Iniciação

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.

Neófito, não há morte.

Autor: Fernando Pessoa

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A Maçonaria, o Eu e a ideia de Morte

“Não se pode julgar da beleza da vida senão pela da morte (…)
Não se pode julgar da beleza da morte senão pela da vida.”
Isidore Ducasse – Conde de Lautrémonte, Poesias II

Segundo Deepak Chopra, o mundo é a vibração do infinito e é assim que ele existe na nossa imaginação. A filosofia vedanta afirma:

“Quando o infinito não vibra, os mundos parecem afundar-se”.

Tudo o que conseguimos pensar – uma cadeira, uma cor, uma montanha, um pensamento, um arco-íris – é apenas uma vibração diferente da nossa essência. Algo está a vibrar e a criar tudo e essa vibração está a acontecer na presença da alma. A alma vibra e cria os pensamentos. A alma vibra e cria o corpo. A alma vibra e cria todo o Universo. Todos, ao longo da Antiguidade, dos alquimistas egípcios aos filósofos gregos, afirmaram que a criação é vibração. Criar é trazer para o Ser ou para a existência. E, para criar algo de novo, é preciso morrer para o que já existe. Algo tem que morrer para que algo novo possa emergir. Assim, cada morte é um salto quântico de criatividade. Através da morte recriamo-nos a todos os níveis: ao nível do intelecto, do corpo e da personalidade. A cada morte armazenamos a sabedoria das nossas experiências desde o início dos tempos e efetuamos saltos quânticos de criatividade para que possamos olhar de novo para nós como se fosse a primeira vez. Ciclos de nascimento, transformação e morte mantêm-se frescos para que possamos imaginar novos reinos para a nossa existência.

Na Biologia há um termo denominado apoptose, que traduz a morte celular programada. Na ausência de apoptose, as células esquecem-se de morrer e esta condição é denominada por cancro. As células cancerígenas perderam a memória da morte e, na sua busca da imortalidade, matam o corpo hospedeiro do qual dependem para sobreviver. Assim, a morte é o bilhete para a vida e a morte está a ocorrer neste preciso momento no nosso corpo-mente. Nesse sentido, há algo que em nós sobreviva na morte? Antes do mais, a alma. E a personalidade, sobrevive? A personalidade não sobrevive sequer enquanto estamos vivos, porque o indivíduo que tomamos pelo “Eu” é diferente a cada momento, de hora para hora, de semana para semana, de ano para ano. Se a personalidade sobrevivesse de qual delas estaríamos a falar? A da nossa criancice, a da adolescência, ou a dos vários estágios de adultez?

A larva que morre para se tornar uma crisálida opera, efetivamente, uma transformação. Não uma morte efetiva. Também a morte, em si, é um processo de transformação, um movimento para outro lugar ou tempo, uma alteração na qualidade da nossa consciência. O mundo que experienciamos, com terra e céu, plantas e pessoas, Sol e Lua, é uma expressão particular da consciência a uma dada frequência. Estes estados de consciência são experiências vibratórias da consciência infinita, em que o Cosmos se movimenta e afirma a sua existência. É mais que certo que infinitas frequências de consciência existem e dá-se a presença simultânea de muitos planos de existência, de inúmeros universos paralelos.

Tudo na vida se revela passageiro e mutável, porque essa é a natureza do nosso mundo. Há quem procure, por natureza, resistir à mudança. Contrariar a própria natureza do universo em que vivemos parece ser um exercício de pura impossibilidade ou juízo de loucura. Contudo, quando se utiliza a autorreferência, esta mudança não se revela “adversa” (por contrária aos nossos desejos) mas positiva. No entanto, temos que ir além de uma mente positiva ou negativa para alcançarmos uma mente silenciosa, que se abstenha de julgamentos, análises ou interpretações. Por outras palavras, a paz com o “momento” só se consegue pela experiência da testemunha silenciosa, pela consecução do silêncio interior. Na pureza do silêncio, sentimo-nos ligados à nossa origem e a tudo o resto. As tendências que emergem desta ligação são evolucionárias e espontâneas. O reconhecimento do nosso universo dual, onde toda a experiência é feita por contrastes (luz-sombra, nascimento-morte, frio-calor, etc.), permite compreender que é possível “viver (e morrer) além do bem do e do mal”, como diria Nietzsche, no campo da pura potencialidade.

Quando um profano entra na Maçonaria, ou numa qualquer outra Ordem iniciática, ele dá, ainda que muitas vezes não tenha disso consciência, os seus primeiros passos naquilo que se considera uma via espiritual. Compreender essa via é lembrarmo-nos, a cada momento, que o nosso mundo é apenas uma parte visível, perceptível dos nossos sentidos, de um universo muito mais vasto, de um mundo espiritual de onde emana a realidade objetiva. Para o conjunto das religiões do mundo a realidade dissimula a realidade objetiva dum outro universo, o Reino de Deus ou dos Deuses, povoado de espíritos. “O visível é o reflexo do invisível”, diz o Zohar. É, assim, muito difícil ao homem comum, graduado na materialidade, perceber, e ainda menos compreender, esse outro mundo, muito mais real que o nosso, sem o qual o nosso simplesmente não existiria. Todavia, o Homem participa na realidade desses dois mundos, porque possui uma dupla natureza. Uma terrestre, material, temporal, mortal, e a outra celeste, espiritual, intemporal e imortal. Com a “Queda”, o Homem esqueceu a sua natureza divina e chegou ao ponto de crer que só a sua natureza terrestre existe. A via espiritual não mais é que o conjunto de meios que permite ao Homem operar o reconhecimento da sua natureza primeira.

A Iniciação, cerimônia eminentemente simbólica, visa provocar no candidato uma ruptura da representação condicionada e egóica do mundo para lhe abrir um acesso ao Real, ao espaço de liberdade da sua natureza plena. A natureza deste trabalho, uma profunda metanoia reflexiva – até porque o iniciado é confrontado com os caracteres da vida e da morte -, é levar ao questionamento mais profundo do “Quem sou eu?”. Serei este corpo? Serei o meu espírito ou a minha alma? Ou, ainda, serei a minha personalidade? A natureza humana é complexa e é evidente que o Homem não é o que ele pensa. Interpretamos vários papéis no teatro da vida e rapidamente nos identificamos com eles, que constituem, no seu conjunto, aquilo que classificamos como “pessoa”, a personalidade ou o nosso eu. Esta “mentalização” do mundo e de nós próprios tem pesadas consequências, sendo responsável, desde logo, pela criação da noção de tempo, tão fundamental na nossa época. É curioso notar que a noção de tempo evoluiu com a própria evolução da história e a natureza sociológica do homem e nunca, como hoje, essa noção foi tão premente e acelerada. Contudo, outra das fabricações da mente foi a elaboração do eu, que, de fato, não passa de uma ficção, de um fantasma. A ideia que temos de nós próprios é uma construção mental, uma inacreditável mistura de instintos, de condicionantes da nossa educação, das nossas experiências, da influência da sociedade, de sentimentos, de emoções, de pulsões mais ou menos controladas e de recordações acumuladas, às quais damos sentido através de uma narrativa. No quadro dessa artificialidade, o Eu pode tornar-se cambiante, turvo e dividido.

Como atrás referido, o que somos hoje é diferente do que fomos há 30 anos, 20 ou 10 anos atrás. Temos, todavia, a sensação de sermos sempre os mesmos. Essa sensação é sólida? Uma observação atenta permite compreender que não temos apenas um eu variável, mas antes uma multitude de “eus”, que muitas vezes, se opõem, se contrariam ou negoceiam mutuamente. Muito do nosso tempo é usado a gerir as nossas contradições e as nossas incoerências para as tornar suportáveis. Isto não seria dramático se, de maneira inconsciente, mas muito vibrante, não sentíssemos que o nosso “eu” é frágil, fragmentado, dividido, instável, e se não sentíssemos então a necessidade imperiosa de o afirmarmos, a fim de mantermos, a todo o custo, o que pensamos ser o “eu”. É esta identificação com o “eu” e a necessidade de manter essa falsa identidade que causam as manifestações mágicas do ego que afetam a vida de todos os seres humanos em graus diversos. Note-se que o medo de ver esse “eu” desaparecer torna a perspectiva da morte particularmente angustiante.

Em todos os Mistérios se congregou a ideia de uma alma espiritual no homem e uma vida para além da morte. Nesse conceito a alma seria preexistente, habitando num espaço astral, num mundo superior dos deuses e dos espíritos. Por ser uma visão tão subjetiva, a imortalidade da alma não se ajusta à visão prática da ciência e da sua evolução, ainda que a física quântica, no último quartel do século XX e entrada no século XXI tenha vindo a redefinir a questão. Ainda assim, milhões de pessoas testemunham o privilégio de terem vislumbrado uma realidade que abrange espaço e tempo como uma vasta bolha multidimensional. Algumas dessas pessoas parecem ter contactado este reino atemporal através de experiências próximas da morte. Outros, como Einstein, experimentaram episódios de completa libertação das fronteiras do espaço-tempo, através dum processo de ampla lucidez:

“Em tais momentos imagina-se que se está de pé em qualquer ponto desde pequeno planeta apreciando, deslumbrado, a fria e, mesmo assim, profundamente comovente beleza do eterno, do imperscrutável. Vida e morte fluem numa coisa só e não há evolução nem eternidade, apenas Ser.”

O medo da morte marca muito mais as nossas vidas do que as nossas mentes conscientes estão dispostas a admitir. Conforme escreveu David Viscott:

“Quando se diz que se tem medo da morte, na verdade está-se a dizer que se tem medo de não ter vivido a sua verdadeira vida. Este medo cobre o mundo de silencioso sofrimento.”

Na realidade, a morte não é força toda-poderosa que o nosso medo diz que é. Na natureza, a morte faz parte do ciclo maior do nascimento e da renovação. O ciclo interminável da renovação da vida não se situa além da morte – ela incorpora a morte, usando-a para um objetivo maior. Presumir que a morte existe é, de igual modo, uma meia verdade, pois há muitos níveis do nosso corpo que nem tomam conhecimento de algo designado como extinção. Os nossos átomos têm bilhões de anos de idade e ainda restam neles outros bilhões de anos de vida. Sabiamente, dizia Shakespeare:

“Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”.

Sim, como “afirmara” já o grande poeta inglês do século XVI, os átomos não passam de energia transformada, e se somos compostos por estes ingredientes imortais, porque não nos vemos à mesma Luz?

Também a morte – esta simbólica -, opera no processo iniciático maçônico uma tradição primordial. Quer no processo iniciático quer no processo de exaltação, a morte, nas suas várias interpretações alegóricas, é tida como um fator impressivo de aprendizagem. Como afirmou Fernando Schwarz:

“A morte é um valor essencial, e os valores morte e iniciação são interativos”.

A morte física acaba por ser assimilada a um rito de passagem a uma condição superior. Não podemos transformar o neófito num homem superior sem “matar” o homem inferior que nele existe. Esta, mais que a morte física, representa a morte do Ego. Não se trata de uma morte efetiva, mas sim de um processo de apaziguamento do nosso homem-animal, do aniquilamento possível dos nossos mecanismos egoístas. A morte é assim encarada como um processo de renascimento, de evolução do homem dentro do homem. A morte não é um fim, é sim um recomeço. A maçonaria transmite esse conhecimento imemorial que, para se renascer, física e simbolicamente, é preciso “morrer” primeiro. Esta, na sua conceção deísta-teísta, concebe a imortalidade da alma humana e crê – como via espiritual – na regeneração (em vida) do Homem. A vincada alegoria da morte no simbolismo maçônico é uma mensagem vivente de fé na imortalidade do Ser. Não de uma fé cega e dogmática, mas de uma fé prenhe de saber espiritual e racional. O mundo é vibração. O pensamento é energia. Tudo vibra na compleição da existência e a morte – estado vibratório pretensamente nulo-, só pode ser concebida como estado transitivo, porque tudo no universo “vive”. Mesmo a morte, por artificio poético, estético ou literário, só pode ser concebida como a antecâmara de mais vida, de mais sonho e de maior imaginação. O que existirá para além da morte? O que é a morte? Qual o sentido da morte? Há um eu na compleição da morte? Relatos de quase morte evidenciam esse plano ascensional como centro observatório. Será a morte a matéria inefável reveladora da consciência, dessa individualidade única forjada no momento da Iniciação final?

