Tiradentes e a semente da independência: a quebra de dormência aconteceu em Minas (Parte I)

“… O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade. Liberdade é o outro nome de Minas.…” (Tancredo Neves: discurso de posse no governo de Minas Gerais em 15 de março de 1983).

A expansão territorial do que viria a contribuir para a delimitação do domínio português na maior parte do Brasil como hoje conhecemos deu-se a partir dos séculos XVII e XVIII, por obra de vaqueiros, dos jesuítas e das entradas e bandeiras. Até então, a colonização se restringia à região costeira, onde vários fortes foram construídos para afastar os invasores provenientes das nações que foram excluídas do Tratado de Tordesilhas, que dividiu o Novo Mundo descoberto e por descobrir entre portugueses e espanhóis.

Até meados do século XVII, a autonomia política dos colonos era relativamente grande. O Brasil era um Estado da monarquia portuguesa, chamado de “Província do Brasil”. A partir da Restauração em 1668 – independência de Portugal em relação à Espanha, a soberania da nova dinastia governante foi estabelecida. Os colonos, sentindo-se explorados, mudaram a visão em face da dominação portuguesa, aflorando sentimentos de revolta contra a nova política para o Brasil.

Com a queda das exportações do açúcar nordestino, frente à concorrência da produção dos espanhóis e ingleses, e dos holandeses e franceses (expulsos do Nordeste) nas Antilhas, no final do século XVII, deu-se início ao chamado ciclo do ouro, gerando grande fluxo de pessoas do litoral nordestino e de Portugal para o garimpo na região produtora das minas, referenciado como montanhoso solo onde o ouro “se desprendia dos ricos veios e se derramava abundante pelos caldeirões e areias dos regatos”. Para custear suas importações, a Coroa portuguesa necessitava do ouro e prata de suas colônias. As primeiras descobertas de ouro ocorreram na região do atual Estado de Minas, em 1695, quando as bandeiras então se dirigiram para a área e, em seguida, para o Centro-Oeste.

Em 1702 foi criada a Intendência de Minas, com a função de controlar e fiscalizar a distribuição, o arrendamento e a produção das jazidas e cobrar o quinto, ou seja, os 20% da produção total. Com o contrabando do ouro em pó correndo solto, a Coroa criou as Casas de Fundição, em 1720. O ouro passou a ser fundido em barras, assegurando a cobrança do imposto. As descobertas de ouro e diamantes no Distrito Diamantino levaram o rei de Portugal, dom João V, a criar a Intendência dos Diamantes logo a partir de 1729, decretando o monopólio da Coroa.

Os primeiros conflitos já em fins do século XVII e nas primeiras décadas do século XVIII ainda não eram movidas pelo desejo de autonomia, mas por questões meramente regionais contra a política de exploração, do monopólio das privilegiadas companhias de comércio, além de conflitos entre senhores de engenho e comerciantes ou da disputa com os bandeirantes paulistas pelo domínio das minas. O Brasil era uma extensa e despovoada colônia, com regiões isoladas e sem comunicação.

A revolta de Beckman, no Maranhão em fevereiro de 1684, provocada pelos altos preços cobrados pelos produtos importados e os baixos valores pagos à produção local, culminou em prisões, degredos e o enforcamento do principal líder. Por sua vez, a chamada Guerra dos Mascates, movimento ocorrido em Pernambuco entre 1709 e 1710, colocou em lados opostos os senhores de engenho e os comerciantes portugueses moradores de Recife, tendo como uma de suas causas a crise açucareira. A rebelião terminou com a punição dos envolvidos e Recife permaneceu na condição de vila independente de Olinda. No mesmo período, entre 1709 e 1710, na região de Minas, então pertencente à Capitania de São Vicente, eclodiu o conflito pela disputa da posse de jazidas de ouro, que ficou conhecida como Guerra dos Emboabas. Vencido o conflito, a Coroa resolveu criar a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, desmembrada da Capitania de São Vicente, preservando a capacidade de fiscalizar a distribuição das jazidas e cobrar os impostos.

