fogueira e figuras recortáveis para projetar um jogo de sombras sobre a parede, que os prisioneiros vêm com apaixonado interesse, já que é tudo o que conhecem. É tal qual uma exibição cinematográfica. De repente, um prisioneiro vira a cabeça, e vê para sua surpresa que o jogo de sombras não é de verdade, mas apenas criado pelos operadores. Consegue escapar dos grilhões que o prendem  e descobre o caminho para o exterior da caverna, onde fica encantado por estar em um mundo infinitamente mais maravilhoso que o que conhecia. Aqui se encontra com os originais do jogo de sombras: pessoas reais, árvores, montanhas, estrelas, etc. Em toda sua gloriosa forma e cor. O filósofo, – pois é isso que ele é agora – sente compaixão por seus velhos amigos, ainda trancafiados na caverna, e anseia dissipar sua ilusão. Regressa para contar a eles sua descoberta. Mas, longe de lhe dar as boas-vindas, soltarem-se e escaparem para o mundo real, recebem sua informação com incredulidade, chacotas e ódio. Não podem suportar que alguém pretenda saber mais que eles.

Foi isso que descobriu Sócrates, mestre de Platão, quando um jurado ateniense o condenou a morrer envenenado com cicuta, em 399 a. C.; e a filósofa Hipátia, quando São Cirilo, bispo de Alexandria, incitou uma turba a esquartejá-la, em 415. Estes mártires marcam o ocaso e a longa decadência da tradição original platônica. Quando a Academia de Platão foi fechada pelo Imperador Justiniano em 529, havia durado mais que qualquer instituição educacional conhecida.

Os últimos filósofos da Academia Ateniense encontraram refúgio na corte da Pérsia. Dali em adiante a tradição platônica teve uma existência subterrânea. Ainda que em sua forma original o platonismo seja incompatível com qualquer das três religiões abraâmicas, sagazes adaptadores tiveram êxito adicionando seus elementos a cada uma delas, dando origem à Cabala, à teosofia cristã e ao sufismo. Este estado de coisas é responsável pelo termo “Colégio Invisível”, cujos lapsos ocasionais na visibilidade nos aparecem como outras tantas descidas para dentro da caverna, por parte de uma escassa, mas ininterrupta, cadeia de filósofos.

Sócrates deu a conhecer a Platão e a outros jovens atenienses a noção subversiva de questionar crenças e opiniões aceitas. Usava uma indagatória racional, não tanto para chegar à verdade – isso seria pedir demais – mas para dissipar a ilusão. Ensinou aos seus estudantes, e forçou seus oponentes, a admitir sua ignorância, como prelúdio necessário à aquisição do conhecimento. Este é o resultado do famoso “método Socrático”. Mas quando Sócrates queria fazer uma exposição positiva de suas próprias convicções, não usava a dialética, mas o mito. O mito é um relato que personifica uma verdade superior utilizando símbolos para inflamar a imaginação e despertar a memória. Toda aprendizagem, para Sócrates e Platão, é simplesmente a lembrança do que nossas almas alguma vez souberam, mas esqueceram. Nós todos viemos de fora da caverna.

Uma filosofia prática segue imediatamente este sistema. Seu princípio deve ser a separação da alma do mundo material e sua reinstalação em seu próprio domínio. Mas ninguém embarcaria nessa difícil e frustrante viagem se não fosse induzido a ele por um irresistível desejo. O elemento erótico é uma parte essencial da educação platônica: tal como o amante é atraído para o amado, a alma é atraída para as Formas da Beleza e o Bem. O desejo carnal é o primeiro passo na escada de ascensão através de um cosmos saturado de desejo em cada uma de suas partes. Cada ser nele, começando pelo Uno, emana o estado seguinte de ser, amando-o como seu próprio filho e sendo amado por sua vez. Mas uma hierarquia sem amor se torna tirania, seja na pessoa, a família ou o estado.

Assim chegamos à irritante questão da política platônica. Hoje em dia Platão e Sócrates têm má fama por causa de suas opiniões antidemocráticas. Mas pelo menos podemos tentar entender porque não podiam pensar de outra maneira. Sua última realidade consistia no Uno e suas Formas emanadas (ou deuses) que dão existência e configuração a todo o  resto na longa cadeia descendente do ser. Eles pensavam que a sociedade humana devia ser um espelho disso. Deve haver um Uno – o monarca – e deve haver Formas – as leis e seus executores. Mas se a hierarquia política funciona, o monarca deve emular a Sabedoria do modelo, a sociedade deve estar tão ordenada como as estrelas em seu curso e os níveis da sociedade devem estar unidos por amor. Isso aconteceu alguma vez?

Não claramente. Uma razão é que a prescrição necessária nunca foi seguida: que os reis devem ser filósofos, e os filósofos, em conseqüência, devem ser reis. Platão preparou Dionísio, futuro rei de Siracusa na Sicília, para esse papel, e fracassou quando o jovem escapou de seu controle moral. O império Romano foi mais afortunado com seus imperadores filósofos Adriano, Marco Aurélio e Juliano. Mas um império é uma entidade grande demais para uma reforma platônica; a escala apropriada é aquela da cidade–estado. Na Florença do século XV, Cósimo de Medici e sua família se converteram gradualmente de banqueiros em filósofos sob a tutela de Gemistos Pleton e Marcílio Ficino, com magníficos resultados para as artes, mas com pouca vantagem para o povo.

Em Weimar, onde Johann Wolfgang von Goethe chegou a ser conselheiro e amigo do duque Carlos Gustavo (que governou de 1775 a 1828), pode-se dizer que um filósofo estava conduzindo, se não governando, o estado. Este e outros “absolutismos iluminados” do século XVIII e do princípio do XIX se aproximaram do ideal platônico como nenhum até então. Mas nunca foram o suficientemente próximos.

A política platônica é antidemocrática porque, como a ordem cósmica, é regida de cima e não de baixo para benefício de todos. O verdadeiro conhecimento pertence ao filósofo, não às pessoas que nunca estiveram fora da caverna e que ainda estão escravizadas pelos seus sentidos e opiniões. Só o filósofo pode saber o que é melhor para o corpo político, pois só ele viu as coisas tal como são.

Afirmações como estas soam hoje tremendas e vazias. Há duas boas razões. A primeira porque vivemos 2.400 anos depois de Platão, em uma época de cinismo e cansaço do mundo, e não se teve notícia de qualquer sinal de um filósofo-rei. A própria filosofia ganhou uma má reputação depois que degenerou do “amor pela sabedoria” em escolas competitivas de pensamento, e, finalmente, em uma série de poses intelectuais de moda. No que se refere aos frutos da Sabedoria superior, vimos suficientes pessoas “espiritualmente avançadas” com evidentes pés-de-barro, e sabemos que eles também estão sujeitos, como o resto de nós, ao poder, ao dinheiro, ao sexo e ao medo. Imaginá-los dentro da política é uma perspectiva aterradora. Desconfiamos dos fascismos, e a república platônica, com seus marciais guardiães e rígidos controles, parece fascista. A democracia nos convenceu de que nós mesmos sabemos o que é melhor para o corpo político, e temos o direito de eleger líderes que executem nossas preferências.

Estas são algumas das bases da rejeição instintiva ao ideal político platônico – não obstante também estas bases estejam sujeitas à crítica. A segunda razão principal vem do cristianismo, que começou sendo anti–hierárquico e socialmente nivelador. O Jesus do Evangelho de Lucas, por exemplo, está sempre dando preferência àqueles que se acham no mais baixo da pirâmide (mulheres, leprosos, pobres, samaritanos, etc.) e prometendo uma inversão do status no Reino dos Céus. Isso está de acordo com a doutrina já mencionada, essencial à filosofia platônica: que todo homem e mulher é um microcosmos que não tem só um corpo mas também um alma imortal e a potencialidade de conhecer a Deus, ou ao Uno. Comparadas com esta herança comum, as distinções terrestres são irrelevantes e fundamentalmente injustas. Cada qual é filho de Deus, e portanto com igual direito a ter voz na comunidade.

Infelizmente, a democracia não funcionou dessa forma. Todos podemos ser filhos de Deus, mas a maior parte desses filhos é muito jovem e têm muito a aprender antes que possamos lhes confiar, sem risco, os perigosos “brinquedos” do governo. Rapidamente, e com as melhores intenções, elegerão um tirano que mande neles. Isso pode ser que não esteja óbvio no ocidente, a menos que se compreenda que os líderes eleitos não representam as pessoas que votaram neles, mas seus patrocinadores, que fazem o possível, através da propaganda, para que eles sejam eleitos. Os tiranos não são nossos bem intencionados candidatos presidenciais, mas as corporações multinacionais, os grupos de pressão com seus interesses particulares, as indústrias militares, de construção e de medicamentos, os banqueiros e especuladores, etc. Nenhuma dose de democracia cura a sociedade de tumores tão firmemente enraizados.