Autor: [Giordano Bruno], M∴M∴

Fonte: Academia.edu

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Por que te tornaste maçom?

A esta pergunta, o novo Aprendiz responde: “Porque eu estava na escuridão e desejava a luz”.

Duas outras perguntas derivam dessa primeira. Como se pode esperar desejar algo que não conhecemos? Se admitirmos que esta Luz estava em nós, embora a ignoremos, como a Maçonaria poderá nos fazer descobri-la?

A luz!  Termo mágico … base de nossa criação, da Gênesis, fonte de vida, ela é o ponto principal de onde tudo emana. Em todos os tempos, o homem se pergunta sobre essa luz que brilha nas trevas, que inflama as mitologias, os contos, os sonhos. É a jornada secreta do homem em busca de seu futuro espiritual.  Ele transfigura o Ser e multiplica sua imaginação criadora através do tempo e do espaço.

Uma noite, Hermes teve a visão de uma forma de luz que lhe revelava o Conhecimento. Ele a questionou, dizendo: “Quem é Você? ─ Você mesmo”, respondeu ela. Tendo citado esta visão de Hermes, Henry Corbin acrescenta: “O que é o buscador? O que é buscado? A essa pergunta, Najmoddin Kobrâ, apelidado de “o criador de santos”, um mestre sufi persa, nascido em 1145, responde: “O procurado é a Luz divina, o buscador é uma parcela dessa Luz”[1].

Assim se apresenta a maravilhosa história de amor entre a Luz divina e a luz que emana dela. Esta última geralmente ignora sua origem, e é por isso que ela procura fora do que tem dentro de si. Por muito tempo, o homem, portador da luz, tende a se perder tomando as reflexões cintilantes por realidades. Percebendo seu erro, ele entende que seus sentidos externos são incapazes de ver a Luz, de tocá-la e de perceber seu apelo. Esses cinco sentidos são o sinal por excelência da manifestação grosseira e sensível que domina o estado de Aprendiz. Esses cinco sentidos permanecem inexoravelmente exotéricos, porque para encontrar a Verdade, não há necessidade de a buscar … De fato, o buscador da Verdade deve, antes de tudo, ser um buscador de erros, e uma vez que ele tenha encontrado os erros e os derrubados, a Verdade aparecerá nua, pura e simples como sempre foi e nunca deixou de ser.

Aqueles que não são feitos para a finalidade, geralmente não sendo feitos para o caminho, pararão na superfície do erro sem jamais alcançar o núcleo da Verdade e, portanto, a disciplina do arcano que convém a todo ensinamento esotérico não fará seu trabalho. Aqueles que, ao contrário, não se apegam à superfície dos cinco sentidos, compreenderão a correspondência que era feita na Antiguidade entre os sentidos físicos e os sentidos ou faculdades da alma, ou seja, entre os órgãos da percepção sensível e da percepção sutil. Porque, se é possível ao nosso corpo físico perceber o mundo através dos cinco sentidos, a alma pode ver, ouvir, provar, cheirar e tocar graças às suas faculdades sutis. E o processo de unificação do múltiplo, que preside toda iniciação, não terá qualquer problema para permitir que a alma concentre seus cinco sentidos sutis no que é chamado de “quintessência” [2]. Seus sentidos externos, portanto, sendo para isso incapazes. Pouco a pouco, seus sentidos internos nascem, mas eles ainda são frágeis, incapazes de contemplar a plenitude da Luz.

Angustiado, e às vezes vítima de uma vertigem abismal, o homem se olha imaginando quem ele é. Pelo conhecimento de si mesmo, ele percebe sua obscuridade, sua escuridão, suas trevas. Não se trata de negá-los, mas de assumir sua transmutação. Somente quando o buscador tiver sido capaz de mergulhar em sua dimensão de profundidade, em seu fundo sem fundo, é que ele poderá descobrir dentro de si a Luz viva.

É exatamente essa abordagem que é empreendida por nossa busca de desejar a Luz que nos fez procurar ser Maçom. Ela vai encontrar quem a procura e em quem ela habita. Ela gostaria de clarear tudo, sabendo que seu brilho poderia se tornar mortal para um olhar turbado. Então, por compaixão, ela se filtra. De tempos em tempos, para sinalizar sua presença, ela deixa aparecer um brilho comparável em sua brevidade a um piscar de olhos, o mesmo que percebemos inconsciente e furtivamente na Câmara de Reflexão. Esse brilho suave pode ser suficiente para capturar e seduzir aqueles que partiram em sua busca.

No processo empreendido pelo homem portador da Luz, as etapas e as peregrinações são numerosas e longas. Às vezes, o buscador anda em círculos, se cansa, se desespera com os obstáculos e tenta contorná-los. Ele se deixa distrair e corre o risco de esquecer o objetivo de sua viagem. A distância que o separa da Luz lhe parece insuperável e, por compensação, ele se apaixona pelas luzes fracas que o aprisionam. Sua ignorância é pesada e obscurece sua cegueira.  Assim que ele entende que deve purificar seu coração para receber a plenitude da Luz, ele gradualmente se liberta das trevas. Os antigos alquimistas sabiam que, sob sua aparência obscura, o chumbo contém “a flor dourada”. O importante é derretê-lo para que o ouro possa saltar. Assim, o coração do homem, duro e frio como um pedaço de gelo, derrete-se lentamente e dele flui água viva brilhante, toda iluminada por sua própria luz interior: a imagem do Princípio.

Durante sua transformação, o homem não se preocupa. Os textos das Sagradas Escrituras o tranquilizam: “Eu te livrarei de teu chumbo” (Isaías I, 25); “O chumbo é consumido pelo fogo” (Jeremias. VI, 29); “Vossos pecados se tornarão brancos como a neve” (Isaías I, 18). O homem se entristece apenas pela lentidão de seus passos. Ele gostaria de saltar diante da Luz, mas se sente como acorrentado por si mesmo. A Iniciação opera, o homem a recebe com alegria e lhe responde dirigindo seu olhar para a fonte da Luz. Mais ainda, seu olhar como se pregado se torna imóvel. Essa imobilidade é ao mesmo tempo movimento e repouso, confiança dinâmica e abandono.

De repente, eis o homem portador da Luz imerso em sua profundeza suprema. Ele entende que a Luz sempre esteve presente e que ele não sabia. Ela esperava pacientemente ser vista e aceita. Ela se escondia para incentivar a busca. Descoberta, ei-la aqui revelada. Ela ilumina o Homem que respondendo ao seu desejo de Luz, abandona suas próprias trevas.

Uma transformação total ocorre então no homem. Seu coração se torna uma chama comparável àquela que queimava, sem o consumir, a sarça ardente. Para ele, não há mais solidão e isolamento, ele não somente se une à Luz, mas também se une a todos os homens nos quais a Luz está viva através do amor fraternal. Ele participa da existência de criaturas das quais ele percebe o segredo luminoso.  Tudo é, para ele, um espelho refletindo a Luz do Princípio, assim ele amará as pedras, as plantas e os animais. Deslumbrado, o homem de Luz liga incessantemente o visível ao invisível. Agora, eles são um só para ele! Não estando mais estimulado pelos eventos externos e jogado de um lado para outro por eles, ele se liberta das formas e imagens pertencentes ao mundo da manifestação.

O espírito, isto é, o fio da alma ou o nous, tendo recuperado a Luz do Princípio, torna-se criador e, portanto, portador de germes de Vida. A renovação pela Iniciação ocorre no segredo da metanoia, que inicia a transformação gradual das trevas em Luz e de morte em vida. A passagem do obscuro para o luminoso significa a mutação ontológica que vai do múltiplo à Unidade. Assim, a nostalgia da Luz, experimentada naturalmente pelo homem, expressa uma tendência à Unidade, fonte de estabilidade, e o filho da Luz, o puer aeternus, apresenta-se como uma eclosão da Unidade.

Quando o embrião de Luz toma forma nele, o homem descobre seu tesouro de Luz, um pouco como um sol, e ele agora entende a correspondência entre esse sol exterior ou melhor, o Delta Luminoso, e seu sol interior ou a Estrela Flamejante. Um e outro iluminam sem privilegiar. O espaço que eles iluminam nunca é possessivo, daí a dimensão cósmica do homem que se tornou luminoso. Assim, a Luz é a herança do homem que ainda vive no tempo, enquanto se encontra fora do tempo, da maneira que se pode viver no mundo sem ser do mundo.

Todas as tradições, sejam do Oriente ou do Ocidente, fazem alusão, em diferentes linguagens, à busca recíproca da Luz divina e da luz humana. As religiões permanecem focadas na plenitude da luz, na medida em que tentam manter seu momento inicial, mas isso sempre é sobrecarregado por desvios inevitáveis.  Agora, apenas o homem que atingiu a plenitude da era espiritual se torna capaz de estimar os diferentes caminhos, porque se trancar em uma fortaleza fechada só convém aos fracos e pusilânimes. Esta é a razão pela qual, quem estava nas trevas e desejava a Luz, tornou-se maçom. De fato, a verdadeira iniciação, conforme praticada durante o Ritual do REAA, permite satisfazer esse desejo.

Durante a Sessão, o Templo Maçônico, ao mesmo tempo que a Loja, é primeiro sacralizado e transformado em um espaço ritual. Para se tornar seu Centro físico e simbólico, o Painel da Loja deve ser ativado por meio de um Ritual que lhe comunique uma alma e o carregue, de acordo com a mesma lógica que a da abertura dos painéis do retábulo durante um ofício religioso. A partir daí, a imagem é efetivada por meio de uma cosmogonia, uma verdadeira recriação do mundo, mobilizando gestos, silêncio, palavras e … a Luz. Durante sua Iniciação, o Maçom se torna filho da Luz, porque a Luz cria o Maçom como ela criou o Universo. Princípio ativo da Criação, energia infundida no Caos pelo Espírito, a Luz sacraliza o espaço do Painel, portanto, o espaço e o tempo do Templo e da Sessão. Assim, ela própria sacralizada pelo Ritual de Abertura da Loja, emoldurada de Luz e espiritualizada pelas estrelas nos três Pilares cuja iluminação corresponde a um novo Fiat Lux, o Painel espiritualiza, por sua vez, o espaço do Templo, razão pela qual o traçado do Painel não exige nenhum comentário!

A divisa de nosso Rito não é “Ordo ab Chao”? Ela se refere-se à iniciação, à “iluminação”, uma vez que é a vibração original do Fiat Lux que determina o início do processo cosmogônico pelo qual o “caos” será ordenado a se tornará o “cosmos”. As trevas sempre representam, no simbolismo tradicional, o estado de potencialidades não desenvolvidas que constituem o “caos” [3]. A luz está, portanto, bem “depois das trevas”, e isso não apenas do ponto de vista “macrocósmico”, mas também do ponto de vista “microcósmico”, que é o da iniciação, pois, nesse sentido, as trevas representam o mundo profano, de onde vem o recipiendário, ou o estado profano em que ele se encontra primeiro, até o momento exato em que será iniciado “recebendo a Luz”. Pela iniciação, o ser passa, portanto, “das trevas à luz”, como o mundo, em sua origem, passou pelo ato do Verbo criador e ordenador. Assim, a iniciação é verdadeiramente, de acordo com uma característica muito geral dos ritos tradicionais, uma imagem do “que foi feito no começo”.