Aqui pelas bandas das Minas de Ouro merece destaque a Revolta de Vila Rica, também conhecida como Revolta de Filipe dos Santos, em 1720, que levou o nome do personagem à frente do movimento que se opunha ao fisco português com a criação das Casas de Fundição. Filipe dos Santos, tropeiro e rancheiro no povoado de Antônio Dias, liderou um motim de quase 2.000 mineiros. Acuado, o odiado governador português da região, sediado em Vila do Carmo (atual Mariana), o Conde de Assumar (Pedro de Almeida), negociou com os revoltosos prometendo o perdão e a suspensão da criação das Casas de Fundição. Tudo não passou de um artifício para ganhar tempo e articular a repressão aos rebeldes.

Com a desarticulação do movimento, foram presos os líderes e Filipe dos Santos foi enforcado em julho de 1720 e seu corpo atado a quatro cavalos, sendo dilacerado. Partes de seu corpo (cabeça, pernas e braços) foram colocadas em pedaços de madeira e espalhadas pela cidade, para mostrar à população o destino de quem desafiasse a Corte. Para justificar a justiça sumária contra portugueses perante o monarca, o Conde de Assumar, que não tinha jurisdição para tal ato, alegou que se tratara de crime de lesa-majestade e que o movimento encobriria ideal de liberdade e de formação de uma república. Indiretamente, e com a licença de puristas e céticos, uma semente de liberdade fora então lançada a terra. Sangue de mártir é semente.

A Revolta de Filipe dos Santos teve como consequência a cisão da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, materializando-se a autonomia administrativa da Capitania de Minas Gerais, por ato do rei Dom João V, em 2 de dezembro de 1720, com a capital em Vila Rica. Fora então criada mais uma Comarca: Serro Frio (com sede em Vila do Príncipe). Dessa forma, o território mineiro ficou dividido em quatro Comarcas: Vila Rica (Centro e Leste), Rio das Mortes (Sul), Rio das Velhas (Oeste) e Serro Frio (Norte/Nordeste).

Em 1735, a Coroa instituiu o “Imposto de Capitação”, por acreditar que o contrabando estaria comprometendo a arrecadação. O mecanismo consistia no pagamento, pelo minerador, de uma quantia de 17 gramas de ouro por cada um de seus escravos. Pelo Alvará de 3 de dezembro de 1750, foi alterada a cobrança com a imposição do pagamento de 100 arrobas anuais de ouro pela região de Minas. Com a queda da mineração e devido ao atraso, sob a ameaça de penhora de bens, foi instituída a “derrama”, em 1760. Outros impostos também recaiam sobre a região mineradora, como o das “entradas”, semelhante ao imposto sobre circulação de mercadorias. Pagava-se sobre a importação e a exportação de quaisquer produtos, mesmo de outras Capitanias e seu fato gerador era a entrada e saída do território mineiro. Havia ainda o “dízimo” como sua fonte de custeio e depois transformado num imposto sobre rendimentos de pessoa física e sobre a entrada e saída de mercadorias. Isso sem falar em outros impostos menores como o pedágio, taxas dos ofícios de justiça etc., onerando sobremaneira o custo de vida local.

Portugal não tinha nenhuma política colonial, tendo como única a estratégia de arrancar o máximo com o mínimo de despesas, indiferente ao bem-estar dos povos sujeitos ao seu domínio, impedindo de todas as formas que a população criasse riquezas e melhorasse as condições de vida. Naquele período, os contratadores da cobrança de tributos e comerciantes que vendiam a crédito tinham grandes valores a serem recebidos dos detentores das grandes fortunas. Essa situação deixava os contratadores comprometidos junto à Coroa. Na realidade, era uma economia de endividados cujos bens pessoais não eram suficientes para quitar as dívidas.