Estes são os operadores do sistema ilusório da caverna dos dias de hoje. É seu interesse manter uma maioria moderadamente próspera, satisfeita e muda. O espetáculo que é montado é na verdade uma bomba demolidora, que é suficiente para manter as mentes das pessoas totalmente ocupadas. Sob estas circunstâncias, é tolo esperar que a caverna seja conduzida segundo as linhas da República platônica, ou do Reino dos Céus. Estes são modelos que existem no mundo dos arquétipos, não na Terra. Mas não é necessário ser um grande Sábio ou místico para ter vislumbrado o mundo fora da caverna. O sérvio que verdadeiramente não odeia os bósnios e os croatas esteve lá: viu a Forma de sua humanidade comum. Também já o vislumbrou a pessoa que desliga a televisão enfastiado, rechaçando as imagens nas quais seus semelhantes são viciados. Algo foi avivado na memória que, ainda que se encontre profundamente enterrado, pode responder à verdade. Sim, sabemos algo disso, ou não estaríamos lendo este artigo se não soubéssemos. Estamos a caminho para a liberdade e temos o potencial de levar outros conosco, um por um.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – VIII – As Artes da Imaginação

Techo de la Sala Capitular en la Catedral de York

VIII

As Artes da Imaginação

Como você faria para construir uma catedral em uma sociedade sem papel e amplamente ignorante? Os arquitetos modernos, certamente, desenhariam diagramas em escala e trabalhariam cada detalhe no papel para transmitir suas intenções ao construtor. Mas, em tempos antigos, todo o planejamento, desde a engenharia básica até os motivos decorativos, tinha que ser feito internamente, na mente do arquiteto. O “segredo maçônico” do arquiteto da antiguidade era que estava treinado para construir um edifício inteiro em sua imaginação, para que, uma vez começado o trabalho no local, pudesse dar instruções a cada ponto. Ao referir-se ao patrono guardado em sua memória, o arquiteto podia dizer-lhe a seus obreiros como devia ser cortada e colocada cada pedra.

Uma investigação inédita da Dra. Marsha Keith Schuchard, revelou as assombrosas conexões dos arquitetos da antiguidade com dois sistemas de trabalho mental, a meditação Cabalística e a Arte da Memória. Numa análise retrospectiva, faz todo sentido que os arquitetos da antiguidade tivessem desenvolvido a técnica da imaginação ativa muito mais do que somos capazes hoje. Também, dado que os antigos arquitetos, desde Stonehenge até Chartres, se ocupavam primordialmente de construções sagradas, é certo que suas imaginações estavam cheias de mitos e símbolos religiosos. A construção mental de templos e igrejas era inseparável da meditação no significado desses mitos, enquanto que o esforço intenso da imaginação podia facilmente passar a ser uma experiência visionária.

Os séculos XII e XIII que viram o surgimento das catedrais no ocidente cristão também foram anos dourados para os cabalistas e sufis. A prática da imaginação ativa é a essência da Cabala, na qual o manejo mental de letras, números, e formas geométricas em duas e três dimensões supostamente leva à compreensão do plano criativo de Deus. Esse entendimento pode eventualmente levar ao cabalista à convicção de conhecer Deus. As mesmas técnicas eram praticadas pelos sufis, como foi mencionado no segundo artigo desta série (“Zoroastro”).

A Arte da Memória, conhecida pelos antigos, estava relacionada a estas práticas meditativas, mas era especificamente arquitetônica: sua técnica básica era imaginar uma construção, na qual as imagens simbólicas das coisas a recordar seriam postas, consecutivamente, nas paredes e nos aposentos. Na Idade Média do cristianismo ocidental, foram os judeus e os islâmicos, amiúde vivendo pacificamente lado a lado, que cultivaram tais técnicas e as artes a elas associadas: as matemáticas, a arquitetura e a engenharia. Elas passaram, com o tempo, ao mundo cristão e vieram a formar parte dos ensinamentos secretos das guildas de maçons, cujas imagens revelam suas origens por serem tiradas exclusivamente do velho Testamento.

A tradição esotérica ocidental sempre enfatizou o uso da imaginação como o meio primordial de acesso aos mundos superiores. Todas as escolas esotéricas, até onde eu sei, instruem seus alunos na visualização e imaginação criativa. Os sentidos internos podem ser fortalecidos, da mesma forma que os músculos de um atleta ou a destreza de um músico são desenvolvidos através do treinamento. O tempo, o esforço e a dedicação que se requer são comparáveis, nos três casos, da mesma forma que a necessidade de uma predisposição genética.

Aqui, nosso interesse é em ambos os usos da imaginação: o esotérico como veículo para entrar nos mundos internos, e o exotérico, para a educação e a doutrinação. Há várias maneiras de estimular a imaginação, incluindo o jejum, a privação do sono e uma ampla série de drogas. A meta é superar sua usual imprecisão e aspecto confuso e conseguir um grau de clareza e realidade que rivalize com o estado de vigília.

Os monges irlandeses medievais foram dos primeiros e mais entusiastas exploradores do reino visionário, ao qual experimentaram de um modo semi-cristianizado ainda devido às tradições pagãs de sua terra. Era “outro mundo” bem definido, com suas próprias marcas (landmarks) e habitantes, incluindo as fadas e duendes, que encontraram seu lugar na cosmologia cristã como anjos caídos. Usualmente se chega ao Outro Mundo depois de uma viagem imaginária por mar para o Ocidente. Está tão cheio de aventuras quanto a própria Irlanda, porém mais cheio de santidade, onde o viajante amiúde se encontra com espíritos não caídos vivendo em jardins edênicos onde são celebrados uma liturgia de canto e uma dança sagrada. Tudo nesse mundo é mais cristalino, as frutas mais deliciosas, os animais e os pássaros mais mansos e dotados da fala.

Naturalmente as viagens irlandesas seriam hoje fantasias ou ficções, e culminam como todas as “viagens da alma” medievais: a Divina Comédia de Dante. A erudição racional não conhece nenhum intermediário entre fato e ficção, e já que essas ilhas ocidentais, e muito menos o Inferno, o Purgatório e o Paraíso não existem, o que ali acontece tem que ter sido inventado. Mas os eruditos racionais em geral ignoram o funcionamento da mente criativa. Não conhecem esses êxtases nos quais o poeta contempla “formas mais reais que o homem vivente” que logo trata de captar em verso. Se os conhecessem, as chamariam de alucinações.

O treinamento dos Cabalistas e Sufis, sujeito como o estava a suas convicções religiosas e aos ensinamentos de seus livros sagrados, conduzia o viajante imaginativo a encontrar um mundo com uma topografia e população definidas. Obviamente, as versões judaica e muçulmana diferiam, salvo, talvez, no terreno em que os anjos e seus céus davam indícios da presença de Yahveh, ou Alhah. Mas as duas eram consequentes. O propósito de visitar essas regiões por meio da meditação era a purificação da alma através da experiência dos mundos superiores, não a indulgência na Disneylândia astral, familiar aos consumidores de alucinógenos. Os devotos esperavam se encontrar com a confirmação de sua fé, a qual, na maioria das vezes, conseguiam. Se seus relatos eram copiados e circulavam, era para alentar a outros e fortalecer toda a trama. Só surgia a torpeza quando a sublimidade da experiência tornava os viajantes insubordinados ao dogma exotérico e, voltando à Terra, emitiam opiniões heréticas. Por arrebatamentos assim os sufis Al-Achaj e Sohrawardi foram executados.

Certamente, Dante não descreve um cosmos judeu ou muçulmano, mas sim um baseado em uma doutrina cristã e especialmente escolástica, e muito colorido, especialmente no Inferno, por suas próprias inclinações pessoais e políticas. Sua narração é tão circunstancial, tão vívida, detalhada e poeticamente memorável, que por séculos alimentou a imaginação de seus compatriotas. Ler Dante ou qualquer outro trabalho sobre a imaginação visionária, é compartilhar de modo passivo essa experiência, que é tudo o que a maior parte de nós pode esperar ou desejar. Mas não se deve menosprezar o poder destes trabalhos da imaginação. Suas imagens míticas e símbolos se alojam em nossas próprias almas e povoam o mundo interior de nossos sonhos. Na grande maioria dos casos, são mais fortes que as personalidades às quais invadem e doutrinam. O cristão medieval, que vivia sua vida envolvido nos relatos, cantos, poesia e imagens visuais da fé cristã, não podia ser outra coisa além de cristão. Da mesma forma, o muçulmano medieval tinha que ser muçulmano. Um estava tão convencido de um céu de santos e anjos cantando, como, o outro, de um jardim do Paraíso cheio de núbeis virgens. Cada um estava verdadeiramente disposto a arriscar sua vida combatendo contra o outro.

Poucos séculos depois de Dante, Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, desenvolveu um sofisticado método de imaginação ativa que serviu exatamente para o propósito de doutrinação. Seus exercícios espirituais estavam destinados a ser a base da educação jesuíta, especialmente para aqueles que se uniam à Ordem, mas também em versões modificadas para meninos e laicos. A parte central dos exercícios era a imaginação de episódios dos Evangelhos, que deviam ser evocados internamente com a maior realidade e detalhe que fosse possível. Não só despertava os sentidos internos mas também as emoções, para que os sofrimentos de Jesus, os gozos e os pesares de Maria, etc., se convertessem nos do espectador. A imaginação tem um poder tal que, em casos excepcionais, através de algum processo psicofísico inexplicável pela ciência médica, aparecia um estigma no corpo do devoto.

A confiança que os jesuítas tinham no efeito formador da imaginação também os levou a se converterem em pioneiros nas artes do teatro e da arquitetura teatral que, enquanto cativavam e divertiam, imprimiam as imagens desejadas nos sentidos internos e da alma. Não é de estranhar que Athanasius Kircher, um jesuíta, encabeçou o desenvolvimento da “lâmpada mágica” e que descreveu as primeiras imagens da luz em movimento. O que poderia haver feito com o cine!

No século XVIII ocorreu um dos acontecimentos mais fenomenais no mundo da imaginação: o responsável foi Emmanuel Swedenborg, cientista e estadista reconhecido. Quando jovem, Swedenborg havia estudado as práticas cabalísticas na comunidade judaica de Londres e havia penetrado em alguns dos segredos da respiração controlada e da yoga sexual, como poderíamos chamá-la hoje. Isso assentou as bases para que pudesse penetrar, em 1744, na idade de 56 anos, nos céus e infernos do universo. Passou o resto de sua longa vida escrevendo tratados teológicos baseados em suas visões. Suas intermináveis crônicas sobre conversações com os espíritos são, frequentemente, cômicas – e ele era bem consciente disso; não obstante, não há nenhuma sugestão de que a experiência fosse imaginária ou meramente alegórica. Swedenborg humildemente aceitou seu papel como portador de uma nova revelação de Deus para a humanidade e como fundador de uma nova Igreja para uma nova era.