Nesse sentido, se olharmos em Gênesis I, 1-4, lemos:

“No começo, Elohim criou os céus e a terra. E a terra estava sem forma e vazia, e as trevas sobre um abismo. E o sopro de Elohim pairava sobre a face das águas. Elohim diz: que haja luz! e a luz se fez. Elohim viu a luz: que boa! e Elohim separou a luz das trevas. “

A primeira palavra criadora é “que haja luz”. A vontade original do Criador se relaciona à Luz. A cada criação, “Elohim via que aquilo era bom”, com a diferença de que no primeiro dia é a própria luz que é contemplada e declarada boa. A maravilha divina expressa na exclamação “Elohim viu a luz: que boa!” sublinha a ausência de uma função atribuída à luz. Ela nada produz. Elohim a contempla e a declara boa.  De onde vem ela? Nós o ignoramos. Sabemos apenas que é considerada boa pelo Criador. Podemos considerar, por esse fato, a primeira palavra divina como uma fórmula perfeita de criação. Palavra e criação estão intimamente ligadas nesta primeira fórmula criadora. A proximidade entre a palavra e a existência da luz é tão completa que esta é considerada boa. Do 2º ao 6º dia, “Elohim viu que era bom”, mas o ser criado não é explicitamente nomeado como o sujeito desse julgamento.  No final de 6º dia, “Elohim viu tudo o que havia feito e eis que era muito bom” [4]. Mas no primeiro dia “Elohim viu a luz: que boa!” No Sepher Ha”meq Dabar, comentário sobre Gênesis I, 4, nos é dito: “Em toda criatura, podemos encontrar um elemento, por menor que seja, que não é bom.  Da luz, no entanto, que é absolutamente boa, se diz em nosso texto “que boa”. Não está escrito: “que ela é boa”, porque a expressão “que boa” conota uma qualidade superior àquela expressa no julgamento: “que ela é boa”. Então esse é o ternário do começo: o Criador, o mundo sombrio e caótico e a Luz.

Por outro lado, o cosmos, enquanto “ordem” ou conjunto ordenado de possibilidades, não é apenas extraído do “caos” enquanto estado “não ordenado”, mas ele também é produzido propriamente a partir deste (ab Chao), onde essas mesmas possibilidades estão contidas no estado potencial e “indistinto” e que é assim o ponto de partida “substancial” para a manifestação deste mundo, como o Fiat Lux o é, por sua vez, o ponto de partida “essencial”. De maneira semelhante, o estado de ser anterior à Iniciação constitui a substância “indistinta ou pedra bruta” de tudo o que poderá se tornar efetivamente depois. Mas a Iniciação não pode ter o efeito de introduzir nele possibilidades que não estariam lá em primeiro lugar (e, além disso, essa é a razão de ser das qualificações exigidas como pré-requisito). Mas, essas possibilidades, quando existem, ainda são encontradas apenas no estado “caótico e tenebroso” ou thohû vabohû do Gênesis, e é preciso “iluminação”, ou seja, Iniciação efetiva, para que eles possam começar a se ordenar e, da mesma forma, passar de potência ao ato. De fato, deve ser claramente entendido que essa passagem não ocorre instantaneamente, mas continua durante todo o trabalho iniciático. É o trabalho interior que vem após a iniciação virtual que diz respeito propriamente à iniciação efetiva, que está, em suma, em todos os seus graus, o desenvolvimento “em ato” das possibilidades às quais a iniciação virtual dá acesso. Essa iniciação virtual é, portanto, a iniciação entendida no sentido mais estrito da palavra, ou seja, como uma “entrada” ou um “começo”.

A iniciação é essencialmente uma transmissão de uma influência espiritual, porque é ela que constitui essencialmente a iniciação no sentido estrito.

É precisamente “porque eu estava nas trevas e desejava a Luz”, que me tornei maçom.

Autor: Joseph Blanc Neveu 
Traduzido por: José Filardo

Fonte: Bibliot3ca Fernando Pessoa

Notas

[1] – Henry Corbin, Da Filosofia Profética no Islã Shiita, em Eranos Jahrbuch, 1962, Zurique, 1963, pp.50-51.

[2] – Jean-Michel Pla

[3] – René Guénon, Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, ch. III.

[4] – Gênesis I, 31.

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O Inefável da Maçonaria

“O mistério gera curiosidade e a curiosidade é a base do desejo humano para compreender” (Neil Armstrong)

Na Grécia antiga, à iniciação aos mistérios do sagrado denominava-se mistagogia, que é uma palavra composta de duas partes: mist + agogiaMist relacionado a mistério, mysterium; agogia, agein, ligado a conduzir, guiar. Portanto, guiar para dentro dos mistérios; iniciar ao conhecimento, à interpretação dos mistérios. Daí o mistagogo, o sacerdote que iniciava os neófitos nos mistérios; o guia (mentor/mestre) que orienta desde os primeiros passos.

Por sua vez, mysterium vem da palavra muein, que significa “fechar os olhos e a boca”, enxergar o segredo e calar-se. O conteúdo é um segredo acessível somente às pessoas que estão sendo iniciadas e que serão guiadas por um caminho que as leva do mundo perceptível, real, envolvendo a vida, os símbolos e ações rituais, em direção a seu significado escondido. Diz o Aurélio: o segredo é o que se oculta à vista, ao conhecimento, que não se divulga. Portanto, o mistério está estreitamente ligado a silêncio, prudência e segurança.

Na Antiguidade Clássica, as escolas não tinham os contornos como hoje compreendemos, pois a cultura era adquirida pela forma iniciática e com um sentido de sabedoria sagrada revelada. Os sacerdotes da alta hierarquia dos mistérios da Grécia e do Egito (hierofantes) e os legisladores (arcontes) excitavam a curiosidade das pessoas e ocultavam as verdades sob o véu de alegorias encorajando dedicação e estudos. Os “Mistérios” eram dramatizações que exibiam alguma lenda significativa das mudanças da natureza. Cada centro de ensinamento possuía uma história simbólica que servia de base a toda concepção dos mistérios onde divindades eram reveladas.

Não obstante o passar do tempo, como as pessoas gostam de contar histórias, que crescem e se multiplicam de fogueira em fogueira, os mistérios se renovam e os exemplos e narrativas se frutificam sempre envoltos em diferentes roupagens e denominações. Conforme ensinou Gustav Meyrink, escritor, dramaturgo, tradutor e banqueiro austro-húngaro, que escreveu principalmente dentro do gênero literatura fantástica,

“Quem não tem a intuição suficiente para descobrir por si mesmo o mistério, não é digno de possuí-lo por outros meios.”

A Ciência existe no mistério e o que não faltam são fenômenos que fogem à compreensão comum e intrigam pesquisadores, sendo a origem da vida, surgida há não mais que 4,2 bilhões de anos, o mais desafiador deles. E a pergunta que sempre intrigou os cientistas é exatamente porque as coisas são do jeito que são. E o ser humano, de modo geral, diante da morte, se enche de medo. É a dúvida sobre o mistério da transformação.

Hoje temos a difusão da moderna tecnologia, na iminência da geração de um “ser artificial e inteligente”, com contornos de algo fascinante e misterioso, mas tratando-se apenas e tão somente de uso intensivo da informática, que em breve tornará muito difícil separar o que é real do digital. Com o avanço das pesquisas sobre prevenção e tratamento de doenças, vislumbra-se mesmo a criação de um ser pós-humano, o que é bem mais assustador.

Na sua obra “2001 – Uma odisseia no Espaço”, Arthur Clark dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada parece ser mágica”, e como sempre, poucos são os “iniciados” nessa seara e despertam curiosidade quanto à aura mística, ao simbolismo e linguagem cifrada através da qual se comunicam e protegem seus conhecimentos e descobertas, aí incluindo segredos militares, empresariais e de Estado, em muitas situações protegidos por legislações e estratégias digitais de segurança específicas. A guerra ora em andamento na Ucrânia acontece também no espaço cibernético, com sites oficiais sendo atacados e sanções sendo aplicadas às plataformas de notícias estatais russas. Nessa guerra híbrida, a tecnologia já é considerada um novo tipo de “soldado”. Cibercrime e invasão de privacidade estão aí para ficar.

Todo negócio tem o seu segredo e, concordemos ou não, todas as disciplinas (economia, matemática, física…), religiões, governos, associações etc., têm lá seus mistérios e uma linguagem própria, carregada de jargões, que não é clara para os leigos e é acessível apenas para os iniciados e pertencentes às respectivas bolhas.

Conforme ensina a doutora em teologia Ione Buyst (2011),

“O mistério é uma realidade tão rica, complexa, abrangente e profunda que é impossível expressá-la ou explicá-la racionalmente. O mistério não é irracional, mas ultrapassa nossa razão. Por isso, só temos acesso a ele por um caminho feito de experiência e de sabedoria, que valoriza o conhecimento simbólico.”

Nos registros do Concílio Vaticano II, NA 2, consta:

“Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai.”

Como principal instrumento pedagógico, a Maçonaria veicula em seus símbolos, mitos e alegorias, mensagens que estimulam reflexão sobre a espiritualidade, somente acessíveis aos iniciados que conhecem a linguagem e decodificam os seus sentidos, de acordo com a capacidade interpretativa de cada um, protegidos por compromissos e juramentos de discrição, favorecendo a identificação e a coesão do grupo. A interpretação e a compreensão de suas verdades é que farão o diferencial na percepção do mundo e na prática das virtudes a eles vinculadas. Por cultuar a razão, a Maçonaria não possui dogmas[1], porém usa essas ilustrações como um caminho para o autoconhecimento. Seus símbolos não são objetos de adoração, mas se constituem em ícones que veladamente encerram Verdades.

Esse “Iniciado” distingue-se do “Profano”[2] (do latim: pro=ante + fanum=templo). O primeiro, tendo ingressado no Templo simbólico da Maçonaria, conhece-o por dentro; o segundo, popularmente referenciado como leigo, fica fora dele, fora do Templo da Sabedoria ou de um real conhecimento da Verdade e da Virtude, das quais reconhece unicamente os aspectos profanos ou exteriores que constituem a moeda corrente do mundo.

Nas religiões e escolas filosóficas antigas (egípcios, persas, gregos, judeus, romanos, celtas e escandinavos), homens e mulheres de qualquer posição e cultura podiam solicitar sua iniciação nos diversos mistérios. Os ensinamentos ministrados aos iniciados, ou discípulos, denominavam-se esotéricos (do grego, esoterikós – interno) ou Mistérios Maiores. E aqueles transmitidos ao público em geral, sem restrições, conhecidos como exotéricos (do grego, exoterikós – exterior) ou Mistérios Menores.

Para Buyst (2011),

“Quem olha de fora, ou quem está dentro sem ter sido iniciado, não conseguirá captar este ‘mistério’ e ser transformado por ele”. “O conhecimento esotérico aliado ao aprendizado permite estabelecer a diferença entre teoria e realidade, consubstanciando-se a experiência pessoal na condição essencial para discernir a opinião da verdade, que é o conhecimento interior.”

Nos evangelhos reconhecemos essa forma de ensinamento. Quando perguntado por seus discípulos por que usava parábolas para falar ao povo, Jesus disse: “Porque a vocês foi dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não” (Mt, 13,11). “Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios” (Eclo, 3,20). “A vós foi dado o mistério do Reino de Deus: aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas, a fim de que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam” (Mc 4, 10-12). Para os Cristãos, o mistério de Deus se revela na pessoa de Jesus.

Anatalino (2013) afirma que todo Maçom, ao ser iniciado nos augustos Mistérios da Arte Real (outra denominação para a Maçonaria) está na verdade penetrando no Reino da Enteléquia, vocábulo este que significa a qualidade de ser que tem em si mesmo a capacidade de promover seu próprio desenvolvimento. Essa passagem do estado de não iniciado para iniciado se dirige mais à mente inconsciente do Aprendiz do que à sua consciência. Na Loja, o simbolismo permite ao não Maçom que vivia nas trevas da ignorância encontrar a luz, representada pelo conhecimento, renascer tal como uma semente depositada na terra para uma nova vida, a vida maçônica, que aprimorando o caráter o torna capaz de exercer na sociedade um papel diferenciado, como um agente cidadão.

Esse mistério da cerimônia de iniciação marca o fim de um ciclo e início de outro, como uma “morte” seguida de uma aparente ressurreição ou renascimento simbólico dentro de uma nova família bastante numerosa, simbolizando renovação ou rejuvenescimento, mediante encenação de testes alegóricos, contemplando ritualísticas próprias do ofício de construtor e os conhecimentos esotéricos a elas vinculados, com um simbolismo arquitetônico introduzido não para servir às crenças, porém ligado aos mistérios da edificação do templo interior, com foco no despertar da consciência, visando a promover no homem a busca do conhecimento de si mesmo, ao gerar uma visão de sua própria estrutura mental[3].

A experiência da iniciação é individual, cada um absorve de uma forma muito particular, por isso se diz que é inefável. Tão simples e considerada “um mistério!”. Devemos nos lembrar de que passamos por várias “iniciações” ou “rituais de passagem” em nossa vida, como aniversários, formaturas, casamentos etc.