A dispersão da semente da liberdade ocorreu em outros momentos, pontos e locais da capitania de Minas Gerais, que fora ainda palco de outras sedições, desde a primeira metade do século XVIII, afrontando a imposição da soberania régia. Foi o caso da sedição do sertão do Rio São Francisco, ocorrida em 1736 e que se voltou contra as autoridades reais e a capitação — cobrança dos quintos reais realizada com base no número de escravos. Durante o reinado de D. José I (1750–1777), eclodiram inconfidências em locais isolados de Minas — Curvelo (1760-1763), Mariana (1768), Sabará (1775) e de novo Curvelo (1776) —, sempre em função de atritos com autoridades e seus aliados. Ao contrário da Inconfidência Mineira, esses motins anteriores implicavam manifestações concretas de violência, com a população na rua, arruaças, vivas à liberdade e referência a apoios de outras potências colonizadoras (Wikipédia).

Desde meados do século XVIII fazia-se sentir o declínio da produção aurífera na Capitania de Minas Gerais. A Comarca de Vila Rica havia se transformado, em poucos anos, graças ao ouro, na maior metrópole do Brasil. Em meados do Século XVIII, todo o território português possuía 2.900.000 habitantes, sendo 200 mil em Lisboa; na mesma época, só em Vila Rica havia 100 mil, ou seja, metade da população da capital do Reino. A Capitania contava com 320.000 habitantes em 1776. Dez anos depois, em 1786, a população de Minas Gerais era de aproximadamente 400.000 habitantes, sendo 206.000 livres e 190.000 escravos; a população do Brasil alcançava o número de 3.500.000, sendo 2/5 de escravos (JARDIM, 1989).

Por essa razão, na segunda metade desse século, a Coroa portuguesa intensificou o controle fiscal sobre a sua Província na América do Sul, proibindo, em 1785, as atividades fabris e artesanais, tendo em vista a necessidade de mais braços para a mineração, além de aumentar as taxas dos produtos vindos da metrópole.

Como visto, a partir da segunda metade do século XVIII, os valores do sistema colonial começaram a ser questionados, não só por pessoas de baixa condição social, mas também, com mais vigor, pelos grandes proprietários. Valores necessários à segurança do Estado absolutista português e da exploração colonial suscitavam controvérsias, como a ideia de bom pagador da Fazenda Real, o respeito à monarquia, a condição de vassalo zeloso, o direito divino do rei, que tinha o poder de vida e de morte sobre seus súditos. Temas como o luxo e a ostentação da Corte, grandes propriedades, escravidão, república, liberdade e separação de Portugal, ganharam relevo.

Com as transformações decorrentes da urbanização, cresciam a camada de comerciantes, funcionários públicos, professores, letrados, militares, artesãos e homens livres em geral, tornando a sociedade mais complexa. Embora precárias as comunicações, já se colhia um sentimento de incômodo com a prepotência das autoridades coloniais e a legislação metropolitana cada vez mais rígida e que dificultava a vida dos colonos.

Naquela quadra da história, constituía-se tradição as famílias abastadas enviarem seus filhos para estudar em Coimbra, cujo ensino havia sido reformado pelo Marquês de Pombal. Alunos também eram aceitos na França (Montpellier e Bordeaux) e no Reino Unido (Londres e Edimburgo). Na Europa tiveram a oportunidade de estudar o pensamento dos filósofos iluministas que combatiam o absolutismo, o mercantilismo e os monopólios, conhecidos como ideias francesas. Entre os anos de 1768 e 1788, vinte anos, portanto, 157 estudantes das diversas capitanias luso-brasileiras foram diplomados na Universidade de Coimbra (FERREIRA, 1972).

Nos portos brasileiros o contrabando trazia livros dos melhores autores e pensadores da época, como Rousseau, Voltaire, Montesquieu, enciclopedistas como Diderot e D’Alembert e Adam Smith, dentre outros. Naquele período, o Brasil não possuía universidades, imprensa e bibliotecas eram proibidas, a circulação de livros estava submetida a três instâncias de censura, de modo que os mecanismos de exploração e opressão não fossem fragilizados. A política oficial permitia o funcionamento das escolas religiosas, dominadas pelos jesuítas até suas expulsões, em 1759, depois assumidas por outros padres e mestres laicos. O ambiente sociocultural se apoiava nas realizações de caráter artístico, expressos através da religiosidade popular, da escultura, da música e da arquitetura. Em 1768, o Marquês de Pombal instalou a Real Mesa Censória, centralizando e organizando o trabalho da seleção do que podia ou não ser lido (DÓRIA, 2014). O direito de reunião era vigiado. De cada cem brasileiros, menos de dez sabiam ler e escrever.