O que mais pode fazer um visionário, uma vez que se entregou, de corpo e alma, ao poder da imaginação? Não pode pôr em dúvida que o mundo celeste que lhe foi revelado com realidade tão palpável possa não ser um artigo genuíno.

O começo do século XIX viu um desenvolvimento adicional na exploração do mundo imaginal. Os seguidores de Anton Mesmer descobriram que as pessoas, em geral as mulheres, que haviam sido colocadas sob transe hipnótico, podiam, às vezes, descrever lugares que não eram desta Terra, e responder perguntas acerca de coisas que nunca conheceram em estado de vigília. Alguns, como Swedenborg e Dante, tinham podido conversar com espíritos de mortos e, portanto, descrever o mundo que supostamente nos espera depois da morte. Não importa que os “espíritos” fossem frequentemente descobertos em disparates e mentiras (como Swedenborg já havia notado), ou que os diversos relatos de outros mundos fossem contraditórios: os médiuns diziam o que seus ouvintes estavam ansiosos para ouvir.

A grande questão sobre o que se experimenta na imaginação ativa tange à sua objetividade. Os sufis da Pérsia, principalmente Sohrawardi, afirmaram que o mundo de Hurqalya ao qual acessavam interiormente era, na verdade, um mundo objetivo, mas sem um substrato material. Portanto, outros seguindo a mesma prática chegavam aos mesmos lugares, tão certamente como dois viajantes a Bagdá estariam de acordo de que haviam visitado a mesma cidade. O mesmo princípio se aplica à prática cabalística, ainda que aí a experiência tenda a ser matematicamente mais abstrata.

Uma possibilidade que não costuma ser levada em conta é que estes filósofos-místicos tenham efetivamente encontrado uma saída da Caverna de Platão para o Mundo Real. Na filosofia platônica este é, definitivamente, um mundo objetivo mais real que o material. Mas como explicar as diferenças impressionantes entre o que ali é encontrado dependendo de qual é a religião do filósofo? Enquanto o filósofo de Platão se encontrava com os deuses gregos, o sufi encontra anjos e “mestres que ascenderam”. Os cabalistas podem explorar, órgão por órgão e pelo por pelo, o corpo macrocósmico de seu Deus. Os cristãos, como Dante e Swedenborg, provavelmente viam o Inferno e o Céu, e assim sucessivamente. As diferenças são suficientes para que o agnóstico moderno não-viajante se torne completamente cético acerca da objetividade do outro Mundo.

É como se cada religião, e cada seita, fosse uma espécie de clube exclusivo. As mentes dos membros estão cheias, desde a infância, de um conjunto de ideias e símbolos que estruturam seu mundo imaginativo, sua filosofia e suas expectativas de vida após a morte. As catedrais e igrejas medievais eram depositárias dessas imagens e símbolos, e meios de doutrinamento no melhor sentido; pois quando há consenso imaginal em uma sociedade, a discórdia é reduzida ao mínimo. Quando essas pessoas pouco comuns, dotadas e treinadas para as práticas esotéricas, embarcavam em suas meditações, o faziam dentro desse mesmo consenso. Eles viam, ouviam, sentiam e cheiravam um ambiente que podia ser novo e cheio de maravilhas e surpresas, mas que ainda estava controlado por sua fé e suas expectativas. Só quando o místico fosse além dos sentidos internos estaria liberado do que havia aprendido através dos sentidos externos. Então, como todos os estudantes de misticismo sabem, as descrições se tornam inseguras: o místico não pode encontrar palavras para a experiência. Tudo é luz, unidade e paradoxos onde a mente racional não tem em que se apoiar.

Posto que a maioria de nós (e eu, enfaticamente, me incluo) não somos especialistas em viajar no mundo interno do imaginal, penduramos nas paredes dos palácios de nossa imaginação quadros que outros nos deram. Se tivemos sorte, nossos pais começaram o processo contando histórias e nos dando livros com páginas que encheram nossas imaginações com imagens arquetípicas de animais falantes, heróis e heroínas, lugares distantes, comédia e tragédia. Talvez eles também nos tenham criado em uma das tradições religiosas ricas em imagens. Podemos ter deixado seus dogmas para trás enquanto crescíamos, mas sua mitologia é um poço do qual nunca deixaremos de extrair coisas.

Se fomos desafortunados, nossos pais nos colocaram em frente à televisão. E essa é a medida do abismo entre o mundo imaginal dos pobres e ignorantes camponeses medievais e o dos camponeses de hoje.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – VII – A Teologia Negativa

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VII

A Teologia Negativa

A Idade Média não conheceu nenhuma escola iniciática pública como aquelas que haviam florescido na Antiguidade. As irmandades pitagóricas e órficas, a Academia Platônica, os cultos mistéricos Herméticos e o Mitraico – todos haviam desaparecido da Europa junto com o Império Romano. Sua visão do homem como um microcosmo, refletindo em miniatura todo o universo e sua origem, e sua proposta de um caminho por meio do qual ele podia fazer-se divino, estavam quase perdidas. A nova religião oficial da Cristandade apenas podia tolerar semelhantes ideias, ainda entre sua própria elite intelectual. O poder da Igreja repousava na divindade de um só homem, Jesus Cristo, e em um caminho de salvação para o resto: o da obediência.

Apesar disso, às vezes ainda podemos vislumbrar, como uma corrente de ouro meio enterrada, o legado de uma tradição teosófica cristã muito diferente da corrente principal. Sua energia parece ter-se derivado da experiência mística, considerada e interpretada à luz da filosofia neoplatônica. O que caracteriza essa tradição é que não afirma nada sobre Deus, e, inclusive, nega a possibilidade da afirmação. É a antítese do tipo de asserção que começa com: “Assim diz o Senhor”. Resultou muito naturalmente do neoplatonismo, quando um escritor grego não identificado, conhecido como Dionísio, o Areopagita, reinterpretou os voos mais altos do misticismo pagão à luz da nova religião.

Dionísio estava bem consciente dos perigos do monoteísmo exotérico. Deplorava aqueles “que descreviam a Causa Primeira transcendental de tudo pelas características derivadas da mais baixa ordem de seres.” Seus melhores esforços para descrevê-la adequadamente tomam a forma de paradoxos, ou de enunciados do que não é (“a teologia negativa”). Fala disso como aquilo que eclipsa todo brilhantismo com a intensidade de sua Escuridão; como aquilo que inclui todos os atributos do universo, pois é a Causa Universal de tudo, mas não possui nenhum, já que transcende a todos.

As palavras dos teólogos tendem a ser secas, mas aqui brotam de uma experiência direta que é, paradoxalmente, a não-experiência, porque não há um si mesmo separado que o possa experimentar. Dionísio diz em outro paradoxo, expressando-se igual a Plotino: “Através da inatividade de todos seus poderes de raciocínio, o místico se une, mediante sua mais alta faculdade, àquilo que é totalmente incognoscível; assim, conhecendo nada, ele conhece Aquilo que está além de seu conhecimento.”

Estas coisas, diz Dionísio, não devem ser reveladas aos não iniciados. De fato foram divulgadas e serviram de inspiração para toda a tradição mística cristã.

Além de sua Teologia Mística, de onde foram tiradas estas citações, Dionísio escreveu um tratado Sobre as Hierarquias Celestes que é o fundamento de toda a ciência angelical cristã.

Sua conquista foi fazer com que os princípios da teologia neoplatônica fossem aceitáveis para o monoteísmo. Reclassificou as hierarquias dos deuses e deu nomes, como as nove ordens Angelicais, e as fez concordar com a tradição judaica e com a Bíblia. Assim, a hierarquia dos poderes secundários que governam o cosmos foi salva de extinguir-se no imaginário da Idade Média.

O duplo sucesso de Dionísio o faz pai do esoterismo cristão. Primeiro, ele ensina que o Absoluto é indescritível e totalmente transcendente, mas de alguma maneira acessível e presente no homem. Essa é a justificativa máxima para todo esforço espiritual. Logo completa o resto da hierarquia cósmica, povoando os céus e as esferas com seres invisíveis. Estes se tornam a base da magia cerimonial, da filosofia astrológica, de uma reavivada cosmologia Hermética e, portanto, das ciências ocultas na Europa.

Dionísio era desconhecido no mundo ocidental até o século IX quando o monge irlandês, João Escoto Erígena traduziu suas obras para o latim. Erígena desenvolveu logo os princípios do teósofo anônimo em uma concepção grandiosa do universo e do destino humano. Platônico por natureza, não viu nenhuma diferença entre a verdadeira religião e a verdadeira filosofia, já que a totalidade concebível do universo – objeto da especulação filosófica – é inseparável de Deus. O que se poderia chamar “teologia positiva” de Erígena concerne à Natureza, vista como Deus em processo de revelação. Graças a isso, os humanos também são capazes de se converter em Deus ou Filhos de Deus. Mais ainda: ao final, todos eles serão redimidos, em conjunto com todos os animais e mesmo os diabos. Esta doutrina bondosa de Erígena estava em total contraste com o eterno Inferno, preferido, ou temido, por crentes ortodoxos.