Na sequência de sua recepção como Aprendiz, o neófito (planta nova) passa a ser instruído nos primeiros mistérios que somente a ele caberá desvendar, sendo apresentado a uma sequência de instruções e instrumentos simbólicos que o ajudarão nessa empreitada para desbastar a pedra bruta da sua personalidade, numa escalada de graus sobre os quais passará a refletir e trabalhar, paulatinamente tomando ciência dos segredos a que aspira conhecer, e que se resumem na vivência dos princípios maçônicos, os quais não podem ser considerados mistérios na sua essência e sim um farol a iluminar o caminho do aperfeiçoamento pessoal.

Esses assim chamados “Mistérios Maçônicos” são constituídos de todas as verdades morais, ocultas sob a forma de alegorias, expressas por sinais, palavras, números, fórmulas, lendas e cerimoniais, que funcionam como auxiliares de memória. Mas, é importante que fique bem claro, a Maçonaria não é detentora de nenhum segredo oculto, fórmulas mágicas ou poderes escondidos. O considerado “Mistério” maior e pouco compreendido é representado pela magia que encerra o amor entre os irmãos, uma verdadeira forma da União, que purifica a amizade e as relações fraternais.

A recepção ou aceitação de um novo membro na Ordem deve ser entendida como o ingresso em um novo estado de consciência, e num modo de ser interior, do qual a vida exterior é efeito e consequência. Pressupõe, no entanto, o compartilhamento, no seio de uma comunidade iniciática, de um “segredo” por meio de símbolos e instruções expressos por um ritual que fará de um candidato um autêntico iniciado ao grau de Aprendiz Maçom. Nicola Aslan ensina que “não existem segredos na maçonaria para aqueles que se propõem a estudar”. Ademais, esses supostos segredos podem ser vistos por qualquer um, mas por estarem no fundo dos corações dos obreiros não são desvendados pelos olhos ou sentidos, e sim pelo estudo, pesquisa e o silêncio da meditação.

Porém, o que mais se destaca é a questão do “segredo” e que é própria de todos os grupos e organizações que desenvolvem algum conhecimento corporativo com linguajar próprio e por isso representam a garantia de que os Maçons não estão sós no mundo e abandonados à própria sorte, pois aprendem a se reconhecer em qualquer ambiente. A necessidade de manter esses “segredos” de reconhecimento mútuo, tratados nos recintos das Lojas, que funcionam como um canteiro simbólico, e restrito aos seus membros, vem de uma tradição de cuidados que deviam ser mantidos em um ambiente de intolerância e repressão que a Ordem sofreu ao longo da história, quando uma simples indiscrição podia custar prisão, tortura ou até mesmo morte, e por isso se mantinha “invisível”.

A principal causa do ódio e perseguição contra os cristãos primitivos na sociedade romana devia-se ao estilo de vida diferenciado. A humanidade sempre olhou com suspeita para aqueles que são diferentes.

“A conformidade, não a distinção, é o caminho para uma vida livre de problemas, e quanto mais os cristãos primitivos levaram sua fé a sério, mais eles corriam o risco da reação da multidão.”

E eles ainda foram vítimas de calúnias, como a suspeita de que as reuniões cristãs fossem orgias sexuais e disfarce para todo tipo de crime, inclusive com acusação de canibalismo, no sentido de que alguém era comido, com referências às palavras de Jesus: “Este pão é meu corpo, este cálice é meu sangue”. Os pagãos entendiam que os cristãos deveriam estar comendo carne humana e bebendo sangue humano. Essas acusações provavelmente surgiram de um fato característico da natureza humana: o segredo gera desconfiança (Shelley, 2018).

No caso da Igreja Católica, até o século VI, as catequeses eram dadas depois da celebração dos sacramentos da iniciação cristã, porque naquele tempo era praticada a chamada ‘disciplina do arcano’, que mandava guardar segredo a respeito dos ‘mistérios’ da fé, seja da doutrina, seja dos sacramentos. Não se podia revelar nada disso aos não batizados, para evitar mal-entendidos, gozações e até perseguições.

“E, assim, havia para os batizandos o ’elemento psicológico da surpresa’ que destacava de certo modo ‘a eficácia da experiência espiritual’ do sacramento” (Buyst, 2011).

A Maçonaria tem os seus segredos, mas não é uma organização secreta, tem endereço e personalidade jurídica registrada nos órgãos competentes (Estatuto, Regimento Interno e CNPJ). Porém, os seus detratores distorcem esse entendimento. Caso não fossem verdadeiros e consistentes seus propósitos, já teria desaparecido há muito. Fort Newton destaca:

“Quando todos os homens praticarem seus preceitos simples, os segredos inocentes da Maçonaria serão postos de lado, pois sua missão estará cumprida e seu trabalho terminado.”

Na Maçonaria Operativa, os pedreiros livres se reuniam em lugares fechados para discutir questões de trabalho e problemas de interesse da corporação, sendo tratados como secretos todos os assuntos. Inclusive, em épocas de perseguições na maçonaria moderna, chegou a ser adotado o uso de um nome simbólico no intuito de o obreiro ocultar o seu verdadeiro nome, prática essa ainda mantida simbolicamente em alguns ritos.

É consenso na história da Maçonaria que, se a sua essência e aparência fossem claros aos não iniciados em seus alegados mistérios, a Ordem já teria desaparecido, sucumbindo a pressões de impérios e ideologias. O seu glamour é exatamente esta aura de segredo e mistério, que nada mais é do que um véu que cobre certos aspectos a serem preservados através da tradição. Essa aura de mistérios e segredos foi reforçada a partir de 1717, em Londres, com o nascimento da Moderna Maçonaria, quando James Anderson inseriu exposições lendárias em suas “Constituições”, publicados nos diários londrinos da época, com o fito de agregar novos adeptos e com isso chamar atenção com fatos tidos como misteriosos segredos guardados pela Maçonaria. Porém, conforme contido no art. 1º da referida “Constituição”, o foco era que a Maçonaria se tornasse “o centro de união e o meio para estabelecer uma amizade sincera entre homens que de outra forma permaneceriam separados para sempre”.

A narrativa de uma possível transição de Maçonaria Operativa para Especulativa ou dos Aceitos e, em seguida, para a Especulativa por excelência ou Moderna[4], formada então por homens espiritualizados, teria absorvido e adaptado conhecimentos em voga na sua época áurea, atraindo intelectuais de diversas correntes de pensamentos, que agregaram elementos místicos e ocultistas, muitos inspirados na Bíblia, relativamente à época da construção do Templo de Jerusalém, além de elementos da Cabala, do hermetismo, da astrologia e de antigas religiões e processos iniciáticos históricos. Assim, a Maçonaria se assumia como guardiã (alguns dizem “legatária”) de determinados conhecimentos arcanos oriundos de fontes bastante amplas, que seriam comunicados aos membros nas iniciações e nos diversos graus.

Registre-se que ocultismo não é temática maçônica. Mas, isso já é tema para discussões acaloradas entre os defensores da “Maçonaria Autêntica” e da “Maçonaria Romântica”, que desvirtua o sentido dos objetivos primordiais da Maçonaria.  O glamour da Maçonaria ao qual nos referimos anteriormente, que deu a ela uma conotação diferenciada em relação aos clubes sociais vigentes à época de sua estruturação moderna, foi o conteúdo iniciático e esotérico introduzido no século XIX por obreiros provenientes da Ordem Rosa-Cruz. Segundo Rizzardo da Camino (2017), a Rosa-Cruz seria a legítima promotora da Maçonaria Simbólica. Sem essa influência, afirma ele, a Maçonaria teria permanecido até hoje na Inglaterra como corporação puramente profissional[5].

No entanto, dizer que ela é mística tem o condão apenas de afirmar que não é materialista (vide nota 1 acima), pois alimenta o entendimento da existência de um princípio criador, que é Deus, e na imortalidade da alma, “e que todas as formas vivas e belas são símbolos de coisas mais sublimes do que elas”. “Não sendo religião, no sentido do culto litúrgico, aceita e amplia todos os conceitos religiosos, extraindo deles lição de que necessita para orientar seus filiados” (Camino, 2017).

Quanto a dizer que teria na sua origem elementos ocultistas, vale dizer que tal tendência se desfez ao longo do tempo com os modernos recursos de difusão de informações e conhecimento, pelo progresso no campo científico com o surgimento de novas ciências como a psicologia e a parapsicologia no campo experimental, aliados à evolução do comportamento e do pensamento humano, restando ao mundo ocultista o plano esotérico e espiritual. A absoluta liberdade de consciência e o racionalismo se constituem nos efetivos pilares da Maçonaria.

É sabido que vários escritores maçônicos imaginosos dotaram seus símbolos históricos e tradicionais de significados que nunca tiveram, além de introduzirem dramatizações descabidas e que somente os verdadeiros iniciados vislumbram as diferenças e não repercutem essas lorotas. Alguns evocam uma suposta egrégora em Loja, que não faz parte da tradição maçônica que prima pela razão, e ainda fazem mise-en-scène para plateias desinformadas ou pose de maçons misteriosos exatamente por não estudarem e usam de subterfúgios para camuflar a ausência de conhecimentos. Parodiando a escritora e teósofa Annie Besant, ensinam o que não sabem, como seguro refúgio de sua ignorância.

Fort Newton ensina: “aquele que professa uma religião, que não seja somente teoria ou forma, é um místico, existindo entre ele e os grandes místicos apenas uma diferença de Grau”. Acrescenta ainda, “misticismo não é patrimônio exclusivo de um grupo de adeptos para ser encarado como um segredo …. Qualquer homem que se curve numa oração, ou eleva seu pensamento ao céu, é um Iniciado no misticismo eterno, que é a força e o consolo da vida humana”. O misticismo diferencia os seres humanos dos animais e a vida se manifesta por meio de atos místicos. Importante, ainda, refletir sobre o pensamento de Joseph Campbell:

“Mitologia é nome que damos à religião dos outros.”

Conforme ensina Camino (2017), “o homem necessita sempre de um amparo vindo do Alto, do mistério extraterreno, do Infinito, poderoso e que atenda a seus caprichos”. Ao fim e ao cabo, é com o autoconhecimento, olhando para dentro, que misteriosamente encontramos o que tanto procuramos alhures. Cícero afirmava que “nos Mistérios, nós percebemos os princípios reais da vida e aprendemos a viver de maneira feliz, mas principalmente a morrer com uma esperança mais justa.”

“Por que é que o cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga”. (Clarice Lispector)

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da Loja Maçônica Águia das Alterosas Nº 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte; Membro Academia Mineira Maçônica de Letras e da Academia Maçônica Virtual Brasileira de Letras; Membro da Loja Maçônica de Pesquisas “Quatuor Coronati” Pedro Campos de Miranda; Membro Correspondente Fundador da ARLS Virtual Luz e Conhecimento Nº 103 – GLEPA, Oriente de Belém; Membro Correspondente da ARLS Virtual Lux in Tenebris Nº 47 – GLOMARON, Oriente de Porto Velho; colaborador do Blog “O Ponto Dentro do Círculo”.

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Notas


[1] Sobre a alegada inexistência de dogmas, pergunta-se o que seria a crença em um “Princípio Criador” e na imortalidade da alma, presente em alguns Ritos.  O Rito Sueco, mais praticado nos países escandinavos (Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia, além da Islândia), e em muito menor escala nos Países Baixos e na Alemanha, com origem a partir de 1759, tem sentido profundamente cristão. Conclui-se, assim, que não existe uma Maçonaria, mas Maçonarias e inúmeros Ritos, cada um com suas tradições, usos e costumes inerentes à sua estrutura iniciática e que podem variar entre as Potências.

[2] Infelizmente, o termo “profano”, dentre seus vários significados, somente é referenciado como aquele que deturpa ou viola coisas sagradas. Essa é uma situação que constrange e que poderia ser substituída, no caso da Ordem, pela expressão “não maçom”, muito mais palatável. Guénon (1947) ensina que a palavra “clero” significa “instruído”, e se opõe ao “secular”, que se refere ao homem do povo, ou seja, o vulgar, assimilado ao ignorante ou ao “profano”, de quem só se pode pedir para acreditar no que não se pode compreender, porque só assim se faz participar da tradição na medida de suas possibilidades.