As ideias revolucionárias que por aqui aportaram propiciaram grande crescimento cultural e tinham relevo nas reuniões e saraus musicais e literários então promovidos pelas famosas academias. Por isso, as academias se revestiram de alguma importância cultural e mesmo política. Nesse meio, os livros passavam de mãos em mãos. Seus rituais acadêmicos eram uma maneira de passar o tempo de forma mais agradável nas cidades provincianas como Salvador, Vila Rica e Rio de Janeiro.

Sem dúvida, naqueles eventos discutiam-se poesias, literatura, e, claro, filosofia e política. Em meados do século XVIII, surgiu a primeira escola literária brasileira – o Arcadismo. “Nessa época, portugueses e jesuítas deixaram de monopolizar a cultura. Liam-se também, principalmente em Minas Gerais, autores franceses e ingleses que eram críticos do absolutismo, do mercantilismo e da intolerância religiosa, louvadores da natureza, do progresso e da liberdade” (CÁCERES, 1995).

Efetivamente, o movimento árcade se desenvolveu no Brasil com a fundação, em Vila Rica, no ano de 1768, da “Arcádia Ultramarina”, tendo como referência a publicação, por Cláudio Manuel da Costa, de suas “Obras Poéticas”, constituindo o embrião de uma geração literária brasileira. Além de Cláudio Manuel, vários escritores se destacaram no Arcadismo brasileiro, como Tomás Antônio Gonzaga (autor de “Cartas Chilenas” e “Marília de Dirceu”), Frei José de Santa Rita Durão (autor do poema “Caramuru”), Inácio de Alvarenga Peixoto (autor de “A poesia dos inconfidentes: poesia completa”), José Basílio da Gama (autor de “O Uruguai”), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (autor de “O Desertor das Letras”, “Glaura – Poemas Eróticos”). (GOMES, 2016).

No campo das expressões artísticas, Minas atingiu um dos mais altos pontos de sua civilização. “Só a arquitetura é um atestado indiscutível das proporções do progresso daquela sociedade, o que desmente a tendência preconceituosa de diminuir as possibilidades do movimento revolucionário de 1789 baseadas na existência de capacidade para a construção de um novo país” (JARDIM, 1989). Outra premissa falsa é a de que sendo o interior brasileiro uma região extremamente atrasada, de arraiais incipientes, não poderia comportar um movimento político de importância considerável.

O pensamento iluminista de caráter burguês e anticlerical pregava conceitos considerados subversivos pela Corte Portuguesa, por envolverem “abomináveis ideias francesas” ligadas a separatismo, república e legitimidade do poder, por considerar que a finalidade do governo era a de atender ao bem comum. Os iluministas defendiam a liberdade como elemento fundamental e inalienável para a realização do destino humano. Tinham como meio de difusão as Academias, a Enciclopédia, a Maçonaria, os Clubes, Cafés e Salões e as Universidades.

Em virtude da situação política, econômica e social, em especial dos interesses dos grandes proprietários de terras, minas e escravos, deu-se início à articulação do movimento que passou à história como a Inconfidência Mineira, como o primeiro a “compreender e criticar a exploração do sistema colonial e fazer a ligação entre essa exploração e a decadência das minas dos grandes proprietários. A Conjuração Mineira foi o primeiro movimento a propor objetivamente o rompimento do pacto colonial, ao tentar criar uma nação independente e a ver nessa independência um futuro de progresso” (CÁCERES, 1995). Neste movimento, em Vila Rica, podemos vislumbrar a quebra de dormência da semente da independência que fora lançada por ocasião do suplicio de Filipe dos Santos, germinando na mesma região, onde encontrou o terreno fértil como na parábola do semeador.

Continua….

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Loja de Pesquisas “Quatuor Coronati” Pedro Campos de Miranda, da Academia Mineira Maçônica de Letras e, para nossa alegria, um colaborador do blog.

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Uma consideração sobre “Tiradentes e a semente da independência: a quebra de dormência aconteceu em Minas (Parte I)”

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