O outro aspecto de Deus é o negativo ou indescritível, mas, para Erígena, ele também é, paradoxalmente, acessível, pelo simples fato de que todos somos divinos em nossa natureza íntima. Em sua Homilia ao prólogo do Evangelho de São João, ele diz:

“João, portanto, não era um ser humano; era mais que um ser humano quando voou por cima de si mesmo e de todas as coisas que são. Transportado pelo poder inefável da Sabedoria e da mais pura bondade, entrou naquilo que está além de todas as coisas… ele não tivesse sido capaz de ascender a Deus se primeiro não houvesse se convertido em Deus.” (capítulo 5).

O terceiro grande expositor da teologia negativa é Meister Eckhart, outro voraz leitor de Dionísio. Eckhart não era um ermitão, mas sim um capaz administrador monástico na Boêmia e na Alemanha. Longe de reservar seus ensinamentos a poucos esoteristas, as proclamou ao mundo. Não pregava seus sermões em latim culto, mas nos poderosos e terrestres monossílabos de sua nativa Terra do Reno.

O tema principal de Eckhart era a potencialidade do homem para conhecer, e de alguma maneira ser Deus. Disse a seus ouvintes que quando um homem permanece em Deus, “não há diferença entre ele e Deus; são um só.” Eis aqui uma de suas explicações de por que isto é assim:

“Quando Deus criou o homem, o guardou contra todo mal; a corrente dourada do destino, vindo da Trindade para o poderes mais altos da alma e também continuando através de seus poderes mais baixos, os submete aos mais altos para que nenhuma desordem possa atacar nem o corpo nem a alma, a menos que transgrida esta lei.” (Meister Eckhart, ed. Inglesa 1924, I, 291).

Aqui, Meister Eckhart sugere uma análise tripla do ser humano, constituído por espírito, alma e corpo, com o Espírito (Geist, em alemão – como o Espírito Santo em velhos textos ingleses) à cabeça da hierarquia. Tal disposição estava presente no platonismo, mas não era parte da doutrina regular cristã, que concede ao homem só uma alma e um corpo. O termo spiritus, em latim, é utilizado para denominar o Espírito Santo, mas também é aplicável a uma ordem muito mais inferior de seres e substâncias invisíveis (novamente, comparar os usos da palavra “espírito”). Quando lemos teorias esotéricas sobre a constituição do homem, é importante saber como é que o autor está usando a palavra “espírito”: como algo mais divino que a alma, ou simplesmente como o vínculo sutil entre alma e corpo.

O conceito de Eckhart do homem composto de maneira tripla é também o fundamento da alquimia espiritual, no qual o enxofre e o mercúrio simbolizam, respectivamente, o espírito, no sentido mais alto, e a alma. Sua conjunção ou “casamento químico”, então, representa a união da alma inteira com seu mais alto princípio espiritual, ou seja, com a divindade no interior de si, que é indistinguível do Deus que só pode ser descrito por negações.

Destes três teólogos, Dionísio estava a salvo da censura oficial porque se acreditava que era companheiro de São Paulo, assim como santo padroeiro da França. Os escritos de Erígena foram condenados por vários concílios da Igreja, principalmente devido ao panteísmo (fazer um Deus do universo). Meister Eckhart foi excomungado em 1329, pouco depois de sua morte, quando já não podia responder às acusações feitas contra si: elas incluíam a divulgação dos segredos da Igreja ao público. E, na realidade, ele o havia feito, sabiamente ou não, compartilhando as certezas internas de alguém “a quem Deus não ocultava nada.”

O cristianismo sempre teve problemas com seus místicos e teósofos, porque estes não podem evitar desviar-se da senda disposta para a grande massa dos fiéis. Com muito raras exceções, das quais Sócrates é a mais famosa, este problema não surgiu nas culturas politeístas. É um sintoma da contradição que jaz no coração das religiões monoteístas. Pode-se argumentar que o monoteísmo, frequentemente louvado como um grande avanço na história das ideias religiosas, foi realmente um passo para atrás em quase todos os aspectos. Isso ilustra como uma verdade, quando é transposta para um nível equivocado, pode gerar um sem-número de falsos conceitos na mente exotérica.

A inteligência sutil dos filósofos hindus, egípcios e gregos facilmente captou a verdade do monoteísmo: que só pode haver uma origem única para todas as coisas. Mas o devoto comum, em qualquer religião, não se conforta com a metafísica, mas sim com a fé, e tira seu sustento espiritual de uma relação pessoal com um deus ou deusa. Uma cultura politeísta como a da antiga Roma ou da Índia moderna reconhece que em tal devoção há muitas coisas respeitáveis e permite que cada um escolha sua divindade. Seus filósofos guardam sua compreensão para si próprios, e não interferem nos costumes religiosos das pessoas dizendo: “Vocês deveriam derrubar os ídolos de Júpiter (Shiva, Ísis, etc.) e adorar o Uno inefável.”

Os monoteístas não. As escrituras do judaísmo, da cristandade e do islamismo, insistem que há um só Deus, e em certo sentido têm razão. Mas talvez o que alguns chamam Deus, já não seja mais o Uno dos filósofos. É uma entidade masculina com atributos de uma ordem muito mais inferior, como o desejo de amor, a resposta a orações, as dádivas que oferece e a intervenção em assuntos humanos. Não é melhor que os deuses do Olimpo, não obstante se suponha que devesse ser a origem de tudo. E, da mesma forma que atua com encarniçada inimizade para com os devotos de outros deuses, seus seguidores também o fazem – como se o Uno se importasse!

A meio caminho de nosso estudo chegamos à linha divisória da história europeia. O panorama até agora foi pagão e daqui em diante é cristão. Daí para a frente se estende um milênio e meio de caça a hereges, cismas, perseguições, inquisições e guerras civis combatidas em nome de Cristo. Não posso culpá-lo ou culpar a escola esotérica que deu origem à mitologia cristã. Só posso culpar a mentalidade “unidirecional”, que resulta na rigidez, no dogmatismo, e na convicção de que se tem um monopólio da verdade. Eu culpo este zelo exclusivista, respaldado por uma antologia de escritos hebreus e gregos ainda considerados por muitas pessoas como a Palavra de Deus. Quando a causa destes terrores não tinha uma razão política ou econômica, provinha de alguém que estava convencido de possuir alguma verdade sobre Deus, a qual era disputada ou negada por seus opositores. Poucas coisas são mais perigosas nos assuntos humanos, ou têm consequências tão dolorosas, como a convicção de um homem religioso sobre a sua própria convicção. (as mulheres são muito menos censuráveis neste sentido).

A convicção de Dionísio, Erígena, Eckhart e outros como eles era de uma ordem inteiramente diferente. Mas, uma vez que desceram das alturas da contemplação metafísica, eles também não puderam evitar o uso das imagens, e eventualmente dos dogmas, que a Igreja e a Bíblia lhes haviam inculcado. Dionísio, por exemplo, escreveu um volume que acompanhou sua Hierarquia Celestial, onde defendia a hierarquia eclesiástica dos bispos, sacerdotes e diáconos dizendo que refletia a ordem dos anjos. Erígena, apesar de sua visão unitária de Deus e da Natureza, se sentiu obrigado a atacar a heresia ariana que sustenta que o Filho não é igual ao Pai, assim como as teologias dos judeus e pagãos. Eckhart procurou extrair significados ocultos de cada frase da Bíblia, com comovedora confiança de que seus autores estavam mais divinamente inspirados que ele.

A mesma relação com os escritos revelados existiu em outros monoteísmos. No mundo medieval islâmico houve místicos de não menos distinção que os cristãos, para os quais tudo, aparte do Deus incognoscível, aparecia nas categorias teológicas do Corão, que tem horror a que se diga que Deus procriaria um Filho. E os mestres iluminados da Kaballah, que se sentiam autorizados para falar de Ain – a plenitude indescritível da Nada – não acreditavam que houvessem chegado a isso através da graça de Jesus Cristo.

Como podemos abordar estas chamativas diferenças no nível mais fundamental da fé, que tocam a pura essência da teologia e que dividem estas três religiões abraâmicas entre si? Só em uma era pós-religiosa podemos começar a contemplar uma resposta, e a resposta que proponho não vai ser aceitável para muitos. Eu sugiro que as experiências indescritíveis destes místicos sejam tomadas como a melhor evidência que temos da verdade central do monoteísmo: que há uma realidade atrás e além de todas as coisas, à qual o ser humano está misteriosamente conectado. Mas os livros sagrados e revelados, as teologias contenciosas, as leis, o clero, e as imagens idôneas de Deus me parecem evidência positiva da verdade central do politeísmo: que há muitos seres superiores a nós no universo, alguns dos quais entram em contato com a humanidade. Deuses ou deusas, anjos e demônios, espíritos, egrégoras, ou extraterrestres – classifiquem-nos como vocês quiserem. O assunto é provavelmente muito complexo e além de nossas categorias de pensamento. Mas são estes seres, suspeito, os responsáveis por dar à humanidade suas religiões e pelo mútuo intercâmbio de energia que as mantêm vivas.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – VI – Gnose e Gnosticismo

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VI

Gnose e Gnosticismo

Platão explica no Livro Sexto de sua República que há quatro níveis de conhecimento. O primeiro é a percepção interna de nossas próprias imaginações. O segundo, as opiniões baseadas na evidência dos sentidos. O terceiro é o conhecimento mais exato obtido mediante o pensamento racional. E o quarto, ao qual mais tarde os gregos deram o nome de gnosis, é o conhecimento direto da realidade espiritual, que traz consigo uma certeza além da razão.