[3]  Ver o Artigo “A alegoria do Templo e a Iniciação Maçônica”, em: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2019/03/12/a-alegoria-do-templo-e-a-iniciacao-maconica/

[4] https://opontodentrocirculo.com/2021/04/23/maconaria-moderna-o-legado-escoces-parte-i/

[5]  Ver Influência da Bíblia na Maçonaria em: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2018/08/28/a-influencia-da-biblia-na-maconaria/

Referências:

BUYST, Ione. O Segredo dos Ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011.

CAMINO, Rizzardo da. Simbolismo do Terceiro Grau. São Paulo: Madras, 2017.

CONCÍLIO VATICANO II: NA 2 – declaração Nostra Aetate sobre a igreja e as religiões não-cristãshttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html, acesso em 09.02.2020.

OLIVEIRA FILHO, Denizart Silveira de. Da Iniciação rumo à Elevação. Londrina: Ed. “A Trolha”, 2012.

FIGUEIREDO, Joaquim Gervásio. Dicionário de Maçonaria: seus mistérios, ritos, filosofia, história. São Paulo: Pensamento, 2016.

GUÉNON, René. Autoridade Espiritual e Potência Temporal (1947), disponível em https://docero.com.br/doc/cxv5vx1. Acesso em 20.01.2022.

KRIWACZEK, Paul. Babilônia: a Mesopotâmia e o nascimento da civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

NEWTON. Joseph Fort. Os Maçons Construtores: uma história e um estudo sobre a Maçonaria. Londrina: Ed. Maçônica “A Trolha”, 2000.

RODRIGUES. João Anatalino. O Tesouro Arcano – a maçonaria e seu simbolismo iniciático. São Paulo: Madras, 2013.

SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

XAVIER, Arnaldo. Saiba o que são Maçonarias. Belo Horizonte: Label Artes Gráficas, 2010.

O Primeiro Maçom Especulativo

A imagem da Marca do Maçom de Robert Moray, desenhada por ele mesmo.

Elias Ashmole (1617-1692) não foi o primeiro Maçom Especulativo. Nem o segundo, terceiro ou décimo! Os primeiros Maçons Especulativos foram William, Lorde Alexander, e seu irmão Anthony Alexander (o Mestre dos Trabalhos do Rei) e o Senhor Alexandre Strachan de Thornton. Eles foram iniciados no terceiro dia de julho de 1634, na Loja de Edimburgo, isso é mais de 12 anos antes de Elias Ashmole[1] Para entender a importância disso e marcar a iniciação de Ashmole no contexto, vamos fornecer algumas informações fundamentais.

No período desses eventos, a Escócia era um país inteiramente independente da Inglaterra. A União das Coroas em 1603 (James VI da Escócia se tornou James I da Grã-Bretanha) pelos reinos da Escócia e Inglaterra não uniu os dois países por completo. Por exemplo, a Escócia manteve seu próprio Parlamento, sistema monetário, leis, religiões e, claro, a Maçonaria. Em 1534, Henrique VIII da Inglaterra instituiu a reforma religiosa, se colocando como a cabeça da Igreja no lugar do Papa de Roma. A sua motivação era anular seu primeiro casamento com Catarina de Aragão e a recusa do Papa em prover tal anulação. O motivo era mais legal, jurisdicional e político do que religioso[2]. Uma vez estabelecido, Henrique aproveitou a oportunidade para confiscar a maior parte do dinheiro e propriedades da Igreja. As organizações que deram suporte e encorajaram a pré-Reforma religiosa foram abandonadas, seu dinheiro e propriedades foram confiscadas e isso incluiu as Guildas Inglesas. A situação na Escócia era um tanto diferente. A Reforma Protestante iniciou em 1559 e era de natureza religiosa. A Igreja Católica e muitas de suas práticas foram substituídas por um novo sistema religioso completo, baseado no Calvinismo. E tem mais! Diferente da Inglaterra, as Guildas Escocesas (conhecidas como Incorporações), não foram abolidas mas seu suporte religioso à pré-Reforma da Igreja simplesmente se encerrou quando a nova fé Protestante foi estabelecida [3].

As Incorporações Escocesas (diferente das extintas Guildas Inglesas) funcionaram na Escócia antes e depois da Reforma [4]. A principal proposta das Incorporações era de promover os interesses de seus membros. Considerá-las como uma forma primária de “sindicato empregatício” explica o que elas eram à época, mas elas faziam mais do que simplesmente negociar com empregadores. Elas eram responsáveis por regular o ofício de seus membros e estender seus trabalhos controlando pagamentos, supervisionando a qualidade do serviço, gerenciando os termos de aprendizado, promovendo funerais de membros falecidos, cuidando de suas viúvas e órfãos e também promovendo a moral de seus membros.

Todos os grandes ofícios tinham suas Incorporações, incluindo os Baxters (padeiros), Cordiners (sapateiros); Fleshers (açougueiros); Hammermen (ferreiros); Wobsters (tecelões); e claro os Masons (trabalhadores de pedra). Quando novos membros eram admitidos a uma Incorporação, certos segredos eram comunicados para cada um deles [5]. Entretanto, e mais importante, somente a incorporação dos Maçons tinha um nível adicional – a Loja. Nesse ponto os Maçons eram únicos. A razão porque um corpo extra era necessário se dava ao fato de que a Incorporação de Maçons também incluía outros ofícios como os Wrights (carpinteiros) e Coopers (produtores de barris) e comunicar os segredos dos trabalhadores de pedra não podia ser realizado onde havia a presença de não-Maçons. A Loja era então o lugar onde os segredos eram transmitidos dos Trabalhadores de Pedra para os Trabalhadores de Pedra e a ninguém mais. Incorporações eram parte conhecida e aceita da sociedade escocesa, elas eram a parte pública dos Maçons mas a Loja era o Segredo – a face privada do Ofício. As Incorporações mantiveram registros de seus trabalhos, já as Lojas não.

Isso mudou em 1598 quando o Mestre dos Trabalhos do Rei (“King’s Maister o’ Wark”), William Schaw (c. 1550-1602), escreveu o que é hoje conhecido como o Primeiro Estatuto de Schaw e foi seguido pelo seu Segundo Estatuto em 1599. Por causa deles Schaw é conhecido como o Pai da Maçonaria Moderna. Sem entrar em detalhes sobre esses documentos, é importante entender que eles eram instruções endereçadas para todas as Lojas na Escócia. Contém um grande número de informações interessantes sobre as Lojas de Maçons, mas é importante aqui marcar que eles formalizam uma organização já existente. Schaw entendia seu trabalho como sendo ele o encarregado de uma ordem de Lojas espalhadas pela Escócia que eram controladas de forma informal, até desorganizadas. Seus Estatutos instituíam um sistema organizado, que incluía a manutenção de registros e é por isso que o mais antigo registro de uma Loja só veio após seu estatuto [6].  O estabelecimento de um sistema nacional de Lojas de Maçons foi, sem dúvida, para o benefício do próprio Schaw, pelo ponto de vista da eficiência, mas também que os estatutos foram atualmente um subterfúgio para assuntos esotéricos que o espaço aqui não nos permite debater. Schaw morreu em 1602 deixando um sistema nacional de Lojas, como detalhado em seus Estatutos, que conseguimos ver a continuidade até os dias atuais [7].

Uma das inevitáveis consequências das instruções de Schaw foi que as Lojas se tornassem fixas, permanente, instituições. Elas não seriam mais casuais, encontros quando necessário (normalmente para iniciar um candidato ou conduzir os trabalhos de uma Loja). Depois da morte de Schaw, as Lojas agora se reúnem em dias específicos (a principal reunião anual sendo no dia 27 de dezembro – o Festival de São João Evangelista) e mantém registros. Um grupo de homens agora identificável, que se reunia com certa regularidade, com certeza atraiu atenção da sociedade. Se essas Lojas admitiam não-operativos antes que Schaw as formalizasse, não teremos como saber, visto que não se mantinha registros escritos até que os Estatutos as instruísse a fazê-lo. É um pensamento muito interessante, embora especulativo, que Schaw possa ter sido o primeiro não-operativo (um Maçom Especulativo) a ser iniciado em uma Loja.

Assim que Lorde Alexander, seu irmão e um amigo se tornaram membros da Loja de Edimburgo, outros não–operativos também se juntaram à Loja. Em 1635, Archibald Stewart de Hesselsyd se tornou membro. Ele foi seguido por David Ramsay (um “servo especial” do Rei – que agora era Charles I (1600-1649)) em 1637 e mais tarde, naquele ano, Alexander Alerdis se juntou à Loja. Henry Alexander (o irmão do Lorde Alexander e Anthony que foi admitido na Loja em 1634) se tornaram membros da Loja em 1638 [8].

A iniciação desses não-operativos é de grande importância para a compreensão da origem e desenvolvimento da Maçonaria Moderna mas, a iniciação do Sr. Robert Moray (1608/09-1673), em 1641, é ainda mais importante por vários motivos. Ele foi o primeiro Maçom Especulativo a ser iniciado em solo inglês.

Resumidamente, Moray fazia parte do exército inglês que ocupou, após o cerco a Newcastle, a Inglaterra, durante a chamada “Guerra dos Bispos” (1639-1640). Membros da Loja de Edimburgo foram pioneiros contratados pelo exército para o trabalho de construir pontes e fortificações e realizaram uma reunião especial para iniciar Moray e outro general do exército, Alexander Hamilton. Não há nada de especial nisso, já que era uma prática conhecida como “inscrições abertas”, conforme atestado por várias Iniciações similares vistas em vários registros de Lojas. Também está de acordo com o velho costume da Maçonaria Escocesa de crer que uma Loja não possui um lugar fixo, mas que uma Loja é uma reunião de homens que pensam juntos e se unem para os propósitos da Maçonaria. Este registro da iniciação de Moray significa que ele foi feito Maçom cinco anos antes de Ashmole.

Moray foi o principal entusiasta da Fundação da Royal Society e tornou-se seu primeiro presidente. A reunião inaugural da sociedade foi realizada na quarta-feira, 28 de novembro de 1660, no Colégio Gresham, em Londres, com a presença de 12 eminentes cavalheiros. Ashmole não era um deles. Esses 12 prepararam uma lista de 40 outros emitentes cavalheiros para serem convidados para se unirem a nova sociedade. Ashmole estava na lista e, portanto, embora fosse um dos primeiros membros da Royal Society, não era membro fundador [9]. A Royal Society ainda realiza sua reunião anual no dia de Santo André (30 de novembro) em homenagem ao seu primeiro presidente Escocês [10]. Moray e Ashmole devem, portanto, ter se encontrado, mas não existe nada que eleve a natureza de seu relacionamento. Se eles já discutiram sobre Maçonaria também é desconhecido. A ausência de provas pode, ocasionalmente, fornecer algumas hipóteses, pois elas nos permitem comparar o “silêncio” com algo que é conhecido.

Como vimos, Moray foi iniciado em uma Loja fixa, permanente, como as dirigidas por William Schaw em seus estatutos [11]. Ashmole, em comparação, foi iniciado em uma Loja cuja evidência de sua existência é uma anotação antiga em seu diário pessoal. Parece, portanto, que a Loja em Wattington, Inglaterra, era na melhor das hipóteses uma Loja ocasional, e consequentemente muito diferente das Lojas Escocesas. Se elas trabalhavam da mesma forma, ou mais especificamente, se conduziam as mesmas cerimônias de iniciação é um segredo. É dito que não sabemos nada sobre os rituais maçônicos em uso antes de 1717 [12]. Isso é incorreto pois há uma grande quantidade de material escrito sobre esse mesmo assunto [13]. Estes rituais compreendem uma família de documentos muito semelhantes, dos quais o Edinburgh Register House MS de 1696 é o mais antigo deles [14]. A existência desses rituais nos permite ver o formato das cerimônias usadas por Lojas na Escócia antes da existência de qualquer Grande Loja e aumenta as questões sobre que tipo de cerimônia Ashmole experimentou. Foi a mesma praticada nas Lojas Escocesas? Se sim, então ele teria sido iniciado como Moray, no “Estilo Escocês”. Se não, então não estava de acordo com a prática estabelecida à época.

O interesse de Ashmole na Maçonaria era, na melhor das hipóteses, fugaz. Seus diários detalhados e meticulosos mostram que ele foi “iniciado” em Warrington em 16 de outubro de 1646. Ele nunca mais compareceu a uma reunião em Loja. A única outra ocasião maçônica relacionada a Ashmole é novamente encontrada em um diário de 1682 quando ele participou de uma reunião de Maçons na Mason’s Livery Company (algo como Companhia de Maçons de Panelas). A carreira maçônica de Ashmole está em forte contraste com os Maçons especulativos mencionados acima, que continuaram a frequentar as reuniões da Loja por vários anos após sua Iniciação, sendo impedidos somente durante a guerra. Ashmole não escreveu nada sobre a Maçonaria além das duas breves entradas em seu diário. Moray, por outro lado, escreveu uma grande quantidade, principalmente descrevendo e interpretando o uso da Marca do Maçom e o que a Maçonaria significava para ele [15]. Ele não revelou o que poderia ser considerado um segredo Maçônico e não estava preocupado com as pessoas o reconhecendo como Maçom [16]. Em comparação a Ashmole, Moray considerava seu ingresso a uma Loja muito importante, e a Maçonaria e, particularmente, sua Marca de Maçom com um símbolo místico significante.

Moray e Ashmole compartilhavam algo em comum – o interesse em alquimia. Moray construiu um laboratório de alquimia no Palácio Whitehall. Os quartos foram doados pelo Rei. Ele era amigo pessoal de Charles II (1630-1685) e foi essa amizade fundamental para obter a aprovação para a Royal Society em 1662 [17]. Um de seus experimentos foi a tentativa de extrair chumbo de uma rocha e depois de transformar esse chumbo em prata. Nisso ele foi parcialmente sucedido e relatou os resultados do experimento para a Royal Society.

Conclusão

Podemos ver no breve resumo do sistema de Lojas Escocesas descrito acima que mais de 100 anos antes da existência de qualquer Grande Loja, as Lojas de Maçons Operativos já iniciavam não-operativos. Eles o fizeram por uma variedade de razões e uma vez feito, nunca mais pararam a admissão de não-operativos em suas Lojas. A Maçonaria Especulativa Moderna nasceu entre várias adições, mudanças e elaborações. A mudança nas Lojas de Operativos para Lojas Maçônicas Modernas é conhecida como a “Teoria da Transição” e é algo que pode ser visto claramente nos registros escritos das Lojas Escocesas. Os detalhes dos indivíduos reais, Maçons Especulativos, iniciados já em 1634 são parte da evidência escrita. Informações como essa destacam a importância desses registros das Lojas.

Para aqueles que desejam saber mais sobre os primeiros dias da Maçonaria Moderna, não posso fazer melhor do que recomendar os trabalhos do professor David Stevenson. São eles: As Origens da Maçonaria – O Século da Escócia (1590-1710), disponível em português, encontrado em Sebos) e O Primeiro Maçom – As Primeiras Lojas Escocesas e seus membros (The First Freemasons – Scotland’s Early Lodges and their members), infelizmente ainda não traduzido para o português .

Autor: Robert Cooper
Traduzido por: Rodrigo Menezes

Fonte: Ritos & Rituais

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Notas

[1] – A Loja ainda existe é é conhecida como a Loja de Edimburgo da Capela de Maria (Lodge of Edinburgh Mary’s Chapel), No. 1. Os registros da Loja são de 31 de julho de 1599 e continuam até a presente data.

[2] – O Ato de Supremacia de 1534 encerrou a autoridade Papal sobre a Igreja na Inglaterra e transferiu-o para a Coroa.

[3] – Muitas dessas incorporações continuam a existir na Escócia até os dias atuais, incluindo, por exemplo, a Incorporação dos Maçons de Glasgow que possui registros existentes de 1475. Eles agora não confinados a corpos de caridade.

[4] – Existe muito poucas referências a Lojas antes da Reforma mas o mais importante ocorre em 1491, quando Maçons de Edimburgo foram permitidos a usarem a Loja para “assuntos recreativos”. Veja o Apenso 1, O Mágico Maçônico (The Masonic Magician), pag. 246.

[5] – Por exemplo um membro de uma Incorporação dos Ferreiros de Dundee foi expulso em 1653 por revelar os segredos do ofício a um não-membro. Veja The Burgh Laws of Dundee, pag. 493.

[6] – A primeira dessas Lojas foi a Aitcheson’s Haven que começa em 09 de janeiro de 1599.

[7] – As estátuas foram recentemente reproduzidas no The Rosslyn Hoax?, Apenso 1 e 2. pags. 330 – 335.

[8] – Later the 2nd Earl of Stirling.

[9] – Veja: ‘From Elias Ashmole to Arthur Edward Waite’ em Philalethes, Winter 2011, págs. 22 – 23.

[10] – Santo André é o Santo Padroeiro da Escócia.

[11] – Por essa razão que elas são ocasionalmente referidas como as “Lojas de Schaw”.

[12] – Veja: ‘From Elias Ashmole to Arthur Edward Waite’ em Philalethes, Winter 2011, pág 24.

[13] – Esses rituais ou catecismos foram descobertos desde 1930 quando o mais antigo deles, o Edinburgh Register House MS datado de 1696 foi descoberto e anunciado ao mundo Maçônico na ‘Ars Quatuor Coronatorum’ (AQC) Volume 43, págs. 153 – 155. (Esse é o jornal anual da Loja Quatuor Coronati, No. 2076 a mais antiga Loja de Pesquisa do mundo).

[14] – Outros Rituais pré-Grande Loja nessa família são documentos datados de 1700, 1705, 1710 e 1715.

[15] – Esse debate está contido em Kincardine Letters escrito entre 1657 – 1659.

[16] – Pelo ponto de vista histórico, é uma pena que ele não discorreu sobre qualquer aspecto dos rituais da Loja incluindo os tão chamados “segredos” mas talvez isso tenha ocorrido indicação que ele levou do seu juramento (obrigação) ao coração.

[17] – A Sociedade foi, de fato, garantira por três cartas Reais: 1662, 1663 e 1669 todas durante o tempo de vida de Moray. Na segunda delas “o próprio Rei se declara Fundador e Patrono da Sociedade”.

O maçom Simón Bolívar: entre o mito e a verdade histórica – Parte II

Geopedrados: Simón Bolívar nasceu há 238 anos

Bolivar, maçom. Sua iniciação

Deixando de lado as características políticas e não maçônicas das lojas Lautaro, Cavaleiros Racionais ou o que você quiser chamá-los, e ignorando até o fato não comprovado de que Bolívar tinha seus contatos com ditos cavaleiros racionais em Cádiz ou Londres, por curiosidade ou convicção. A verdade é que Bolívar, algo que não pode ser provado no caso de Miranda[42], pertencia à Maçonaria europeia pelo menos durante sua breve estada em Paris nos anos 1804-1806.

Ao dispensar as hipóteses de trabalho mais ou menos sugestivas, se nos atermos à documentação maçônica preservada, Simón Bolívar foi iniciado na Maçonaria, embora não se saiba onde. Já que o primeiro documento nos é apresentado no ato de receber o grau de Companheiro Maçom, ou seja, do segundo grau. Trata-se de um documento manuscrito do qual falam Carnicelli e Seal-Coon[43], de propriedade do historiador venezuelano Ramón Díaz Sánchez, que certificou sua origem e titularidade antes de depositá-lo no Conselho Supremo do Grau 33 da República da Venezuela.

O documento em questão diz o seguinte:

À Glória do Grande Arquiteto do Universo. No dia 11 do 11º mês do ano da Grande Luz 5805 [44] as obras do Companheiro foram abertas a Leste pela R. hº de la Tour d’Auvergne, a Oeste e a Sul sendo iluminadas pela RR. H H. Thory e Potu. Feita e sancionada a leitura da última última prancha traçada, o Venerável propôs elevar o patamar de Companheiro ao Hº Bolívar recentemente [45] iniciado, por causa de uma viagem que se aproxima que está em vésperas de empreender. Tendo sido a opinião dos irmãos unânime em sua admissão e escrutínio favorável, hº Bolívar foi introduzido no templo, e após as formalidades de rigor prestou a costumeira obrigação ao pé do trono, situado entre os dois Vigilantes, e foi proclamado cavaleiro Companheiro Maçom da R. Loja Madre Escocesa de Santo Alexandre da Escócia. Este trabalho foi coroado com uma tripla aclamação (hurra) [46] , e o hº tendo dado graças tomou lugar no topo da Coluna do Meio-dia.

Os trabalhos foram encerrados da maneira usual

Em seguida, vêm oito assinaturas, incluindo a de Simón Bolívar. Este é um excerto das atas da Loja Santo Alexandre da Escócia [47], localizada em Paris “no subterrâneo (porão) do boulevard Poissonnière” segundo Coen-Dumesnil e na rua Coq-Heron, segundo Jacques Simon [48]. Nesse excerto se diz que o Venerável se propõe a subir à categoria de Companheiro o Irmão Bolívar, recém-iniciado, por causa de uma viagem que está prestes a fazer. Acrescenta que, após as formalidades exigidas, Bolívar foi proclamado cavaleiro Companheiro Maçom, tomando lugar no topo da coluna do meio-dia. Estamos diante de um ato ou documento maçônico datado do 11º mês do ano da Grande Luz 5805, que equivale a janeiro de 1806 da Era Vulgar, se levarmos em conta que o calendário maçônico começa no mês de março[49].

Além disso, temos outro documento em versão dupla (manuscrita e impressa) em que Bolívar já aparece como Mestre, ou seja, um grau superior. No entanto, este novo documento é datado de 1804, um ano antes. É a “Tabela Geral dos Membros que compõem a Respeitável Loja Escocesa de Santo Alexandre da Escócia, a Leste de Paris” desde o ano da Grande Luz 5804, a Restauração 5564 e a Era Vulgar do ano 13. Em outras palavras , o ano de 1804 e 13 da Revolução.

Uma possível explicação para esse descompasso na datação de ambos os documentos pode ser devido ao fato de este último se referir não apenas a 1804, mas também a 1805, pois não especifica o dia nem o mês, que estão em branco. Este poderia ser um título ‘padrão’ em que os dados precisos, incluindo a correção do ano, não foram preenchidos, como às vezes é o caso com os formulários de hoje. Além disso, pode ser a tabela de 1804 à qual novos dados de 1805 foram adicionados, como também costumava ser o caso. Em todo caso, trata-se de outro documento autêntico, conservado na Biblioteca Nacional de Paris, na coleção maçônica do Gabinete de Manuscritos [FM 2 . 100 bis, Dossiê 3].

Nela aparecem dois nomes: Emmanuel Campos “nobre espanhol, Mestre Maçom” e Simón Bolívar “oficial espanhol, Mestre Maçom”. A título de curiosidade, deve-se acrescentar que esta é a única “lista” em que aparece o nome de Bolívar. A coluna correspondente não inclui as assinaturas regulamentares de nenhum dos dois, nem de Campos, nem de Bolívar. Isso significa que não compareceu à reunião realizada ou à reunião maçônica de final de ano (geralmente em 27 de dezembro, dia de São João) para registrar suas assinaturas no documento em questão; ou que esses dias estiveram ausentes de Paris. Pelo menos, no que diz respeito a Bolívar, sabemos que a urgência em receber o graus de Companheiro se deveu a uma viagem iminente que ele teve que fazer, e que de fato o fez, seja no ano de 1804 ou no ano de 1805 .