Qualquer um pode experimentar os quatro tipos de conhecimento instantaneamente, ainda que não muito proveitosamente, perguntando-se: “Existo?”. É tão óbvio, um fato tão íntimo, que nunca nos ocorre questioná-lo. O conhecimento que se dá na gnose é assim. Outro exemplo clássico é a resposta que Carl Jung, o grande gnóstico do século XX, deu a um entrevistador de televisão da BBC, que lhe perguntou se acreditava em Deus: “Eu não creio; sei”.

Quem dera pudéssemos ter a gnose e conhecer a natureza das coisas diretamente sem nos emaranhar com as opiniões e argumentos falazes! Parece um tanto injusto que isso nos seja negado, já que é, evidentemente, uma capacidade humana. Há exemplos – poucos são aceitos – de pessoas completamente normais que, de repente, se tornaram permanentemente expostas à dimensão gnóstica. Me vêm à memória Douglas Harding (autor de On having no Head) e John Wren-Levis (autor de The 9:15 to Nirvana). Enquanto eles descrevem a experiência, prosseguem vivendo suas vidas e tratando dos próprios problemas como o resto de nós (as relações humanas, o dinheiro, a doença, etc.), mas contra um fundo de serena e perfeita certeza de que toda a vida é uma representação e que eles e o Executante são um só.

Refletindo em sua súbita e não planejada abertura à dimensão gnóstica, Wren-Levis especulava que num passado remoto todas as pessoas estavam neste estado e que ele é nossa herança humana natural. Isso é, verdadeiramente, um estímulo para a especulação sobre a linhagem humana. Talvez o grande cérebro do homem de Neandertal – maior, inclusive, do que o meu e o seu – serviu a modos de obtenção de conhecimento que hoje nos escapam totalmente. Só usamos uma fração de nosso cérebro. Na melhor das hipóteses, a porção não usada guarda um potencial de conhecimento que transcende os sentidos e a linguagem e é, por isso, incomunicável e inimaginável para quem não dispõe desse recurso.

Mas isso é para discutir do físico para o metafísico, mas a maioria das autoridades em gnose vai em direção oposta, culpando o corpo físico pela frustração de nossa capacidade espiritual. As primeiras queixas sobre isso remontam a Platão, influenciado pela escola Órfica, que havia criado a frase: “o corpo é uma tumba para a alma.” Platão parecia culpar o corpo por nossa situação de ignorância, e recomendava a filosofia como o meio para nos separar dele. O supremo ideal filosófico seria, então, a ascensão hermética da alma através das esferas cósmicas, como está descrito no primeiro ensaio desta série, o qual desembaraça a alma de todas as más tendências que adquiriu ao haver caído dentro da matéria. Ao final da ascensão, que pode ser realizada pela iniciação e não só depois da morte, a alma purificada recupera seu estado primitivo e entra no reino dos deuses. Mas, mesmo então, existe a possibilidade de que o ciclo volte a se realizar, já que a alma sente uma inexplicável luxúria pelo corpo, e não consegue resistir a submergir nele quando há uma oportunidade.

Durante os primeiros séculos depois de Cristo, enquanto estavam sendo escritos os tratados herméticos, e os neoplatônicos reavivavam os ensinamentos de Platão, certo número de escolas e seitas apareceram sob o estandarte da Gnose. Preferiam construir suas mitologias sobre bases judaicas e cristãs mais do que sobre as pagãs, e todas compartilhavam o objetivo de recuperar o verdadeiro conhecimento e assegurar, assim, a salvação. A maioria destas escolas compartilhava uma cosmologia que, mais que qualquer que outra coisa, caracteriza o que passou a se chamar Gnosticismo.

O gnosticismo atribui a existência do mundo material a um membro Mau e inferior da hierarquia celeste, chamado de Demiurgo. Esse foi originalmente o nome que Platão deu ao Deus que construiu o mundo físico, como um delegado do supremo Uno. Para Platão e sua escola, o mundo e os corpos feitos da sua matéria não são maus; pelo contrário, são muito belos. Só que estão no degrau mais baixo da escada cósmica que o filósofo aspira ascender. Para o gnosticismo, pelo contrário, o mundo é um erro catastrófico feito por um Deus menor e malévolo que pensa que ele é o supremo e trata despoticamente a uma hoste de almas amarradas a corpos. A postura de Platão era hierárquica; a do gnosticismo dualista.

Surgindo dentro do contexto de uma cristandade que se sente incômoda com suas origens judaicas, o gnosticismo oferecia a solução mais radical ao problema, associando-o ao Deus hebreu Jahvé o papel do malévolo Demiurgo. Se Jahvé não havia criado na realidade o mundo físico (e as escolas gnósticas diferem nesse detalhe), ele e seus malvados arcontes o teriam mantido em suas garras por milhares de anos, alimentados pela devoção de seu povo escolhido e seus sacrifícios de animais. Tudo isso havia confirmado sua ilusão, ou a ilusão que lhe convinha manter em seus seguidores: que ele mesmo era o Deus Único, Senhor do Universo e criador de todas as coisas.

Então, continua o mito gnóstico, veio Jesus, enviado como emissário do Verdadeiro Deus para revogar a lei sem sentido de Jahvé e para ensinar às almas escolhidas a maneira de escapar. E o caminho não era através do amor, ou da moralidade, mas através da gnose: o conhecimento direto, que o Demiurgo cuidou de manter reprimido em nós, mas que ainda pode ser inflamado pela fagulha de divindade que jaz enterrada em cada uno.

Não há nenhuma necessidade intrínseca de vincular a doutrina do conhecimento redentor com uma visão dualista do mundo. A possibilidade da gnose existe também no platonismo, no hermetismo, na kabbalah, no sufismo, no hinduísmo, e no budismo, nenhum dos quais tem uma teologia dualista. É simplesmente devido ao fato de que algumas das principais seitas gnósticas eram dualistas, que seu nome, derivado da “gnosis”, se tornou um rótulo para esta particular doutrina do Demiurgo.

Depois da queda do Império Romano, no século V depois de Cristo, estes dois principais aspectos da filosofia gnóstica continuaram florescendo no Oriente Médio, embora já não tão unidos como haviam estado no gnosticismo clássico. O ensinamento esotérico como caminho de conhecimento salvífico continuou na Pérsia, onde a tradição zoroástrica nativa deu as boas-vindas aos últimos neoplatônicos. Os teósofos zoroástricos já haviam desenvolvido um complexo sistema de anjos, mundos e estados da alma no qual essas coisas eram conhecidas. Também tinham uma personificação do mal, Ahriman, mas este, indubitavelmente, não era o criador do mundo, somente seu corruptor. Quanto mais alto se vai na teosofia Zoroástrica, mais afastado se está do dualismo gnóstico. Era arriscado manter essa escola iniciática e mística frente à invasão islâmica e a conversão da Pérsia. Não obstante, fez-se uma adaptação com os ensinamentos do alcorão que permitiu que uma tradição teosófica islâmica sobrevivesse por muitos séculos e produzisse uma incomparável riqueza de escritos inspirados, coloridas visões angelicais e boletins detalhados do mundo imaterial que é o objeto da gnose. Durante a Idade Média na Europa, a luz da Sabedoria ardia brilhantemente na Pérsia.

O dualismo gnóstico, por outro lado, havia florescido no maniqueísmo, fundado pelo judeu-cristão Mani perto da Babilônia no século III depois de Cristo. Na teologia de Mani, o Deus Mau não é um transviado que está abaixo do Uno, mas uma alta potência por seu próprio direito e o eterno rival do Deus Bom. Temos o nosso espírito do Deus Bom, mas nosso corpo do Mau. Jesus e os demais profetas vieram para nos oferecer a gnose salvadora que libera nossos espíritos do cativeiro, para que possamos voltar a nos unir ao Bem e abandonar ao Mal para o mundo morto que criou.

O Maniqueísmo sobreviveu durante a Idade Média no Oriente Próximo e na Europa Oriental, onde adotou novos nomes e formas, e periodicamente emergiu para irritar as igrejas estabelecidas. Os Bogomiles (“amados de Deus”) da Trácia ou da Bulgária foram um desses ramos, registrado historicamente pela primeira vez no século X. Sua teologia lançava a culpa dos males do mundo ao filho primogênito de Deus, chamado Satanael, que se rebelou contra seu pai, e logo desceu à Terra com seus anjos rebeldes e seduziu Eva: seu filho foi Caim. Numa ocasião, Satanael persuadiu os judeus de que ele era o Deus Supremo, e deu a Moisés uma lei de sua própria autoria. Jesus foi um emissário do Deus Supremo, e depois de sua ressurreição tomou o lugar desocupado de Satanael no céu. Os Bogomiles negavam a maior parte dos dogmas da Igreja e detestavam suas práticas, levando uma vida ascética e ética. Como muitas seitas heréticas, se consideravam os únicos crentes verdadeiros ou, para ser exato, os únicos que não haviam sido enganados pelo Mal.

Os Bogomiles ilustram uma síndrome comum a grupos esotéricos assim como a seitas mais exotéricas: a convicção de que eles têm um conhecimento mais profundo ou mais verdadeiro que as Igrejas estabelecidas, e que, por isso, se distinguem da iludida massa da humanidade. Não obstante, a julgar pelas definições de Platão sobre os níveis de conhecimento, o deles foi somente uma pseudo-gnose baseada tanto na opinião e na política como qualquer outro dogma religioso.

As histórias da cristandade e do islã estão infestadas de cadáveres mutilados de heréticos iluminados. Entre eles, e a julgar pela atenção que lhes é dada hoje em dia, estão especialmente os Cátaros do norte de Itália e sul da França, que foram vítimas de genocídio nas Cruzadas Albigenses e de outras perseguições do século XIII. Nunca se estabeleceu claramente se consideravam o Mal que criou o mundo como igual, ou como dependente do Deus Verdadeiro. Mas, indubitavelmente acreditavam que a Igreja Romana, com sua fortuna e seus abusos anticristãos, pertencia ao campo do Demiurgo.