De fato, Bolívar, que tinha grande admiração por Napoleão como símbolo de liberdade e glória, experimentou grande decepção em consequência de sua auto coração como imperador na catedral de Paris em 2 de dezembro de 1804 [50]. O fato de Napoleão estar com a coroa imperial quebrou em Bolívar o mito que se forjava em torno de sua figura:

Eu o adorei como o herói da República, como a estrela brilhante da glória, o gênio da liberdade. No passado eu não sabia de nada igual a ele, nem o futuro prometia produzir algo semelhante. Ele se tornou imperador, e daquele dia em diante eu o considerei um tirano hipócrita, uma desgraça para a liberdade e um obstáculo para o progresso da civilização. [51]

Essa decepção foi agravada quando, alguns meses depois, em 15 de agosto de 1805, em Milão, Napoleão voltou a se coroar, desta vez como rei dos italianos. Bolívar também se encontrava na Itália, evocando as glórias da República Romana e, tendo como testemunha seu tutor Simon Rodriguez, fez no Monte Sacro em Roma seu famoso juramento:

“Juro pelo Deus de meus pais, juro por eles, juro pela minha honra e juro pelo meu país que não darei descanso ao meu braço, nem descanso à minha alma, até que tenha quebrado as correntes que nos oprimem pela vontade do poder espanhol.” [52]

Embora o documento que o atesta ainda não tenha sido localizado, o mais provável é que pouco depois de ter sido admitido ao posto de Companheiro tenha recebido, e pelo mesmo motivo, o de Mestre, pois com este grau – e não com o como um Companheiro – aparece na lista acima mencionada de membros da Loja Santo Alexandre da Escócia . Provavelmente, e como se fala de ter sido iniciado recentemente, Bolívar recebeu os três graus (Aprendiz, Companheiro e Mestre) com pouca diferença de tempo na mesma loja parisiense. Pois bem, se tivesse sido iniciado em outra loja, a cerimônia de recepção da grau de Companheiro – relatada no documento do historiador venezuelano Ramón Díaz Sánchez – teria que ser precedida do ato de filiação à loja em questão. Como não há alusão a ele, o correto é pensar que ele recebeu os três graus na loja parisiense de Santo Alexandre da Escócia com muito pouca diferença de tempo, possivelmente nos últimos meses ou semanas de 1805. Pérez Vila acredita que Bolívar, provavelmente, foi iniciado no início de dezembro, ou no final do mês anterior[53]. Miriam Blanco-Fombona, após examinar a documentação da Loja Santo Alexandre da Escócia na Biblioteca Nacional de Paris, acredita que Bolívar foi iniciado como Aprendiz em 27 de dezembro de 1805 [54].

Existe ainda um novo documento na Biblioteca Nacional de Paris intitulado “Quadro do hh. que compõem a R. Loja Mãe Escocesa da França, sob o título distintivo de Santo Alexandre da Escócia a Leste de Paris no ano da Grande Luz 5804 e 1805”, que vem a ser uma repetição da anterior, mas ordenado por graus maçônicos e no qual, a partir dos cavaleiros Rosa Cruz [55], são especificados os nomes de seis Mestres, entre eles Campos, um senhor espanhol e Bolívar, um oficial espanhol [56]. Eles são seguidos por um Companheiro, dois membros da Coluna da Harmonia, um membro honorário e três não residentes ao longo do ano.

Esta questão está ligada a outra dificuldade menor ou pequena anomalia das quadros em questão. E é que, de acordo com os Estatutos da Ordem Maçônica na França [57], publicado em 1806, era proibido receber o grau de Companheiro antes dos vinte e três anos e o de Mestre antes dos vinte e cinco anos. Por outro lado, a passagem de graus estava sujeita à assiduidade das lojas. Um Aprendiz não poderia ser recebido como Companheiro se não tivesse participado de pelo menos cinco sessões; o grau de Mestre só foi concedido ao Companheiro depois de justificada a sua participação em sete assembleias. Em suma, a presença nas reuniões maçônicas de um ano foi suficiente para alcançar a possibilidade de acessar o mais alto grau da Maçonaria Azul, ou seja, o de Mestre. No entanto, o militar – e este foi o caso de Bolívar – não só poderia ser iniciado antes dos 21 anos, como também os filhos dos maçons[58], assim como podiam, excepcionalmente, receberem mais de um diploma no mesmo dia quando sua partida era iminente. Ambas as circunstâncias ocorreram na pessoa de Simón Bolívar por ser militar e por ter que fazer uma viagem imediatamente. Na verdade, é sintomático que seu nome não apareça nos quadros dos membros da Loja de Santo Alexandre da Escócia antes de 1804 e 1805, nem nas posteriores[59]. No entanto, o nome de Emmanuel Campos aparece no quadro de 1806, um senhor espanhol de 24 anos, Mestre Maçom, que vivia na Rua Richelieu. Nesse caso, há a assinatura de Manuel Campos[60].

Continua…

Autor: Jose Antonio Ferrer Benimeli

Fonte: REHMLAC

*Clique AQUI para ler a primeira parte do artigo.

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Notas

[42] – Seal-Coon, “Maçonaria revolucionária hispano-americana. A alvenaria mítica de Francisco de Miranda ”, Ars Quatuor Coronatorum 94 (1981): 83-106. Seal-Coon, “The Mythical Freemasonry of Francisco de Miranda”, 107-126. Padrón Iglesias, “Maçonaria”, 13-20.

[43] – Carnicelli, Maçonaria , volume I, 121; Sean-Coon, “Simón Bolívar Freemason”, 231-248.

[44] – Na verdade, na terminologia maçônica, “o ano da Verdadeira Luz” é usado com mais frequência em vez de “Grande Luz”.

[45] – No original é usada a expressão nouvellement, que em espanhol tem duas traduções diferentes: de novo e recentemente . Seal-Coon em sua obra já citada Simón Bolívar maçom (233) usa a expressão recém-iniciado e sugere que ele pode ter sido iniciado em Cádiz. Mas além do fato de que devido ao contexto, a tradução correta é a de recentemente-também usado por Carnicelli- há outro erro em Seal-Coon: a alegada loja Caballeros Racionales de Cádiz ainda não havia sido fundada em Cádiz e também não pode ser entendida como uma loja maçônica, mas sim como uma sociedade patriótica; e sua adesão não implicava qualquer iniciação maçônica apropriada válida para a Maçonaria autêntica.

[46] – Na Maçonaria, a aclamação segue os tambores . Tambor é um rito que consiste em bater palmas um certo número de vezes, dependendo do grau em que este rito é praticado. Os veneráveis ​​e vigilantes costumam participar dos tambores batendo nos respectivos tacos em suas mesas. A aclamação é pronunciada pelos maçons em pé, a mão direita erguida e o braço estendido horizontalmente. Na Maçonaria francesa, existem duas aclamações tradicionais. O primeiro usa a fórmula vivat, vivat, sempre vivat-viva, viva, viva sempre-; a segunda, que ainda existe no rito escocês, é a tripla “houzzé” ou “houzza”. Esta última expressão é a utilizada no documento em questão. A origem desta palavra, “houzzé” ou “houzza”, ainda não está completamente esclarecida, apesar das obras de Lantoine. Segundo Delaunay ( Manuel maçonnique , Paris, 1821) e Vuillaume ( Manuel Maçonnique , Paris, 1820), significaria “Viva o rei”. Lantoine ( Le Rite Ecossais Ancien et Accepté , Paris, 1930) vê simplesmente uma distorção da velha exclamação inglesa “viva”. A bateria de alegria sempre foi feita em homenagem a um evento feliz para a loja ou um irmão, e era natural que os maçons escoceses usassem essa aclamação.

[47] – Carnicelli, Maçonaria , Volume I, 123-127. A reprodução fotográfica na página 129, e em Seal-Coon, Simón Bolívar , 233. Entre as assinaturas deste documento está a de Jeanne (Juana) de la Salle que liderou Iván Herrera Michel em sua obra La logia de Bolívar de Paris ( http://www.diariomasonico.com/historia/bolivar-y-la-francmasoneria) a um lamentável erro em acreditar que dita assinatura pertencia a um maçom e que portanto Bolívar recebeu o 2º e 3º graus na “prestigiosa loja mista St Alexandre da Escócia ”. No entanto, na foto da referida loja fica claro que Jeanne de la Salle é o sobrenome, e seu nome é Thomas, um ex-marinheiro que ocupou a posição de segundo diácono na loja.

[48] – Antoine Coen – Michel Dumesnil de Gramont, La Franc-Maçonnerie Écossaise (Paris: EE Figuière, 1934) 25-26. Jacques Simon, Histoire du Rite Écossais Ancien et Accepté en France. Tomo I: Des origines de la franc-maçonnerie à 1900 ( Paris: Dervy, 2019), 90.

[49] – A data maçônica usada, como o calendário maçônico não é uniforme, não é fácil especificar sua correspondência em nosso calendário gregoriano. A este respeito, Manuel Pérez Vila, “A experiência maçônica de Bolívar em Paris” em Visão diversa de Bolívar(Caracas: Ed. De Pequiven, 1984), 333-334, diz o seguinte: “Se o registro pertencesse a uma loja inglesa ou norte-americana de rito ortodoxo (o que não é o caso), não haveria dúvida: o 11º dia do O 11º mês do ano 5805 seria 11 de novembro de 1805, porque lá o ano maçônico começa na mesma época que o ano civil, em 1º de janeiro, e 4000 são adicionados ao ano para voltar ao que era então considerada a data da criação do mundo. Mas se o ato tivesse sido feito em uma loja francesa dependente do Grande Oriente da França, o 11º dia do 11º mês de 5805 corresponderia a 11 de janeiro de 1806, uma vez que essas lojas também acrescentaram 4.000 anos ao da era cristã, mas eles começaram o ano maçônico em março e não em janeiro. Mas como o ato relativo a Bolívar corresponde a uma loja escocesa de rito antigo e aceito, o assunto fica mais complicado, pois, além de somar 4.000 anos e iniciar o cálculo em março, os escoceses não necessariamente começam seu ano em 1º de março, mas seguem o calendário hebraico em que os meses são lunares, e não idênticos aos um ano para o outro, sendo necessário estabelecer uma tabela de equivalências. O máximo que se pode dizer é que o dia em que Bolívar foi promovido a companheiro na Loja Santo Alexandre da Escócia, em Paris, deve situar-se na primeira quinzena de janeiro de 1806”. Sobre sendo necessário estabelecer uma tabela de equivalências. O máximo que se pode dizer é que o dia em que Bolívar foi promovido a companheiro na Loja Santo Alexandre da Escócia, em Paris, deve situar-se na primeira quinzena de janeiro de 1806”. Sobre sendo necessário estabelecer uma tabela de equivalências. O máximo que se pode dizer é que o dia em que Bolívar foi promovido a companheiro na Loja Santo Alexandre da Escócia, em Paris, deve situar-se na primeira quinzena de janeiro de 1806”. Sobre Calendários maçônicos na Maçonaria , História Extra IV 16 (novembro de 1977): 134-136.

[50] – Bolívar estava em Paris quando Napoleão foi coroado imperador. Além disso, o embaixador espanhol convidou Bolívar a fazer parte de sua comitiva para presenciar a cerimônia na Catedral de Notre-Dame; mas não só ele recusou o convite, mas – de acordo com Villaurrutia – “ele se trancou em casa o dia todo.” Ramírez de Villaurrutia, A Rainha, 314.

[51] – Ramírez de Villaurrutia, La Reina , 313-314.

[52] – Nelson Martínez, Simón Bolívar, 18 anos.

[53] – Pérez Vila, A experiência , 334.

[54] – Miriam Blanco-Fombona de Hood, “Masonry and our Independence”, The American Repertory I (julho de 1979): 59-70.

[55] – Que são três: um Marechal do Império e dois Doutores em Medicina, os três oficiais do Grande Oriente da França.

[56] – Atualmente segundo tenente do Regimento da Milícia Voluntária Branca dos Valles de Aragua. Foi em junho de 1810 – seis anos depois – que Bolívar seria promovido a coronel das milícias. Porém, na filiação por ele cedida à polícia parisiense em abril de 1806, aparece como um “empresário domiciliado na Espanha”, embora na fornecida à pousada o faça como um “oficial espanhol”.

[57] – Statuts de l’Ordre Maçonnique en France (Paris, 1806), cap. XII, sec. VII, 205.

[58] – Observe aqui a influência de Napoleão Bonaparte na configuração do que acabaria sendo chamada de Maçonaria Bonapartista. Ferrer Benimeli, “A Maçonaria Bonapartista na Espanha”, in Formação Histórica da Maçonaria (Rio de Janeiro: Academia Brasileira Maçônica de Letras, 1983), tomo I, 102-165.

[59] – Como Demetrio Ramos coleta na biografia de Bolívar, alarmado com as tentativas de Miranda na Venezuela, ele decidiu retornar à sua terra natal. De Paris foi para Hamburgo, onde embarcou no final de 1806 em um navio neutro chegando a Charleston em 1º de janeiro de 1807. Ramos, Simón Bolívar , 38.