Os Cátaros eram dualistas gnósticos, mas sem o conceito da gnose como via de salvação. Em seu lugar praticavam uma imposição de mãos sacramental. Aspiravam a uma vida sem sexo, vegetariana, a fim de negar ao Demiurgo qualquer coisa relacionada com a reprodução física e o nascimento neste mundo da matéria. Mas, compreendendo que nem todo o mundo é capaz de um ascetismo, permitiram um corpo exotérico para “crentes” mais mundanos aparte dos “verdadeiros cristãos” esotéricos. Os Cátaros também tinham seus bispos e seu clero, e mantinham a maior parte da região do Languedoc (Provença) sob sua influência. Até a cruzada levada contra eles pelo Papa e mercenários do Rei de França, o seu foi um dos rincões mais civilizados e artísticos de Europa.

Talvez seja apenas o temperamento que decide se devemos dividir o universo de nossas experiências em superior e inferior, ou em bom e mau. O dualismo gnóstico em suas muitas formas indubitavelmente atrai àqueles que estão buscando em quem lançar a culpa por um mundo imperfeito. E se ela pode ser lançada naquilo que alguém considera como o que há de mais sagrado, está criada a emoção adicional de insultá-lo e degradá-lo. Não há espaço aqui para uma análise dos grupos modernos que levam o rótulo de gnósticos; mas poderia se começar a dividi-los entre aqueles inspirados principalmente pela busca de uma gnose espiritual e aqueles que estão centrados no dualismo e na rebelião contra a Igreja, vista como uma extensão do poder do Demiurgo.

Dito isso, a trama de ficção científica do gnosticismo não deve ser descartada rapidamente. Há cientistas hoje em dia que creem e ainda esperam que a raça humana eventualmente tenha sob seu controle outros planetas e explore seu meio ambiente, junto com qualquer forma de vida que nele possa encontrada, para benefício humano. Dê-nos um milhão de anos mais e talvez nos tornemos nós próprios Maus Demiurgos, escravizando os habitantes de um desafortunado sistema planetário, talvez, inclusive, sem seu conhecimento. Em uma era de manipulações genéticas, já não é descabido pensar se talvez a nossa própria Terra, e nossos corpos, não podem ter sofrido alguma intervenção semelhante por parte de seres mais avançados que nós. A mitologia e literatura esotéricas contêm muitas sugestões desse tipo, ainda que mentes pouco sutis como a de Erick von Däniken e seus milhões de leitores tenham arrastado o tema até o nível baixo de “deuses do espaço exterior”, afastando-o, assim, de uma discussão inteligente.

Penso que já é tempo de tirar o pó da mitologia gnóstica e reconsiderá-la com uma disposição de ânimo imparcial. Há duas questões que devem ser consideradas. A primeira é a epistemológica: tem o ser humano um potencial para a gnose e, se é assim, como o reconheceremos? Obviamente não podemos crer em qualquer um que saia por aí afirmando possuir um conhecimento superior. Suspeito que a resposta a esta questão pode residir puramente no domínio subjetivo: a pessoa que o tem, sabe; mas que é incomunicável e, talvez, inclusive, inservível para qualquer outra pessoa. Para citar o exemplo do começo deste artigo: posso saber que eu existo, mas isso não prova que você também existe!

A segunda questão é aquela histórica sobre se a raça humana poderia ter sofrido interferências do exterior em um passado distante. Tendo em vista que os evolucionistas darwinianos não se atrevem a dar uma explicação para as origens da humanidade, parece valioso coletar material referente a esta hipótese. Como corolário a isso, poderíamos incluir a teoria da egrégora, mencionada no artigo anterior sobre os Mistérios Romanos. Esta é a teoria proposta por alguns ocultistas: que existem conjuntos energéticos imateriais que são sustentados pelas crenças e emoções humanas e que, consequentemente, assumem uma aparência pessoal quase independente. Os efeitos poderosos das egrégoras sobre o comportamento coletivo variam do que o autor vitoriano Charles Mackay chamava: “Extraordinárias desilusões populares e loucura das massas* até completos movimentos religiosos, que se dissolvem rápido quando suas origens energéticas são cortadas. Talvez o Mau Demiurgo não seja nada além disso.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Anais do Colégio Invisível – V – Os Mistérios Romanos

Resultado de imagem para bouguereau la jeunesse de bacchusA Primavera – Ludwig von Hofmann (1861-1945)

V

Os Mistérios Romanos

As ambições imperiais e a crença na salvação pessoal constituem inquietantes aliados. Quando os romanos, com a tolerância natural dos politeístas, permitiram que seu império se convertesse no “campo de batalha” dos cultos exóticos e as religiões dos mistérios, estavam semeando inadvertidamente as sementes de sua própria queda. Assim pensava Edward Gibbon, autor de Ascensão e Queda do Império Romano. Principalmente, culpava o triunfo do Cristianismo pela queda de Roma; mas este último foi só uma das muitas religiões salvíficas populares durante os primeiros séculos de nossa era. Conforme o império se expandiu ao redor do Mediterrâneo, os deuses e deusas das colônias invadiram o seu anfitrião. Orfeu e Dionísio chegaram da Trácia; Deméter, de Elêusis; Mitra, da Pérsia; Ísis e Serápis, do Egito; Átis e Cibeles, da Síria e, claro, Jesus, da Palestina. O que distinguia estas religiões mistéricas era a perspectiva de relação pessoal com o divino que propunham para seus iniciados, e a promessa da vida eterna.

A antiga religião de Roma não oferecia nada comparável. Esta foi a religião de Jano e Júpiter, Juno e Marte, e uma multidão de deuses e deusas, cada um deles associado a uma força natural, um lugar ou uma atividade, e com um modo definido de culto. Os antigos romanos eram extremadamente religiosos, mas com um certo animismo, pois o mundo inteiro era vivenciado como se tivesse anima. Cada montanha e lago tinha seu espírito; cada árvore, cada família, casa, lar, estava habitado por um poder invisível. Todas as atividades eram sacralizadas, desde a guerra e a colheita até o parto, a profecia e os fatos comuns da vida diária. Havia uma maneira correta ou incorreta de realizar cada ação e, como consequência, viria o êxito ou o fracasso.

Os vestígios desta antiga religião foram preservados com temor reverente muito depois da lutadora cidade–estado ter devorado a maior parte do mundo conhecido. Os guardiões das tradições sagradas incluíam às Virgens Vestais, os Salii ou sacerdotes dançantes, os colégios de Augures e Arvais e o supremo ofício do Pontifex Maximus, os quais desempenhavam suas obrigações sob as regras e preceitos mais estritos. O destino do estado e das pessoas estava intimamente ligado a estas instituições tradicionais, que tinham pouco a temer da importação de divindades forâneas e pouca influência.

Se Platão tinha razão, como tratamos no artigo anterior desta série, e o mundo visível não é nada além de uma sombra de um mundo mais real e perfeito, há um valor e uma profunda verdade em uma religião como a dos antigos romanos. A sacralização do mundo e da conduta na vida é uma perpétua recordação das realidades imateriais e da prioridade do invisível sobre o visível. Mas, na antiga Roma, isso não conduziu a uma atitude de desprezo pelo mundo: ao contrário, serviu de suporte moral ao estado durante os difíceis séculos da República (509-27 antes da Era Cristã), fomentando as virtudes de patriotismo, lealdade familiar, estoicismo e domínio de si mesmo motivo pelo qual os romanos, em seu melhor momento, são célebres.

A crença em uma dimensão espiritual da vida se identifica hoje em dia tão estreitamente com o Cristianismo e outras religiões salvíficas que é difícil para o homem moderno imaginá-la em sua forma pagã. Mas está claro que a maioria dos romanos (como os gregos) não tinha grandes esperanças na vida após a morte. A morte do corpo conduzia inevitavelmente à deterioração da alma como sujeito impotente do reino subterrâneo de Plutão. Podia ser que os indivíduos fossem e viessem, mas a sobrevivência essencial era a da República e, dentro dela, a dos clãs e famílias, que transcendiam seus membros individuais. Cada um desses grupos tinha suas divindades dirigentes e protetoras, com as quais mantinham relações apropriadas mediante a observância dos rituais.

Quando se assume, como fizeram os antigos pagãos e ainda fazem os ocultistas modernos, que todas as coisas e ações terrestres têm suas correspondências não materiais, deve haver, então, uma ciência que as estude e uma tecnologia que as explore. O ramo mais conhecido dessa tecnologia é o ritual, que pode ser religioso (como uma missa ou um sacrifício), mágico (como uma invocação) ou, inclusive, secular (como uma reunião popular ou um desfile). A maioria dos que participam de rituais crê que suas ações são uma maneira de ganhar a benevolência dos deuses nos quais depositam sua confiança. Por exemplo, o sistema sacrificial do mundo antigo oferecia usualmente a vida de um animal com vistas a obter um benefício específico da divindade; e isso foi assim tanto no judaísmo como do paganismo greco-romano.

No entanto, o cético e o filósofo não se contentam em ficar com tal suposição. Pode ser que se façam incômodas perguntas sobre quem ou o que é esta divindade cuja cooperação o sacrificador tão ingenuamente imagina. Não é suficiente para eles imaginar um homem ou uma mulher glorificados, sentados lá  em cima, no Céu, inalando o delicioso aroma de vísceras queimando. Não poucas vezes, o resultado de tal interrogação é a desilusão com relação a qualquer sistema sacrificial que conduza a uma concepção mais espiritual da divindade e a uma visão mais ética das obrigações humanas. Como diz o salmista: “Pois tu não te comprazes em sacrifícios; se eu te oferecesse holocaustos, tu não te deleitarias. O sacrifício aceitável a Deus é o espírito quebrantado; ao coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus.” (Salmos 51: 16-17).

O assunto aparece um pouco diferente para o estudante de esoterismo e de filosofia hermética. Se as coisas e as ações terrestres têm correspondências de caráter imaterial, pode ser que elas não sejam só passivas com respeito à imaterialidade. Pode ser que os “deuses”, sejam eles quem forem, necessitem de sacrifícios e rituais ainda mais do que o devoto necessita dos deuses. Pode ser que tais atividades humanas sejam a fonte principal, talvez inclusive a única, de sua realidade. Há um conceito oculto em “egrégora”, termo derivado da palavra grega “vigilante”. É utilizado para designar uma entidade imaterial que “vigia” ou preside algum acontecimento terrestre ou uma coletividade. O importante é que uma egrégora agiganta, pela crença humana, o ritual, e especialmente o sacrifício. Se for suficientemente alimentada por tais energias, a egrégora pode ter vida própria e aparecer como uma divindade independente, pessoal, com um poder limitado a favor de seus devotos e um apetite ilimitado por seu culto posterior. Crê-se, então, que é um Deus ou deusa imortal, um anjo ou um demônio.

Quando consideramos a antiga religião romana à luz desta teoria, ela pode parecer uma estratégia deliberada para cultivar a egrégora da cidade–estado, em um pacto de mútuo benefício para a entidade e seus súditos. Outras cidades–estado estavam fazendo evidentemente o mesmo e, às vezes, guerreando umas com as outras; mas as lutas entre deuses não são novidade nas mitologias pagãs. O que provavelmente seja novo para alguns leitores é a insinuação de que pudesse haver uma realidade imaterial atrás destes estados, nações e famílias. Infundir alma à Terra é uma coisa que conduz a ideias reconfortantes sobre Gaia e a Mãe Natureza. Mas fazê-lo com uma nação, uma raça, ou uma dinastia, leva a inquietantes reinos de especulação.

Pode-se, como prefiro fazer, desmistificar a teoria da egrégora imaginando que essas entidades são meras formas de energia reforçadas pelo uso, de maneira análoga ao modo pelo qual os padrões dos neurônios do cérebro se reforçam e fortalecem pelo uso e pelo esforço mental. A formação da linguagem é um exemplo de como um padrão assim pode chegar a constituir a matriz dominante de nossa experiência humana inteira. Sugiro, então, que, no nível coletivo, os antigos deuses e deusas romanos tiveram uma certa realidade, limitada, e que os manteve vivos pelas crenças das pessoas, dos rituais dos sacerdotes e sacerdotisas, e da energia psíquica liberada e dirigida em inumeráveis sacrifícios animais. Enquanto este pacto continuou, as egrégoras zelaram pela cidade, que floresceu sob sua proteção.

A afluência das religiões dos mistérios e suas doutrinas de salvação pessoal escavaram os fundamentos destes antigos mistérios romanos. Do momento em que uma pessoa é persuadida de que pode sobreviver à morte e passar a outra vida distinta e melhor, a cidade e seu destino passam para segundo plano. Este é, em especial, o caso em que, sendo a nova religião iniciática, requerer um profundo compromisso e oferecer, em troca, o fato do devoto ser membro de um grupo de elite tanto na Terra como no céu. Às vezes, é possível um arranjo, como foi o caso na religião mistérica de Mitra, tão popular entre os soldados da legião romana. No mitraísmo eram as virtudes do guerreiro que o conduzia à salvação; e elas naturalmente beneficiavam tanto o estado quanto o indivíduo. Mas uma religião cuja ênfase residia na catarse emocional, como os cultos de Átis e Dionísio, ou uma com ideias sociais revolucionárias como o Cristianismo, não ajudava em nada na sustentação do império.

Conforme correram os séculos da Era cristã, foi feita uma tentativa de fortalecer a egrégora romana mediante a deificação dos imperadores e o estabelecimento do culto Imperial. Isso se converteu em uma espécie de religião guarda-chuva sob a qual a massa de cultos menores pôde continuar, tanto em Roma como no estrangeiro. Mas havia nisso uma qualidade vazia e decadente, como sempre há quando uma religião de estado é imposta artificialmente. O exemplo moderno mais óbvio é a religião ateísta do comunismo que, se supunha, arrasaria o mundo com o entusiasmo por seus ideais; mas poucas pessoas gostaram verdadeiramente e, ao redor de 1989, sua egrégora se desmoronou por inanição. Ainda que os cultos aos Imperadores romanos fossem celebrados esplendidamente, é difícil imaginar que muita gente fosse devota deles em detrimento das comprovadas e confiáveis divindades da cidade. Os imperadores em questão eram, em sua maioria homens que não inspiravam carinho; e os filósofos, como Adriano e Marco Aurélio, eram profundamente céticos com respeito a todo o sistema.

Pode ser que, para que uma sociedade floresça, tenha que manter viva a sua egrégora; e para que isto ocorra, o centro emocional e espiritual da população deve estar mais neste mundo que no próximo. Quando as pessoas se tornam muito interessadas em sua própria salvação póstuma, sua linhagem se faz menos importante do que seu destino pessoal, e o estado e a família passam a ser um mero pano de fundo para sua busca pessoal, útil ou não de acordo com cada caso. Eu não me atreveria a sugerir que o triunfo da Cristandade sobre as crenças do Império Romano foi um triunfo dos princípios do rabino de Nazareth: elas haviam sido desenhadas muito antes. Mas uma religião cujo fundador mostrou um claro desprezo pelo poder, riqueza, família e hierarquia social, não estava desenhada para sustentar um império muito extenso. Ademais, como no caso das outras religiões dos mistérios, a devoção a um deus ou deusa com um só propósito, junto com a esperança de unir-se com ele ou ela depois da morte, diminuiu seriamente a energia destinada a alimentar o egrégora tradicional. No final do Império Romano já ninguém acreditava nos antigos deuses e, consequentemente, estes definharam.

Usei o exemplo da antiga Roma para expor uma visão da história baseada em suposições que não são nem materialistas nem convencionalmente religiosas. Estou sugerindo que a ascensão e a queda das nações estão intimamente ligadas às suas relações com seus deuses; e que estes são entidades reais, ainda que não sejam os seres eternos e todo-poderosos que se diz que são. Quer me parecer que esta é uma teoria digna de consideração por quem quer que possa admitir que o universo é um lugar muito estranho, e que há bastante espaço nele para seres maiores que o gênero humano. Se tais seres existem, é ao menos prudente levá-los em conta. Toda civilização, no passado, o fez à sua maneira.

Temos agora um pouco de conhecimento sobre os dois grandes temas, ou mistérios, que ocuparam os colégios invisíveis de todos os tempos e lugares; um deles é o mistério do indivíduo: o que é o ser humano e quais são suas capacidades e perspectivas. O ponto crucial, ao qual são dirigidas muitas práticas esotéricas e ocultas, é a morte e a possível sobrevivência da personalidade. É um mistério porque sua compreensão é impossível dentro dos limites da mente lógica e da imaginação limitada pelos sentidos; mas isso não quer dizer que não tenha se uma resposta para ele. As religiões mistéricas do mundo antigo afirmavam tê-la encontrado. O segundo tema é o mistério político: como se formam as sociedades, como são energizadas  e o que fazem com essa energia.

Aqui é onde entra a egrégora, junto com os grupos humanos que buscam controlá-las e manejá-las. Se realmente o fazem é outra questão: não estou fomentando a teoria da credulidade nem a da conspiração, só explicando como eles vêem a si próprios. Antes da época do ceticismo grego, os colégios sacerdotais da Roma Antiga acreditavam ser verdadeiramente os guardiães da República e os reguladores das relações entre seus deuses e seus habitantes. O mesmo pode se dizer do Egito, da antiga Israel, da Pérsia, da Índia Védica, da China, e das teocracias do México e Peru. Todas elas tinham uma teologia que não era abstrata ou meramente verbal, como é hoje em dia a disciplina, mas rigorosamente prática e controlada por um colégio de sacerdotes cuidadosamente fechado.

O próximo artigo desta série examinará algumas das tensões entre os mistérios individuais e os políticos, como as surgidas na Antiguidade e no começo da Idade Média.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez

Fonte: REVISTA BIBLIOT3CA

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Anais do Colégio Invisível – IV – Pitágoras

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IV

Pitágoras

Podemos duvidar que Pitágoras tinha uma coxa de ouro e que podia ouvir a música das esferas. Mas, contrariamente aos nossos temas anteriores – Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu – não podemos questionar sua existência. Nasceu no princípio do século sexto a. C. na ilha Egeia de Samos; passou anos no Egito e na Caldeia e a última parte de sua vida em Crotona, na costa sul da Itália. Ali tinha sua família e fundou uma escola de filosofia, morrendo em idade avançada.

Com a chegada de Pitágoras, aquilo que é místico e misterioso em Orfeu se aproxima mais da realidade concreta, e o Colégio Invisível começa a tomar forma. A lira de Orfeu, que encantava tudo, desde as pedras até os deuses, se converteu nas mãos de Pitágoras em um instrumento científico utilizado para atuar sobre as emoções humanas.

Enquanto Orfeu, se é que existiu, tocava em um estado mântico e inspirado, Pitágoras sabia exatamente que efeito psicológico tinha cada forma musical. Podia ajustar a dose à necessidade do paciente, tal como no conto do jovem enfurecido que se tranquilizou quando Pitágoras pediu ao músico que mudasse o modo de tocar. Prescreveu, para seus próprios alunos, música para ajudá-los em sua vida ascética e seus estudos.