[60] – De Manuel Campos, que se apresenta como um ‘nobre’ ou ‘cavalheiro’ espanhol, pouco se sabe. Possivelmente foi iniciado por volta das mesmas datas de Bolívar, dada a ordem de inscrição na tabela lógica. Alguns anos antes localizei precisamente um Manuel Campos, capitão da Companhia Provisória dos Invalides estacionado na Alhambra e que recebeu o conde Aranda como prisioneiro em 29 de agosto de 1794 em consequência de sua demissão do cargo de Primeiro Ministro e o processo iniciado por Carlos IV a pedido de Godoy. Mas não é possível ser a mesma pessoa porque se Manuel Campos tinha 24 anos em 1806, deveria ter doze em 1794. Rafael Olaechea e Ferrer Benimeli, El Conde de Aranda. Mito e realidade de um político aragonês (Zaragoza: Ibercaja, 1998) 376.

Episódio 59 – Teseu e a Iniciação

(music: Slow Burn by Kevin MacLeod; link: https://incompetech.filmmusic.io/song/4372-slow-burn; license: https://filmmusic.io/standard-license)

O mito de Teseu é, claramente, a descrição de um ritual de passagem: do profano ao sagrado; do homem profano, ao buscador. Pode-se compreender esse mito como o caminho que faz o indivíduo, a partir do momento que decide ser buscador: é o caminho do iniciado.

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Episódio 55 – Cinco motivos para NÃO ser maçom

(music: Slow Burn by Kevin MacLeod; link: https://incompetech.filmmusic.io/song/4372-slow-burn; license: https://filmmusic.io/standard-license)

Quem pensar que a entrada na Maçonaria é uma porta aberta para obter contatos e negócios e o propiciar de condições para “subir na vida”, pense outra vez, e pense melhor! Se for este o motivo que o faz desejar entrar na Maçonaria, poupe-se ao trabalho e às despesas. Dentro da Maçonaria fará os mesmos negócios que faria fora dela. O que todos lhe pedirão na Maçonaria é que dê algo de si em prol dos outros. Dos demais receberá o que efetivamente…

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A (im)perfeição e as Old Charges – Parte III

Cientistas criam neurônios capazes de reparar danos do Alzheimer - Olhar  Digital

Para além da questão da deficiência física coloca-se a da deficiência mental. Poderá um deficiente mental ser iniciado maçom? Neste caso, a porta já não se abre tanto quanto face à deficiência física, mas também não se fecha de todo. É tudo uma questão da natureza e das consequências da deficiência. Um profano, para ser iniciado maçom, tem que ser “livre e de bons costumes”. A pedra de toque da questão da deficiência mental coloca-se, precisamente, na liberdade. Há três vertentes em que se exige que uma pessoa seja livre se quer ser admitido:

– Liberdade da luta pela autossuficiência. Para ser admitida na maçonaria, uma pessoa tem que dispor dos meios económicos para se bastar a si mesma de modo que o sustento diário não seja uma preocupação tal que se sobreponha a todo o resto. Não está em causa a quantidade dos rendimentos, mas que este sejam suficientes e adequados ao garante do sustento do próprio e daqueles que tenha a cargo – descendentes ou ascendentes. Deve, ainda, permitir que os custos decorrentes da pertença à maçonaria (quotas, material, etc.) não causem transtorno. Uma pessoa que viva constantemente assoberbada com o que vai amanhã colocar na mesa para os filhos, ou falte mesmo aos seus deveres familiares, não tem disponibilidade mental para ser maçom – decorra essa carência económica ou não de deficiência mental.

– Liberdade de pensamento. Uma pessoa que não seja livre de poder, voluntariamente, alterar a sua forma de pensar não tem lugar na maçonaria, pois a maçonaria tem como objetivo o aperfeiçoamento do Homem, e aperfeiçoar-se é, forçosamente, mudar. Ora, procurar aperfeiçoar-se é sinal de que se admitiu já a própria imperfeição, e isto só pode ter decorrido de uma autoanálise – que, por sua vez, só pode ter tido lugar numa mente suficientemente ordenada para a ter efetuado. Por esta razão, quem não tenha a capacidade de ver e aceitar como válido um ponto de vista distinto do seu – o que sucede, por exemplo, com alguns fundamentalistas, cujas crenças podem ser rígidas a ponto de que o impeçam de pensar por si mesmo – também não está apto, independentemente da sua sanidade mental, a ser iniciado.

– Liberdade de agir em consciência. Uma pessoa incapaz de pôr em prática os seus próprios desígnios e de agir de acordo com os ditames da sua consciência dificilmente poderia tirar algum proveito da maçonaria. Se a maçonaria não tiver repercussões na forma de agir do maçon, então estamos perante um caso de insucesso. É essencial que o maçom não só tenha uma consciência bem formada – uma boa noção do bem e do mal – como paute o seu modo de agir por esses mesmos princípios. Uma pessoa que, em virtude de uma dependência (do jogo, de uma droga…) que condicione a sua vontade, não possa agir em consciência – não porque esta não exista, mas porque a sua concretização esteja fortemente condicionada – não deverá ser iniciada.

Não esqueçamos, por fim, que o conceito de normalidade é puramente arbitrário e estritamente decorrente das características da população em que o indivíduo se insira: um indivíduo “normal” numa população pode ser “anormal” se inserido noutra. A fronteira tem que ser traçada algures, mas isso quer dizer o quê? Que, se a pessoa estiver num dia bom, pode ser iniciada, e depois, num dia mau, é excluída? Mas não temos todos momentos melhores e piores, de maior ou menor lucidez, uns mais felizes do que outros?

Uma pessoa dependente do álcool a ponto de que isso perturbe a sua vida quotidiana está tão privada de liberdade de ação como uma pessoa que tenha o espírito igualmente embotado mas sem que tal decorra da bebida. Ou um fanático religioso pode ser tão inabalável e impermeável à mudança quanto um obsessivo-compulsivo. Não é a deficiência mental, em si mesma, o obstáculo, mas as limitações – que podem ter variadas origens para além da deficiência mental – a que a liberdade do indivíduo esteja sujeita.

Pretender que apenas seres perfeitos e perfeitamente livres se tornem maçons seria um contrassenso. Por não existirem homens perfeitos, seria esta uma excelente receita para se acabar com a maçonaria. Mas, acima de tudo, a maçonaria é um método de aperfeiçoamento – e só se aperfeiçoa quem não é perfeito. Pedras polidas não precisam de desbaste – e liberdade absoluta não existe. Como em tantas outras coisas, aqui só podemos socorrer-nos das linhas gerais e, para cada caso particular, aplicar uma das mais importantes regras: a do bom senso.

Autor: Paulo M.

Fonte: Blog A Partir Pedra

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A (im)perfeição e as Old Charges – Parte II

Bem-vinda imperfeição. Abro a porta para ela entrar… | by Nalini  Vasconcelos | Revista in-Cômoda | Medium

Em pleno século XIX houve diversas tentativas de se tornar menos estrita a regra que impedia a admissão de deficientes físicos na Maçonaria, alegando-se ser esta um legado dos tempos da maçonaria operativa. Algumas Grandes Lojas deixaram, mesmo, cair este requisito, exigindo apenas que o candidato tivesse a capacidade física estritamente necessária a que pudesse ser iniciado e receber os ensinamentos da Ordem. Mas logo vozes se elevaram, recordando que o que estava em causa era um dos landmarks da Maçonaria, que são por definição imutáveis, e por isso a questão não careceria sequer de mais discussão. Independentemente da origem do preceito residir na maçonaria operativa e ter, entretanto, deixado de fazer sentido, este deveria ser cumprido, sob pena da retirada do reconhecimento às Obediências que não o cumprissem e fizessem cumprir. Mas não se pense que, sem mais debate, a questão se ficava por aqui, ou que os argumentos alegados eram desprovidos de substância; pelo contrário.

Alegava-se, por exemplo, que a Bíblia descreve, repetidamente, como só um animal perfeito e sem mancha podia ser oferecido em sacrifício. Se o bicho tivesse a mínima imperfeição deixava de ser passível de ser oferecido em holocausto: ao Divino não se oferecia senão o que se tinha de melhor. Ainda nesta perspectiva, uma vez que, em Maçonaria Regular, se trabalha “À Glória do Grande Arquiteto do Universo” – donde decorre que o trabalho que se faz é feito em Sua intenção, sendo cada maçom a sua própria oferenda – a aplicar-se à letra o antigo princípio da perfeição da vítima sacrificial, poder-se-ia discorrer que um deficiente físico não seria “suficientemente bom” para ser oferecido ao Grande Arquiteto do Universo.

Outro dos argumentos teria que ver com a capacidade de trabalhar. A Maçonaria – mesmo a Especulativa – socorre-se do trabalho como forma e método de aprendizagem, pelo que a incapacidade para desempenhar tarefas úteis poria em causa todo o método maçónico. Por outro lado, é essencial que um maçom se baste a si mesmo, pois de outro modo não teria a disponibilidade mental para se aperfeiçoar enquanto pessoa. É uma questão de prioridades: primeiro o sustento do corpo, depois o apuramento do espírito.

A própria simbologia maçónica era usada como argumento. Discutia-se, com a maior seriedade, se, uma vez que a maçonaria tinha por objetivo a “construção do Templo” a partir das pedras que cada um ia tratando de polir, não seria contrário à mesma maçonaria aceitar pedras “tortas”? Que Templo Perfeito poderia a Maçonaria almejar construir à Glória do Grande Arquiteto se as pedras não fossem todas perfeitas?

Espantosamente, este debate ainda persiste; ainda há Obediências – Grandes Lojas – cujos regulamentos proíbem a admissão de deficientes físicos. Contudo, mesmo a maioria dessas admite que, se um Irmão ficar limitado (amputado, paralisado…) após a sua admissão, terá todo o apoio da loja.

Na Grande Loja Legal de Portugal/GLRP a questão, tanto quanto sei, não se coloca. As condicionantes à admissão são, de acordo com a Constituição e Regulamento Geral da GLLP, apenas que os candidatos sejam “homens livres e de bons costumes que se comprometem a pôr em prática um ideal de paz” , que tenham “o respeito pelas opiniões e crenças de cada um”, e sejam “homens de honra, maiores de idade, de boa reputação, leais e discretos, dignos de serem bons irmãos e aptos a reconhecer os limites do domínio do homem, e o infinito poder do Eterno”.

Pode argumentar-se que um deficiente físico não é inteiramente livre. Fosse esse um requisito – ser inteiramente livre – e não haveria quem pudesse ser admitido na maçonaria. Todos nós só o somos até certo ponto. Quanto à iniciação, será que se perde alguma coisa se for feita de cadeira de rodas? Claro que sim. Mas não se perde mais numa iniciação do que num passeio na cidade; quem está limitado sabe que o está, e em que medida.

E um surdo? Ou um cego? Poderão ser iniciados maçons? Não vejo porque não. Desde que aptos a comunicar, estou certo de que se providenciaria o que fosse razoável para os acomodar. Um surdo pode, por exemplo, ler nos lábios; e poderia “falar” por escrito, à falta de melhor. Um cego pode ouvir e falar – apesar de poder ser curioso ouvir da sua boca algumas fórmulas rituais que se referem à Luz e às Trevas, por exemplo, mas basta que interiorizemos que a Luz e as Trevas, em Maçonaria, são simbólicas, não precisando nós dos olhos para as poder entender, para que logo as suas palavras deixassem de soar estranhas.

Pode um amputado praticar natação? Ou um paraplégico jogar basquete? Sabemos que podem. E podem competir de igual para igual com uma pessoa não deficiente? Tenho as minhas dúvidas. Mas poderá a prática desportiva tornar a sua vida mais completa, incrementar a sua saúde, torná-los pessoas mais felizes? Disso já tenho a certeza. Do mesmo modo, poderá um deficiente físico tirar partido da maçonaria tanto quanto alguém que o não seja? Bom… em muitos casos até pode, mas admitamos que não podia. Seria essa lacuna, esse inultrapassável obstáculo, razão para que fosse impedido de atingir todo o resto?

Autor: Paulo M.

Fonte: Blog A Partir Pedra

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