Se Orfeu era um poeta, Pitágoras foi um intelectual e experimentador. Não apenas utilizou a música, mas estava interessado em como esta funcionava e fez experimentos para descobri-lo. Como fariam os cientistas mais tarde, expressou seus descobrimentos em fórmulas matemáticas, como é o caso do teorema geométrico ainda conhecido com seu nome, e a fórmula musical 12 : 9 : 8 : 6 que define as consonâncias primárias. Pelo menos seus discípulos assumiram que estes descobrimentos eram do próprio Pitágoras. É muito mais provável que Pitágoras os tenha refinado a partir do que havia aprendido, durante seus longos períodos de residência no exterior, dos sábios de Mênfis e da Babilônia. Tais coisas já eram conhecidas nessas civilizações há centenas de anos: só eram novas para os gregos.

A genialidade de Pitágoras consistiu em fazer uma síntese do conhecimento científico que havia aprendido fora de sua pátria com a religião órfica local e, sobre esta combinação, fundar a primeira escola filosófica na Europa. Filosofia, literalmente, “amor pela sabedoria”, é um termo que inclui tanto o coração quanto a cabeça, implicando com isso que só um desses não é suficiente. Para as religiões de mistérios, como a órfica, só o amor já bastava. No culto órfico o amor tomou a forma de uma empatia com toda a criação, como o culto aos deuses, especialmente Apolo e a aspiração a que, depois da morte, poder-se-ia escapar das amarras da Terra e se unir aos deuses em seu próprio reino. Tudo isso foi transferido à comunidade pitagórica. Eram vegetarianos, porque se recusavam a causar danos aos animais. Praticavam a filantropia privada e pública, envolvendo-se na política pelo interesse da comunidade. Eram devotos de Apolo, e acreditavam em uma vida depois da morte cujas condições dependiam da conduta presente.

O que fez dos pitagóricos uma escola, e não só uma confraria religiosa, foi o fato de também cultivarem o intelecto. Escutavam as dissertações com uma paciência e passividade assombrosa – os neófitos deviam escutar Pitágoras atrás de uma cortina, e guardar silêncio por cinco anos antes de sequer poderem fazer uma pergunta. Aprendiam matemática, astronomia e a ciência do monocórdio. Tratava-se de um tipo de Sabedoria que só podia ser cultivada por aqueles que estavam enamorados dela: qualquer um que não estivesse se aborreceria insuportavelmente. Como resultado, os pitagóricos não tinham só experiências espirituais: eles as compreendiam, passando as destilações do coração através do filtro do intelecto.

Alguns milhares de anos antes da época de Pitágoras havia existido escolas esotéricas, tanto no Egito como nas culturas megalíticas. A presença de sofisticada geometria e aritmética nos círculos de pedra da Bretanha e os artefatos de ouro no continente Europeu são provas disso. Mas por volta da metade do segundo milênio a. C. parece ter ocorrido uma era obscura, talvez por causa de algum cataclismo geológico ou cósmico, dando fim à era “pré-histórica” e suas instituições. O renascimento da cultura nas regiões gregas e italianas necessitou de novas formas e instituições. A escola de Pitágoras foi uma das primeiras.

Só uma minúscula parte da população estava qualificada como “filósofo” no sentido pitagórico. Isso é tão verdade hoje em dia como era no século sexto antes da Era Cristã. Para o benefício destes poucos, Pitágoras formou uma escola e impôs a seus alunos a obrigação do silêncio, fundando assim a primeira sociedade secreta e esotérica na história europeia. O segredo está relegado a um segundo plano hoje por causa da ficção oficial de que todo o mundo é igual e, portanto, tem direito à mesma informação. Por isso é que tem que explicar a reserva tradicional de tais escolas. Do ponto de vista de um membro de uma escola esotérica, o aprender é um assunto progressivo e evolutivo, e se alguém fala prematuramente disso, quase que com certeza daria uma impressão falsa e distorcida daquilo que sabe. No trabalho esotérico passa-se por muitos períodos de ilusão e desilusão, os quais, quando são ventilados regularmente, dão uma terrível impressão aos estranhos. Além disso, existe uma vantagem alquímica em se manter o recipiente selado, sem deixar sair nem entrar nada nele enquanto a Obra está em processo.

Do ponto de vista daqueles que não pertencem à escola, é preferível não saber nada a receber versões falsas e distorcidas de ensinamentos por neófitos falastrões. Informações erradas são ruins para quem as recebe, pois, sem passar por todo o processo, poderiam fazer ideias equivocadas acerca de assuntos extremadamente importantes. Isso também pode gerar hostilidade com relação à escola – que é o que aconteceu no caso de Pitágoras, onde o povo da cidade eventualmente a queimou e matou muitos de seus membros, talvez até o próprio mestre. Os profanos fazem melhor seguindo uma religião exotérica do que se metendo em assuntos para os quais não estão preparados.

Esta atitude é elitista ou, melhor dito, hierárquica e totalmente consistente com a doutrina da metempsicose (a transmigração das almas ao interior de outros corpos) que era um dos pilares da metafísica pitagórica. Tal atitude não considera a vida humana como assunto individual único, mas como se fosse apenas a conta de um colar. Caso todos tenham só uma vida é verdadeiramente injusto que alguns venham ao mundo para viver na opulência, enquanto outros têm desvantagens corporais, mentais e circunstanciais. Estranhos e complicados motivos devem ser atribuídos a um Deus ou deuses para justificar tal estado de coisas. Mas a metempsicose proporciona a seus crentes tanto uma causa para seu presente estado – que deve ser buscada em vidas anteriores – como a esperança de ganhar renascimentos mais felizes no futuro. Cada pessoa é uma alma encarnada temporalmente, cativa no corpo que mereceu.

Não é minha intenção defender ou atacar esta filosofia, mas apenas esclarecê-la. Nem vou tentar reconciliá-la com a doutrina mencionada no primeiro artigo desta série (ver “A Tradição Hermética”), ou seja, que a sobrevivência da alma individual é um fenômeno raro e conseguido com muita dificuldade. De todos os temas sobre os quais os mais sábios esoteristas costumam ter discrepâncias, o do destino do alma – se reencarnam ou não na Terra – é o mais espinhoso. Talvez não exista apenas uma resposta universal, já que diferentes almas seguem diferentes destinos.

Pitágoras, seguindo a Orfeu, ensinou a inevitabilidade da reencarnação, mas dizia que ela é indesejável. O símbolo órfico da roda cósmica à qual estamos sujeitos, oferece a esperança de que se saia dela de alguma forma e de que nunca mais se tenha que retornar a um soma–sema, um “corpo-tumba”. Esta é toda a raison d’être das religiões de mistérios. As pessoas dão voltas e voltas na roda, de nascimento em nascimento, até que estejam preparadas para a iniciação que lhes fará possível pelo menos apontar para estados além do humano. Mas é inútil tentar este voo sem antes haver desenvolvido as asas da iniciação. Este é o significado do mito de Dédalo e Ícaro.

A escola Pitagórica pode ser proveitosamente comparada com outra instituição iniciática que é sua contemporânea, a dos Mistérios de Elêusis. As iniciações de Elêusis, longe de requerer anos de preparação e uma vida ascética rígida, eram acessíveis a qualquer pessoa de língua grega que não fosse assassino. Deveria realizar uma série ritual de atos relacionados com o mito de Deméter e Perséfone. Começavam com a procissão de Atenas e chegava ao seu ponto culminante na grande sala hipostila de Elêusis. Ainda não sabemos exatamente que acontecia ali, mas algo era visto ou presenciado que tinha um efeito duradouro. Depois disso, os iniciados sentiam-se mais  seguros, especialmente com relação à vida após a morte.

Os Mistérios de Elêusis eram semelhantes ao Hajj, a peregrinação a Mecca que todos os muçulmanos devem fazer, se possível, uma vez na vida. Existem muitos paralelos com as práticas islâmicas, como a abstinência de comida durante o dia, o sacrifício de animais, a representação ritual dos sofrimentos de Deméter e Agar, respectivamente, a procissão e o sentido de unidade com uma grande multidão no lugar mais sagrado. Cada elemento contribui para a força emocional do evento, fazendo dele uma experiência que muda a vida e fortalece a fé.

Tanto Elêusis quanto o Hajj eram e são exotéricos, mistérios públicos que não requerem a participação da mente racional. Em contraste, as escolas esotéricas desde a de Pitágoras requerem o cultivo ativo do intelecto. Sua meta não é uma viagem espiritual como numa montanha russa, mas uma vida de constante trabalho espiritual e intelectual no qual cada avanço experiencial vai acompanhado pelo entendimento.

Pitágoras utilizava as ciências do número, – matemática, música, e provavelmente astronomia – para aguçar o intelecto do estudante. Este tipo de estudos não deve ter sido comum no século VI antes de Cristo, mas temos que agradecer a Pitágoras pelo fato de que hoje o seja. A maior parte das pessoas aprende muito mais matemática na escola do que jamais porão em uso, porque se acredita que isso treine a mente de uma forma útil para qualquer disciplina. A música, quando é estudada como uma ciência e uma arte, fornece o elo perdido entre a cabeça e o coração. A astronomia, que em tempos passados sempre incluía a astrologia, enlaça os movimentos calculados dos corpos celestes com o caráter humano, o comportamento e o destino, e conecta com teorias arcaicas da vida depois da morte. (Vemos algo disso na doutrina hermética da ascensão através das esferas planetárias). Em resumo, a escola pitagórica se propõe a desenvolver a participação consciente e crítica no drama da vida e da morte.

Autor: Joscelyn Godwin
Tradução: S.K.Jerez